Onde está Marx nas obras e no pensamento de Vigotski?

Lucien Sève

Junho de 2018


Primeira Edição: Conferência apresentada ao 7° Séminaire International Vygotski, em junho de 2018.

Fonte: https://medium.com/katharsis/seve-marx-vigotski-psicologia-dc578a711d42

Tradução: Bruno Bianchi

HTML: Fernando Araújo.

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O que há sobre a questão aparentemente clara do lugar de Marx nas obras e pensamento de Vigotski que a torna tão enigmática? Como devemos entender o fato de que as sucessivas tentativas de responder esta questão ao longo de um século têm sido tão contraditórias, e permanecem assim até hoje? Antes de tentar responder à questão, não devemos primeiro perguntar o que faz dela uma tal armadilha? É por aí que começarei.

Primeiro, algumas palavras para lançar luz sobre os violentos paradoxos que são lançados quando estudamos a história da questão. Para começar, há uma resposta ambígua do próprio Vigotski: tendo lido Marx desde sua juventude, no clima revolucionário da Rússia em 1917 como vivido por uma família de cultura considerável, ele descobriu O Capital, que de muitas maneiras essenciais moldou sua visão da psicologia — e, tendo se tornado um psicólogo, ele escreveu em 1916 que “a psicologia precisa do seu próprio Capital” (Vigotski, 2010, p. 273). Poderia ser mais claro? De fato, não é muito claro (voltarei a este ponto mais tarde), mas, de qualquer forma, aqui existe uma referência importante e definitiva que aqueles que afirmam que não tinha nenhuma importância real para Vigotski negligenciam em abordar seriamente. Mas eis que, alguns anos depois, a vanguarda do marxismo na URSS de 1930, que estava no meio do processo de stalinização, denunciou a posição de Vigotski como “idealista”, “burguesa”, “reacionária” e até mesmo “antimarxista”,(1) acusações de lamentável estupidez, que devastaram Vigotski. De acordo com Zeigarnik, ele disse “Eu não posso viver se o Partido acredita que não sou um marxista”.(2) No entanto, as acusações atestam a grande ambiguidade que surge quando tentamos julgar se um pensamento é marxista ou não. Já podemos começar a discernir o tipo de armadilha que pode estar por trás da questão “Vigotski e Marx”: a quem o nome de Marx pertence, precisamente? E o que é uma psicologia “Marxista”?

Mas isso não é tudo. Condenado ao amontoado de cinzas da história durante o reinado de Stalin, o trabalho de Vigotski começou a reemergir sob Khrushchov e despertou interesse fora da URSS, como atestado pela primeira tradução de Pensamento e Linguagem publicado em 1962 pela MIT Press. Mais uma vez aqui, há um desenvolvimento paradoxal: não só os tradutores Eugenia Hanfmann e Gertrude Vakar truncaram a obra em dois terços, como também excisaram toda menos uma referência ao pensamento Marxista, sem uma palavra de explicação sobre o assunto. Para os stalinistas, Marx não estava suficientemente presente no trabalho de Vigotski; para os tradutores americanos, por outro lado, ele estava presente demais. Esta indefensável iniciativa intelectual teve sérias consequências: para começar, a percepção norte-americana de Vigotski foi desmarxizada, e isto se espalhou para as várias traduções do resumo americano de seu trabalho e, apesar de tudo o que foi feito para remediar esta situação nos EUA desde então, pode-se perguntar se alguns vestígios desta subestimação original permanecem. Ao menos, isso é o que uma verificação cruzada da literatura francófona sugeriria.

Muito tardiamente — a ideologia antimarxista dominante tendo resultado no silencio radiofônico sobre o assunto de Vigotski no campo francófono — a primeira tradução finalmente apareceu na França e na Suíça francófona (Schneuwly-Bronckart, 1985; 1ª edição de Pensamento e Linguagem, 1985), seguida de muitas outras, bem como o desenvolvimento de uma rica onda vigotskiana de pesquisas e ensino psicológico, tanto em Genebra como em Paris. Mas, em contraste com Hanfmann e Vakar, os líderes desta ondam foram formados por toda uma tradição de pensamento psicológico na qual Marx ocupou um lugar importante de várias formas — de Henri Wallon a Jean Piaget, de Ignace Meyerson a Georges Politzer. E, na França, foi a editora do Partido Comunista(3) que revelou o texto completo e inalterado de Pensamento e Linguagem à comunidade psicológica. Mais de uma pessoa que acreditava entender Vigotski com base apenas na leitura da magra edição da MIT Press de Pensamento e Linguagem me expressou seu espanto ao descobrir o espesso tomo lançado pela Editions Sociales. Daí o distinto contraste entre o vigotskismo francês que floresceu desde os anos 1980 — com o trabalho realizado na Universidade de Genebra por Bernard Schneuwly, Jean-Paul Bronckart, Janette Friedrich, Irina Leopoldoff-Martin, Christiane Moro, Frédéric Yvon, e na França por Michel Brossard, Yves Clot, Jean-Yves Rochex, Gérard Vergnaud, para fazer apenas uma breve menção da sua contribuição — e um vigotskismo de língua inglesa que não me pareceu o mais atento, e no qual Vigotski é visto como tudo para todos — um culturalista, um gestaltista, até mesmo um espinozista, mas certamente não um marxista.

Esta — embora breve — retrospectiva dá credibilidade a uma dupla conclusão: respostas rápidas como “a psicologia vigotskiana não deve nada de essencial ao pensamento marxista” e “Vigotski é uma das principais figuras da psicologia marxista” correm o risco de erro a menos que examinemos minuciosamente o significado de “psicologia marxista” e o que Vigotski pensava sobre ela. Só porque uma pergunta pode ser formulada em termos simples não significa que podemos responder a ela sem levar em conta a sua complexidade. E ainda assim, à primeira vista, não existe um meio elementar de resolver ela? Ou seja, ao perguntar que lugar o marxismo possui na obra de Vigotski. Uma pergunta aparentemente baseada em fatos, que se poderia esperar resolver procurando em seus escritos citações de Marx, Engels, Plekhanov, Lenin, Trotski Bukharin — note neste ponto um fato significativo: ele não faz nenhuma referência a Stalin. Tudo o que é necessário é um índice bem compilado.

Tomemos por exemplo a teoria apoiada pelo erudito vigotskiano Anton Yasnitsky. No The Cambridge Handbook of Cultural-Historical Psychology (2014, p.505), ele escreve que, como adesão à ideologia oficial estava se tornando obrigatória na URSS de Stalin, a relação de Vigotski com o marxismo era “apenas educada” e suas citações a Marx eram “principalmente por razões táticas”. Se esta hipótese estivesse correta, poderíamos esperar que estas citações estivessem especialmente presentes nos escritos públicos de Vigotski, e muito menos presente em seus escritos privados. Mas este não é o caso. Em Pensamento e Linguagem — o grande tomo que Vigotski determinou que fosse publicado — há um total de três referências a Marx. Enquanto isso, em uma nota de apenas vinte páginas escritas para si mesmo em 1929 — uma nota extremamente importante que inclui uma versão condensada de todas as visões fundamentais que tinha na época — Marx é citado sete vezes, sem contar as alusões identificáveis a Marx.(4) Não pode haver dúvidas: para Vigotski, Marx não é uma mera vitrine, mas um pensador de cabeceira por excelência.

A publicação dos Notebooks foi uma grande oportunidade para verificar isso. Aqui nós temos uma vasta coleção de textos que Vigotski escreveu para si mesmo. Se a hipótese acima mencionada fosse precisa, deveria haver poucas referências ao marxismo. Vamos nos referir ao título “Marx” no índice de nomes citados. Lamentavelmente esta seção é, ao contrário do restante do índice, defeituosa: há apenas duas referências notadas a Marx. Vamos preencher as lacunas: durante todo o trabalho, excluindo a introdução do autor, Marx é citado nas páginas 31, 38, 74, 76, 78, 79, 80, 88, 97, 108, 112, 122, 252, 264, 312, 317, 321, 322, 341, 348, 431, 475 — no total, 22 vezes. Adicione a isso as 24 referências a Engels, 20 ao marxismo, 20 a Lenin, 9 a Trotski, 6 a Bukharin, 3 a Politzer…(5) Impressionantemente, as referências ao pensamento marxista nestes diários privados são de mais de uma centena. Um golpe brutal à hipótese aqui testada. A realidade dos fatos prova ser exatamente o oposto do que essa teoria implica: é especialmente nos escritos privados de Vigotski que as referências a Marx e ao marxismo abundam — e devemos tentar entender o porquê.

Os dados factuais descartam uma falsa impressão. Mas será suficiente para nos dar uma correta? De modo algum. Além disso, como fui levado a formulá-la, a questão não é singular, mas dupla: onde está Marx na obra e no pensamento de Vigotski — duas coisas distintas, mas indivisíveis. Para encontrar o lugar de Marx na obra de Vigotski, devemos antes de tudo recorrer a um inventário de ocorrências: Marx ocupa um grande espaço ao longo do trabalho, e mais nos escritos particulares de Vigotski do que em seus escritos públicos. Mas estes dados factuais, embora permitam ou descontem certas respostas, não são de forma alguma uma indicação de significado em si mesmos. O que dizem as passagens inventariadas sobre Marx? Como elas contribuem para a formação do pensamento psicológico que pode ser qualificado como marxista? Esta pergunta supera em muito a composição de um índice que pode ser facilmente compilado eletronicamente. Devemos ler, entender o que lemos e compreender o seu significado em relação a esta atitude cultural que se encontra sob o título de marxismo. Precisamente em que marca o marxismo consiste? A dos Cadernos Filosóficos de Lenin? Ou a do Materialismo Histórico de Bukharin? Ou o marxismo de Abram Ioffe, conhecido como Deborin, o qual Deborin tenta impor nos anos 1920? Ou talvez aquele dos marxistas bolcheviques como Mark Mitin, que irrompeu violentamente em cena em janeiro de 1931 com o total apoio de Stalin? E, com relação a tudo isso, em que consiste o pensamento de Marx nas muitas e variadas formas em que é compreendido e audaciosamente aplicado por Lev Vigotski? É uma questão verdadeiramente complexa, mas se não entrarmos na complexidade em que ele teve que lutar com sobriedade cada vez maior, a questão de “Vigotski e Marx” perde todo o significado e qualquer interesse sério.

Para ver o assunto claramente, é vital pesquisar a própria concepção de Vigotski do que em 1920 era chamado de “psicologia marxista”. Para isso, devemos ler cuidadosamente o texto-chave que é o capítulo XIII do Significado Histórico da Crise na Psicologia — um texto programático, visto que foi escrito em 1926 e que é anterior à maioria da obra psicológica de Vigotski, mas já mostra um grande vigor de pensamento com relação à natureza da tarefa. Em primeiro lugar, este texto afirma fortemente o que não pode ser uma psicologia válida numa perspectiva marxista. Não pode haver psicologia que desenvolva as teorias psicológicas de Marx pela simples razão de que não existiam “teorias psicológicas” em Marx. Na época de Marx, ainda não havia uma ciência psicológica para se falar. O máximo que pode ser encontrado em seu trabalho sobre o assunto é a observação evocativa ocasional, como esta nota no Livro I do Capital — que Vigotski cita em mais de uma passagem — na qual ele afirma que “o homem primeiro vê e se reconhece em outros homens”, de tal forma que “Pedro só estabelece sua própria identidade como homem comparando-se primeiro com Paulo como sendo da mesma espécie”. (Marx, 2016, p.56).(6)

Mas o que deve ser criado não pode ser uma ‘psicologia marxista” mais geral, como foi chamada no Instituto de Psicologia dirigido por Kornilov, uma psicologia que consistiria em traduzir em conhecimento psicológico experimental as visões gerais do materialismo histórico e dialético. Não demorou muito para Vigotski compreender a falácia fundamental de tal empreendimento. Embora ele possa ter sido jovem — ele tinha 28 anos em 1924 — ele já tinha uma compreensão impressionante do pensamento marxiano, um fato essencial que é ignorado por aqueles que acreditam que ele citava Marx puramente por educação. É também importante notar que Vigotski chegou a Marx antes do marxismo-leninismo stalinizado que tomou forma em 1930–31. Vigotski era um marxista dos anos 1920, instruído no pensamento marxista não por manuais, mas através da leitura direta de Marx em alemão, e a dos Cadernos Filosóficos de Lenin, ou seja, através do pensamento vivo e pesquisador, a própria antítese da doutrina. E era aparente para ele que o desejo de criar uma psicologia “marxista” aplicando visões gerais preconcebidas à realidade mental era uma aberração. Nenhuma ciência do real pode emergir através da dedução com base em generalidades teóricas. Certamente, é preciso ver claramente na filosofia para ter uma chance de criar uma ciência, porque toda ciência, quer percebamos ou não, é filosófica — por exemplo, é crucial que psicólogos não confundam os significados ontológico e gnosiológico da palavra consciência — mas estes são pré-requisitos, longe do domínio do conhecimento científico. Não há “ciência antes da ciência”, escreve Vigotski, irrefutavelmente.

Em algumas páginas-chave da Crise (Vigotski, 2010, p. 272–275), Vigotski expõe uma crítica magistral e brutal da crença que se tinha difundido na URSS da época de que se podia criar uma ciência marxista simplesmente aplicando as teorias gerais do marxismo ao assunto em questão. “Nenhum sistema filosófico pode tomar posse da psicologia diretamente como uma ciência”; são necessário intermediários entre uma coisa e outra, que Vigotski chamou de “metodologia” e uma “psicologia geral”, juntas, “categorias e conceitos” que nos permitem ver os sujeitos psicológicos em toda a sua especificidade. Vamos refletir sobre o que Marx fez no Capital. Ele simplesmente inseriu visões gerais da dialética como a tríade hegeliana e o salto qualitativo no discurso econômico? Absurdo! Ele teve que criar e recriar uma família inteira de conceitos específicos como o das forças e das relações entre produção, mercadoria, trabalho, valor, moeda, capital etc. É precisamente neste sentido que a “psicologia precisa de seu próprio Capital”: isto não significa copiar o Capital para a psicologia — uma tarefa idiota — mas criar o equivalente do que Marx fez na economia. Se não compreendermos, se aplicarmos generalidades marxistas à psicologia, obteremos apenas “construções escolásticas, verbais”, e pior: “uma distorção grosseira tanto do marxismo quanto da psicologia”.

Devemos apreciar quem o jovem Vigotski teve a audácia de criticar aqui: não somente o diretor de seu próprio instituto, Konstantin Kornilov — o que foi ousado em si mesmo — mas ainda mais audaciosamente, o próprio Deborin (ele alude a ele sem mencioná-lo por nome, mas todos entendem , “o que está sendo feito hoje”), o todo poderoso diretor do jornal In the Light of Marxism, para quem produzir uma ciência marxista consistia em inserir o que ele acreditava ser uma dialética materialista no objeto em questão.(7) Um psicólogo de apenas 30 anos de idade que não era membro do Partido, Vigotski tomou a liberdade de dar aos próprios áugures uma lição de marxismo — “É preciso saber o que pode e o que deve ser procurado no marxismo”; não é de admirar que o livro não tenha sido permitido publicar. Mas deve-se tentar entender a dubiedade da noção de psicologia marxista. Aos olhos de Vigotski, o melhor que um marxista pode esperar da psicologia é fazer dela uma verdadeira ciência, para a qual a lição de Marx pode ser de grande utilidade — neste sentido, a psicologia teria a ver com o marxismo. Mas isso seria uma psicologia marxista? Uma ciência não é definida por sua posição ideológica, mas sim por sua congruência com os fatos. Neste sentido, apresentar uma psicologia como marxista seria invalidá-la em vez de dar-lhe valor. Mais do que um psicólogo marxista, Vigotski é um marxista que é um psicólogo. Uma lição importante, que permanece válida. O que não quer dizer a contribuição de Marx foi secundária para ele; é indireta, mas decisiva. Existem poucos textos na literatura psicológica internacional que evidenciam este fato tão fortemente como o capítulo XIII da Crise. Vigotski mostra uma rara maestria marxiana — sua crítica à Husserl com base em Feuerbach é uma obra-prima menor. É também por isso que, embora emocionalmente vulnerável à brutal condenação stalinista que suportou, ele não podia ser intimidado intelectualmente em nome do marxismo, conhecendo Marx e Lenin melhor do que seus censores e certamente possuía um melhor entendimento deles. Se seu trabalho obstaculizado está se estabelecendo irresistivelmente na trajetória até seu centenário, é porque possui uma profunda força de pensamento, diretamente ancorada nas ideias de Marx, que também estão experimentando um ressurgimento — contra todas as probabilidades — por esta mesma razão. Vigotski era tanto um grande psicólogo quanto um grande pensador, e seu tratamento vergonhoso nas mãos do regime stalinista seria o primeiro — embora não o último — reconhecimento a contrario de seu poder: seu livre pensamento era inconveniente para os dogmatismos reinantes.

Mas agora, como podemos ver, a questão “Vigotski e Marx” muda de dimensão. Além da enumeração de referências (uma preliminar útil), a resolução da questão depende de algo completamente diferente: um foco nas ideias que provavelmente trarão à psicologia não visões marxistas prontas, mas processos marxistas produtivos.(8) Procuramos aqui identificar onde Marx está no pensamento marxiano. Começamos a discernir que não é simplesmente onde seu nome aparece, mas onde os processos marxistas não atribuídos produzem ciência psicológica. Por que estas referências aparecem tão frequentemente sem atribuição nos textos publicados por Vigotski? Precisamente por sua constante recusa em realizar “psicologia marxista” no sentido dedutivo que denuncia na Crise, levando à proscrição de qualquer recurso ao argumento de autoridade evocado pelas repetidas referências aos “clássicos do marxismo”. Mantenho, e proponho estabelecer, que o pensamento marxista constantemente em construção em Vigotski está mais frequentemente presente nas páginas das quais o nome de Marx — e de outros marxistas — está ausente. Vemos aqui a ingenuidade de Eugenia Hanfmann and Gertrude Vakar, que acreditaram que estavam retirando Marx de Pensamento e Linguagem ao excisar quase todas as referências a Marx, Engels e Lenin, sem perceber que o marxismo fundamental do texto não pode ser removido, pois está inscrito na sua própria carne. Mas, para vê-lo — e aqui atacamos o cerne da questão — é preciso saber que contribuições fecundas o pensamento marxista faz para a pesquisa psicológica.

Esta é a raiz da persistente subestimação do lugar de Marx no pensamento vigotskiano: até hoje, quase ninguém mostrou de forma convincente a contribuição potencialmente enorme de Marx para uma verdadeira ciência psicológica. Ainda mais egrégio, e mesmo entre os autoproclamados marxistas, Marx ainda é visto de forma esmagadora como um pensador para quem o indivíduo deve ser integrado no social, pessoal e coletivo, o subjetivo no objetivo, e para quem, portanto, a psicologia é inessencial para um materialismo histórico que supostamente lida apenas com estruturas sociais. Poucos compreendem que Marx também era um pensador crítico do indivíduo humano, quando na verdade, se você ler O Capital sem piscar os olhos e de uma perspectiva mais ampla, dos Grundrisse ao Livro IV, é claramente óbvio. Como resultado, embora existam muitos trabalhos eruditos sobre Vigotski, repletos de ricos estudos sobre o que ele extrai do behaviorismo, gestaltismo e freudismo, qualquer pessoa que busque um estudo semelhante sobre Vigotski e o marxismo até hoje sairá de mãos vazias.(9) E como não podemos compreender aquilo do qual nada sabemos, o pensamento marxiano em Vigotski permanece invisível para muitos leitores onde quer que não seja explicitamente apontado (o que raramente é o caso)(10) por uma pequena faixa que diz “aqui, Marx”.

Na minha juventude, no final dos anos 40 e início dos 50, como um apaixonado amante da psicologia e com uma predileção por Politzer, mas ignorante do nome Vigotski, o Livro I do Capital foi uma descoberta que mudou minha vida: contra todas as expectativas, o texto parecia ouvir minhas perguntas sobre personalidade e biografia. Melhor ainda, respondeu a essas questões de várias maneiras que pareciam infinitamente promissoras. Sem saber, eu estava recriando a experiência formativa do jovem Vigotski com um afastamento de 30 anos: sim, Marx tinha as bases do pensamento psicológico que tinham uma potencialidade inteiramente diferente para mim do que aquelas que eu tinha alimentado pela maior parte do ensino no Sorbonne sobre o assunto. Aventurei-me então na filosofia pelos caminhos de uma concepção histórico-cultural desbravada por Marx, que explorei há 50 anos em meu livro Marxismo e a Teoria da Personalidade, abrindo caminho, sem que eu mesmo soubesse, para um encontro com Vigotski. Isso foi o que despertou o interesse de Aleksei Leontiev pelo livro, como ele me disse em Moscou no final de 1970, e como fica claro ao ler Atividade, Consciência e Personalidade. Ele encorajou fortemente minha esposa a finalmente traduzir Pensamento e Linguagem para o francês, emprestando a ela seu próprio exemplar. Posteriormente, ao descobrir uma gama mais ampla de obras de Vigotski, compreendi que, na maior parte, era lá que encontraria o que, em suma, sempre busquei. Mas, sendo um filósofo de profissão, tenho notado cada vez mais até que ponto falta ao entendimento de Vigotski o conhecimento de exatamente o que o pensamento marxista pode contribuir, e de fato contribuiu, para a psicologia. Tendo conseguido dar os retoques finais e assegurar a publicação da última tradução que Françoise Sève concluiu antes de sua morte em 2011 — a de A História do Desenvolvimento das Funções Mentais Superiores — achei vital, em uma longa introdução a esta obra,(11) para gastar cerca de 15 páginas explicando o que torna as contribuições de Marx para uma psicologia materialista tão fundamentais, condensando o que desenvolvo nos três primeiros capítulos do volume da minha trilogia Pensando com Marx Hoje que é dedicada ao “Homem”. Para o que estou propondo estabelecer aqui, devo dar pelo menos uma ideia sucinta disso.

Quando, no capítulo XIII de Crise, Vigotski pondera a maneira correta de abordar a criação de uma psicologia científica e escreve: “O Capital tem muito a nos ensinar”, ele tem duas coisas conectadas em mente: “metodologia” e “psicologia geral”. Comecemos com a “metodologia”. Em que consiste a contribuição do Capital? Marx nos diz no posfácio do Livro I: dialética, tirada do idealista Hegel e que envolve um trabalho considerável para seu retrabalho materialista. E que tipo de conhecimento é dialética? Da forma como é utilizado, é um método, mas essa é apenas a face subjetiva do conhecimento objetivo que ele condensa, no qual é uma lógica, no sentido não puramente formal da lógica aristotélica, mas do substancial significado dado a ele por Hegel em A Ciência da Lógica. Para o Hegel idealista, é um sistema fechado das essencialidades puras de tudo o que existe. No materialismo, Marx reformulou-o no curso de seu trabalho crítico sobre economia como uma rede aberta das categorias universais do pensamento racional — por exemplo, essência e aparência, abstrato e concreto, universal e particular, objetivo e subjetivo, conteúdo e forma … Como Lênin diz em seus Cadernos Filosóficos, Marx, ao contrário de Hegel, nos deixou “uma ‘Lógica’ (com L maiúsculo)”, um empreendimento especulativo grandioso mas uma produção muito mais operacional: “a lógica do Capital”, adquirida do pensamento que é ainda subestimado e subestimado hoje. No entanto, a lógica do Capital constitui uma parte central da cultura teórica de Vigotski. Se o examinarmos da perspectiva lógica, como ele pretende, por exemplo, por meio de suas idéias sempre presentes de análise e síntese, de estrutura e processo, interno e externo, natural e social, entre outros, a herança marxista de seu pensamento torna-se óbvia.

Devo me limitar a um único exemplo aqui: a categoria fundamental da essência e a maneira como ela foi revolucionada por Marx. Nos últimos 2000 anos, o significado de essência tem sido aquele que torna um ser necessariamente o que é — é o que Spinoza diz no início da segunda parte da Ética. Para além da variedade de modos de concebê-la, por exemplo em Aristóteles e Platão, a essência, segundo o seu significado antigo, é considerada uma entidade idealinerente e eminentemente invariável, uma vez que define a sua própria identidade. Isso é o que Marx subverte. Uma declaração importante sobre o assunto, muitas vezes citada e aludida por Vigotski, é a 6ª das Teses sobre Feuerbach publicada no papel por Marx em 1845. Na Alemanha de 1840, “a essência do homem” — o que nos torna exemplos do tipo humano — era um tópico muito debatido. Marx revolucionou a questão: a essência do homem “não é abstração em cada indivíduo. Na sua realidade, é o conjunto das relações sociais” (2012, p. 3). Uma perspectiva deslumbrante, que inaugurou um novo materialismo histórico antropológico — voltarei a este ponto mais tarde — ao criar um conceito de essência altamente original: não mais uma identidade abstrata da coisa, mas relações produtivas desta identidade. Isso muda significativamente a forma de pensar: a essência não é apenas idealidade, mas cobre uma materialidade, e não é originalmente interna, mas primeiramente externa antes de ser internalizada, não é invariável, mas evolutiva. Uma nova lógica poderosa é formada aqui: o cerne da questão é pensar não em termos de identidade abstrata, mas de relações concretas, e todas as relações, mesmo as aparentemente imutáveis, são processos.(12)

O fato de Vigotski pensar nesses termos lógicos é demonstrado não apenas em algumas passagens em que cita Marx, mas em toda a sua obra. Prova disso é sua luta constante contra um modo de análise que divide o todo em elementos separados e concebe sua unidade apenas como a soma de suas partes — um processo de associacionismo do qual ele oferece uma crítica irrefutável — contrapondo-se com um modo inteiramente diferente de análise em que o todo é tratado como uma estrutura global, cujos elementos são relacionamentos em si mesmos. Aqui devemos considerar de perto a atitude de Vigotski em relação à Teoria da Gestalt. Trabalhando contemporaneamente com seus defensores, Vigotski não apenas defende o trabalho de Koehler, Koffka e Lewin, ele compartilha entusiasticamente sua crítica gestaltista do associacionismo, pensando, como todos eles, em termos estruturais. Mas cuidado: há duas maneiras muito diferentes de apresentar o todo como irredutível à soma das partes. Uma é a de Aristóteles, o grande pensador antigo da forma, para quem ela não é apenas primária em relação ao conteúdo, mas também — releiamos o Livro Z da Metafísica — primária em relação ao conteúdo que informa e não sujeito do devir. A psicologia da Gestalt inaugurada em 1890 pela obra de von Ehrenfels sobre as qualidades da forma inspira-se no neoaristotelismo que estava em plena atividade no final do século XIX. A cultura lógica de Vigotski é outra questão, alimentada pela dialética de Hegel revisitada por Marx. Assim, ele está ao mesmo tempo fundamentalmente de acordo com os Gestaltistas sobre a irredutibilidade de uma estrutura à soma de suas partes, e em desacordo frequentemente expresso em dois pontos essenciais: a estrutura não obedece à simples lógica aristotélica do princípio de identidade, mas revela contradições internas, e por isso mesmo não é invariável, mas evolutivo — além da única natureza imutável considerada pelo Gestaltismo, o psiquismo humano retorna à história.(13)

“Para o pensamento dialético”, escreve ele (Vigotski, 2014, p. 243), “não há nada de terrivelmente novo na teoria de que o todo não resulta mecanicamente da soma de suas partes”. Mas, entendendo essa grande verdade de maneira diferente dos Gestaltistas, ele a leva muito mais longe do que eles, sem precisar citar Marx interminavelmente, para as visões centrais na lógica dialética do Capital que são o conflito nascido de contradições — assim como o cálculo aritmético erudito do adulto se opõe à aritmética espontânea da criança (Vigotski, 2014, p. 361–367) -, a Crise condensa o conflito, o salto qualitativo onde se desfaz para melhor ou para pior — a criança não pode emergir do conflito entre as duas aritméticas sem aprender a “saltar” de uma para a outra (p. 495). Que Vigotski tornou seu o pensamento marxista inovador na essência e o levou a cabo até a sua conclusão, eu também poderia provar, examinando o poderoso processo lógico que conduz os maravilhosos dois capítulos finais de Pensamento e Linguagem — mas isso levaria muito tempo. Deixe-nos simplesmente afirmar brevemente que o que é estabelecido no Capítulo 6 é que a diferença entre conceitos cotidianos e conceitos científicos diz respeito essencialmente a “diferentes relações de generalidade entre os conceitos” (p. 407); e o Capítulo 7 estabelece que, em sua essência, “a relação do pensamento com a palavra não é uma coisa, mas um processo” (p. 428). Tudo de Vigotski está aqui, até seus últimos textos: a essência da psique humana sempre pode ser encontrada, em última análise, nas relações históricas nas quais ela existe. Esta maneira lógica de pensar é indiscutível, aquela que ele aprendeu muito cedo com Marx — na 6ª tese sobre Feuerbach e no Livro I do Capital. Somente a ignorância duradoura da obra marxista e sua riqueza lógica impediram que fosse vista.

Ainda mais convincente, se possível, é a consideração do que a “psicologia geral” de Vigotski deve à antropologia de Marx, conforme expandida por Engels. Na verdade, vamos reafirmá-lo aqui: o materialismo histórico é uma teoria indivisível das estruturas sociais e pessoais, dois lados da mesma realidade. Para repeti-lo brevemente aqui, esta antropologia aplica cinco conceitos fundamentais. 1. Atividade produtiva (Tätigkeit, que rapidamente substituiu Práxis em Marx, um termo que não expressa suficientemente esta dimensão produtiva crucial): os seres humanos, de acordo com a Ideologia Alemã, são essencialmente distintos dos animais pelo fato de produzirem seus meios de subsistência e, portanto, seu próprio ser; 2. Mediação (Vermittlung): o imenso poder da atividade humana é devido não só à produção (cujas sementes existem no mundo animal) da ferramenta que medeia cada vez mais a relação com a natureza, mas especialmente com o trabalho social onde essa mediação adquire dimensões cruciais; 3. Objetivação (Vergegenständlichung): a atividade produtiva humana gera todo um universo de objetos, relações sociais, produções simbólicas, modos de ser, de sentir e de pensar, uma segunda humanidade não mais natural-interna, mas social-externa, onde a psique humana se acumula incessantemente o mundo do homem; 4. Apropriação (Aneignung): embora os indivíduos sejam admitidos como membros da espécie Homo Sapiens desde o início, eles devem se tornar um membro da humanidade, para hominizar-se apropriando-se de uma parte singular desta humanidade objetiva, através de uma formidável dialética do externo e interno sem equivalente animal e de considerável consequência antropológica; 5. Alienação (Entfremdung): a humanitas cultural não sendo dada aos indivíduos de antemão, sua apropriação pessoal depende das condições sociais que a favorecem ou impedem, e em cada sociedade de classes, ela se choca de forma desigual, mas inevitavelmente com a alienação, com o ser estranho dos imensos poderes sociais humanos que, não sendo propriedade de todos, não são controláveis por ninguém.

Para aqueles que leram Vigotski sem conhecer essas visões antropológicas, o que ainda é geralmente o caso, mesmo a exposição mínima aqui será uma revelação; mostra que, em seus termos mais amplos, a concepção histórico-cultural vigotskiana da psique humana é diretamente inspirada por Marx. Podemos até discernir uma correspondência termo a termo da maioria desses conceitos: ao papel central de Tätigkeit em Marx corresponde o de dejat’elnost’ em Vigotski; a Vermittlung corresponde pocredničestvoVergegenständlichung não tem equivalente, que sem dúvida não é destituído de sentido, como mostrarei mais tarde, mas é claro que a ideia de uma humanidade histórica-objetiva é central em Vigotski, formulada no conceito de civilização (civilizacija) e mais frequentemente cultura (kul’tura), tendo criticado aqueles que a veem apenas como espiritual, ignorando os “fatos e fenômenos materiais” que a constituem de início (Vigotski, 2014, p. 119–120); A ucvoenie de Vigotski corresponde exatamente à Aneignung de Marx; apenas Entfremdung parece não ser empregado por Vigotski, e é usado apenas em exemplos, como quando ele afirma que, a seu ver, a maior desvantagem para a criança organicamente deficiente é menos a deficiência natural do que a falta de acesso à cultura que esta induz, o que evoca uma análise em termos de alienação social. Por tudo isso, a antropologia marxista não era de forma alguma uma psicologia; todo o trabalho necessário para progredir de um para o outro ainda estava para ser feito, e foi isso que Vigotski realizou de forma brilhante.

Na verdade, o pensamento marxista foi decisivo na orientação fundamental da psicologia de Vigotski. E foi assim até o fim, até seu notável texto publicado postumamente sobre a localização cerebral das funções mentais, que ele planejara apresentar na conferência de Kharkov em junho de 1934 (ele morreu alguns meses antes). Nele, ele explica as funções mentais superiores do homem que são formadas a partir do exterior social e como sua localização cerebral não pode ser a mesma das funções animais ou humanas nos centros dados biologicamente, de modo que qualquer simples extrapolação para o cérebro humano do que é funcionalmente observado no cérebro animal “só pode levar a erros grosseiros.” (Vigotski, 1982, t. 1, p. 174; tradução do autor). Três quartos de século depois, permanece aí uma sugestão crucial para a pesquisa sobre o cérebro, e mais amplamente para a neurociência, que ganharia muito em deixar de ignorar Vigotski. Como o fariam aqueles que persistem em negar qualquer alteridade psicológica básica entre seres humanos e outros vertebrados superiores em nome de um materialismo simplista, negando com razão a existência de qualquer fronteira metafísica, mas cegos para a mutação crucial reconhecida pela concepção histórico-social — aqui, o dogma falacioso do individualismo metodológico carrega uma grande responsabilidade.

Até o fim — até uma referência final a Ideologia Alemã na última página de Pensamento e Linguagem, ditada enquanto estava às portas da morte — Vigotski mostra, embora parcimoniosamente, o quanto ele pensava como Marx. Apenas um outro pensador ocupou um lugar comparável no pensamento de Vigotski: Spinoza — que levanta a sugestão de estudar a relação entre Marx e Spinoza em Vigotski. Certamente não pretendo realizar essa tarefa ao concluir aqui. Apenas uma observação, sem pretender minimizar tudo o que Spinoza inspirou em Vigotski: seu status é, no entanto, diferente do de Marx. Em muitos textos, Vigotski expõe o ponto de vista de Spinoza, valoriza-o, raramente o contesta, muitas vezes o defende de seus críticos — na Teoria das Emoções, por exemplo, ele refuta vigorosamente a redução do monismo materialista espinosiano do corpóreo e espiritual ao um “paralelismo” dualista. Em resumo, Spinoza é tratado como autor de maior importância.(14) Sobre Marx, nada disso: enquanto ele está explicitamente presente, é na forma de citação sem comentário ou mesmo referência pura. Aqui, Vigotski não sente necessidade de se explicar — Marx não é tratado como autor, mas como sua cultura teórica. Se a observação não estiver errada, faz sentido. Ele sublinha até que ponto o pensamento de Vigotski é intimamente marxista. Dizer isso nada tem a ver com o esforço pueril de alistá-lo sob a bandeira do “marxismo”, ao qual ele era claramente alérgico e que não é melhor do que a tentativa oposta de purgá-lo de Marx por qualquer meio necessário. Parece que, hoje, a pesquisa sobre Vigotski e Marx está finalmente entrando na idade adulta. Para aqueles como eu, que reclamam isso há mais de quarenta anos, esta notícia não é pouca coisa.

E o grande interesse disso é que levanta novas questões intrigantes. Em particular aquele com o qual concluirei: existem lacunas importantes na compreensão de Marx por Vigotski? De modo geral, não considero exagero dizer que sua compreensão do pensamento marxista era sem igual no mundo erudito de 1930 — ficaria até tentado a dizer que permanece excepcional até hoje. É claro que permanece o fato de que sua leitura de Marx tem seus limites — toda leitura tem. O que sugiro examinar diz respeito a sua compreensão e uso da 6ª tese crucial sobre Feuerbach. Para mencionar muito brevemente o que exigiria um capítulo inteiro: Temos lido frequentemente, até hoje, que Marx escreveu que em sua realidade a essência humana consistia em “o todo das relações sociais”; no entanto, ele não escreveu Beziehungen, mas Verhältnisse, tendo em mente — como especificado na Ideologia Alemã(15) — não apenas as relações entre os indivíduos, mas as relações sociais em sua imensa objetividade, como a divisão técnica e social do trabalho. Duas ideias indubitavelmente conectadas, mas fundamentalmente distintas. De acordo com sua leitura incorreta, essa formulação crítica pode ser uma teoria simples da psicologia social: os indivíduos são o que suas relações interpessoais fazem deles — uma ideia acurada, certamente, e até fértil, mas que ainda não determina um materialismo histórico completo. Na leitura imposta pelo texto, e em todo o pensamento de Marx, o que nos torna humanos que somos também se encontra além de nossas relações intersubjetivas, até as estruturas sociais fortemente objetivas que elas implicam e que as governam — que é onde uma nasce a antropologia verdadeiramente materialista. Para considerar essa questão crucial, Vigotski possuía e utilizava apenas um termo russo: otnošenie, que significa relação tanto quanto relacionamento. Esse conceito indiferenciado, portanto, nos leva a um impasse sobre a distinção incrivelmente importante entre relações intersubjetivas e relações sociais objetivas.

A questão é clara: Vigotski estava suficientemente atento à diferença total entre Beziehung e Verhältnis, que o único termo otnošenie tende a negar? Psicólogo acima de tudo, estava mais preocupado com as relações sociais intersubjetivas — por exemplo, as “formas de comportamento” que categoriza sob a “lei de Janet” — do que com as relações sociais tomadas em sua objetividade concretizada, cujo efeito educativo sobre o a psique humana é imensa (tome por exemplo a forma-dinheiro), mas muito mais indireta? O fato de ele não ter equivalente ao conceito marxista de Vergegenständlichung não indica uma certa subestimação dos processos de objetificação social no sentido mais forte do termo? Uma grande questão. Este foi talvez o pretexto para a cruel acusação stalinista de não-marxismo levantada contra ele, e um motivo para Leontiev se distanciar dele. Aí, sem dúvida, se decide uma parte não desprezível da direção geral da obra vigotskiana, bem como o que deve ser elucidado para avançar mais nessa mesma direção. Hoje, discutimos com boas razões o significado que o conceito de pereživanie pode ter em Vigotski. Não deveríamos examinar com o mesmo cuidado o significado e o uso de otnošenie em sua obra?

Mas se o empreendermos, longe de concluir talvez em um limite efetivo de seu pensamento e de sua obra, certamente não devemos perder de vista o fato de que ao mesmo tempo — complexos são os caminhos da pesquisa inovadora — ele, assim, ampliou magnificamente a antropologia marxista, ao explorar ricamente a dialética crucial do signo, da significação e do sentido e, portanto, da própria consciência, uma contribuição na qual a idiotice stalinista viu a marca vil de um idealismo burguês… Se Vigotski realmente deve muito a Marx, o Marx que podemos hoje tornar ainda mais produtivo no imenso campo das ciências humanas deve mais do que pouco a Vigotski. Não terminamos de estudar os seres humanos com esses dois homens juntos.


Obras citadas:
Aristotle, Metaphysics, ed. Tricot, J., t. I, Vrin, Paris, 1974.
Brossard, M., Lectures et perspectives de recherches en éducation, Presses universitaires du Septentrion, Lille, 2004.
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Leontiev, A., Activity. Conscience. Personality., Editions du Progrès, Moscow, 1984.
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Marx, K., Capital, Livre I, trad. Lefebvre, J.-P., Editions sociales, Paris, 2016.
Ratner, C. and Nunes, D., Vygotsky and Marx, Toward a Marxist Psychology, Routledge, London & New York, 2017.
Schneuwly, B., Bronckart, J.-P. et al.Vygotski aujourd’hui, Delachaux et Niestlé, Neuchâtel-Paris, 1985.
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Sève, L., Penser avec Marx aujourd’hui, t. II, «L’homme»?, La Dispute, Paris, 2008.
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Vygotsky, L., Sobranie sočinenie, Pedagogika, 6 vol., Moscow, 1982–1984.
Vygotsky, L., La signification historique de la crise en psychologie, trans. Barras, C. et Barberis, J., ed. Bronckart, J.-P. et Friedrich, J., La Dispute, Paris, 2010.
Vygotsky, L., Histoire du développement des fonctions psychiques supérieures, trad. Sève, F., éd. Brossard, M. et Sève, L., La Dispute, Paris, 2014.
Vygotsky, L. S., Thought and Langage, trad. Hanfmann, E. and Vakar, G., M.I.T. Press, Cambridge, Massachussetts, 1962.
Vygotsky, L., Pensée et langage, trad. Sève, F., Avant-propos de Clot, Y., 4e éd., La Dispute, Paris, 1997.
Vygotsky’s Notebooks, ed. Zavershneva, E. and van der Veer, R., Springer, Singapore, 2018.
Yasnitsky, A., van der Veer, R. and Ferrari, M., The Cambridge Handbook of Cultural-Historical Psychology, Cambridge University Press, New York, 2014.
Zapatta, R., Luttes philosophiques en URSS, 1922–1931, Presses universitaires de France, Paris, 1983.

Notas de rodapé:

(1) Apresentei as referências a essas queixas em minha introdução a Pensamento e Linguagem, Vygotsky, 1997, p. 28 (retornar ao texto)

(2) Cf. Vygotsky’s Notebooks, p. 316. (retornar ao texto)

(3) Les Editions Sociales, da qual fui diretor de 1970 a 1982, período em que foi preparada a publicação de Pensamento e Linguagem (retornar ao texto)

(4) Na tradução francesa em Vygotsky, 2014, p. 543–564. Esta nota foi publicada anteriormente em Michel Brossard, 2004. (retornar ao texto)

(5) O índice de nomes citados também mostra 8 ocorrências do nome de Stalin. Ninguém se refere a uma referência a Stalin por Vygotsky. (retornar ao texto)

(6) Resta mencionar, se não me engano, que a escolha dos nomes Pedro e Paulo parece ser uma alusão às proposições XXXIV da 4ª parte da Ética de Spinoza, de sua demonstração e de sua escolia, que tratam da relação entre Pedro e Paulo. (retornar ao texto)

(7) Cf. Zapatta, 1983, sobre este ponto importante. (retornar ao texto)

(8) “Marxista” há muito se refere a uma formatação dogmática que deforma as visões de Marx e permanece marcada por isso; “Marxista” simplesmente evoca uma relação efetiva de um pensamento com o de Marx. (retornar ao texto)

(9) Destaca-se também a publicação em 2017 de um livro como Vygotsky and Marx de Carl Ratner e Daniele Nunes. (retornar ao texto)

(10) Nas 500 páginas de História do desenvolvimento das funções mentais superiores, um livro marxista do início ao fim, há, ao todo, quatro referências explícitas a Marx. (retornar ao texto)

(11) Trabalho que foi substancialmente auxiliado por várias comunicações pessoais preciosas com Ekaterina Zavershneva. (retornar ao texto)

(12) Nota do tradutor inglês: a língua francesa, como a língua alemã, tem duas palavras diferentes para duas ideias muito diferentes: relation em francês (Beziehung em alemão), que se refere à prática subjetiva de trocas interindividuais, e rapport (Verhältnis em alemão), que se refere à estrutura objetiva da organização social. O fato de uma funcionária ter boas ou más relações pessoais com seu empregador se enquadra na categoria de relations sociales (relações sociais); que seu status seja o de uma pessoa que vende sua força de trabalho, que é comprada no mercado de trabalho por um empregador que possui os meios de produção, define um modo de rapports sociaux (rapport social). A língua inglesa (como a língua russa) não possui um equivalente para esta diferenciação linguística, que é de grande importância para o assunto em questão. Tentamos dar uma ideia dessa distinção usando os termos ‘relação’ e ‘relacionamento’, mas o leitor deve ter em mente que, quando dizemos ‘relacionamento’ aqui, estamos nos referindo principalmente a estruturas sociais objetivas como o mercado de trabalho e sistemas políticos. (retornar ao texto)

(13) Michel Brossard chamou minha atenção para este ponto no prefácio que Vygotsky escreveu em 1934 para a tradução russa de um livro de Koffka (Collected Works, vol. 3, p. 195–232, Plenum Press, New York, 1997), no qual ele afirma claramente a necessidade, em sua opinião, de ir dialeticamente além do conceito gestaltista de estrutura. (retornar ao texto)

(14) Com ousadia, Espinosa assume a contradição lógica, por exemplo, ao expor a identidade dos opostos que se expandem e se consideram: natureza e Deus; assim, vai além do arcabouço da lógica aristotélica sem dispor da hegeliana, como quando ele escreve “omnis determinatio negatio”. Vygotsky lê Spinoza dialeticamente, colocando-o, por assim dizer, à frente da dialética. Uma pergunta que justificaria todo um estudo. (retornar ao texto)

(15) “Essa soma total das forças de produção, do capital, das formas de troca social que cada indivíduo e cada geração encontra como um dado preliminar, é o fundamento concreto do que os filósofos têm representado como ‘substância’ e ‘essência do homem’”(Marx, 2012, 39, tradução revisada pelo autor). — Beziehung — na relation francesa — refere-se a um processo interpessoal que não persiste além de si mesmo, Verhältnis — no rapport francês — refere-se a uma estrutura social impessoal que subsiste do modo da coisa. Numa empresa, o empregado pode ou não ter uma relação individual com o patrão; tudo o mais é a sua relação de classe, isto é, o estatuto objetivo daquele como detentor dos meios de produção, o outro possuindo apenas sua força de trabalho. (retornar ao texto)

Inclusão: 14/10/2022