Sobre os Fundamentos do Leninismo

J. V. Stálin

III — A teoria


Analisarei três questões deste tema:

  1. a importância da teoria para o movimento proletário:
  2. a crítica da "teoria" do espontaneísmo;
  3. a teoria da revolução proletária.
1. Importância da teoria.

Alguns supõem que o leninismo é a primazia da prática sobre a teoria, no sentido de que nele o essencial consiste na transformação em atos das teses marxistas, na "aplicação" destas teses, e que, no que se relaciona à teoria, o leninismo, segundo eles, é bastante descuidado. É sabido que Plekhanov mais de uma vez escarneceu do "descuido" de Lênin pela teoria e especialmente pela filosofia. Também é sabido que muitos leninistas, ocupados hoje no trabalho prático, não são muito dados à teoria, por efeito, sobretudo, do enorme trabalho prático que as circunstâncias os obrigam a realizar. Devo declarar que esta opinião, mais do que estranha, a respeito de Lênin e do leninismo é inteiramente falsa e não corresponde de modo algum à realidade, que a tendência dos militantes ocupados no trabalho prático para não fazer caso da teoria contradiz por completo o espírito do leninismo e está cheia de graves perigos para a nossa causa.

A teoria é a experiência do movimento operário de todos os países, considerada sob o aspecto geral. Naturalmente, a teoria deixa de ter objeto quando não se vincula à prática revolucionária, exatamente do mesmo modo que a prática se torna cega se não se ilumina o caminho com a teoria revolucionária. Mas a teoria pode converter-se em formidável força do movimento operário se é elaborada em união indissolúvel com a prática revolucionária, porque ela, e somente ela, pode dar ao movimento segurança, capacidade de orientação e compreensão dos laços íntimos dos acontecimentos que se verificam em torno de nós, porque ela, e somente ela, pode ajudar à prática a compreender, não só como e em que direção se movem as classes no momento presente, mas também como e em que direção deverão mover-se no futuro próximo. E foi precisamente Lênin quem disse e repetiu dezenas de vezes a conhecida tese de que:

"Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário". (1*) (Vide vol. IV, pág. 380).[N32]

Mais do que ninguém Lênin compreendia a grande importância da teoria, especialmente para um partido como o nosso, em virtude do papel que lhe toca de combatente de vanguarda do proletariado internacional, em virtude da complexa situação interna e externa que o rodeia. Prevendo este papel especial do nosso Partido, em 1902, já então Lênin considerava necessário recordar que:

"Só um partido guiado por uma teoria de vanguarda pode desempenhar o papel de combatente de vanguarda" . (Vide vol. IV, pág. 380).[N33]

Não é preciso demonstrar que hoje, quando a predição de Lênin sobre o papel do nosso Partido já se converteu em realidade, esta tese de Lênin adquire uma força e uma importância especiais.

Talvez a prova mais clara da grande importância que Lênin atribuía à teoria seja o fato de que foi o próprio Lênin quem assumiu a tarefa extremamente importante de generalizar, segundo a filosofia materialista, todas as conquistas de maior importância feitas pela ciência no período de Engels a Lênin, e de criticar a fundo as correntes antimaterialistas entre os marxistas. Dizia Engels que:

"o materialismo deve assumir uma nova forma à cada grande descoberta"[N34].

É sabido que foi precisamente Lênin quem, no seu notável livro "Materialismo e empiriocriticismo", cumpriu esta tarefa. É sabido que Plekhanov, tão inclinado a escarnecer do "descuido" de Lênin pela filosofia, não teve sequer ânimo de abordar seriamente a realização dessa tarefa.

2) Crítica da "teoria" do espontaneísmo, ou sobre o papel da vanguarda no movimento.

A "teoria" do espontaneísmo é a teoria do culto da espontaneidade do movimento operário, a teoria da negação de fato do papel dirigente da vanguarda da classe operária, do Partido da classe operária.

A teoria do culto da espontaneidade é decididamente hostil ao caráter revolucionário do movimento operário, não quer que o movimento se dirija segundo a linha da luta contra as bases do capitalismo, quer que o movimento siga exclusivamente a linha das reivindicações que possam ser "satisfeitos" e "aceitas" pelo capitalismo, é totalmente favorável à linha "da menor resistência". A teoria da espontaneidade é a ideologia do trade-unionismo.

A teoria do culto da espontaneidade é decididamente hostil a que se dê ao movimento espontâneo um caráter consciente, metódico, não quer que o Partido marche à frente da classe operária, que o Partido eleve as massas até torná-las conscientes, não quer que o Partido assuma a direção do movimento; acha que os elementos conscientes não devem impedir que o movimento siga pelo seu caminho; essa teoria quer que o Partido se limite a registrar o movimento espontâneo e se arraste a reboque. A teoria do espontaneísmo é a teoria da subestimação do papel do elemento consciente no movimento, a ideologia do "seguidismo", a base lógica do oportunismo de toda espécie.

Praticamente, essa teoria, que apareceu em cena já antes da primeira revolução russa, teve como conseqüência que os seus adeptos, os chamados "economistas", negassem a necessidade de um partido operário independente na Rússia, se manifestassem contra a luta revolucionária da classe operária pela derrubada do tzarismo, pregassem no movimento uma política trade-unionista e pusessem, em geral, o movimento operário sob a hegemonia da burguesia liberal.

A luta da velha "Iskra" e a brilhante crítica da teoria do "seguidismo", feita por Lênin no folheto "Que fazer?", não só derrotaram o chamado "economismo", mas assentaram as bases teóricas de um movimento verdadeiramente revolucionário da classe operária russa.

Sem esta luta não seria possível sequer pensar na criação na Rússia de um partido operário independente, nem no seu papel dirigente na revolução.

Mas a teoria do culto da espontaneidade não é um fenômeno exclusivamente russo. Esta teoria tem a mais ampla difusão, é certo que sob uma forma um tanto diferente, em todos os partidos da II Internacional, sem exceção. Refiro-me à chamada teoria das "forças produtivas", reduzida a uma banalidade pelos chefes da II Internacional, teoria que, justifica tudo e concilia a todos, constata os fatos e os explica quando todos já estão fartos deles, mas, depois de registrar os fatos, não vai além. Disse Marx que a teoria materialista não se pode limitar a explicar o mundo, mas que deve também transformá-lo. No entanto, Kautsky e Cia. não chegam senão a isso, preferindo deter-se na primeira parte da fórmula de Marx. Eis um exemplo, entre muitos, da aplicação desta "teoria". Diz-se que, antes da guerra imperialista, os partidos da II Internacional ameaçavam declarar "guerra à guerra", se os imperialistas desencadeassem a guerra. Diz-se que, às vésperas da guerra, estes mesmos partidos arquivaram a palavra de ordem de "guerra à guerra" e puseram em prática a palavra de ordem oposta de "guerra pela pátria imperialista". Diz-se que o resultado dessa mudança de palavras de ordem foi o morticínio de milhões de operários. Mas seria um erro pensar que alguém foi culpado desse fato, que alguém traiu ou vendeu a classe operária. Nada disso! Ocorreu o que tinha de ocorrer. Em primeiro lugar, porque a Internacional é um "instrumento de paz" e não de guerra. Em segundo lugar, porque, dado o "nível das forças produtivas" existente àquela época, nada mais se podia fazer. A "culpa" é das "forças produtivas". A "teoria das forças produtivas" do sr. Kautsky "no-lo" explica com precisão. E quem não crê nesta "teoria", não é marxista. O papel dos partidos? A sua importância no movimento? Mas, que pode fazer um partido contra um fator tão decisivo como o "nível das forças produtivas"?...

Poderíamos citar um montão de exemplos semelhantes de falsificação do marxismo.

Não é necessário demonstrar que esse "marxismo" falsificado, destinado a cobrir as vergonhas do oportunismo, não é senão uma variedade européia daquela teoria do "seguidismo" contra a qual Lênin combatia, já no período anterior à primeira revolução russa.

Não e necessário demonstrar que a destruição dessa falsificação teórica é uma condição preliminar para a criação de partidos verdadeiramente revolucionários no Ocidente,

3. A teoria da revolução proletária.

A teoria leninista da revolução proletária tem como ponto de partida três teses fundamentais.

Primeira tese: O domínio do capital financeiro nos países capitalistas avançados; a emissão de títulos, que é uma das principais operações do capital financeiro; a exportação de capitais para as fontes de matérias-primas, que é uma das bases do imperialismo; a onipotência da oligarquia financeira, como conseqüência do domínio do capital financeiro; tudo isso põe a nu o caráter brutalmente parasitário do capitalismo monopolista, torna cem vezes mais penoso o jugo dos trustes e dos sindicatos capitalistas, aumenta a indignação da classe operária contra as bases do capitalismo, conduz as massas à revolução proletária como única via de salvação. (Vide Lênin, "O imperialismo").[N35]

Daí surge a primeira conclusão: aguçamento da crise revolucionária nos diferentes países capitalistas, desenvolvimento nas "metrópoles" dos elementos que podem levar a uma explosão na frente interna, na frente proletária.

Segunda tese: A exportação intensificada dos capitais para os países coloniais e dependentes; a extensão das "esferas de influência" e dos domínios coloniais até compreender todo o planeta; a transformação do capitalismo num sistema mundial de escravização financeira e de opressão colonial da imensa maioria da população do mundo por um punhado de países "avançados"; tudo isso, de uma parte, transformou as diferentes economias nacionais e os diferentes territórios nacionais em elos da mesma corrente, denominada economia mundial; por outro lado, dividiu a população do globo em dois campos: um punhado de países capitalistas "avançados", que exploram e oprimem vastos países coloniais e dependentes, e uma enorme maioria de países coloniais e dependentes, que se vêem obrigados a lutar para libertar-se do jugo do imperialismo. (Vide "O imperialismo").

Daí surge uma segunda conclusão: aguçamento da crise revolucionária nos países coloniais, desenvolvimento do espírito de revolta contra o imperialismo, na frente externa, na frente colonial.

Terceira tese: O monopólio das "esferas de influência" e das colônias, o desenvolvimento desigual dos diversos países capitalistas, que determina uma luta encarniçada por uma nova repartição do mundo entre os países que já se apossaram dos territórios e os países que querem receber a sua "parte"; as guerras imperialistas, único meio de restabelecer "o equilíbrio" desfeito: tudo isso leva a uma exacerbação da luta numa terceira frente, na frente intercapitalista, o que enfraquece o imperialismo e facilita a união contra o imperialismo nas duas frentes anteriores, na frente revolucionária proletária e na frente da luta pela libertação das colônias. (Vide "O imperialismo").

Daí surge uma terceira conclusão: inevitabilidade das guerras na época do imperialismo, inevitabilidade da coalizão da revolução proletária na Europa com a revolução colonial no Oriente, numa só frente mundial da revolução contra a frente mundial do imperialismo.

Todas essas conclusões foram reunidas por Lênin numa só conclusão geral: o imperialismo é a véspera da revolução socialista. (2) (Vide vol. XIX pág. 71).[N36]

Em conseqüência, modifica-se o modo de abordar o problema da revolução proletária, do seu caráter, da sua amplitude, da sua profundidade, modifica-se o esquema da revolução em geral.

Antes, costumava-se analisar as premissas da revolução proletária partindo do exame da situação econômica deste ou daquele país. Hoje, este modo de abordar o problema já não basta. Hoje, é necessário abordar a questão partindo do exame da situação econômica de todos ou da maior parte dos países, do exame da situação da economia mundial, porque os diferentes países e as diferentes economias nacionais deixaram de ser unidades autônomas, transformaram-se em elos de uma só cadeia que se chama economia mundial, porque o velho capitalismo "civilizado" se transformou em imperialismo, e o imperialismo é o sistema mundial de escravização financeira e da opressão colonial da enorme maioria da população do globo por parte de um punhado de países "avançados".

Antes, costumava-se falar da existência ou da falta de condições objetivas para a revolução proletária nos diferentes países ou, mais exatamente, neste ou naquele país desenvolvido. Hoje, este ponto-de-vista já não basta. Hoje, deve-se falar da existência das condições objetivas para a revolução em todo o sistema da economia imperialista mundial, considerado como um todo. A existência, no seio deste sistema, de alguns países de insuficiente desenvolvimento industrial não pode constituir obstáculo insuperável à revolução, se o sistema, no seu conjunto, ou melhor, uma vez que o sistema no seu conjunto já está maduro para a revolução.

Antes, costumava-se falar da revolução proletária neste ou naquele país desenvolvido como de uma entidade isolada, autônoma, oposta à respectiva frente nacional do capital, como seu antípoda. Hoje, este ponto-de-vista já não basta. Hoje, deve-se falar da revolução proletária mundial, porque as diferentes frentes nacionais do capital se transformaram em elos de uma só cadeia, que se chama frente mundial do imperialismo, a que se deve opor a frente geral do movimento revolucionário de todos os países.

Antes, considerava-se a revolução proletária como o resultado exclusivo do desenvolvimento interno de um dado país. Hoje, este ponto-de-vista já não basta. Hoje é preciso considerar a revolução proletária mundial sobretudo como o resultado do desenvolvimento da contradição no sistema mundial do imperialismo, como o resultado da ruptura da cadeia da frente mundial imperialista neste ou naquele país.

Onde começará a revolução? Onde poderá ser rompida, em primeiro lugar, a frente do capital? Em que país?

Ali, onde a indústria for mais desenvolvida, onde o proletariado constituir a maioria, onde houver mais cultura, onde houver mais democracia — costumava-se responder, antes.

Não, objeta a teoria leninista da revolução, não é obrigatório que seja ali onde a indústria é mais desenvolvida, etc.. A frente do capital se romperá lá onde a cadeia do imperialismo for mais fraca, porque a revolução proletária é o resultado da ruptura da cadeia da frente imperialista mundial no seu ponto mais débil; e bem pode ocorrer que o país que iniciou a revolução, o país que rompeu a frente do capital seja do ponto-de-vista capitalista menos desenvolvido do que outros, mais desenvolvidos, que permanecem, apesar disso, no quadro do capitalismo.

Em 1917, a cadeia da frente imperialista mundial era mais débil na Rússia do que noutros países. E aqui ela se rompeu, abrindo o caminho à revolução proletária. Por quê? Porque na Rússia se desencadeava uma grandiosa revolução popular, à frente da qual marchava o proletariado revolucionário, que contava com um aliado tão importante como os milhões e milhões de camponeses oprimidos e explorados pelos latifundiários. Porque na Rússia a revolução tinha como adversário um representante tão repulsivo do imperialismo, como o tzarismo, destituído de toda autoridade moral, justamente odiado por toda a população. A cadeia era mais débil na Rússia, muito embora este país fosse menos desenvolvido no sentido capitalista do que, por exemplo, a França ou a Alemanha, a Inglaterra ou a América.

Onde se romperá a cadeia no futuro próximo? Mais uma vez, ali onde for mais débil. Não se exclui que a cadeia possa romper-se, por exemplo, na Índia. Por quê? Porque ali existe um jovem proletariado revolucionário, combativo, que tem um aliado como o movimento de libertação nacional, aliado incontestàvelmente poderoso e incontestàvelmente importante. Porque ali a revolução tem contra si um adversário por todos conhecido, como o imperialismo estrangeiro, destituído da autoridade moral e justamente odiado por todas as massas exploradas e oprimidas da Índia.

É também perfeitamente possível que a cadeia se rompa na Alemanha. Por quê? Porque os fatores que atuam, por exemplo, na Índia, começam a atuar também na Alemanha, tornando-se evidente que a imensa diferença existente entre o nível de desenvolvimento da Índia e o da Alemanha não poderá deixar de imprimir o seu sinete no curso e no êxito da revolução neste último país.

Por isso, disse Lênin:

«Os países capitalistas da Europa Ocidental levarão a termo o seu desenvolvimento para o socialismo... não por um processo gradual de «amadurecimento» uniforme do socialismo neles, mas através da exploração de alguns Estados por parte de outros, através da exploração do primeiro Estado entre os vencidos na guerra imperialista unida à exploração de todo o Oriente. O Oriente, por outro lado, entrou definitivamente no movimento revolucionário, justamente por força desta primeira guerra imperialista, e foi definitivamente arrastado ao turbilhão do movimento revolucionário mundial». (Vide vol. XXVII, págs. 415-416). [N37]

Em suma, a cadeia da frente imperialista, como regra, deve romper-se ali onde os elos da cadeia forem mais fracos e, em todo caso, não necessariamente ali onde o imperialismo for mais desenvolvido, onde os proletários constituam uma determinada percentagem da população, os camponeses outros tantos por cento, etc., etc..

Por isso, os cálculos estatísticos sobre a percentagem do proletariado na população deste ou daquele país perdem, quando se trata de resolver o problema da revolução proletária, aquela importância excepcional que lhe atribuíam, com muito gosto, os escolásticos da II Internacional, que não souberam compreender o imperialismo e temem a revolução como à peste.

Prossigamos. Os heróis da II Internacional afirmavam (e continuam a afirmar) que, entre a revolução democrática burguesa, de um lado, e a revolução proletária, de outro, há um abismo, ou, pelo menos, uma muralha chinesa, que separa uma da outra por um lapso de tempo mais ou menos longo, durante o qual a burguesia, entronizada no Poder, desenvolve o capitalismo, enquanto o proletariado reúne forças e se prepara para a "luta decisiva" contra o capitalismo. Este intervalo costuma ser avaliado em muitos decênios, senão, mais. Não é preciso demonstrar que esta "teoria" da muralha chinesa, na época do imperialismo, não tem nenhum valor científico, que ela não pode constituir senão um meio para encobrir e mascarar os apetites contra-revolucionários da burguesia. é desnecessário demonstrar que, nas condições existentes no período do imperialismo, cheio de colisões e de guerras, às "vésperas da revolução socialista", quando o capitalismo "florescente" se transforma em capitalismo "agonizante" (Lênin) e o movimento revolucionário se desenvolve em todos os países do mundo, quando o imperialismo se alia com todas as forças reacionárias, sem exceção, até mesmo com o tzarismo e com o regime feudal, tornando assim inevitável a coalizão de todas as forças revolucionárias, desde o movimento proletário no Ocidente até o movimento de libertação nacional no Oriente; quando a destruição das sobrevivências do regime feudal se torna impossível sem uma luta revolucionária contra o imperialismo, não é necessário demonstrar que a revolução democrático-burguesa, num país mais ou menos desenvolvido, deve, nestas condições, avizinhar-se da revolução proletária, que a primeira deve transformar-se na segunda. A história da revolução na Rússia demonstrou, com clareza, que esta afirmação é justa e incontestável. Não foi por acaso que Lênin, já em 1905, às vésperas da primeira revolução russa, apresentava, no seu folheto "Duas táticas", a revolução democrático-burguesa e a revolução socialista como dois elos de uma só cadeia, como um quadro único, um quadro completo do processo da revolução russa:

«O proletariado deve levar a termo a revolução democrática, atraindo para si a massa dos camponeses, para esmagar pela força a resistência da autocracia e paralisar a instabilidade da burguesia. O proletariado deve fazer a revolução socialista, atraindo para si a massa dos elementos semi-proletários da população, para quebrar pela força a resistência da burguesia e paralisar a instabilidade dos camponeses e da pequena burguesia». Tais são as tarefas do proletariado, tarefas que os partidários da nova «Iskra» apresentam de modo tão restrito em todos os seus raciocínios e resoluções sobre a envergadura da revolução». (Vide Lênin, vol. VIII, pág. 86).[N38)]

E não falo de outros trabalhos, mas de recentes, de Lênin, em que a idéia da transformação da revolução burguesa em revolução proletária aparece com maior relevo do que em "Duas táticas", como uma das pedras angulares da teoria leninista da revolução.

Certos camaradas, segundo parece, acreditam que Lênin não concebeu esta idéia senão em 1916 e que até então pensara que a revolução, na Rússia, permaneceria no quadro burguês, que o Poder passaria, portanto, das mãos do órgão da ditadura do proletariado e dos camponeses para as mãos da burguesia, e não para as mãos do proletariado. Diz-se que esta afirmação penetrou até mesmo na nossa imprensa comunista. Devo dizer que esta afirmação é inteiramente falsa, que não corresponde de modo algum à realidade.

Poderia referir-me ao conhecido discurso de Lênin, perante o II Congresso do Partido (1905), no qual ele qualificava a ditadura do proletariado e dos camponeses, isto é, o triunfo da revolução democrática, não como "a organização da ordem"; mas como "a organização da guerra". (Vide vol. VII, pág. 264).[N39]

Poderia referir-me, ademais, aos conhecidos artigos de Lênin "Sobre o governo provisório" (1905), em que traçando as perspectivas do desenvolvimento da revolução russa, põe diante do Partido a tarefa de "conseguir que a revolução russa não seja um movimento de alguns meses, mas um movimento de muitos anos, que ela não conduza tão somente à obtenção de algumas pequenas concessões de parte dos que detêm o Poder, mas à derrubada completa deste, e nos quais Lênin, desenvolvendo esta perspectiva e ligando-a à revolução na Europa, continua:

«E se se conseguir isso, então... então as chamas da revolução incendiarão a Europa; o operário europeu, cansado da reação burguesa, se levantará por sua vez e nos ensinará «como se fazem as coisas»; então, o impulso revolucionário da Europa repercutirá na Rússia e transformará uma época de alguns anos de revolução numa época de alguns decênios de revolução...». (Vide lugar citado, pág. 191).[N40]

Poderia referir-me, ainda, ao conhecido artigo de Lênin, publicado, em novembro de 1915, em que ele escreve:

«O proletariado luta e continuará lutando com abnegação pela conquista do Poder, pela República, pela confiscação das terras..., pela participação das «massas populares não proletárias» na libertação da Rússia burguesa do «imperialismo» feudal militar (isto é, o tzarismo). E desta libertação da Rússia burguesa do tzarismo, do Poder dos latifundiários, o proletariado se aproveitará imediatamente (3) não para ajudar os camponeses acomodados na sua luta contra os operários agrícolas, mas para levar a termo a revolução socialista em aliança com os proletários da Europa». (Vide VOL XVIII, pág. 318).[N41]

Poderia referir-me, finalmente, a uma conhecida passagem do folheto de Lênin, "A Revolução proletária e o renegado Kautsky" em que ele, referindo-se ao trecho acima citado de "Duas táticas"(4), relativo à amplitude da revolução russa, chega a esta conclusão:

«Aconteceu tal qual havíamos dito. O curso da revolução confirmou a justeza do nosso raciocínio. A princípio, juntamente com «todos» os camponeses, contra a monarquia, contra os proprietários rurais, contra o regime medieval (e, portanto, a revolução continua a ser burguesa, democrático-burguesa). Em seguida, juntamente com os camponeses pobres, juntamente com os semi-proletários, com todos os semi-proletários, com todos os explorados, contra o capitalismo, inclusive os camponeses ricos, os kulaks, os especuladores, e, portanto, a revolução se torna socialista. Querer levantar uma artificial muralha chinesa entre uma e a outra, separar uma da outra com qualquer coisa que não seja o grau de preparação do proletariado e o grau da sua união com os camponeses pobres, é a maior tergiversação do marxismo, a redução do marxismo a uma banalidade, a sua substituição pelo liberalismo». (Vide vol. XXIII, pág. 391).[N42]

Parece-me que basta.

Ora, poderia dizer-se, se é assim, por que Lênin combateu a idéia da "revolução permanente" (ininterrupta)?

Porque Lênin propunha que se "esgotasse" a capacidade revolucionária dos camponeses e se utilizasse até o fim a sua energia revolucionária para a destruição completa do tzarismo, para a passagem à revolução proletária, enquanto os defensores da "revolução permanente" não compreendiam a importância do papel dos camponeses na revolução russa, subestimavam a potência da energia revolucionária dos camponeses, subestimavam força e a capacidade do proletariado russo para arrastar os camponeses e desse modo dificultavam a libertação dos camponeses da influência da burguesia e o seu agrupamento em tomo do proletariado.

Porque Lênin propunha coroar a obra da revolução com a passagem do Poder ao proletariado, enquanto os partidários da revolução "permanente" pensavam em começar diretamente com o Poder do proletariado, sem compreender que, desse modo, fechavam os olhos a uma "insignificância" como as sobrevivências feudais e não levavam em conta uma força tão importante como os camponeses russos, sem compreender que uma tal política não podia senão criar obstáculos à conquista dos camponeses pelo proletariado.

Lênin combatia, por isso, os partidários da revolução "permanente", não porque defendessem a continuidade da revolução de vez que o próprio sustentava o ponto-de-vista da revolução ininterrupta, mas porque subestimavam o papel dos camponeses, que são a maior reserva do proletariado, e porque não compreendiam a idéia da hegemonia do proletariado.

A idéia da revolução "permanente" não é uma idéia nova. Quem a expôs pela primeira vez foi Marx, por volta de 1850, na sua conhecida "Mensagem" à Liga dos Comunistas. Desse documento os nossos "permanentistas" tiraram a idéia da revolução ininterrupta. É necessário, porém, observar que os nossos "permanentistas", ao tomá-la de Marx, bastante e, modificando-a, "estragaram-na", tornando-a inútil para uso prático. Foi necessário que a mão hábil de Lênin corrigisse este erro, tomasse a idéia da revolução ininterrupta de Marx na sua forma pura e dela fizesse uma das pedras angulares da sua teoria da revolução.

Eis o que disse Marx a propósito da revolução ininterrupta na sua "Mensagem", depois de ter enumerado uma série de reivindicações democrático-revolucionárias, a cuja conquista conclama os comunistas:

«Enquanto os pequeno-burgueses democráticos querem pôr fim à revolução o mais rápido possível, depois de obterem a maior parte das reivindicações acima mencionadas, nosso interesse e nossa tarefa consistem em tornar a revolução permanente até que seja eliminado o domínio das classes mais ou menos possuidoras, até que o proletariado conquiste o Poder do Estado, até que a associação dos proletários se desenvolva, e não só num país, mas em todos os países dominantes do mundo, em proporções tais, que cesse a concorrência entre os proletários destes países, e até que pelo menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos do proletariado».[N43]

Noutros termos:

  1. Marx, contrariamente aos planos dos nossos "permanentistas" russos, não propunha de modo algum que se iniciasse, na Alemanha de 1850-1860, a revolução diretamente com o Poder do proletariado;
  2. Marx propunha apenas que se coroasse a revolução com o Poder proletário do Estado, desalojando, passo a passo, uma fração da burguesia após outra, para, uma vez instaurado o Poder do proletariado, desencadear a revolução em todos os países. Isso corresponde perfeitamente a tudo o que ensinou e realizou Lênin no curso da nossa revolução, segundo a sua teoria da revolução proletária nas condições existentes na fase do imperialismo.

Resulta, pois, que os nossos "permanentistas" russos, não somente subestimaram o papel dos camponeses na revolução russa e a importância da idéia da hegemonia do proletariado, mas também modificaram (para pior) a idéia da revolução "permanente" de Marx, tornando-a inútil para a sua aplicação prática.

Por isso, Lênin escarnecia da teoria dos nossos "permanentistas", chamando-a "original" e "magnífica", e acusando-os de não querer "refletir sobre a razão pela qual a vida, por todo um decênio, passava ao largo desta magnífica teoria, sem levá-la em conta". (Artigo de Lênin, escrito em 1915, dez anos depois da aparição na Rússia da teoria dos "permanentistas". Vide vol. XVIII, pág. 317).[N44]

Por isso, Lênin considerava esta teoria como semi-menchevique, dizendo que ela "toma dos bolcheviques o apelo à luta revolucionária decisiva do proletariado "e à conquista do poder político por ele, e, dos mencheviques, a "negação" do papel dos camponeses". (Vide o artigo de Lênin: "Duas linhas da revolução", obra citada).

É esse o pensamento de Lênin sobre a transformação da revolução democrático-burguesa em revolução proletária, sobre a utilização da revolução burguesa para passar "imediatamente" à revolução proletária.

Prossigamos. Antes, considerava-se impossível a vitória da revolução num só país, porque se achava que, para alcançar a vitória sobre a burguesia, fosse necessária a ação comum do proletariado de todos os países avançados, ou, pelo menos, da maioria destes. Hoje, este ponto-de-vista não mais corresponde à realidade. Hoje, é necessário partir da possibilidade desse triunfo, porque o caráter desigual e aos saltos do desenvolvimento dos diversos países capitalistas, na fase do imperialismo, o desenvolvimento das catastróficas contradições internas do imperialismo, que geram as guerras inevitáveis, o desenvolvimento do movimento revolucionário em todos os países do mundo: tudo isso determina não somente a possibilidade, mas também a inevitabilidade da vitória do proletariado em um ou outro país. A história da revolução na Rússia nos fornece uma prova direta. Basta lembrar que a derrubada da burguesia só pode ser efetuada com êxito caso existam certas condições absolutamente indispensáveis, sem as quais nem sequer é possível pensar na tomada do Poder pelo proletariado.

Eis o que disse Lênin a propósito destas condições no seu folheto "A doença infantil":

«A lei fundamental da revolução, confirmada por todas as revoluções e particularmente pelas três revoluções russas do século XX, consiste nisso: para a revolução não basta que as massas exploradas e oprimidas estejam conscientes da impossibilidade de continuar vivendo como antes, e exijam mudanças; para a revolução é necessário que os exploradores não possam mais viver nem governar como antes. Somente quando as «camadas inferiores» não mais querem continuar vivendo como no passado e as «camadas superiores» não podem mais continuar governando à antiga, somente então a revolução pode vencer. Noutros termos, esta verdade se exprime do seguinte modo: é impossível a revolução sem uma crise nacional geral (que afete explorados e exploradores)(5) Para a revolução, por conseguinte, é necessário, em primeiro lugar, que a maioria dos operários (ou pelo menos a maioria dos operários conscientes, pensantes, politicamente ativos) compreenda plenamente a necessidade da revolução e esteja disposta a enfrentar a morte por ela; em segundo lugar, que as classes dirigentes atravessem uma crise de governo que arraste à vida política também as massas mais atrasadas..., enfraqueça o governo e torne possível aos revolucionários a sua rápida derrubada».(Vide vol. XXV, pág. 222).[N45]

Mas derrubar o Poder da burguesia e instaurar o Poder do proletariado num só país não significa ainda assegurar a vitória completa do socialismo. Depois de ter consolidado o seu Poder e arrastado para o seu lado os camponeses, o proletariado do país vitorioso pode e deve edificar a sociedade socialista. Mas porventura significa que, com isso, ele chegará à vitória completa, definitiva, do socialismo, isto é, significa que o proletariado pode, com as forças de um só país, consolidar definitivamente o socialismo e garantir inteiramente o país contra a intervenção estrangeira e, por conseguinte, contra a restauração? Não, não significa isso. Para isso é necessária a vitória da revolução em pelo menos alguns países. Por isso, desenvolver e apoiar a revolução noutros países é uma tarefa essencial da revolução vitoriosa. Por isso, a revolução do país vitorioso deve ser considerada, não como uma entidade autônoma, mas como um apoio, como um meio para acelerar a vitória do proletariado nos outros países.

Lênin exprime esse pensamento em duas palavras, dizendo que a tarefa da revolução triunfante consiste em realizar

"o máximo possível num só país para desenvolver, apoiar e despertar a revolução em todos os países". (Vide vol. XXIII, pág. 385).[N46]


Notas de rodapé:

(1) O grifo é meu. (J. St.) (retornar ao texto)

(2) Grifado por mim. (J. St.) (retornar ao texto)

(3) Grifado por mim. (J. St.) (retornar ao texto)

(4) Vide no presente volume pág. 92 (Nota do I.M.E.L..) — Trata-se da seguinte citação: O proletariado deve levar a termo a revolução democrática, atraindo para si a massa dos camponeses, para esmagar pela força a resistência da autocracia e paralisar a instabilidade da burguesia. O proletariado deve fazer ai revolução socialista, atraindo para si a massa dos elementos semi-proletários da população, para quebrar pela força a resistência da burguesia e paralisar a instabilidade dos camponeses e da pequena burguesia». Tais são as tarefas do proletariado, tarefas que os partidários da nova «Iskra» apresentam de modo tão restrito em todos os seus raciocínios e resoluções sobre a envergadura da revolução». (Vide Lênin, vol. VIII, pág. 86). (retornar ao texto)

(5) Os grifos são meus. (J. St.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N32] Vide Lênin, «Que Fazer?», ed. cit, pág. 31. (retornar ao texto)

[N33] Ibid., pág. 32. (retornar ao texto)

[N34] Vide F. Engels, «L. Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã», pág. 30, Edizioni Rinascita, Roma, 1950. (retornar ao texto)

[N35] Vide Lênin, «O imperialismo, etapa superior do capitalismo», Editorial Vitória, 1947. (retornar ao texto)

[N36] Ibid., pág. 13. (retornar ao texto)

[N37] «Antes pouco e bom...», in Lênin, «Obras Escolhidas», Edições em Línguas Estrangeiras, Moscou, vol. II, 1948, pág. 829. (retornar ao texto)

[N38] Vide «Duas táticas da social-democracia na revolução democrática», pág. 101, Editorial Vitória, Rio, 1945. (retornar ao texto)

[N39] Vide «Obras Completas», IV edição, cit., vol. VIII, pág. 353. (retornar ao texto)

[N40] Vide «A social-democracia e o governo revolucionário provisório», in Lênin, «A revolução de 1905», vol. I, pág. 39, Edizioni Rinascita, Roma, 1949. (retornar ao texto)

[N41] Vide «Obras Completas», IV edição cit., vol. XXI, págs. 382-383. (retornar ao texto)

[N42] Vide «A revolução proletária...», ed. cit., págs. 104- -105. (retornar ao texto)

[N43] Vide «Mensagem do Comitê Central da Liga dos Comunistas», in «O Partido e a Internacional», págs. 91-92, Edizioni Rinascita, Roma, 1948. (retornar ao texto)

[N44] Vide «Obras Completas», IV edição, cit., vol. XXI, pág. 381. (retornar ao texto)

[N45] Vide «A doença infantil...», ed. cit., págs. 96-97. (retornar ao texto)

[N46] Vide «A revolução proletária...», ed. cit., pág. 93. (retornar ao texto)

pcr
Inclusão 16/06/2008
Última revisão 22/04/2023