O Materialismo Histórico em 14 Lições

L. A.Tckeskiss


Lição III: A Teoria Organicista na Sociologia


Na lição anterior estabelecemos a hierarquia das ciências. Mostramos porque razão as ciências se sucediam nessa escala e frisamos, aí, os motivos pelos quais deve a sociologia ser colocada em ultimo lugar. Na presente lição deter-nos-emos nas principais teorias sociológicas criadas na época de seus primeiros passos. Veremos como de um ponto de vista geral foram feitas as primeiras investigações no sentido de dar á sociologia um caráter cientifico, e, do ponto de vista particular do materialismo dialético, em que a colocou Marx.

Augusto Comte procurou lançar as bases da sociologia como ciência. Spencer levou mais adiante esta tentativa, que no seu desenvolvimento foi recebendo a contribuição de uma série de outros cientistas.

As varias teorias mais importantes em sociologia, tomadas de um modo geral, podem ser classificadas em: 1º) as que procuram as leis gerais da sociologia na psicologia; 2º) as que vêem essas leis na biologia; 3º) a teoria marxista.

Ao estabelecer a hierarquia das ciências, vimos que a ciência dos organismos, isto é, da vida, é ainda uma ciência nova; que dela surgiu mais recentemente ainda a psicologia, ou melhor, a psicofisiologia, que explica até certo ponto, a atividade individual. E só após esta é que se pode formar a ciência denominada sociologia — a ciência da vida humana em sociedade, da atividade social humana.

Não podemos fazer, aqui, uma ligeira exposição sequer, das diversas teorias, submetendo-as à critica marxista (houve cientistas, até, que procuraram as leis da vida social e as leis da natureza inorgânica nas teorias de Vico, por exemplo).

É evidente que, sendo a sociologia a mais nova de todas as ciências (e nisso estão todos de acordo), as leis de caráter mais geral predominantes nas ciências anteriores, devem servir-lhe de base, mas as leis de caráter propriamente social, essas devem ser encontradas no próprio seio da vida em sociedade. Sem nos determos nas varias teorias da sociologia, anteriormente formuladas, analisaremos contudo, antes de passarmos a Marx, uma das mais importantes — a teoria organicista, formulada por Kant, desenvolvida por Spencer e levada ás suas últimas conseqüências por Worms, Lilienfeld e outros.

Veremos como essa teoria procura e constrói as suas leis da vida social; deter-nos-emos no seu nítido sentido de classe.

Que nos ensina essa teoria? Ela examina a sociedade como se esta fora um organismo animal, e atribui-lhe todas as leis que presidem o desenvolvimento dos organismos individuais. Analisa deste ponto de vista o organismo social, estuda todas as suas partes componentes e respectivas funções no seio do organismo e, partindo de vista biológica, estabelece as leis estáticas do organismo social, determinando as funções de cada uma de suas partes separadamente. As relações harmônicas entre o organismo e seus diversos órgãos, constituem nesta teoria, a base tanto do organismo individual como do organismo social.

Segundo esta teoria o organismo social está dividido numa serie de partes-grupos, ocupando-se cada um desses grupos ou partes, de um trabalho especial. Uma se ocupa do comercio, outra com o trabalho físico, uma terceira com o estudo das ciências, etc. Cada uma dessas partes ou órgãos da sociedade executa o seu trabalho próprio, sua função determinada como organismos individuais.

Deste modo, sucede que existe uma perfeita correspondência entre os diversos agrupamentos da sociedade com as suas funções e os diversos órgãos do organismo individual.

Assim, o Estado corresponde, por exemplo, ao sistema nervoso; os sábios ao cérebro; a classe comercial á circulação do sangue; os camponeses e operários industriais aos órgãos da nutrição; exercito, policia e a justiça – aos órgãos de proteção ou defesa.

Todos esses órgãos sociais estão integrados, unidos ao organismo social, que não pode absolutamente existir em qualquer deles.

Toda a atividade social se estancaria, se parasse a função agrícola ou qualquer outra das funções mais importantes.

Os agrupamentos por si só, estão diferenciados entre si; cada um tem a sua função determinada e não pode executar outra.

Como em todo o organismo individual, cada órgão tem a sua função, também cada agrupamento social com função própria ocupa um lugar distinto na sociedade e não pode confundir-se com outro.

A mudança de forma de cada agrupamento social se opera pela multiplicação e morte de suas diferentes células-individuos.

Velamos agora como se desenvolve o organismo social, segundo essa teoria.

Na opinião dos organistas, dá-se o desenvolvimento da sociedade – organismo social – da mesma forma que em todos os organismos individuais: o desenvolvimento do organismo social, medir-se-á pelo nível de integração do organismo todo, acompanhado pela diferenciação de suas diversas partes.

Quanto mais os organismos se desenvolvem, tanto mais se tornam complexos. O fenômeno de integração consiste no ajustamento de todas as partes distintas ligadas e unidas num só organismo ativo. Mas ao mesmo tempo se torna mais pronunciada a diferenciação entre os diversos órgãos, isto é, cada órgão se adapta exclusivamente a determinada função. E, segundo as mesmas leis de integração e diferenciação, se opera a dinâmica do organismo social. Este se torna cada vez mais complexo e integrado; por isso, modernamente, não temos mais partes estranhas ao organismo social, mas, membros internos ajustados de um só corpo – a sociedade humana – e ao mesmo tempo muito diferenciados entre si.

São essas as leis básicas da estática e da dinâmica social formuladas pela teoria organicista da sociologia.

Onde estão os erros científicos desta teoria? Primeiramente apontaremos um grande erro metodológico: ao construirmos a hierarquia das ciências, mostramos que uma ciência nova só pode ser criada quando no campo da observação surgem fenômenos novos e mais complexos, que não podem ser explicados pelas leis das ciências anteriores. Se se pudessem explicar, por exemplo, os fenômenos da vida, pelas leis puramente químicas, a biologia não se teria desenvolvido como ciência à parte e independente. Permaneceria como parte da química, do mesmo modo que a óptica e a acústica constituem partes da física. Isso quer dizer que, se os fenômenos da vida social se realizam e explicam pelas mesmas leis orgânicas, como os da vida de um organismo simples (ser vivo), a sociologia não teria então direito de pretender uma existência á parte e independente, um lugar distinto na hierarquia das ciências.

Esse é o primeiro e fundamental erro da teoria organicista em sociologia.

Observamos, porem, o conteúdo social dessa teoria que é, de um lado, uma teoria do desenvolvimento em geral (pois Spencer foi o fundador da teoria da “Evolução”) e, de outro, uma formula justificativa das atuais formas de “civilização” da vida social, tendo-as como normais, determinadas e necessárias.

Com efeito, essa teoria traça um perfeito paralelo entre o desenvolvimento do organismo social, tendo-as como normais, determinadas e necessárias.

Com efeito, essa teoria traça um perfeito paralelo entre o desenvolvimento do organismo social individual, desde o estado embrionário ao mais aperfeiçoado e afirma que toda a historia da humanidade representa um aperfeiçoamento gradual da sociedade, uma sempre crescente integração e estabilização de seus diversos agrupamentos ou órgãos ás suas funções respectivas e ao organismo todo, e ao mesmo tempo, uma sempre crescente diferenciação entre esses diversos órgãos. Essa existência dos diversos órgãos ou agrupamentos, ou melhor, das classes na sociedade, é, segundo essa teoria, uma coisa natural e cada tentativa para a modificação das formas sociais, não passará de uma loucura e resultara improfícua.

O sentido social de classe, dessa teoria, ressalta á vista e não carece de comentário algum.(1)

Spencer, como “evolucionista” que era, prediz também o desenvolvimento futuro da sociedade. Mas segundo sua opinião a sociedade se desenvolve no sentido de uma especialização cada vez maior do trabalho, para uma integração e estabilização cada vez maiores ás suas funções. O conteúdo de classe nesta perspectiva é ainda mais acentuado.(2)

Como deve então ser construída a ciência da sociedade? De um lado não devem ser praticados erros de método na investigação. A vida da sociedade se realiza segundo leis que lhe são próprias, leis que se distinguem das biológicas, como estas se distinguem das leis da química. Umas leis não contradizem as outras; pelo contrario, estão entre si em perfeita harmonia; mas as de caráter geral não podem explicar a diversidade e complexidade da vida social e de seu desenvolvimento. Por outro lado deve-se encontrar o caráter especificamente social nos fenômenos que emanam da atividade humana e, destarte, descobrir as leis sociais, estáticas e dinâmicas.

Somente deste modo foi que se construiu a sociologia marxista.


Notas:

(1) Quanto á dinâmica da sociedade, Spencer incide no mesmo erro metodológico do que quanto á estática. A sociologia, oriunda da biologia, pode, talvez, ser aplicada para investigação da vida e desenvolvimento dos seres inferiores. Entretanto a sociedade humana tem outros aspectos inteiramente novos e peculiares que não podem ser explicados pelas leis que regem as sociedades dos animais inferiores. (retornar ao texto)

(2) O publicista russo Mikailowsky, criticando esta teoria do “pregresso” de Spencer, mostra, muito acertadamente, que ela não toma em consideração o homem vivente, nem os seus sentimentos de felicidade, alegria, bem-estar, etc. (retornar ao texto)

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Inclusão 24/02/2010