Nota do tradutor
Esta tradução em português foi realizada a partir da versão em inglês publicada pelo Documentation Center of Cambodia (DC-Cam), que, por sua vez, baseou-se nas traduções de David Chandler (“The Constitution of Democratic Kampuchea: The Semantics of Revolutionary Change”, Pacific Affairs, 1976) e Craig Etcheson (“The Rise and Demise of Democratic Kampuchea”, Westview Press, 1984). Trata-se, portanto, de uma tradução indireta e não oficial do texto original em khmer.
Após a votação de 18 de março de 1970 que o destituiu do cargo de Chefe de Estado, o Príncipe Norodom Sihanouk enviou, de Pequim, um apelo por uma revolta armada contra o regime que havia tomado o poder em Phnom Penh. O movimento comunista, que vinha lutando contra o regime desde 1968, uniu-se ao Príncipe, que criou a Frente Unida Nacional do Kampuchea (FUNK) e o Governo Real da União Nacional do Kampuchea (GRUNK).
O Exército do Vietnã do Norte e o Vietcongue forneceram apoio decisivo às forças embrionárias da FUNK. Aos poucos, os elementos mais radicais do comunismo cambojano – apelidados de Khmer Vermelho já em 1970 pelo Príncipe Sihanouk – começaram a ampliar sua influência dentro da FUNK, da qual assumiram o controle a partir de 1973. As forças vietnamitas, que haviam assinado os Acordos de Paris no início daquele ano, recuaram para as zonas de fronteira. Embora o “frontismo” continuasse sendo a prática política nas zonas de combate, as primeiras purgas e massacres começaram nas chamadas “zonas libertadas”. Os principais alvos foram os partidários de Sihanouk, os comunistas moderados (ou aqueles suspeitos de simpatizar com Hanói) e os indivíduos considerados reticentes, que se tornaram as principais vítimas.
Em 17 de abril de 1975, as forças do Khmer Vermelho tomaram Phnom Penh e instauraram o regime denominado Kampuchea Democrático.
Durante uma reunião do grupo de comando na capital cambojana, de 15 a 19 de dezembro de 1975, foi adotado o texto de uma Constituição, cujos princípios haviam sido definidos no final de abril. Ela foi promulgada em 5 de janeiro de 1976.
Preâmbulo
Com base nos desejos sagrados e fundamentais do povo, dos operários, dos camponeses e demais trabalhadores, bem como nos dos combatentes e quadros do Exército Revolucionário do Kampuchea; e
Considerando que um papel significativo foi desempenhado pelo povo – em especial pelos operários, pelos camponeses pobres, pela pequena-burguesia rural e por outras camadas de trabalhadores do campo e das cidades – que representam mais de noventa e cinco por cento de toda a nação cambojana, que assumiram a maior responsabilidade na guerra de libertação nacional e popular, fizeram os maiores sacrifícios em termos de vida, propriedade, e compromisso, serviram incansavelmente na linha de frente e, sem hesitar, sacrificaram seus filhos e maridos aos milhares na luta nos campos de batalha;
Considerando os grandes sacrifícios suportados pelas três categorias do Exército Revolucionário do Kampuchea, que lutaram bravamente, dia e noite, na estação seca e chuvosa, enfrentando todo tipo de dificuldades e sofrimentos, escassez de alimentos, medicamentos, roupas, munição, e outros bens essenciais na grande guerra pela libertação nacional e popular;
Considerando que todo o povo cambojano e todo o Exército Revolucionário do Kampuchea desejam um Camboja independente, unificado, pacífico, neutro, não alinhado e soberano, que goze de integridade territorial; uma sociedade nacional pautada pela genuína felicidade, pela igualdade, pela justiça e pela democracia; sem ricos nem pobres, sem exploradores nem explorados; uma sociedade em que todos vivam em harmonia, com grande solidariedade nacional, unindo forças no trabalho manual coletivo e no aumento da produção para a construção e a defesa do país;
E considerando que a resolução do Congresso Nacional Especial, realizado em 25, 26 e 27 de abril de 1975, proclamou solenemente o reconhecimento e o respeito aos desejos acima mencionados de todo o povo e de todo o Exército Revolucionário do Kampuchea;
A Constituição do Kampuchea declara:
Capítulo Um: O Estado
Artigo 1º — O Estado do Kampuchea é independente, unificado, pacífico, neutro, não alinhado, soberano e democrático, gozando de integridade territorial.
O Estado do Kampuchea é o Estado do povo, dos operários, dos camponeses, e de todos os demais trabalhadores cambojanos.
O nome oficial do Estado do Kampuchea é Kampuchea Democrático.
Capítulo Dois: A Economia
Artigo 2º — Todos os meios de produção geral de importância fundamental são propriedade coletiva do Estado popular e propriedade comum dos coletivos do povo.
Os bens de uso cotidiano permanecem em mãos privadas.
Capítulo Três: Cultura
Artigo 3º — A cultura do Kampuchea Democrático tem caráter nacional, popular, progressista e saudável, destinada a servir às tarefas de defesa e de construção do Kampuchea como uma pátria cada vez mais próspera.
Essa nova cultura se opõe de forma absoluta à cultura corrupta e reacionária das diversas classes opressoras, bem como às culturas do colonialismo e do imperialismo no Kampuchea.
Capítulo Quatro: O Princípio da Liderança e do Trabalho
Artigo 4º — O Kampuchea Democrático aplica o princípio coletivo na liderança e no trabalho.
Capítulo Cinco: Poder Legislativo
Artigo 5º — O poder legislativo reside na Assembleia Representativa do povo, dos operários, dos camponeses, e dos demais trabalhadores cambojanos.
Esta Assembleia será oficialmente conhecida como “Assembleia Representativa do Povo Cambojano”.
A Assembleia Representativa do Povo Cambojano será composta por 250 membros, representando o povo, os operários, os camponeses e todos os demais trabalhadores cambojanos e o Exército Revolucionário do Kampuchea. Desses 250, haverá:
- 150 representando os camponeses;
- 50 representando os operários e demais trabalhadores;
- 50 representando o Exército Revolucionário.
Artigo 6º — Os membros da Assembleia Representativa do Povo Cambojano são eleitos pelo povo por meio de eleições gerais, diretas e imediatas, realizadas em todo o país a cada cinco anos, mediante voto secreto.
Artigo 7º — A Assembleia Representativa do Povo é responsável pela elaboração das leis e pela definição das diversas políticas, internas e externas, do Kampuchea Democrático.
Capítulo Seis: O Órgão Executivo
Artigo 8º — A administração é o órgão responsável por executar as leis e as diretrizes políticas da Assembleia Representativa do Povo Cambojano.
A administração é eleita pela Assembleia Representativa do Povo Cambojano e deve prestar total responsabilidade a esta por todas as suas atividades, tanto dentro quanto fora do país.
Capítulo Sete: Justiça
Artigo 9º — A justiça é administrada pelos tribunais populares, que representam e defendem a justiça do povo, protegem os direitos e as liberdades democráticas do povo e condenam quaisquer atividades dirigidas contra o Estado Popular ou que violem as leis do Estado Popular.
Os juízes, em todos os níveis, serão escolhidos e nomeados pela Assembleia Representativa do Povo.
Artigo 10 — As ações que violam as leis do Estado Popular são as seguintes:
Atividades perigosas contrárias ao Estado Popular devem ser condenadas com o mais alto rigor.
Os demais casos estão sujeitos à reeducação construtiva no âmbito das organizações do Estado ou do povo.
Capítulo Oito: O Presidium de Estado
Artigo 11 — O Kampuchea Democrático possui um Presidium de Estado, escolhido e nomeado pela Assembleia Representativa do Povo a cada cinco anos.
O Presidium de Estado é responsável por representar o Estado do Kampuchea Democrático, dentro e fora do país, em conformidade com a Constituição do Kampuchea Democrático e com as linhas políticas e leis da Assembleia Representativa do Povo.
O Presidium de Estado é composto por: um presidente, um primeiro vice-presidente e um segundo vice-presidente.
Capítulo Nove: Os Direitos e Deveres do Indivíduo
Artigo 12 — Todo o cidadão do Kampuchea goza de plenos direitos a uma vida material, espiritual e cultural em constante aprimoramento.
Todo cidadão do Kampuchea Democrático tem o direito garantido à subsistência.
Todos os operários são senhores de suas fábricas.
Todos os camponeses são senhores dos arrozais e dos campos.
Todos os demais trabalhadores têm direito ao trabalho.
Não há absolutamente nenhum desemprego no Kampuchea Democrático.
Artigo 13 — Deve haver plena igualdade entre todos os cidadãos cambojanos, em uma sociedade igualitária, justa, democrática, harmoniosa e feliz, fundada na grande solidariedade nacional para a defesa e construção coletiva do país.
Homens e mulheres são plenamente iguais em todos os aspectos.
A poligamia é proibida.
Artigo 14 — É dever de todos construir o país coletivamente, de acordo com a capacidade e potencial individuais.
Capítulo Dez: A Capital
Artigo 15 — A capital do Kampuchea Democrático é Phnom Penh.
Capítulo Onze: A Bandeira Nacional
Artigo 16 — O desenho e o significado da bandeira nacional do Kampuchea são os seguintes:
O fundo é vermelho, com um templo amarelo de três torres ao centro.
O fundo vermelho simboliza o movimento revolucionário, a luta resoluta e valente do povo cambojano pela libertação, defesa e construção do país.
O templo amarelo simboliza as tradições nacionais do povo cambojano, que defende o constrói o país para torná-lo cada vez mais próspero.
Capítulo Doze: O Emblema Nacional
Artigo 17 — O emblema nacional consiste em uma rede de diques e canais, que simbolizam a agricultura moderna, e em fábricas, que simbolizam a indústria. Esses elementos são emoldurados por uma guirlanda oval de espigas de arroz, com a inscrição “Kampuchea Democrático” na parte inferior.
Capítulo Treze: O Hino Nacional
Artigo 18 — O hino nacional do Kampuchea Democrático é o “Dap Prampi Mesa Chokchey” (Glorioso Dezessete de Abril).
Capítulo Catorze: O Exército Revolucionário do Kampuchea
Artigo 19 — As três categorias do Exército Revolucionário do Kampuchea – regular, regional e guerrilheiro – formam um exército popular, composto por homens e mulheres combatentes e quadros, filhos de operários, camponeses e outros trabalhadores cambojanos. Defendem o poder estatal do povo cambojano e um Kampuchea independente, unificado, pacífico, neutro, não alinhado, soberano e democrático, dotado de integridade territorial, e, ao mesmo tempo, contribuem para a construção de um país que se torna mais próspero a cada dia, visando melhorar e desenvolver o nível de vida do povo.
Capítulo Quinze: Adoração e Religião
Artigo 20 — Todo cidadão do Kampuchea tem o direito de praticar qualquer religião e o direito de não praticar religião alguma.
Religiões reacionárias, prejudiciais ao Kampuchea Democrático e ao povo cambojano, são absolutamente proibidas.
Capítulo Dezesseis: Política Externa
Artigo 21 — O Kampuchea Democrático deseja, de forma fervorosa e sincera, manter relações estreitas e amistosas com todos os países que compartilham uma fronteira comum, bem como com todos os países próximos e distantes do mundo, em conformidade com os princípios do respeito mútuo e absoluto pela soberania e pela integridade territorial.
O Kampuchea Democrático adere a uma política de independência, paz, neutralidade e não alinhamento. Não permitirá, sob hipótese alguma, que qualquer país estrangeiro mantenha bases militares em seu território, e opõe-se resolutamente a todas as formas de interferência externa em seus assuntos internos, assim como toda forma de subversão e agressão contra o Kampuchea Democrático provenientes do exterior, sejam elas militares, políticas, culturais, sociais, diplomáticas ou humanitárias.
O Kampuchea Democrático rejeita qualquer forma de intervenção de outros países em seus assuntos internos e respeita, escrupulosamente, o princípio de que cada nação é soberana e possui o direito de gerir e decidir os seus próprios assuntos sem interferência externa.
O Kampuchea Democrático permanece plenamente integrado à grande família das nações não alinhadas.
O Kampuchea Democrático se empenha em promover a solidariedade com os povos do Terceiro Mundo na Ásia, África e América Latina, bem como com todos os povos amantes da paz e da justiça em todo o mundo, contribuindo ativamente para a ajuda e o apoio mútuo na luta contra o imperialismo, o colonialismo e o neocolonialismo, e em favor da independência, da paz, da amizade, da democracia, da justiça e do progresso em todo o mundo.
