Constituição do Kampuchea Democrático

1976

Tradução autorizada

Documentation Center of Cambodia (DC-Cam)

Origem: The Cambodian Constitutions (1953–1994), coletado e apresentado por Raoul M. Jennar, sendo a constituição, em si, estabelecida em 5 de janeiro de 1976.

Fonte para a tradução: Documentation Center of Cambodia.

Tradução: Rick Magalhães de Sá.

HTML: João Batalha.

Direitos de Reprodução: © Todos os direitos reservados pelo Documentation Center of Cambodia (DC-Cam). A tradução da obra para o Arquivo Marxista na Internet foi autorizada pela organização em novembro de 2025.


Nota do tradutor

Esta tradução em português foi realizada a partir da versão em inglês publicada pelo Documentation Center of Cambodia (DC-Cam), que, por sua vez, baseou-se nas traduções de David Chandler (“The Constitution of Democratic Kampuchea: The Semantics of Revolutionary Change”, Pacific Affairs, 1976) e Craig Etcheson (“The Rise and Demise of Democratic Kampuchea”, Westview Press, 1984). Trata-se, portanto, de uma tradução indireta e não oficial do texto original em khmer.

Após a votação de 18 de março de 1970 que o destituiu do cargo de Chefe de Estado, o Príncipe Norodom Sihanouk enviou, de Pequim, um apelo por uma revolta armada contra o regime que havia tomado o poder em Phnom Penh. O movimento comunista, que vinha lutando contra o regime desde 1968, uniu-se ao Príncipe, que criou a Frente Unida Nacional do Kampuchea (FUNK) e o Governo Real da União Nacional do Kampuchea (GRUNK).

O Exército do Vietnã do Norte e o Vietcongue forneceram apoio decisivo às forças embrionárias da FUNK. Aos poucos, os elementos mais radicais do comunismo cambojano – apelidados de Khmer Vermelho já em 1970 pelo Príncipe Sihanouk – começaram a ampliar sua influência dentro da FUNK, da qual assumiram o controle a partir de 1973. As forças vietnamitas, que haviam assinado os Acordos de Paris no início daquele ano, recuaram para as zonas de fronteira. Embora o “frontismo” continuasse sendo a prática política nas zonas de combate, as primeiras purgas e massacres começaram nas chamadas “zonas libertadas”. Os principais alvos foram os partidários de Sihanouk, os comunistas moderados (ou aqueles suspeitos de simpatizar com Hanói) e os indivíduos considerados reticentes, que se tornaram as principais vítimas.

Em 17 de abril de 1975, as forças do Khmer Vermelho tomaram Phnom Penh e instauraram o regime denominado Kampuchea Democrático.

Durante uma reunião do grupo de comando na capital cambojana, de 15 a 19 de dezembro de 1975, foi adotado o texto de uma Constituição, cujos princípios haviam sido definidos no final de abril. Ela foi promulgada em 5 de janeiro de 1976.

Preâmbulo

Com base nos desejos sagrados e fundamentais do povo, dos operários, dos camponeses e demais trabalhadores, bem como nos dos combatentes e quadros do Exército Revolucionário do Kampuchea; e

Considerando que um papel significativo foi desempenhado pelo povo – em especial pelos operários, pelos camponeses pobres, pela pequena-burguesia rural e por outras camadas de trabalhadores do campo e das cidades – que representam mais de noventa e cinco por cento de toda a nação cambojana, que assumiram a maior responsabilidade na guerra de libertação nacional e popular, fizeram os maiores sacrifícios em termos de vida, propriedade, e compromisso, serviram incansavelmente na linha de frente e, sem hesitar, sacrificaram seus filhos e maridos aos milhares na luta nos campos de batalha;

Considerando os grandes sacrifícios suportados pelas três categorias do Exército Revolucionário do Kampuchea, que lutaram bravamente, dia e noite, na estação seca e chuvosa, enfrentando todo tipo de dificuldades e sofrimentos, escassez de alimentos, medicamentos, roupas, munição, e outros bens essenciais na grande guerra pela libertação nacional e popular;

Considerando que todo o povo cambojano e todo o Exército Revolucionário do Kampuchea desejam um Camboja independente, unificado, pacífico, neutro, não alinhado e soberano, que goze de integridade territorial; uma sociedade nacional pautada pela genuína felicidade, pela igualdade, pela justiça e pela democracia; sem ricos nem pobres, sem exploradores nem explorados; uma sociedade em que todos vivam em harmonia, com grande solidariedade nacional, unindo forças no trabalho manual coletivo e no aumento da produção para a construção e a defesa do país;

E considerando que a resolução do Congresso Nacional Especial, realizado em 25, 26 e 27 de abril de 1975, proclamou solenemente o reconhecimento e o respeito aos desejos acima mencionados de todo o povo e de todo o Exército Revolucionário do Kampuchea;

A Constituição do Kampuchea declara:

Capítulo Um: O Estado

Artigo 1º — O Estado do Kampuchea é independente, unificado, pacífico, neutro, não alinhado, soberano e democrático, gozando de integridade territorial.

O Estado do Kampuchea é o Estado do povo, dos operários, dos camponeses, e de todos os demais trabalhadores cambojanos.

O nome oficial do Estado do Kampuchea é Kampuchea Democrático.

Capítulo Dois: A Economia

Artigo 2º — Todos os meios de produção geral de importância fundamental são propriedade coletiva do Estado popular e propriedade comum dos coletivos do povo.

Os bens de uso cotidiano permanecem em mãos privadas.

Capítulo Três: Cultura

Artigo 3º — A cultura do Kampuchea Democrático tem caráter nacional, popular, progressista e saudável, destinada a servir às tarefas de defesa e de construção do Kampuchea como uma pátria cada vez mais próspera.

Essa nova cultura se opõe de forma absoluta à cultura corrupta e reacionária das diversas classes opressoras, bem como às culturas do colonialismo e do imperialismo no Kampuchea.

Capítulo Quatro: O Princípio da Liderança e do Trabalho

Artigo 4º — O Kampuchea Democrático aplica o princípio coletivo na liderança e no trabalho.

Capítulo Cinco: Poder Legislativo

Artigo 5º — O poder legislativo reside na Assembleia Representativa do povo, dos operários, dos camponeses, e dos demais trabalhadores cambojanos.

Esta Assembleia será oficialmente conhecida como “Assembleia Representativa do Povo Cambojano”.

A Assembleia Representativa do Povo Cambojano será composta por 250 membros, representando o povo, os operários, os camponeses e todos os demais trabalhadores cambojanos e o Exército Revolucionário do Kampuchea. Desses 250, haverá:

Artigo 6º — Os membros da Assembleia Representativa do Povo Cambojano são eleitos pelo povo por meio de eleições gerais, diretas e imediatas, realizadas em todo o país a cada cinco anos, mediante voto secreto.

Artigo 7º — A Assembleia Representativa do Povo é responsável pela elaboração das leis e pela definição das diversas políticas, internas e externas, do Kampuchea Democrático.

Capítulo Seis: O Órgão Executivo

Artigo 8º — A administração é o órgão responsável por executar as leis e as diretrizes políticas da Assembleia Representativa do Povo Cambojano.

A administração é eleita pela Assembleia Representativa do Povo Cambojano e deve prestar total responsabilidade a esta por todas as suas atividades, tanto dentro quanto fora do país.

Capítulo Sete: Justiça

Artigo 9º — A justiça é administrada pelos tribunais populares, que representam e defendem a justiça do povo, protegem os direitos e as liberdades democráticas do povo e condenam quaisquer atividades dirigidas contra o Estado Popular ou que violem as leis do Estado Popular.

Os juízes, em todos os níveis, serão escolhidos e nomeados pela Assembleia Representativa do Povo.

Artigo 10 — As ações que violam as leis do Estado Popular são as seguintes:

Atividades perigosas contrárias ao Estado Popular devem ser condenadas com o mais alto rigor.

Os demais casos estão sujeitos à reeducação construtiva no âmbito das organizações do Estado ou do povo.

Capítulo Oito: O Presidium de Estado

Artigo 11 — O Kampuchea Democrático possui um Presidium de Estado, escolhido e nomeado pela Assembleia Representativa do Povo a cada cinco anos.

O Presidium de Estado é responsável por representar o Estado do Kampuchea Democrático, dentro e fora do país, em conformidade com a Constituição do Kampuchea Democrático e com as linhas políticas e leis da Assembleia Representativa do Povo.

O Presidium de Estado é composto por: um presidente, um primeiro vice-presidente e um segundo vice-presidente.

Capítulo Nove: Os Direitos e Deveres do Indivíduo

Artigo 12 — Todo o cidadão do Kampuchea goza de plenos direitos a uma vida material, espiritual e cultural em constante aprimoramento.

Todo cidadão do Kampuchea Democrático tem o direito garantido à subsistência.

Todos os operários são senhores de suas fábricas.

Todos os camponeses são senhores dos arrozais e dos campos.

Todos os demais trabalhadores têm direito ao trabalho.

Não há absolutamente nenhum desemprego no Kampuchea Democrático.

Artigo 13 — Deve haver plena igualdade entre todos os cidadãos cambojanos, em uma sociedade igualitária, justa, democrática, harmoniosa e feliz, fundada na grande solidariedade nacional para a defesa e construção coletiva do país.

Homens e mulheres são plenamente iguais em todos os aspectos.

A poligamia é proibida.

Artigo 14 — É dever de todos construir o país coletivamente, de acordo com a capacidade e potencial individuais.

Capítulo Dez: A Capital

Artigo 15 — A capital do Kampuchea Democrático é Phnom Penh.

Capítulo Onze: A Bandeira Nacional

Artigo 16 — O desenho e o significado da bandeira nacional do Kampuchea são os seguintes:

O fundo é vermelho, com um templo amarelo de três torres ao centro.

O fundo vermelho simboliza o movimento revolucionário, a luta resoluta e valente do povo cambojano pela libertação, defesa e construção do país.

O templo amarelo simboliza as tradições nacionais do povo cambojano, que defende o constrói o país para torná-lo cada vez mais próspero.

Capítulo Doze: O Emblema Nacional

Artigo 17 — O emblema nacional consiste em uma rede de diques e canais, que simbolizam a agricultura moderna, e em fábricas, que simbolizam a indústria. Esses elementos são emoldurados por uma guirlanda oval de espigas de arroz, com a inscrição “Kampuchea Democrático” na parte inferior.

Capítulo Treze: O Hino Nacional

Artigo 18 — O hino nacional do Kampuchea Democrático é o “Dap Prampi Mesa Chokchey” (Glorioso Dezessete de Abril).

Capítulo Catorze: O Exército Revolucionário do Kampuchea

Artigo 19 — As três categorias do Exército Revolucionário do Kampuchea – regular, regional e guerrilheiro – formam um exército popular, composto por homens e mulheres combatentes e quadros, filhos de operários, camponeses e outros trabalhadores cambojanos. Defendem o poder estatal do povo cambojano e um Kampuchea independente, unificado, pacífico, neutro, não alinhado, soberano e democrático, dotado de integridade territorial, e, ao mesmo tempo, contribuem para a construção de um país que se torna mais próspero a cada dia, visando melhorar e desenvolver o nível de vida do povo.

Capítulo Quinze: Adoração e Religião

Artigo 20 — Todo cidadão do Kampuchea tem o direito de praticar qualquer religião e o direito de não praticar religião alguma.

Religiões reacionárias, prejudiciais ao Kampuchea Democrático e ao povo cambojano, são absolutamente proibidas.

Capítulo Dezesseis: Política Externa

Artigo 21 — O Kampuchea Democrático deseja, de forma fervorosa e sincera, manter relações estreitas e amistosas com todos os países que compartilham uma fronteira comum, bem como com todos os países próximos e distantes do mundo, em conformidade com os princípios do respeito mútuo e absoluto pela soberania e pela integridade territorial.

O Kampuchea Democrático adere a uma política de independência, paz, neutralidade e não alinhamento. Não permitirá, sob hipótese alguma, que qualquer país estrangeiro mantenha bases militares em seu território, e opõe-se resolutamente a todas as formas de interferência externa em seus assuntos internos, assim como toda forma de subversão e agressão contra o Kampuchea Democrático provenientes do exterior, sejam elas militares, políticas, culturais, sociais, diplomáticas ou humanitárias.

O Kampuchea Democrático rejeita qualquer forma de intervenção de outros países em seus assuntos internos e respeita, escrupulosamente, o princípio de que cada nação é soberana e possui o direito de gerir e decidir os seus próprios assuntos sem interferência externa.

O Kampuchea Democrático permanece plenamente integrado à grande família das nações não alinhadas.

O Kampuchea Democrático se empenha em promover a solidariedade com os povos do Terceiro Mundo na Ásia, África e América Latina, bem como com todos os povos amantes da paz e da justiça em todo o mundo, contribuindo ativamente para a ajuda e o apoio mútuo na luta contra o imperialismo, o colonialismo e o neocolonialismo, e em favor da independência, da paz, da amizade, da democracia, da justiça e do progresso em todo o mundo.