O Plano Marshall à Luz dos Fatos

A. Lêontiev


IX — Intercâmbio com Ovos em Pó e Carros Velhos


A COMBINAÇÃO dos fornecimentos, os preços dos produtos e o caráter unilateral do comércio americano, coisas todas previstas nas estipulações do plano Marshall, constituem o principal meio de dominação dos países da Europa.

Não vale a pena provar que os países da Europa Ocidental, para reerguerem sua economia, necessitam antes de tudo, de maquinaria e matérias primas industriais. Isto porque a indústria destes países exige em primeiro lugar a reconstituição de seu capital fixo e o renovamento dos fundos correntes dilapidados.

Contudo, o plano Marshall prevê um fornecimento de mercadorias completamente diferente. O primeiro lugar está reservado, como se sabe, aos produtos manufaturados americanos, às quinquilharias que antes de tudo devem ter saída.

Além do lugar ínfimo que cabe aos fornecimentos de ferramentas Industriais nas previsões americanas, deve se notar que toda a redução das somas concedidas leva acima de tudo à diminuição dos envios de máquinas para a Europa.

Hoffman, ao tomar a palavra na comissão senatorial dos créditos, citou um cálculo curioso: a redução da soma total dos abonos a título do plano Marshall terá por efeito fazer cair de 1 bilhão e 100 milhões para 100 milhões de dólares os fornecimentos de máquinas-utensílios e ferramentas, isto é, cair de 11 vezes. Por outro lado numerosas decisões do Congresso americano estabelecem um contingente de exportação determinado, muito alto, para produtos como o leite em pó, ovos em pó, fumo etc. Por exemplo, o Congresso aprovou uma emenda especial de Murrav que obriga os países da Europa Ocidental a comprar aos Estados Unidos por 65 milhões de dólares o leite em pó. Fato curioso: a importação deste produto é obrigatória mesmo para um país como a Áustria, que tem fazendas de criação de vacas leiteiras de primeira ordem.

À quinquilharia é imposta não só aos países secundários que, são assim obrigados a engolir o que lhes dão. Também a Inglaterra está no mesmo caso. Durante todo o período de após guerra não param de se lamentar na imprensa inglesa a respeito do sortimento forçado dos fornecimentos americanos à Grã-Bretanha, primeiro a título do empréstimo de 1946, e depois na base do plano Marshall. No início de 1948, por exemplo, os jornais declaravam que, num total de 900 milhões de libras que representavam o valor dos fornecimentos americanos previstos no plano Marshall para 51 meses, mais de 50% são concedidos para mercadorias que não são em absoluto necessárias, como fumo, petróleo, ovos em pó, frutas frescas e secas. O total para estes 4 artigos de importação, perfaz, segundo os jornais, cerca de 600 milhões de libras.

Foi assim que a imprensa apreciou as previsões no início do ano. Depois a situação também não melhorou. Em junho, o comentarista político do «Observer» constatava com tristeza que os excedentes destinados à exportação para os países do plano Marshall «não contêm senão uma quantidade limitada de artigos de primeira necessidade», que os americanos são obrigados, imaginem, «a dar-nos produtos de que não necessitamos».

Na Dinamarca, os produtos que «podem ser dispensados» representam, nas previsões para 1948, uma soma de 511 milhões de coroas contra 118 milhões apenas para os artigos necessários ao reerguimento do país.

A concorrência das mercadorias americanas imposta à Europa Ocidental estrangula a economia local. Os americanos exportam grandes quantidades de automóveis para os países que têm sua própria indústria de automóveis. Também este ramo bem desenvolvido da indústria italiana, por exemplo, está de há muito presa de uma crise sem solução. Muitas fábricas de automóveis da Alemanha Ocidental tiveram que fechar. Todos os que conheçam um pouco a estrutura da economia americana sabem que este ramo da indústria é sempre a primeira vítima da super-produção, das dificuldades de escoamento, das crises enfim. É por esta razão que os monopolistas dos EE. UU. se apressam em assegurar novos mercados para os automóveis. O fato do magnata do automóvel, Paul Hoffman, ter sido proposto para a realização do plano Marshall, tem uma importância não apenas simbólica, mas também puramente prática.

Os fornecimentos de fumo americano para os mercados da Europa puseram fora dos eixos a própria imprensa turca, que já está habituada a tudo. No fim de maio, o jornal governamental «Cumhuritet», lamentava-se com amargura deste «triste quadro», escrevendo:

«A cultura do fumo, em nosso país, e, consequentemente, toda a economia do país, caminha rapidamente para uma crise que será difícil vencer visto que, ao enviar para a Europa, sob a máscara do Plano Marshall, o fumo bom da Virgínia e ao proibir a exportação do fumo turco para a Alemanha, a América desfere um.terrível golpe neste ramo de nossa produção e, desta forma, em toda a nossa economia».

Em seguida, este jornal arqui-reacionário, lembrando os méritos da Turquia na qualidade de «barreira contra o comunismo», expressava seu espanto diante da «política de boicotagem ao fumo turco na Alemanha», onde é batido, como se sabe, pelos maus cigarros americanos, que desempenham o papel de divisas especuladoras no mercado negro das zonas ocidentais.

Os monopólios americanos não estão apenas pouco inclinados a fornecer aos países da Europa as máquinas e matérias primas indispensáveis para o desenvolvimento da produção. Praticam com espírito de lógica uma política que consiste em tirar destes países as matérias primas que eles próprios necessitam para o desenvolvimento de sua indústria. Por exemplo, importam da Alemanha Ocidental ferro velho. Muita vez, como a imprensa constata, encontra-se entre este ferro-velho máquinas e ferramentas industriais que poderiam perfeitamente ser utilizadas para a volta à produção pacífica. Por outro lado, as cláusulas do plano Marshall prevêem, como foi dito acima, a obrigação, para os países europeus, de proverem em primeiro lugar a América de matérias primas estratégicas e, em geral, de matérias primas deficitárias.

Ao fixar seu sortimento de mercadorias para os países europeus os monopolistas dos Estados Unidos se inspiram unicamente em considerações egoístas e cúpidas, visando conservar e aumentar ainda mais seus lucros extraordinários, exorbitantes, somente possíveis, nas condições de dominação dos monopólios no mercado mundial.

O exemplo da Suécia é característico sob este aspecto. Segundo as informações da imprensa, este país deve receber num ano, a título do plano Marshall, por 28.400.000 dólares de mercadorias especialmente: 2 milhões de café; 2.100.000 dólares de fumo; 8 milhões de peles e couros; 6.900.000 dólares de automóveis; 1 milhão de fios de algodão; 4.700.000 dólares de produtos da indústria petrolífera.

Estes algarismos mostram que a Suécia não receberá a título do plano Marshall os produtos que lhe são particularmente necessários: trigo, carvão, máquinas, aço para edificação e construções marítimas e máquinas-ferramentas pesadas. Todos estes produtos formam apenas uma sexta parte do total dos fornecimentos, a título do plano Marshall. O «Goteborgs Handelstidning» escrevia a propósito, que a redução notável dos fornecimentos americanos em aço para a construção de navios na Suécia e nos outros países incluídos no plano Marshall não significa que a América tenha falta de aço. Os fornecimentos em questão, dizia esse jornal, foram diminuídos porque os Estados Unidos:

«objetivam, por razões políticas, econômicas e militares, reduzir consideravelmente a exportação para á Europa de aço para a construção de navios». Pois aumentar esses fornecimentos «estaria em contradição direta com o desejo que a América tem de entravar o desenvolvimento das frotas de comércio dos países europeus».

Uma tal política de abastecimento dos países europeus, premeditadamente orientada e cujo fim é a redução de maneira artificial, em proporção da necessidade, das principais indústrias desses países, implica na ameaça indiscutível de estrangulamento das referidas indústrias e, consequentemente, de desemprego para os operários. Os industriais suecos declaram que esta política obrigará os estaleiros de construção naval a reduzirem consideravelmente sua atividade ou mesmo a paralisarem completamente.

Os outros países da Europa Ocidental cuja indústria está desenvolvida, estão no mesmo caso. Em março de 1948 o correspondente, da «Berlingske Aftenavis» em Paris escrevia:

«O plano Marshall é seguido por sua fiel sombra: a ameaça de desemprego. A explicação deste fato está na falta de matérias primas. O fornecimento de algumas delas não entrará no quadro desse plano. Os Estados Unidos podem dar dólares, mas não matérias primas de toda a espécie. O desemprego ameaça em primeiro lugar a Bélgica. Os industriais belgas fazem notar que será necessário um milagre para afastar deste país um desemprego considerável. Fala-se num milhão de desempregados. Isto num país cuja população é de 8 milhões de almas! Em França, o desemprego já existe. É tanto mais curioso que, ainda bem recentemente, a França importava mão de obra da Itália e da Alemanha».

As sombrias perspectivas de desemprego, seguindo como uma sombra do plano Marshall, preocupam não somente os operários sindicalizados, como também os representantes dos meios de negócios. Por exemplo, no início de maio, o jornal conservador inglês «Evening Standard» escrevia:

«Cada inglês e, em particular, cada sindicalizado tem o dever de saber o que o governo inglês dá aos Estados Unidos em troca de fumo e de ovos em pó. Tem o direito de saber se não será golpeado pelo desemprego no dia em que for suspensa a ajuda prestada a título do plano Marshall. Pois o firme consentimento de baixar as barreiras comerciais e dirigir a exportação para os canais aceitos pelos americanos pode levar ao desaparecimento dos melhores mercados para os produtos ingleses».

A influência funesta do sortimento forçado a título do plano Marshall alia-se à influência não menos fatal dos preços elevados dos produtos fornecidas. O plano Marshall cria um monopólio não só sobre os mercados dos capitais, como também sobre os dos produtos. Os homens de negócios americanos encontraram uma ocasião única de esvaziar sua vitrine de quinquilharias a preços fabulosamente aumentados. Este monopólio dos especuladores, das bolsas de mercadorias americanas já custa caro aos povos europeus.

É sabido que, sobre o total dos créditos americanos de 1946 à Inglaterra, esta perdeu, só devido à alta dos preços dos produtos americanos, cerca de um bilhão de dólares, isto é, mais de um quarto do valor total do empréstimo. A Bélgica compra o trigo americano a 350-375 francos o quintal, quando pode comprar na Europa a 320 francos.

Diariamente à imprensa dos países da Europa ocidental aponta fatos semelhantes.

A troca desigual entre os países industriais avançados e os países atrasados, entre as metrópoles e as colônias, é característica para toda a época do capitalismo monopolista. Hoje, nas condições de agravamento da crise gerai do sistema capitalista, esta troca desigual torna-se a regra também para as relações entre os Estados Unidos e os países do Oeste europeu.

Privando os países da Europa Ocidental de seus mercados, o plano Marshall afasta-os ao mesmo tempo das fontes de abastecimento onde poderiam encontrar as mercadorias em condições mais vantajosas.

Citamos como fato característico, a este respeito, uma declaração de Gunnar Seidenfaden ao delegado dinamarquês no «comitê dos dezesseis». Durante uma entrevista com o correspondente do «Berlingske Aftenavis», a 15 de junho de 1948, portanto já conhecendo as cláusulas dos «acordos bipartistes», este delegado disse:

«Pensávamos que com os dólares recebidos a título do Plano Marshall poderíamos comprar noutros lugares sem ser os Estados Unidos, especialmente na América do Sul, as forragens que necessitamos. Constatamos que esta possibilidade não existe hoje. Será necessário que esperemos bastante. Antes da. guerra importávamos cerca de 600.000 toneladas de tortas porano. No primeiro trimestre de 1948 apenas recebemos 8.80O toneladas. Que teremos amanhã? Enigma».

Vê-se que o plano Marshall visa perpetuar a dependência econômica, dos países da Europa Ocidental perante a América e ainda fazer crescer de ano em ano esta dependência.

Ora, sabe-se que as tentativas dos imperialistas nazistas que queriam transformar os países da Europa em anexos agrários da indústria alemã, para o abastecimento desta em matérias primas fracassaram vergonhosamente. Estas tentativas eram levadas a efeito sob a insígnia da famosa «nova ardem» hitlerista na. Europa. Atualmente, os monopolistas americanos, retomam, no fundo, esse planos de transformação dos países industriais altamente evoluídos da Europa Ocidental em fornecedores de matérias primas aos Estados Unidos e em mercados para seus produtos manufaturados.

Este programa engendra inevitavelmente um círculo vicioso de contradições. Os primeiros passos, já no caminho da realização deste programa, terão por efeito baixar, de forma imensa, o nível de vida das massas populares dos países da Europa Ocidental e, principalmente, aumentar o desemprego. O caráter reacionário e utópico do plano Marshall, como programa de transformação dos países da Europa Ocidental em anexos agrários dos monopólios industriais americanos, se manifesta de forma cada vez mais sentida.

Notamos finalmente, como exercendo uma influência funesta sobre a economia européia, o fato de que os Estados Unidosao procurarem esvaziar seus armários de quinquilharias, opõem-se realmente a uma importação ainda que pouco importante de produtos europeus para a América. Daí o enorme déficit em dólares na balança das contas da Europa Ocidental.

Há uma contradição evidente no fato de que os Estados Unidos se, esforçam por aumentar sua exportação sem admitir uma importação adequada, enquanto que os países do Oeste europeu são obrigados a importar, mas não têm possibilidade de exportar uma quantidade bastante de mercadorias. É esta dupla contradição que é, em grande parte, a origem do plano Marshall. Mas, isto nada mais faz, na realidade, do que sancionar um estado de coisas também anormal, sendo impotente para resolvê-lo.

O caráter unilateral do comércio americano torna-se um dos meios de escravização dos países da Europa Ocidental. Os homens de negócios do outro lado do Atlântico não encontram na Europa os produtos de que têm necessidade, além das matérias primas, sobretudo estratégicas. O espírito de altruísmo é, porém, completamente desconhecido para estes negocistas. Não querendo mercadorias européias, propõem-se comprar em bloco os países da Europa Ocidental, com suas cidades e empresas industriais, com seus parlamentares e seus reis, com seus conservadores e pseudo-socialistas. Esta é a compensação que os usurários americanos pedem em troca dos ovos em pó e carros velhos.


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Inclusão 28/03/2008