A Defesa Acusa
De Babeuf a Dmítrov

Marcel Willard


OS PRECURSORES


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Na época em que Lênin, em sua carta de 1905 ao Comitê Central, formulava, pela primeira vez, em determinadas condições politicas, os princípios essenciais da autodefesa, qual era a experiência extraída pelos revolucionários da história dos grandes processos?

Essa experiência, bastante variada conforme o lugar, a época, as conjunturas, as relações de forças, admitia, todavia, certa unidade de linhas, de caráter, de método.

É um fato que a maioria dos grandes revolucionários tinham observado, antes da carta, essas leis formuladas por Lênin:

Defender sua causa e não sua pessoa.

Mostrar-se física e politicamente corajoso.

Não prestar informações ao inimigo sobre o que ele devê ignorar.

Atacar o regime acusador.

Dirigir-se, por cima da cabeça do juiz, às massas.

Não confiar sua defesa política aos advogados.

Não temos a pretensão de estudar aqui todos os grandes processos políticos dos dois últimos séculos. Limitar-nos-emos a lembrar alguns exemplos-tipos em função da autodefesa a que deram margem; reduziremos ao mínimo necessário o histórico, a analise e as citações.

BABEUF

A 10 de maio de 1796 (21 floreal, ano IV), o Diretório, os dirigentes corruptos da reação termidoreana, punham fim, pela prisão dos “Iguais”, ao último estrebuchar, à última chance da Revolução, cuja mola, perto de dois anos antes, a queda de Robespierre tinha quebrado. Esta última tentativa era também o primeiro ensaio de realização socialista: foi vencida pela grande burguesia, senhora do Estado, consciente de sua força ascendente e pela divisão das forças populares.

Neto de camponeses picardos, filho de um funcionário arruinado, Gracchus Babeuf, verdadeiro plebeu, tinha constatado, mais na escola da miséria e no contacto dos oprimidos do que na leitura dos filósofos, a desigualdade social, a servidão operaria e camponesa, a realidade das oposições de classe. Em revolta, desde sua juventude, contra a injustiça, na vanguarda da luta, na Picardia, contra os “aides” (impostos de consumo) que atingiam os pobres, vergado sobre todas as reivindicações do povo, ao qual votava seu amor, sua confiança e sua vida, era incorruptível como Robespierre, homem de massas como Danton, porém menos ambicioso e mais humano, menos fraseador e mais clarividente, menos nutrido de abstrações e mais próximo dos trabalhadores, seus irmãos, do que qualquer outro.

Ninguém foi mais puro e mais caluniado, mais profético e mais desconhecido: com quase meio século de adiantamento sobre seu tempo, quis levar a Revolução ao seu termo, no momento em que ela estava desfalecendo.

Atirou-se, não apenas contra a corrupção, mas também contra suas causas; desfechou os primeiros golpes sobre a propriedade territorial e industrial, sobre o lucro e a concorrência; pretendeu fazer com que os possuidores pagassem.

Esse democrata consequente, esse ancestral do socialismo, quis pôr fim à exploração do homem pelo homem, realizar a igualdade de todos na instrução e no trabalho, edificar uma sociedade sem ricos nem pobres, uma sociedade composta, não de cidadãos dotados de direitos teóricos, mas de trabalhadores libertados.

E se, no ano II, cometeu o erro de combater Robespierre, ao lado dos termidoreanos, teve, no ano III, o realismo político de propor aos seus adversários jacobinos da véspera a união das forças republicanas para a defesa do regime. Só depois do fracasso desse esforço é que se resolveu a conspirar. Teve igualmente a elasticidade de associar à sua conjuração os “patriotas de 1789”, sob a palavra de ordem dos motins de prairial: volta à Constituição democrática de 1793, considerada como um “encaminhamento para um bem maior”.

Mas é nos operários que Babeuf se apoia, é neles que deposita confiança: a elevação dos preços, o pão caro, a inflação, o fechamento de empresas, a agiotagem dos Taliien e outros grandes burgueses instalados no poder, o “reinado das meretrizes”, a insolência antipopular da juventude dourada (muscadins, incroyables, ligueurs da época), a reação crescente, a Constituição conservadora do ano III, a volta à ofensiva dos realistas confessados ou encobertos, o Terror branco, tinham provocado uma luta de classes bastante violenta e determinado algumas greves.

A insurreição de prairial fora reprimida, os jacobinos estavam encurralados, a Sociedade do Panteon dissolvida, Babeuf, muitas vezes preso, escondia-se, estava reduzido à ilegalidade.

Nestas condições é que ele constituirá, com alguns amigos, (os primeiros dos quais foram Sylvain Maréchal, Félix Lepeletier, Antoinette Didier, Darthé e Felipe Buonarroti, descendente de Miguel Angelo), o Comitê secreto que deveria organizar a insurreição popular.

Foi a Conjuração dos Iguais, cujos textos de propaganda mais notáveis são a Análise da Doutrina de Babeuf, o Manifesto dos Iguais, e, sobretudo, o Ato Insurrecionador, cuja audácia e realismo lembram Marat e, apesar das imprecisões, das concessões, das lacunas, de longe anunciam o Manifesto Comunista.

A conspiração estava minuciosamente preparada, mas, como toda conspiração, ficava à mercê de um traidor e Babeuf não desconhecia esse perigo inerente a semelhante empreendimento.

Já a conjuração começava, entretanto, a penetrar parte do proletariado e do exército em Paris e em certos centros de provinda, quando um espião, o Capitão Grisel, membro do Comitê militar, denunciou os conjurados.

A 21 de floreal, ano IV (10 de maio de 1796), em casa do marceneiro Dufour, rua Papillon, 331, foram presos.

Sem demora, o Diretório, inaugurando uma tradição que se tornaria clássica, caluniava-os, para privá-los do apoio das massas: atribuía-lhes a intenção de entregar Paris à pilhagem e ao massacre. E a imprensa governamental (já!) escarrava sobre os vencidos.

Vencidos? Babeuf não se confessa vencido. Melhor: ameaça. De sua prisão da Abadia, escreve aos membros do Diretório uma carta orgulhosa, em que, longe de negar seu papel, exagera deliberadamente a força da conjuração e acha que, com ele, se trata de “potência a potência”. Que esses cidadãos se previnam: em caso de processo, ele 3e esforçará por demonstrar “que esse processo não seria o da justiça, mas o do forte contra o fraco, dos opressores contra os oprimidos”.

Tanto pior para os que, condenando-o à morte, fariam dele um mártir: “Toda a democracia da República Francesa” é que eles irritariam. Babeuf não é toda a conspiração, não passa de um elo dela. Quanto mais se quer comprimir o fogo, mais “sua chama ameaça levantar-se subitamente forte e explosiva”. Esta carta não produz o efeito visado.

Quanto aos últimos conjurados, não tardariam a cair, em Grenelle, numa armadilha de provocadores, armada por Barrasse e pelo ministro da Polícia, Cochon.

Transferido para o Templo, de onde escreveu ao seu amigo Lepeletier uma carta admirável de dignidade, na qual se mostra consciente da sua sorte e de seu papel, é, a 30 de agosto, transportado com seus coacusados para Vendôme. Porque é em Vendôme e não em Paris, onde são demasiado conhecidos, demasiado populares, que os Iguais terão que responder por sua conjuração perante a Alta Corte de Justiça. Sessenta e cinco acusados, dezoito dos quais contumazes.

Eram acusados de conspiração contra a segurança interior da República, conspiração tendente à destruição do governo e da Constituição do ano III.

Desde o princípio da instrução, que duraria longos meses, os conjurados tinham entrado em acordo sobre a tática a seguir. Devia-se confessar ou não a conjuração?

Sim, havia já decidido Babeuf, que, no decorrer dos inquéritos policiais, não sonhara senão em sustentar a legitimidade de seus atos, porém, sem comprometer ninguém:

— “Intimamente convencido de que o governo atual é opressor, teria feito tudo o que está em minhas forças para derrubá-lo. Associara-me com todos os democratas da República; é meu dever não nomear nenhum”(1).

E, interpelado sobre os meios que contava empregar:

— “Todos os meios são legítimos, contra os tiranos, respondeu, não tenho que dar detalhes dos meios que teriam de ser empregados!”

Alguns dias mais tarde, depois de ter decidido sobre o papel dirigente que se lhe imputava, acrescentava altivamente:

— “Depois disto, consinto em arcar, todavia, com a pena maior do crime de tramar contra os opressores; porque confesso mais que, quanto à intenção, ninguém pôde conspirar contra eles mais fortemente do que eu: tenho a convicção de que é um crime comum a todos os franceses, pelo menos a toda parte virtuosa, a quem quer que não queira esse pavoroso sistema da felicidade de um número muito pequeno, baseado no opróbrio e na extrema miséria da massa; declaro-me completamente atingido e convencido do crime e declaro que era o de todos os conspiradores que eu servia”.

Mas nem todos os acusados, estavam de acordo com a oportunidade dessa atitude e a maioria imaginava que, negando, teria mais possibilidades de ser absolvida. Para evitar a divisão no campo da defesa, Babeuf acreditou dever associar-se a uma tática de compromisso, meio jurídica, meio politica. Decidiu-se contestar a existência da “combinação”, cuja prova era necessária para demonstrar a conspiração, e sustentar que, se essa combinação tivesse existido, “era despida de toda criminalidade, seja pela ausência de meios de execução, seja porque, na hipótese mais favorável, o fim que se lhe atribuía era legítimo e fundado em direito”.

Confinado nessa tática, muito pouco compatível com suas declarações anteriores e com seu próprio caráter, menos sustentável ainda em face dos documentos apreendidos, que eram esmagadores, Babeuf não podia sentir-se completamente à vontade. Por felicidade, seu temperamento, seu senso político, deveriam preservá-lo de todo servilismo oportunista.

Viu-se com que cuidado Babeuf se empenhou em não comprometer nenhum camarada e em não informar o inimigo sobre a vida e a atividade de sua organização.

É um segundo preceito de Lênin e Dmítrov que Babeuf, antes da carta e guiado por seu justo instinto, observou notavelmente: os defensores, longe de serem solidários dos acusados, contrariavam muitas vezes seus desígnios; esforçavam-se por afogar os debates numa onda de incidentes de processo que quase não tinham outra consequência senão prolongá-lo. Babeuf, Germain, Antonelle e Buonarroti não se deixaram desviar de seu caminho por essas rabulices de jurista e defenderam-se pessoalmente. Defenderam seus camaradas, seu partido, sua causa.

Enquanto Darthé negava à Alta Corte todo o poder de julgá-lo, recusava responder e defender-se, esses quatro homens não hesitaram jamais em glorificar a ação, os princípios e os fins da conspiração, em honrarem-se “com os ferros que traziam e com o perigo de que estavam ameaçados”(2). Por muito apertados que estivessem entre a decisão comum de não confessar e as provas esmagadoras da acusação, pode-se dizer “que traçaram para si e seguiram até O fim uma linha de defesa politica e corajosamente revolucionária. Ainda aí, seu exemplo ilustra e ultrapassa as tradições essenciais da autodefesa. Ainda aí, prenunciam a linhagem dos grandes revolucionários, cuja atitude e estratégia nos propomos analisar.

A Alta Corte fez, aliás, por seu lado, o que iriam fazer, no decorrer da história, todos os tribunais contrarrevolucionários encarregados da tarefa de julgar acusados revolucionários e de sufocar sua defesa: esforçou-se por amesquinhar os debates, confiná-los aos limites do fato, interditar aos acusados toda discussão politica. Como o observa fortemente Buonarroti, quase século e meio antes do processo de Leipzig, o tribunal “não passou de instrumento dos que, com o desprezo da soberania do povo, se tinham apossado da autoridade suprema pela violência e pela astúcia”(3).

O cidadão Gandon preside: é um executante medíocre. Bailly e Viellart são os acusadores nacionais. O processo, que duraria do dia 2 ventose do ano V (20 de fevereiro de 1797) ate o dia 7 do prairial (26 de maio), três meses como o processo de Leipzig, é um dos mais comovedores episódios da luta movida pelos primeiros socialistas, aliados aos últimos jacobinos, contra a reação termidoreana, já pronta para prostituir-se ao cesarismo.

Babeuf tinha estudado muito atentamente a lei, o que o habilitou a enfrentar o presidente e os acusadores em seu próprio terreno. Não sendo grande orador, prepara e redige com tanto mais cuidado suas intervenções.

Desde a primeira audiência, declina da competência da Alta Corte “não independente do governo”(4) e exige juízes naturais, porque, “numa causa que interessa ao povo, é o povo ou um tribunal escolhido por ele quem deve sentenciar”(5).

Estigmatiza “o famoso Cochon”(6), ministro da Polícia, “este homem de confiança de Luiz XVIII”(7), sem que o presidente, confuso, pense ao menos em interrompê-lo. Depois exige a apresentação prévia a cada acusado de todas as peças do processo e de todos os documentos apreendidos. No dia seguinte, Germain junta-se a ele e denúncia com mais violência as ilegalidades e as calúnias de que os acusados são vítimas; qualifica o ato da acusação de “tecido de infâmias, obra execrável da mais negra, da mais covarde maldade”, compara seu autor “a repugnante harpia Caleno, que impregnava de sujidade e de fedor as coisas que suas mãos tocavam”, e declara: “ao povo é que eu dirijo minha defesa; os jurados, seus verdadeiros representantes, a receberão”(8).

Quando, a 6 de ventose, o promotor Viellart pronunciou seu requisitório odioso, os acusados, tratados de celerados, não deixaram de interrompê-lo. Em vão, o presidente tentava restabelecer a calma. Babeuf, decidido a nada deixar passar, indignado de ouvir o acusador falsificar e truncar os textos, não deixa que lhe tirem a palavra; grita ao presidente: “não é sua atribuição dizer-me que me cale”. E ao acusador: “Queremos que se leiam as peças exatamente, que as mesmas não sejam truncadas”(9).

E, como o acusador termine sua leitura: “ano IV da República democrática vindoura”, Babeuf conclui: “sim, ela é vindoura, a República democrática!”(10).

O acusador faz, em seguida, o processo “das épocas memoráveis da Revolução”. Os acusados interrompem. Grita Darthé: “Somos os homens do 14 de julho”. Vieillart tendo, então, a audácia de replicar: “E nós também”, desencadeia-se um tumulto geral.

Enfim, às três horas e meia, Babeuf pede ao presidente “que se nos livre do resto desses horrores”. Outros fazem observar a8s acusados que seu requisitório “condena a ele mesmo”; outros, que ele é destituído de talento. Amar quer que ele vá até ao fim para que se conheçam bem “seu ódio contra o povo, a liberdade e a igualdade” e que sejam trazidas à luz “sua baixeza e sua covardia”(11).

Um dos incidentes mais irritantes para a defesa foi provocado pela pretensão dos acusadores de fazer ouvir como testemunha o espião Grisel.

Buonarroti, Germain, Babeuf, que, logo se vê, não pouparam o traidor, invocaram a lei que proibia o depoimento do denunciador, quando este tirava ou podia tirar proveito de seu ato. O acusador Bailly quis ser sutil: sustentou que Grisel não tinha denunciado, mas revelado a conspiração e o denunciador era o próprio Diretório.

Este subterfúgio não teve sorte, escreveu Buonarroti. Levantou risos e cóleras dos acusados. O mais eloquente foi Antonelle, que achou “difícil de bem defender a justeza de espírito e a boa fé do cidadão Bailly” e ilustrou vivamente seu elogio desajeitado dos princípios do ano III, que, dizia o acusador, se firmam e se firmarão!”(12).

Quando a Alta Corte houve por bem decidir manter Grisel na lista das testemunhas e, para recusar outros sub-Grisel, Babeuf obteve a palavra, o presidente, irritado pelas primeiras palavras, ameaçou-o de retirá-la. Foi, então, que o chefe dos “Iguais”, prenunciando ainda Dmítrov, evocou magnificamente a presença invisível do povo:

— “Ha outros homens, que nossos juízes não ouvem, que nos ouvem. O povo também está interessado em tudo o que dizemos. Devemos falar sempre, aqui, como se ele estivesse presente... É perante ele, em seu conjunto, que nos justificamos”...(13).

E Babeuf, para entregar ao desprezo popular a lista de testemunhas de acusação:

— “Que é que se distingue, com efeito, nesta lista? Espiões e escravos, depois escravos e espiões. Seguindo-a, veremos figurar aqui a escória da sociedade, os excrementos de todos os vícios, o resíduo de todas as depravações”(14).

Sob estas chicotadas, o presidente perde a calma e ameaça ainda Babeuf de reduzi-lo ao silêncio:

— “Como quiserdes, retruca Babeuf, seria muito cômodo. Prometestes julgar-nos em nossas masmorras, julgar-nos sós; julgai-nos!... quereis fazer meu discurso? Fazei-o!”(15)

E continua...

Noutro dia, Babeuf, atento a tudo, denuncia a inexatidão tendenciosa das cópias estenográficas da audiência.

Depois de cada depoimento de espião, Babeuf e seus amigos passam ao contra-ataque.

Assim é que» depois da deposição do técnico em letra manuscrita, Harger, que, num documento apreendido, pretende decifrar, sob uma rasura, três palavras ilegíveis “matar os cinco”, em torno do que a acusação não hesitava em fazer alarde, Babeuf confunde esse técnico servil, que tinha “prostituído seu ministério e vendido sua consciência ao governo”(16).

Assim é, ainda, que o depoimento da testemunha Guillaume dá margem a incidentes tais que as chamadas à ordem são vãs, os acusados tomam a palavra cada vez que se lhe a recusa, o presidente não pode acabar a leitura de um julgamento especial (chamais a isto um julgamento! grita Darthé) e Babeuf domina a voz do presidente. ( — “Não peço a palavra, dirijo-me aos jurados!”) E pergunta aos jurados “se qualquer pessoa não tem o direito de exigir do tribunal ordem e pudor’.

Quando a Alta Corte, confessando sua impotência, se retira para redigir a ata da sessão, os acusados cantam a Marselhesa: “Tremei, tiranos!...”.

Assim é que, enfim, no dia seguinte, Babeuf acusa a mesma testemunha Guillaume por seu conluio com o acusador e o presidente. Depois, amplia sem demora sua ofensiva: retrucando ao acusador, que imputa a resistência dos acusados à lentidão do processo, lentidão contra a qual ouve elevarem-se, “tantas vozes”.

— “Quais são, grita ele, essas vozes tão multiplicadas? Amigos do povo, vós o adivinhais. Não são senão a dessa casta muito impropriamente chamada “honesta”, que não é senão um ponto em comparação com a massa, mas que chega a ter a insolência de pretender ser tudo, de viver, sem nada fazer, da expressão dos suores do grande número, de contar como nada essa massa exclusivamente útil, de jugulá-la, de esfomeá-la, como pagamento perpétuo do emprego de seus braços, de sua inteligência, de sua indústria. Tal é, republicanos, o punhado de vampiros de quem se diz que todas as vozes se elevam contra a lentidão das operações dos que se atribuíram o direito de nos imolar. Tais são os que esses senhores se apressam em agradar... E vós, porção essencial e maior do povo, vereis como sois tratados, na pessoa daqueles que não abandonaram vossos interesses”(17).

O depoimento do espião Grisel ocupou duas audiências. Antonelle e Germain, que eram os mais eloquentes, tinham-lhe exprobado brutalmente o feito. Babeuf, em quem a eloquência não cedia ao senso político, atacou, sobretudo, através dele, os termidoreanos, que, depois de terem reprimido a insurreição de prairial do ano III, se permitiam difamá-la e escarrar sobre os democratas vencidos. E exaltou essas “jornadas funestas, porém santas e reverenciadas, desastrosas, porém honrosas, em que o povo e seus delegados fieis cumpriram seu dever, em que seus mandatários traidores, em que seus esfomeadores, seus assassinos, os usurpadores da soberania e de todos os seus direitos levaram ao cúmulo atrocidades de que nenhuma história oferece exemplo”(18). E invocou o exemplo heroico das vítimas que se tinham defendido, também elas, perante a Alta Corte.

— “Tombados, como vós, devemos imitar-vos e comparecer perante nossos perseguidores, inabaláveis como vós, e todo republicano verdadeiro deve honrar a época em que morrestes vítimas dos mais detestáveis inimigos da República”(19).

Babeuf não pôde acabar: o presidente forçou-o a calar-se.

Entre todos os espiões, policiais e condenados de direito comum chamados a depor, houve duas exceções, dois revoltados: Barbier e Meunier retrataram-se dos falsos testemunhos que se lhes tinha extorquido sob ameaça; solidarizaram-se com os acusados e cantaram: “Levez-vous, illustres victimes”... Foram condenados aos grilhões.

Do meio milheiro de peças de acusação que alimentavam os debates, a mais importante era a ata de criação do Comitê secreto.

Foi por essa ocasião que Babeuf pôde, à vontade, defender a conspiração inconfessada.

— “Isto absolutamente não é, diz ele, um processo de indivíduos: é o da República... Essa ata... pertence à República, à Revolução, à Historia... Devo defendê-la”(20).

Pouco depois, Babeuf lançava à liberdade sua mais nobre apóstrofe:

— “Gênio da Liberdade! Quantas graças tenho a render-te por me teres posto numa posição em que sou mais livre do que todos os outros homens, precisamente porque estou carregado de grilhões! Como é belo o meu lugar! Como é bela a minha causa! Ela, e só ela, permite-me a linguagem da verdade... No meio de minhas cadeias, minhã língua é privilegiada sobre todas as do incalculável número dos oprimidos e dos desgraçados, para cada um dos quais não foi possível construir, como para mim, como morada, uma masmorra. Sofrem, são presa de vexames, esbulhados, esmagados sob a mais acerba aflição, curvados sob o mais odioso envilecimento e, por cúmulo de atrocidade, não lhes é mais lícito queixarem-se”(21).

Babeuf glorifica a Constituição de 1793, condena os usurpadores, os tiranos, que a arrancaram ao povo. O presidente cassa-lhe a palavra. Quando a toma novamente é para impor, depois de um preâmbulo acertado, o tema do direito à insurreição: quando o povo está oprimido, a insurreição é legitima.

Alguns acusados e um dos defensores acreditaram ser hábil atribuir a agentes provocadores a origem da conjuração: não implicava apenas em negá-la: era renegá-la, era desacreditá-la politicamente. Babeuf rebelou-se. E, quando Ricord achou de bom aviso imputar a ata insurrecional ao traidor Grisel, Babeuf não hesitou em desmentir seu camarada:

— “Não. Não é documento que faça corar seu autor e Grisel é um celerado demasiado grande para ter feito tal ata”(22).

À medida que o processo se aproxima do fim e liberta-se do acervo de documentos, vê-se mais nitidamente entrechocarem-se, sob o emblema de duas Constituições, as duas épocas, as duas forças, as duas concepções do mundo: revolução e contrarrevolução, 1793 e ano III.

A acusação e o tribunal brandem a Constituição reacionaria do ano III e, segundo eles, não se trata de saber se os acusados a infringiram ou não, se quiseram ou não subvertê-la: não é lícito contestar-lhe a legitimidade. Nesse terreno, a acusação não se arrisca a perder.

Ao contrário, Babeuf e seus amigos recusam-se a deixar circunscrever dentro desse círculo estreito sua defesa e o arbítrio dos jurados:

— “Representantes do povo, sede o próprio povo: é mister ter seu coração para exprimir sua vontade”(23).

A única coisa que deve valer para esses juízes populares, para esses mandatários do povo, são os direitos do povo. Ora, esses direitos foram violados pela Constituição do ano III: a verdadeira lei dos franceses era a de 1793, que, solenemente aceita pelo povo, consagrava sua soberania. A do ano III, ao contrário, nunca foi aceita por ele e o despoja da soberania. Qual das duas é que é legitima?

A acusação formulava também, contra os acusados, o agravo de terem infringido o princípio de propriedade, querendo instituir a comunidade dos bens. Em apoio desse agravo, nenhum documento. Por sua vez, os acusados, o próprio Buonarroti, não acreditaram necessário tomá-lo a sério. Só Babeuf compreendeu sempre a necessidade de transformar a sala de audiência em tribuna e não hesitou em atacar a propriedade, que, diz ele, “é, na terra, a causa de todos os males”.

— “Pela pregação dessa doutrina, proclamada há muito tempo pelos homens de bom senso, quis associar à República o povo de Paris, fatigado de revoluções, desencorajado pelas desgraças e quase “realistificado” pelos ardis dos inimigos da liberdade”(24).

E conclui sua longa argumentação de defesa final com um desafio ao carrasco, uma aceitação serena da morte. Não, porém, sem ter anunciado profeticamente aos jurados o que significaria uma condenação:

— “A decisão dos jurados vai resolver este problema: A França permanecerá República ou será presa dos bandidos que a desmembrarão. E será que não voltará uma monarquia?... Cidadãos jurados... quereis acelerar a contrarrevolução e precipitar a queda dos patriotas sob os punhais dos realistas triunfantes?”(25).

O povo, presente à audiência, não apenas nos bancos dos jurados, mas no auditório e entre os soldados, escutava avidamente seu tribuno, seu porta-voz, que, pondo os atos de acordo com as palavras, estava prestes a morrer por sua causa. Ouvia-o atacar vitoriosamente o poder, defender e glorificar as atas, as recordações mais populares da Revolução. Era Babeuf que, à frente de seus camaradas, exprimia os interesses, a vontade do povo e confundia a tal ponto os acusadores, que um deles, um dia, exausto de argumentos, foi forçado a murmurar esta confissão de derrota: “Afinal de contas, obedeço.

Foi por pouco que esse povo, a quem Babeuf e os seus se dirigiam com razão como ao seu defensor, não respondeu ao seu apelo. Por pouco que não foram libertados por uma evasão cujo meio lhes foi fornecido. Por pouco que não foram postos em liberdade.

Babeuf e Darthé foram condenados à morte e seus camaradas à deportação. Babeuf e Darthé cortaram-se com um estilete, sem conseguirem matar-se. O auditório indignado te-los-ia arrancado aos gendarmes, se as baionetas não o tivessem feito retroceder.

Marcharam para o cadafalso “como para um triunfo”. A última palavra de Babeuf foi para esse povo que tanto amou.

Mas o povo não estava maduro; não sabia mais onde reconhecer os seus; era ignorante, estava dividido; sentia-se só e sem direção. Estava, sobretudo, cansado de lutar por outros. Ao passo que sofria, a jovem burguesia, que se servira dele, confiscava suas conquistas. Uma conspiração, ainda que exemplarmente preparada, só podia, portanto, carecer de raízes populares: aí estava o vício inicial e mortal da máquina que Babeuf tinha criado e bastaria um Grisel para entravar. Econômica e politicamente, a República dos Iguais não estava amadurecida e Babeuf cometeu o erro de ter tido razão um pouco tarde demais e muitíssimo cedo demais: um pouco tarde demais para salvar 1793, muitíssimo cedo demais para edificar o socialismo de que foi precursor.

Com Babeuf, iria morrer, depois de seu último estrebuchar, a primeira Revolução. A história não mais separaria seus corpos. E, antes dela, foram os camponeses da Vendôme que os recolheram do monturo para os enterrarem piedosamente. Porque não foi em vão que esses camponeses ouviram o último herói da Revolução anunciar-lhes, em termos ainda imprecisos, obscuros para eles, a revolução social do futuro.


Notas de rodapé:

(1) Buonarroti: Histoire de la conspiration pour l’Égalité, dite de Babeuf, ed. de 1850, p. 209. (retornar ao texto)

(2) Buonarroti, ob. cit., p. 218. (retornar ao texto)

(3) Idem, p. 217. (retornar ao texto)

(4) Debate do processo movido perante a Alta-Corte de Justiça contra Drauet, Babeuf e outros, registados por estenógrafos, Paris, Imprimerie Nationale, p. 29. (retornar ao texto)

(5) Idem. (retornar ao texto)

(6) Idem, p. 26. (retornar ao texto)

(7) Idem. (retornar ao texto)

(8) Idem, ps. 54 e 60. (retornar ao texto)

(9) Idem, ps. 75 e 76. (retornar ao texto)

(10) Idem, p. 76. (retornar ao texto)

(11) Idem, pr. 122. (retornar ao texto)

(12) Idem, ps. 207 e segs. (retornar ao texto)

(13) Idem, ps. 229 e segs. (retornar ao texto)

(14) Idem, p. 230. (retornar ao texto)

(15) Idem, p. 233. (retornar ao texto)

(16) Idem, p. 379. (retornar ao texto)

(17) Idem, p. 471. (retornar ao texto)

(18) Buonarroti, ob. cit., ed. de 1828, p. 35. (retornar ao texto)

(19) Buonarroti, ob. cit., ed. de 1828, p. 36. (retornar ao texto)

(20) Idem, p. 39. (retornar ao texto)

(21) Idem, ps. 39-40. (retornar ao texto)

(22) Idem, p. 43. (retornar ao texto)

(23) Idem, p. 49. (retornar ao texto)

(24) Idem, p. 53. (retornar ao texto)

(25) Idem, p. 54. (retornar ao texto)

Inclusão: 05/06/2020