A Defesa Acusa
De Babeuf a Dmítrov

Marcel Willard


OS PRECURSORES
JULES GUESDE


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Na época da Comuna, Jules Guesde tem vinte e seis anos. Imbuído das tradições jacobinas, republicano combativo, preso em julho de 1870, ainda não é socialista. Toma, porém, ardentemente, partido pelos comunardos e seus artigos, qualificados de “apologias de fatos qualificados de crimes”, valem-lhe, a 22 de junho de 1871, perante a Corte Penal do Hérault, uma condenação a cinco anos de prisão. Foge, então, da França de Thiers e refugia-se na Suíça, depois na Itália, aguardando a prescrição de sua pena. Conquistado para o coletivismo abstrato (não ainda para o marxismo) por suas ligações com a emigração internacional de Genebra, volta, em 1876, para uma Paris presa da reação. Escreve no Droits de l’homme, depois no Radical. Torna-se o iniciador e redator-chefe do Egalité.

Em 1878, em prol da exposição, devia verificar-se em Paris um congresso operário internacional. Fazem-se preparativos por meio de reuniões publicamente anunciadas. A polícia interdita reuniões e congresso. Parte dos militantes, agrupados em torno de Guesde, recusa inclinar-se, protesta e vai além: decide-se que o congresso se verificará na data fixada, de 2 a 12 de setembro. Mas, em consequência de uma reunião preparatória, que os refratários realizaram apesar da interdição, os organizadores são presos.

A 24 de outubro, vinte e três dentre eles comparecem perante a 10.a Câmara Correcional. Jules Guesde é interrogado. Honra-se com suas condenações e espanta-se que uma delas ' falte na sua ficha judiciaria. Reivindica toda responsabilidade de ter cooperado na organização do congresso interdito. Denuncia acremente as provocações policiais, o roubo de seus papéis. Depois, pronuncia uma defesa coletiva, que é um modelo de vigor e de habilidade.

Não se limita a justificar a iniciativa dos 25 militantes que resistiram à interdição do congresso. Ataca a “negação de justiça”, cometida pela polícia, pelo governo, contra os operários, contra a França laboriosa e só contra ela.

— “Tratava-se, diz ele, de verificar, experimentalmente, se todos os cidadãos, como há quem o pretenda, são realmente iguais perante a lei, ou se, ao contrário, a lei, feita à imagem e para uso de uma classe, proíbe a uns, — os pobres —, o que permite aos outros — os ricos”.(1)

O próprio direito de reunião privada, a inviolabilidade do domicílio, são privilégios dos possuidores: “mesmo a portas fechadas, os assalariados não poderiam fazer o que fazem abertamente seus patrões...”(2). Não era inútil mostrar publicamente o caso que se faz das liberdades e da igualdade mais elementar depois de quatro revoluções burguesas agarrando, sem mandato, na via pública, trabalhadores pacíficos, tratando-os como malfeitores, vistoriando de noite, “até a alcova de nossas mulheres e até o berço de nossos filhos”. Era interessante colocar, pelos fatos, perante o proletariado francês, “a ordem social de encontro ao muro”.

Guesde lembra como a burguesia confiscou a revolução em seu proveito e que os direitos do homem pão são ainda senão os direitos de alguns homens, dos privilegiados, dos “novos senhores do capital”. Coloca assim o dilema:

“Ou a sociedade está fundada na justiça, na igual repartição entre todos dos encargos e vantagens, na igual satisfação das necessidades de cada qual”: é a ordem garantida pela liberdade, essa liberdade sempre prometida; “ou a sociedade está fundada no monopólio... e na exploração que deriva dele, de um maior número por alguns; e, nessa sociedade, que só uma minoria tem interesse em conservar, a ordem é uma questão de força: é o arbítrio e a violência...

O poder político atirou a luva ao proletariado que a levanta. Irá o poder judiciário mostrar sua independência ou sua cumplicidade? Neste último caso, os assalariados, tratados como parias por todos os órgãos do Estado, seriam obrigados a “considerar-se como fora da lei e a agir de acordo com isso”.

Uma vez situado claramente o debate no plano político, Guesde refuta com desembaraço os sofismas jurídicos do tribunal.

O delito imaginário é um pretexto, pretexto para impedir a realização do congresso, para aterrorizar os trabalhadores e “desviá-los da estrada socialista e revolucionária peia qual tendiam cada vez mais a encaminhar-se”; pretexto para justificar o emprego da violência.

Golpe desfechado contra o socialismo revolucionário francês, “a exemplo, ou, talvez, por ordem, da Alemanha prussiana”. O presidente interrompe. Guesde retruca. Depois, afirma em voz alta as vontades que valeram aos acusados “a honra — algo perigosa — de uma citação pela polícia correcional”.

As vontades do “Quarto Estado” que, em apoio de seu requisitório, exige para si direitos idênticos aos que havia invocado o Terceiro Estado perto de cem anos antes: contra todos os privilégios.

E Guesde cita um de seus artigos, publicado no Egalité, sob o título O que queremos. É um comentário pujante da frase de Mazzini:

“Os direitos não passam de palavras vãs para aqueles a quem faltam os meios de fazê-los valer”.

É falsa a igualdade dos direitos na igualdade dos meios; são falsas as liberdades por falta dos meios de fazê-las reais.

O Terceiro Estado abolira o direito de primogenitura:

“Queremos, por nossa vez, fazer desaparecer esse atentado, mais enorme ainda, que consiste em despojar na sociedade o maior número em proveito do menor para satisfazer a ociosidade de alguns; queremos abolir o direito de primogenitura de uma classe e chamar cada homem para um gozo igual do patrimônio da humanidade, restituído à humanidade”.

“Tal o nosso socialismo, que não submetemos ao vosso julgamento, senhores...”

Seu fito; a emancipação humana.

“Tem toda liberdade, pois, o ministério público, que acha mais cômodo acusar-nos do que ler-nos e compreender-nos, tem toda liberdade de denunciar-nos ao vosso poder discricionário como tantos outros inimigos da família e da propriedade. Tais imputações, — que lhe poderíamos devolver, — só atingem seu autor, cuja ignorância acusam”.

E, ao contrário, o capitalismo que destrói a família e amesquinha a propriedade. E Guesde demonstra, brilhantemente, que, se as teorias perseguidas são subversivas, se subvertem alguma coisa, o que subvertem é a barbárie inerente ao regime.

E conclui que uma condenação seria muito imprudente para conservação social, porque, pondo a França operaria fora do direito comum, confirmando a existência, não apenas econômica e politica, mas judiciaria e civil das classes, poria a classe sacrificada em posição de legitima defesa.

Guesde foi condenado a seis meses de prisão e a duzentos francos de multa, e seus coacusados a penas menores. Mas o processo e a defesa coletiva e politica de Guesde tiveram repercussão considerável nas empresas. Uma subscrição permitiu editar uma brochura. Em sua cela, Guesde dirigiu a todos os trabalhadores do país (operários, camponeses, pequenos patrões) um manifesto que os chamava à união contra a “feudalidade territorial, industrial e comercial” e tendia para a formação de um partido socialista de classe.

Cinco anos depois: o Partido Operário Francês é criado. Guesde vulgariza o marxismo. Rompe com seus adversários, com os divisionistas do movimento. Funda a poderosa Federação do Norte. Em setembro de 1882, toma a palavra perante os trabalhadores de Montluçon-Commentry. Com Paul Lafargue e Chapoulie, é acusado de excitação ao assassínio e à pilhagem, ao ódio... e comparece, a 26 de abril de 1883, perante o juri do Allier.

A defesa de Guesde é uma exposição doutrinaria, que conclui por este belo apelo revolucionário:

“Não, não fiz apelo para o assassínio e para a pilhagem. Mas fiz apelo para a força. Longe de repudiá-la, conto com ela.

Ela é o instrumento de todas as transformações. Proclamando-o, convidando o proletariado a não contar senão consigo mesmo e a conservar-se pronto, faço história e não cometo crime”.

“Sem a revolução, sem a insurreição, os homens políticos que nos perseguem não estariam no poder e os magistrados que nos processam não estariam em seus lugares”.

“Foi uma revolução que nos deu a igualdade perante a lei; outra, o sufrágio universal; outra, a forma republicana no domínio político. Sou apenas lógico contando com uma revolução nova para obter a igualdade dos meios de produção, o sufrágio na oficina, a República no domínio econômico”.(3)

Guesde e Lafargue, absolvidos da imputação de excitação ao assassínio e à pilhagem, são condenados a seis meses de prisão por “excitação à guerra civil”.

Apostolo do marxismo na França, redator do Cri da Peuple, com, pouco depois, Jules Vallès, com Séverine, não deixa passar nenhum ato de opressão ou de repressão contra a classe operaria sem destacá-lo e lançar um “desafio”. Durante a grande greve de Decazeville, em 1886, fala no teatro do Chateau-d’Eau. Ao lado de Louise Michel, de Lafargue e do blanquista Susíni, exclama: “Rothschild para a cadeia!” E o auditório responde: “Rothschild para o muro!”

Nova inculpação de excitação ao assassínio e pilhagem. A 24 de setembro comparece, com Lafargue e Susíni, perante o juri parisiense. Ainda uma ocasião de transformar o pretório em tribuna e de expor publicamente essa doutrina de Marx, cuja difusão impetuosa a acusação tem precisamente per fim conjurar.

Uma vez mais, lembra o direito do proletariado ao emprego da força, do fuzil, “o fuzil de vossas grandes jornadas, Senhores da burguesia!”

“... A menos que não tenhais a pretensão de monopolizar a revolução como já monopolizastes a propriedade, não vejo em que vos poderíeis basear para interditar à libertação do proletariado o emprego dessa força que a vós vos libertou em vossa hora”.(4)

O socialismo revolucionário não cai sob os golpes das leis; para atingi-lo, seria mister fabricar leis novas, à maneira de Bismarck.

— Mas, “então, estará livre da hipocrisia das liberdades de imprensa e de reunião, a luta de uma classe que se defende contra uma classe que ataca. Podereis ferir-nos e não nos queixaremos. Mas lançar-nos-emos à carga da vindita!”(5)

E o juri absolve os três acusados, com aplausos do auditório.


Notas de rodapé:

(1) Alexandre Zévaès: Jules Guesde, p. 42. Librairie Mareei Rivière, 1929. (retornar ao texto)

(2) Idem, p. 43. (retornar ao texto)

(3) Idem, p. 69-70. (retornar ao texto)

(4) Idem, p. 87. (retornar ao texto)

(5) Idem, p. 87. (retornar ao texto)

Inclusão: 05/06/2020