A Defesa Acusa
De Babeuf a Dmítrov

Marcel Willard


O PROCESSO DE LEIPZIG
A Estratégia de Dmitrov


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Não podemos aqui, nos limites deste estudo, esboçar detalhadamente as fases dos debates ou reproduzir todas as respostas, réplicas, perguntas de Dmitrov, que foram publicadas noutra parte.

Propomo-nos, porém, assinalar as linhas dominantes de uma estratégia cuja eficiência está demonstrada.

Estratégia essencialmente política e ofensiva.

Essa estratégia de que os depoimentos e documentos (particularmente as cartas de Dmitrov) nos demonstram o valor e o sucesso, Dmitrov consentiu em resumir nalgumas palavras claras e impressionantes.

“Em primeiro lugar, tomar e conservar a iniciativa.

“Com vistas a essa iniciativa, era-me necessário conceber e executar um plano estratégico.

“Atirei-me a demolir politicamente, não apenas a acusação, mas o próprio inimigo também. A demoli-lo na opinião pública e a torná-lo ridículo.

“Comecei pela polícia. Depois, chegou a vez do celebre juiz Vogt, ‘juiz alemão’”. Foi ele quem me disse: “sou um alemão, sou um juiz alemão, chamo-me Vogt”. Ele queria assim demonstrar, recordando o seu nome, que não era judeu. Assim, estava liquidado esse homem. E, a partir desse momento, sempre que eu lhe invocava o testemunho, o tribunal houve por bem recusá-lo.

“Ataquei também os dois procuradores, o procurador Parisius, em primeiro lugar, depois o super-procurador Werner, que redigira a ata de acusação.

“Depois, os advogados, muito especialmente o advogado de Torgler, o Dr. Sack; e naturalmente o Dr. Teichert. Este não levantou mais a cabeça.

“E também a imprensa, a imprensa hitleriana; sempre a ataquei; tentei desmascarar uma por uma suas caluniosas campanhas, que, aliás, me informavam e orientavam indiretamente sobre o alcance dos meus golpes.

“O Tribunal achou-se assim isolado, enfraquecido. Para com ele, minha tática foi mais elástica. Sempre, porém, pude conservar a iniciativa assumida desde o início”.

Contra a polícia e o juiz Vogt, já vimos como Dmitrov acendera o ataque desde antes dos debates. Durante os debates, não perdeu ocasião de pô-los em situação lastimável e de obter êxitos à sua custa.

Vimos também como Dmitrov pusera em seu devido lugar o Dr. Teichert, seu defensor ex-officio, porque não tinha, desde o início, repelido oficialmente seu concurso e que esperava dele. Reproduzimos as revelações de Dmitrov sobre seu desacordo com seus coacusados, que não compreenderam o papel objetivo de um Teichert e recusaram rejeitar esse auxiliar da acusação, desacordo em consequência do qual Dmitrov resolveu não renunciar publicamente a Teichert desde a primeira audiência, como fora sua intenção.

Só no decorrer da terceira jornada, a 23 de setembro, é que Dmitrov anunciou sua intenção de defender-se pessoalmente.

Mas até o início da parte do processo que se abriria em Berlim, Dmitrov ainda pôde conservar a esperança de que, ao defensor ex-officio, o Tribunal acabaria por aceitar o adjutório de um defensor escolhido.

Assim, desde seus primeiros conflitos com o presidente Bunger, Dmitrov pôs em evidencia uma das causas deses incidentes, para dirigir ao tribunal um derradeiro ultimatum: ou admitireis Marcel Willard na defesa ou defender-me-ei sozinho.

— “Se eu contasse com um defensor de minha escolha, certamente teria sabido evitar incidentes prejudiciais à minha própria defesa... Não tenho, no que concerne ao Dr. Teichert, tanto como homem, como com advogado, nenhuma desconfiança pessoal. Mas, no estado de coisas atual, na Alemanha, não posso ter a confiança necessária no seu papel de defensor designado ex-officio. E eis porque procuro defender-me pessoalmente: daí, minhas iniciativas por vezes pouco jurídicas. No interesse de minha defesa perante o Tribunal do Império, assim como — julgo — no interesse do curso normal dos debates, dirijo-me ainda pela última vez ao Tribunal do Império, solicitando-lhe que admita a colaboração em minha defesa do advogado Sr. Marcel Willard, proposto recentemente por minha irmã. Se, infelizmente, esta última solicitação for repelida, não me restará outra alternativa senão defender-me pessoalmente, como o puder e como o entender”.

Ora, uma vez que o Tribunal recusou, foi no decorrer da primeira audiência, que teve lugar em Berlim, a 4 de outubro, que Dmitrov declarou sua decisão de, a partir de então, ser seu próprio defensor.

E tinha que enfrentar, não apenas o procurador e os juízes, mas também o advogado ex-officio (que se prevalecia da fraqueza, para consigo, dos outros dois coacusados búlgaros) e o Dr. Sack, o advogado escolhido por Torgler.

Os dois compadres partilhavam a tarefa entre si:

Um, Teichert, “limitava-se” a sabotar a defesa política de seu “cliente”, a recusar-lhe os documentos necessários, que só por seu intermédio Dmitrov poderia obter. Em audiência, “limitava-se” a ficar calado, pelo menos sempre que seu cliente era atacado, cerceado, excluído dos debates. O Dr. Teichert tinha uma pasmosa capacidade de silêncio: constituía uma gloriosa parelha com seu confrade, o Dr. Seiffert, que, por sua vez, só o que sabia era pôr um lenço debaixo das narinas incontinentes de Van der Lubbe.

Quanto ao outro, o Dr. Sack, mais hábil e mais perigoso, assumia o papel ativo: provocava Dmitrov e, ocupando o lugar dos procuradores, intervinha junto ao presidente, para que cortasse a palavra a esse búlgaro acusador que conduzia os debates, para que o reduzisse ao silêncio, para algemá-lo.

Tal a divisão do trabalho entre esses advogados bem ensinados, que aplicavam, cada qual ao seu modo, a regra em vigor nas “livres” tribunas de advocacia nazis:

“Em sua defesa apaixonada da autoridade do Estado, o defensor deve desejar — e a experiência mostra que o deseja quase sempre — que uma condenação venha coroar a acusação”.(1)

Por mais de uma vez, Dmitrov, que conhecia perfeitamente seus direitos de acusado, porque se dera ao trabalho de estudar a lei e o processo alemães, teve ocasião de infligir lições aos dois comparsas:

— “Eu sabia, por exemplo, disse-me Dmitrov, que era meu direito intervir sempre que uma declaração de testemunha me pusesse em causa, sempre que fosse lido ou invocado um documento contra mim: tinha a possibilidade de formular pessoalmente perguntas sobre essas declarações, sobre esses documentos. Um dia, Teichert e Sack contestaram-me esse direito: pus-lhes a lei sob os queixos e os confundi. Não lhes invejo a posição!”

Adiante veremos como, em sua declaração final, Dmitrov rejeitará a defesa e todas as intervenções do Dr. Teichert e como contra-atacará o defensor de Torgler, como se comportará para oferecer ao próprio Torgler uma última oportunidade de reabilitar-se politicamente, reagindo contra a ofensiva anticomunista do Dr. Sack.

Desse modo, Dmitrov executava, ponto por ponto, seu plano: demolia, não apenas a acusação, mas os acusadores e seus auxiliares, os defensores ex-officio, tanto quanto os procuradores, quebrava as resistências, viessem de onde viessem, ainda que fossem de um Torgler.

Teve também que lutar, sobretudo no início do processo, contra o tradutor-juramentado que o Tribunal encarregara de servir de intérprete para os três búlgaros.

No decorrer de uma das primeiras audiências, este dera-se à liberdade de traduzir inexatamente o depoimento de Helena Dmitrova, irmã de Dmitrov, e Dmitrov o chamara imediatamente à ordem. Desde então, conhecendo admiravelmente as duas línguas, Dmitrov jamais cessou de controlar essas traduções, e o intérprete, sabendo disso, era forçado à exatidão.

A lembrança, todavia, desse primeiro incidente levar-nos-ia inicialmente a imputar, pelo menos parcialmente, à atitude impolítica de Popov e Tanev a sua ignorância da língua alemã e à sabotagem do tradutor à mercê de quem sua ignorância os punha.

Era um erro de que eu, conhecendo muito imperfeitamente o alemão para seguir os debates sem intérprete, partilhara em certa medida. Só um ano depois, em Moscou, é que Dmitrov consentiu em esclarecer-me:

— “O intérprete, disse-me ele, sofria naturalmente a pressão do tribunal. Mas, por outro lado, era obrigado a traduzir textualmente, porquanto sabia que eu o controlava. Desde o começo do processo, ataquei-o: foi durante o interrogatório de minha irmã: ele não havia falseado o sentido; omitira, porém, muitas coisas que não supunha muito importantes. Quando o aparteei, observando que não havia traduzido exatamente, foi para mostrar que eu o controlava. Essa advertência exerceu sobre ele grande influência. A partir de então, perante o Tribunal, durante os interrogatórios mais. importantes, sempre segui a tradução, para saber se era exala.”

Dmitrov tinha olhos para tudo: nada lhe escapava; mas, pondo em seu devido lugar os fatos subalternos, não se deixava nunca distrair por eles da defesa política.

A imprensa nazi controlada (sobretudo a partir do dia em que o Dr. Schmoltz a chamou à ordem), todos os dias derramava carradas de falsidades, de calúnias, de imundícies contra o gigante que jogava a própria cabeça e não a curvava, sem consideração pelas regras do jogo. Amestrada pelo Ministério da Propaganda, guiada pelos comunicados para todos, ladrava aos calcanhares desse acusado acusador, tentava morder-lhe as pernas, desacreditá-lo.

Dmitrov não deixou de fazer frente a essa campanha, de defender sua dignidade, sua honra política e de tentar uma réplica pública por intermédio dessa mesma imprensa, que era a única que os trabalhadores alemães, sob o jugo hitleriano, poderiam ler.

Assim é que, a 30 de setembro, requereu ao tribunal a autorização de fazer publicar uma declaração relativa à sua vida privada, que esses cães da imprensa atacavam covardemente, e ao seu passado político.

— “A ninguém tenho contas a prestar de minha vida privada, declarava dignamente(2), salvo ao meu Partido e à Internacional Comunista, nem mesmo ao Tribunal do Império. Proponho, todavia, a fim de que nenhum incidente pessoal venha prejudicar minha defesa política, que uma comissão composta de juristas e jornalistas alemães e estrangeiros seja instituída para abrir inquérito sobre essa questão...”(3)

Era uma lição, não apenas para a canalha da imprensa e da Propaganda, a quem era efetivamente dirigida, mas também para nossos militantes: um Dmitrov não deve contas de sua vida privada, salvo perante seu Partido, e tudo subordina à sua defesa política.

Na mesma declaração propôs, pela primeira vez, voltar à Bulgária para fazer, perante um tribunal e perante o povo de seu país, um relatório completo de sua atividade política. Uma única condição: debates livres e públicos.

Reivindicou, enfim, uma vez mais, a responsabilidade integral de suas próprias declarações e declinou da dos depoimentos da formação de culpa.

O Tribunal do Império indeferiu o requerimento e a declaração não foi publicada. Mas tornou-se necessário que o tribunal tomasse uma decisão e essa decisão podia ser conhecida e publicada, pelo menos, pela imprensa estrangeira.

Além disso, a própria imprensa hitleriana, que ele lia atentamente e lhe servia de barômetro, informava-o e “orientava-o indiretamente sobre o alcance dos seus golpes”.

— “Se tinha alguma hesitação, observou Dmitrov depois de sua libertação, reportava-me ao Foelkischcr Beobachter, o órgão oficial do Partido nacional-socialista. Pelo tom do relatório, eu podia julgar da qualidade do meu tiro e retificá-lo no dia seguinte, se fosse o caso. As asneiras desse estúpido jornal guiaram meu tiro. A leitura da imprensa hitleriana, disse-me Dmitrov, ensinou-me muitas coisas: foi pelo Foelkischer Beobachter que tive conhecimento de que se organizara em Londres uma ‘comedia’(4). Antes do processo, tinha- se publicado a carta de Romain Rolland, o que me forneceu ocasião para escrever-lhe. Tudo isto me mostrava que a questão da defesa tinha sido também formulada fora da Alemanha e muitas observações polêmicas da imprensa fascista contra a “imprensa judaica” do estrangeiro consolidaram-me em minha opinião.”

A imprensa hitleriana não era a única força inimiga que “o informava e orientava”; o juiz Vogt, o conjunto de funcionários que ocupavam o estrado do Tribunal, a defesa ex-officio, o próprio Tribunal, revelavam-lhe involuntariamente, muitas coisas, deixavam-lhe perceber muitas armas que esse cérebro poderoso não deixava jamais escapar, e anexava ao seu próprio arsenal, apesar dos esforços conjugados dos juízes, dos carcereiros e dos advogados hitleristas.

Assim é que, desde o início do processo, os debates tinham sido dominados pelo duplo trato do contra-processo de Londres e do Livro Pardo.

Não se passava dia sem que um dos dois procuradores, o presidente Bunger e o Dr. Sack, defensor de Torgler... e do Partido nacional-socialista, não se acreditassem na obrigação de “refutar” esse terrível Livro Pardo, de denunciar suas “acusações mentirosas”. Estava em todas as mesas; as mangas grenat das togas o brandiam.

Um Dmitrov não poderia deixar de apreender imediatamente todo o interesse que para sua defesa política a documentação contida nesse livro poderia oferecer.

Exige-o ao Dr. Teichert(5): este, apavorado, recusa transmitir o pedido; Dmitrov apresenta-o diretamente ao Tribunal.

“Não compreendo, escreve, como é possível que os acusados sejam deixados na ignorância total do conteúdo de uma publicação que já constituiu objeto de discussões, tanto da parte do Ministério público, como da parte da defesa”.(6)

Oito dias depois, o Tribunal recusava gravemente deferir a petição, “porque esse livro continha material de propaganda comunista”.

Aí, vê-se ao vivo como Dmitrov soube, pelo próprio inimigo, da existência do movimento internacional que, desde antes dos debates, antes que o mundo lhe tivesse ouvido a grande voz, esboçava seu esforço libertador.

Sabe-se, e adiante o relembraremos, como Dmitrov soube galvanizar e tornar irresistível esse esforço popular universal.

Não foi apenas por sua coragem legendaria que o velho lutador espantou o mundo: é de recordar-se a homenagem prestada por um jornal hitleriano à sua potência psicológica.

É um fato que a audácia e a clarividência de que esse “operário tipográfico”, esse “chefe de insurgentes” deu provas, metendo a ridículo as testemunhas de acusação, desarticulando os instrumentos da acusação, constituíram grande motivo de estupor para os jornalistas mais insensíveis, para os juristas mais competentes, que assistiram os debates ou lhes acompanharam os relatórios.

De que modo este homem só, estritamente isolado do mundo exterior, que não podia ler as cartas que lhe dirigimos, nem a imprensa estrangeira, nem o Livro Pardo, nem os depoimentos do contra-processo de Londres, de que modo terá podido, com o único auxílio de seu gênio observador, intuitivo e dialético, adivinhar e reconstituir todo o mecanismo da provocação hitleriana, mesmo em seus detalhes mais secretos?

De que modo terá podido sempre saber formular a personagem desejada, no tempo desejado, a pergunta desejada? De que modo teve conhecimento e feriu justamente o ponto vulnerável de cada qual, o ponto de menor resistência do sistema?

Para começar, lembramos com que cuidado Dmitrov estudara a ata de acusação e a legislação alemã. Lembramos que conhecia bastante a fundo seus direitos de acusado para confundir seus defensores ex-officio. Entre esses direitos figurava o de intervir e de formular perguntas sempre que o documento lido ou uma testemunha ouvida em audiência o pusesse em causa.

Lembramos também que, desde a origem, Dmitrov admitira como evidente que o incêndio é depois o processo constituíam uma provocação de grande estilo, que eram os nazis os únicos que tinham interesse em incendiar o Reichstag, que eram eles, efetivamente, que haviam ateado o incêndio, que, enfim, era preciso para o regime, longe de procurar os verdadeiros incendiários, demonstrar que os incendiários eram seus inimigos, isto é, os comunistas.

Foi partindo dessas premissas que Dmitrov estudou as mínimas peças da acusação, que acompanhou, sem perder detalhes, os debates, as declarações dos juízes, dos procuradores, das testemunhas, da imprensa hitleriana.

— “Foi, assim, confirmou-me o próprio Dmitrov, que pude precisar e reconstituir tudo em meu espírito. Minhas deduções eram, aliás, completadas por minha intuição, a intuição política de um bolchevique”.

Altivas e justas palavras, que esclarecem com simplicidade um dos aspectos do “milagre de Leipzig”.

Um exemplo dessa clarividência e dessa audácia que caracterizavam a tática do grande estrategista: o famoso caso Van der Lubbe.

Ainda aqui, deixemos falar Dmitrov, de quem tive a alegria de ouvir essa comovedora confirmação do que eu tinha observado e que os jornalistas estrangeiros não conseguiam compreender:

— “Desde o início, apresentou-se-me o enigma Van der Lubbe. Para determinar minha estrategia, minha linha de defesa, era essencial saber se Van der Lubbe era um provocador consciente ou um agente inconsciente. A priori, eu nada sabia. Corri enormes riscos formulando as perguntas, provocando as respostas que me instruíram: perguntei a Van der Lubbe se me conhecia, se conhecia Popov, Tanev, Torgler; se ele fosse um provocador consciente, teria mentido. Tive que insistir perigosamente: mas obtivera a certeza de que tinha necessidade; estava informado”.

Para apreciar por seu justo valor o sangue frio, a ousadia, a precisão, a presteza de espírito que eram necessários para o sucesso deste verdadeiro raid tático e psicológico, é preciso lembrar que, antes dos debates, nunca Dmitrov vira ou ouvira o incendiário holandês, que não conhecia então nem seu passado, nem seu estado físico, nem suas relações; é necessário lembrar também que as mínimas perguntas de Dmitrov eram entravadas pelas interrupções e chamados à ordem enraivecidos do presidente. O que era preciso, portanto, era alta luta, fazendo frente ao mesmo tempo, em todos os setores, arrancar essas respostas decisivas.

É ainda Dmitrov quem põe em dúvida a autenticidade das declarações atribuídas a Van der Lubbe pelos depoimentos do processo. É ainda ele quem, não obstante todas as tentativas de diversionismo, exige que se faça luz sobre o emprego do tempo de Van der Lubbe na véspera do incêndio.

É verdade que a instrução, a ata de acusação, os debates tinham insistido sobre a presença de Van der Lubbe em Neukoeln; tinham porém passado por alto sobre sua estada no asilo noturno de Henningsdorf e por suas entrevistas com os nazis.

Dmitrov compreendeu imediatamente que o incidente de Neukoeln tinha servido para despistar e propositadamente e tinha deixado de pesquisar com que companheiros Van der Lubbe passara a noite no asilo.

Foi então que se decidiu a “lançar a ponte sobre os baixios do incêndio”.

Fórmula bruscamente a pergunta ao comissário de polícia Bunge, que fica perturbado e responde evasivamente; dirige então ao Tribunal uma petição, exigindo a procura e a audição das testemunhas de Henningsdorf.(7)

Outro exemplo, não menos instrutivo, não menos surpreendente, da tática intuitiva e dedutiva empregada com sucesso por Dmitrov no que concerne às testemunhas da acusação, demonstrando como eram desastradas ou excessivamente zelosas:

Quem não se lembra da revelação capital do Livro Pardo, desse famoso subterrâneo por onde os incendiários nazis, reunidos secretamente no palácio do presidente Goering, tinham podido penetrar sem o conhecimento de ninguém no edifício do Reichstag, para levar a cabo sua tarefa provocadora?

A existência desse subterrâneo e de seu papel era, é claro, segredo de Estado: era preciso que, de maneira alguma, fosse posto em causa; em todo caso, pode-se presumir que o presidente Bunger tivesse feito jogo forte deixando que fosse formulada uma pergunta relativa a ele!

Foi precisamente por tê-la formulado sozinho, sob minha assinatura, sem a participação dos outros três advogados estrangeiros, que eu já havia atraído sobre mim a atenção odienta da Gestapo, que, a partir de então, espreitou meus gestos.

É claro que eu havia tentado dar a conhecer a Dmitrov essa questão, enviando-lhe uma cópia de minha carta; esse envelope, porém, como todos os outros, tinha-me sido devolvido pela prisão.

Como, nessas condições, terá podido Dmitrov adivinhar a existência e a utilidade do subterrâneo?

Para mim, isso era um motivo de pasmo e não me esqueci, em Moscou, de participar-lhe, pedindo que me explicasse sua maravilhosa intuição.

— “Um testemunho, disse-me ele, intrigou-me: o de um homem que, atordoado de perguntas, falou de um lugar onde tinha ouvido certos ruídos, certas sonoridades. Quis saber. Os juízes e os procuradores ajudaram-me sem o querer. Exigi uma reconstituição, uma visita geral a esse recanto misterioso: foi assim que vim a saber do subterrâneo e compreendi sua utilidade”.

É claro, quando Dmitrov formulou a pergunta terrível e temível ao eletricista do Reichstag, depois ao inspetor Scranovitz, o presidente impediu as testemunhas de responderem. Mas todo o mundo tinha compreendido que os incendiários tinham podido, sem serem vistos, passar pelo subterrâneo.


Notas de rodapé:

(1) Idem, ps. 88-89 (retornar ao texto)

(2) Rudolph Dix: O Estado totalitário e a profissão livre de advogado, Deutsche Juristen Zeitungt 1934, ps. 243 e segs. (retornar ao texto)

(3) Idem, p. 92. (retornar ao texto)

(4) Era assim que os nazis qualificavam o contra-processo de Londres. (retornar ao texto)

(5) Trata-se de um exemplo das relações que Dmitrov ainda mantinha com o Dr. Teichert, depois de ter renunciado publicamente a sua defesa. (retornar ao texto)

(6) Idem, p. 95. (retornar ao texto)

(7) Idem, p. 99, documento n. 26. (retornar ao texto)

Inclusão: 05/06/2020