A Defesa Acusa
De Babeuf a Dmítrov

Marcel Willard


DISCÍPULOS E ÊMULOS
O QUE ELES NOS ENSINAM


capa

“Os quadros tudo decidem"
(Stálin — “Discurso aos alunos via Academia do Exército Vermelho”, 4 de maio de 1935).

“Passo minha vida a estudar. Ainda aqui, nesta sala, aprendo teórica e praticamente muitas coisas..."
Dmítrov (Em Leipzig, perante o Tribunal do Império).

Eis-nos chegados ao termo de nossa peregrinação. Exploramos, a voo de avião, perto de século e meio, duas ou três partes do mundo, mas, sobretudo,' um continente muito mal conhecido das possibilidades humanas.

Camarada leitor, foi propositadamente que te detive muitas vezes no caminho a fim de ouvir contigo os homens e as mulheres que quero fazer com que os ames, os que sofrem, lutam, morrem, não apenas por ti, mas para que o seu exemplo também frutifique.

Será que este estudo conseguiu apenas fazer-te conhecer um pouco melhor alguns dos nossos heróis, alguns porta-bandeiras de nossa legião revolucionária, fazer-te admirá-los mais familiarmente, permitir-te viver, em sua exaltante companhia, um pouco de sua vida sacrificada, de sua paixão, de seu combate, de sua vitória? Terá, porventura, falhado quanto ao seu objetivo?

Absolutamente não. Mas espero ainda mais. Nossos heróis são grandes. São também nossos modelos, nossos patronos. Nossa ambição deve corresponder ao seu porte: suscitar, entre nós, entre os combatentes de hoje e de amanhã, êmulos bem esclarecidos.

Por profundas que sejam as diferenças de formação, de cultura, de experiência, de temperamento, que distinguem nossos grandes legionários, não terás apreendido os traços comuns que os reúnem numa só pátria, que os unem numa só família? Somos ou não de sua linhagem? Sentes-te seu compatriota, seu parente?

De Babeuf a Karl Marx, de Karl Marx a Lênin, de Lênin a Dmitrov, de Dmitrov a Edgar André, ao longo de 140 anos, as condições políticas não variaram tanto no tempo como no espaço.

Dir-se-ia, entretanto, que todos eles, prisioneiros, tiveram que se haver com o mesmo carcereiro, com o mesmo carrasco: acusados, no mesmo tribunal ou conselho de guerra, instrumento de uma classe, de um partido, de uma ditadura, animado do mesmo desprezo pelas leis que lhes pretende aplicar, pelos homens que pretende julgar; com as mesmas testemunhas judiciais, com os mesmos provocadores. Dir-se-ia que, através dos nossos heróis, é sempre a mesma civilização que, pelo mesmo processo, se esforçam por atingir, por desacreditar, por suprimir, para justificar a mesma Idade Media, a mesma Santa-Aliança, a mesma cruzada antipopular.

Sua atitude, sua defesa política oferecem muitos aspectos comuns.

O defensor a que todos recorreram, também, parece o mesmo através das idades: é o povo oprimido, que ouve seu apelo, que se infiltra na prisão, na sala de audiências, para libertá-lo e melhor aprender a libertar a si mesmo.

Será que essas similitudes são apenas aparências?

Seria grave erro desconhecer as diferenças de lugar, de tempo, a evolução e as relações de forças e subestimar as condições políticas dadas, que determinaram a estratégia movediça da repressão, a da defesa.

O fascismo é um fato contemporâneo. Os regimes reacionários, despóticos, militares ou feudais, que um Babeuf, vim Blanqui, uma Louise Michel, um naródnik, ou um social-democrata russo tinham que enfrentar, não eram imperialismos fascistas. Sua técnica repressiva não era a mesma e tendia muito menos a unificar-se do que hoje a das ditaduras totalitárias.

Perante essa diversidade, nada seria mais vão do que um manual de autodefesa, que pretendesse recomendar a melhor fórmula aplicável em tal ou qual caso. Nada seria mais falso nem mais pedante do que uma coletânea de regras, de dogmas aos quais o militante-tipo, o “militante-em-si”, o “perfeito militante”, deveria, em sua prisão, perante o tribunal, conformar invariavelmente sua conduta, em qualquer lugar, em qualquer tempo, em quaisquer circunstancias.

E se evocamos aqui alguns exemplos, absolutamente não foi com o fito de convidar o militante a copiá-los, a imitá-los servilmente, automaticamente.

— “É preciso educar nossos combatentes, disse-me Dmítrov, de maneira que sejam capazes de adaptar seu método de autodefesa às condições do processo e à situação. A melhor educação é, naturalmente, a prática”.

A prática da luta e o instinto de classe, cultivado peio exemplo.

Cada vez mais, nossos militantes devem aprender a contar apenas consigo mesmos. Nos países fascistas ou semifeudais, sobretudo, a assistência do advogado, escravizado ao regime, ou aterrorizado, (ou, se esse advogado é um militante, ameaçado de sanções, de represálias), muitas vezes não passa de uma armadilha do inimigo, de um meio sutil de sabotar a defesa.

Essa necessidade de só contar com suas próprias forças para se defender exige do revolucionário uma educação dessas forças, desse instinto de classe: a prática.

— “Todos, observou-me Dmítrov, devem saber defender-se com palavras muito simples, muito primitivas, porém com seu instinto de proletários, com seu devotamento de proletário à causa da classe operária e do comunismo”.

Já citamos esse verdadeiro critério da autodefesa que Dmitrov me tinha enunciado tão claramente e é valido tanto perante a polícia ou o carrasco quanto perante o juiz de instrução e na audiência:

— “Ter sempre em vista o interesse de sua classe, de seu Partido, tal deve ser o ‘leitmotiv’, a linha geral e a lei da defesa”.

E Dmítrov deduz disso que todo operário, mesmo ignorante da lei, sem experiência e sem facilidade de elocução, poderá conservar sempre uma atitude justa, bolchevique.

— “Falará talvez menos ou de maneira menos hábil; nem sempre encontrará os argumentos que ferirão a acusação em seu ponto fraco; mas, em todo caso, nada fará nem nada dirá que possa ser explorado contra o Partido. Comportar-se-á melhor do que qualquer Torgler”.

Não obstante, é evidente que esse instinto, esse devotamento, essa intuição bolchevique do combatente serão gutas melhores, orientadores mais seguros quando, por sua vez, forem orientados, guiados, cultivados por uma experiência pessoal da luta, ou, então, à falta dessa experiência, pela experiência nacional-internacional de muitas gerações de revolucionários.

Daí a utilidade, sublinhada fortemente por Dmítrov, de popularizar os bons exemplos da autodefesa e de criticar os maus, de profligar as traições. Em três oportunidades, no decorrer de nossa entrevista, Dmítrov insistira sobre esse tema de acordo com a justa política dos quadros que, menos de um ano depois, iria definir, com tal autoridade, na tribuna do VII Congresso da Internacional Comunista.

Sendo claro que a melhor educação dos quadros se obtém ao fogo da luta, é necessário desenvolvê-la pelo estudo analítico dos exemplos positivos e negativos, demasiadas vezes desconhecidos, que a história nos fornece. Mas, que é que se tira dessa análise? Que síntese?

Se, como já o dissemos, é preciso evitar qualquer generalização mecânica, qualquer espírito dogmático ou normal de catecismo, nem por isso é menos verdade que as analogias, que nos chamaram a atenção no decorrer deste estudo, não são nem superficiais, nem, ainda menos, devidas ao acaso.

A autodefesa política tem suas leis. Algumas leis simples, elementares, pouco numerosas, que a experiência de nossos heróis, nos ensina. São essas leis, são os resultados dessa experiência que, pela primeira vez, Lênin formulava em sua carta de 1905 e, depois de tê-las ilustrado, continuado, completado com sua própria experiência, Dmitrov consentiu, em minha presença, em precisar sob uma forma sintética.

Mais autodefesa não é uma ciência exata, uma geometria. Suas leis não são teoremas. Seu rigor, sendo de ordem dialética, não deve excluir a vida. Muito ao contrário. Cabe ao militante assimilar essas leis, adaptá-las com elasticidade — mutatis mutandis — aos dados concretos, particulares, que variam com o tempo, com o lugar, com as circunstancias políticas, com a posição e a tática do inimigo.

Para que a exposição seja mais clara, vamos — com o mínimo de arbítrio inerente a toda classificação, distinguir, dentre essas leis, as simples regras negativas, e as duas leis-clave que comandam a estratégia da autodefesa.


Inclusão: 05/06/2020