Guerras Defensivas e de Agressão

Gregori Zinoviev

4 de agosto de 1916


Fonte: http://pco.org.br/blog/livraria/?p=2398

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Parte I

Durante a guerra atual se tornou um costume popular das classes dominantes retratar a guerra como se “nós” fossemos o lado defensivo e o inimigo, o agressor. Este método tornou-se corrente na Alemanha, bem como em todos os países beligerantes. E isto acontece com o propósito de explorar as tradições democráticas de uma época passada no interesse da política imperialista dos dias de hoje.

 A guerra defensiva de então e de agora

 Os ideólogos e agentes da burguesia sabem que a divisão das guerras em guerras de defesa e de agressão no período dos movimentos nacionais (entre 1789 e 1871) desempenhou um grande papel para os elementos inclinados à democracia. Eles calcularam com bastante correção que as amplas massas da população podem ser enganadas muito facilmente se se basearem em uma ideologia democrática de tempos passados. Eles sabem que durante a época de 1789-1871 a divisão entre guerras de defesa e de agressão tinha raízes nas massas democráticas, que as guerras defensivas eram vistas como parte da ordem das coisas e apenas naquele tempo, enquanto que as guerras de agressão evocavam a indignação das massas e sua disposição a lutar do lado dos defensistas. Apenas um pequeno detalhe é necessário para que o objetivo da burguesia imperialista seja alcançado: transpor o critério de guerras defensivas e de agressão para a nova época, muito embora esta divisão tenha perdido agora todo o seu significado. A burguesia acredita tanto nestes meios que ela se agarra a eles em todos os Estados, sem levar em conta as diferenças na forma de governo, língua, cultura etc. A “técnica” da qual o imperialista alemão Ruedorffer falou adquiriu uma disseminação muito ampla. A Alemanha monarquista, a Inglaterra parlamentarista, a Áustria semi-absolutista, a Turquia e a Bulgária — todos se agarraram aos “meios testados pelo tempo”. Todos, sem exceção, estão supostamente conduzindo uma guerra defensiva.

Todos estão se defendendo! Quem então é o agressor?

Já dissemos que o critério de guerras defensivas e agressivas passou pela mesma mudança, com a passagem do tempo, como a palavra-de-ordem de “defesa da pátria”. A palavra-de-ordem de “defesa da pátria”, como o critério de uma guerra de defesa “justa”, surgiu em uma época de guerras nacionais. Naquele tempo a defesa da pátria significava, ao mesmo tempo, a defesa da unidade nacional contra opressores estrangeiros, significava a luta pelas possibilidades de desenvolvimento de uma ordem social superior: o capitalismo, que substituiria o feudalismo. Esta defesa da pátria significa, hoje, na época do imperialismo, o apoio ao capital financeiro, que reivindica para si o exército e o resto do aparelho estatal burguês e procura impedir pela violência a transição do capitalismo para a sua etapa de desenvolvimento amadurecido, o socialismo. Na época de 1789-1871, o critério de guerras defensivas e agressivas auxiliou a esclarecer as massas sobre onde estavam os aliados e os inimigos, onde estavam o opressor e o perseguidor e onde estava o defensor do progresso social. E o que este critério significa hoje, no ano de 1914? Ele auxilia os inimigos do progresso social a enganar as massas populares, a iludi-las sobre onde está o seu inimigo comum e onde está a única possibilidade de emancipação do povo.

Pode-se ter certeza de que em qualquer congresso europeu das Potências, os governos imperialistas — apesar de todos os antagonismos que os separam — teriam unanimemente a posição de que o critério de guerras defensivas e agressivas precisa ser mantido absolutamente. E eles estariam certos do seu ponto de vista. Deixemos que todos reconheçam este princípio em si; depois disso, não será muito difícil convencer “nosso próprio” povo de que “nós” estamos nos defendendo, enquanto “eles” são os agressores…

O conceito de guerras de defesa e de agressão

 Já destacamos que é necessário distinguir não apenas entre duas épocas, mas também entre dois conceitos: a guerra de defesa e de agressão em um sentido histórico, e a guerra de defesa e de agressão em um sentido diplomático. Vamos esclarecer esta diferença em mais detalhes.

O que se entendia por guerra defensiva e de agressão na época das guerras nacionais? Como os melhores representantes da democracia aplicavam este critério? Que características eram próprias ao determinar qual dos dois tipos estava envolvido? Era suficiente que o país X declarasse guerra contra o país Y para que o país X fosse considerado o agressor e o país Y o defensor? Ou: se, na guerra entre X e Y, independentemente de quem tenha declarado guerra primeiro, os exércitos do primeiro aplicavam a estratégia da ofensiva e os exércitos do último a estratégia da defensiva, isto era suficiente para considerar o país X como agressor e o país Y como aquele que se defende? Ou: se ambos os fenômenos ocorrerem ao mesmo tempo, isto é, se o país X foi o primeiro a declarar guerra e, além disso, seu exército invadiu as terras do adversário, era isto suficiente para caracterizar o país X como agressor?

Não! Nem o lado diplomático, nem o estratégico, esgotam a questão. Outro fator muito mais importante é decisivo: o julgamento do ponto de vista do desenvolvimento histórico de conjunto. Qual dos dois campos luta pelo estabelecimento de um Estado nacional, pela eliminação do domínio estrangeiro e do desmembramento nacional? Qual dos dois campos colocou fim, por meio desta guerra, aos movimentos nacionais dentro do país, em qual país a guerra foi precedida por anos de opressão nacional e — como uma reação a isto — longos anos de lutas nacionais? Em outras palavras: qual dos dois campos luta pelo progresso histórico? Apenas desta maneira pode-se decidir a questão. Não era apenas o Estado que primeiro declarou guerra que estava conduzindo uma guerra de agressão; isto pode ser, mas pode também não ser o caso. Aquele Estado que conduziu uma guerra de agressão que, em virtude da situação de conjunto, das circunstâncias da origem da guerra, deve ser compreendido como aquele que ficou como um obstáculo no caminho do estabelecimento de um estado nacional-capitalista independente. Aquele estado conduziu uma guerra de agressão que, por meio da guerra, apoiou a política que dificultou o progresso histórico no sentido acima descrito. E, pelo contrário: que Estado não conduziu uma guerra defensiva quando primeiro recebeu a declaração de guerra, que primeiro foi atacado pelo adversário — isto pode ser, como pode não ser o caso. Que estado conduziu uma guerra defensiva que defendeu o progresso histórico dos ataques de um adversário poderoso; que conduziu a guerra pela eliminação da atomização semi-feudal, pelo estabelecimento de um Estado nacional-capitalista.

O capitalismo representou, em comparação com o feudalismo, um progresso histórico. Em comparação com o capitalismo, apenas o socialismo pode ser reconhecido como progresso histórico. Daí que, na época das guerras nacionais, a guerra defensiva só podia ser conduzida quando o estado nacional-capitalista unificado era defendido contra a atomização feudal ou semi-feudal. Hoje, na época das guerras imperialistas, quando o capitalismo alcançou a etapa de maior desenvolvimento, uma guerra de defesa só é possível quando um estado socialista vitorioso está sendo defendido contra os estados capitalistas-imperialistas. É neste sentido que Friedrich Engels escreveu em 1882 a Karl Káutski que ele não descartava uma guerra defensiva depois da vitória do proletariado, depois da sua conquista do poder; estas poderiam ser as guerras nas quais o proletariado seria compelido a proteger suas realizações socialistas contra os estados capitalistas(1).

Portanto, devemos saber como distinguir entre uma guerra de agressão e uma de defesa no sentido histórico – o que é essencial — e uma guerra de agressão e uma de defesa no sentido diplomático (e estratégico) — o que é de importância secundária. Há casos nos quais uma guerra defensiva no sentido histórico é uma guerra de agressão no sentido diplomático ou estratégico; e o contrário também. Assim, por exemplo, as guerras da Grande Revolução Francesa, das quais falamos no primeiro capítulo(2). Muito embora elas fossem frequentemente guerras ofensivas no sentido diplomático-estratégico, podiam, porém, ser caracterizadas como guerras de defesa no sentido histórico. Seu significado histórico consiste em que elas tinham que defender as conquistas da Grande Revolução Francesa contra as monarquias dos países vizinhos que tentavam restaurar o velho regime na França. Se a França revolucionária não tivesse obtido êxito ao oferecer resistência ao ataque da Inglaterra, que já estava lutando naquele momento por sua predominância colonial, se a França não tivesse conduzido as guerras contra a Áustria contrarrevolucionária — ela jamais teria sido capaz de defender e proteger as conquistas de 1789.

Para sermos ainda mais claros, desejamos acrescentar ainda mais alguns exemplos. Pelo bem da brevidade, desejamos empregar apenas dois termos daqui em diante: a guerra defensiva no sentido histórico e a guerra defensiva no sentido diplomático.

 A Guerra Italiana de 1859 como um exemplo de guerra defensiva no sentido histórico, mas não no diplomático

 A Guerra Italiana de 1859 é um exemplo clássico de guerra nacional. Foi uma típica guerra de defesa, no sentido histórico da palavra. Do ponto de vista estratégico-diplomático, pelo contrário, as coisas não foram tão simples. Por algum tempo na Itália, o movimento nacional contra o domínio estrangeiro da Áustria vinha crescendo. Depois da Guerra da Criméia, a situação assumiu tal forma de um ponto de vista diplomático no qual a Áustria se encontrava mais ou menos isolada na arena internacional. Cavour, o principal líder político de Piemonte(3), tinha todos os motivos para presumir que aquele dado momento era favorável para uma guerra italiana contra a Áustria. Ele começou a se armar para a guerra, fortalecer seu exército, recrutar voluntários etc. Ao mesmo tempo, ele também preparou a guerra no sentido diplomático. Ele procurou por um aliado e encontrou um em Napoleão III.

Ao convite de Napoleão, Cavour o conduziu a Plombières(4) para uma conferência secreta, e lá concluíram em total segredo, sem nem mesmo o conhecimento dos governos dos países participantes, uma aliança ofensiva contra a Áustria. Napoleão queria, acima de tudo, ter garantias diplomáticas sobre a atitude de neutralidade da Rússia. Ao mesmo tempo, no entanto, todos os passos necessários foram tomados para fortalecer os dois exércitos. Todos os detalhes foram trabalhados. A França montou um exército de 200.000 homens que o próprio Napoleão deveria comandar. Piemonte forneceu um exército de 100.000 homens. Os exércitos deveriam se unir em um dado local e se conduzir por uma determinada estratégia. Em caso de vitória parcial, Napoleão III deveria receber Sabóia(5) como compensação; em caso de uma grande vitória, acrescentar-se-ia Nice(6).

Cavour estava tão imbuído do desejo de mergulhar na tão esperada luta pela independência italiana que ele estava pronto para declarar guerra à Áustria, mesmo que tal desafio criasse uma impressão desagradável e mostrasse ao mundo todo que esta guerra, no que concerne a diplomacia, era uma guerra de agressão da parte da Itália. Mas Napoleão III atuou com mais sangue-frio e prudência. Com a ajuda de todo tipo de artifícios diplomáticos ele se esforçou para que a declaração de guerra viesse da Áustria. Estes métodos dilatórios de Napoleão III frequentemente levavam Cavour ao desespero. Ele acreditava que Luís Napoleão estava colocando todo o empreendimento em risco por sua negligência. Houve um momento no qual parecia que havia sido criada uma situação diplomática na qual a guerra se tornou completamente impossível. Em desespero, Cavour quis por um fim por si mesmo. Este foi o momento em que a Inglaterra, a pedido da Áustria, propôs arbitrar as questões em disputa em um congresso, mas sob a condição de que a Sardenha(7) se desarmasse primeiro, pois do contrário o congresso não poderia se reunir em paz, Napoleão III atuou como se estivesse de acordo. Ele exigia apenas — que a Áustria também se desarmasse. A Áustria não podia concordar, pois bem sabia que todas os preparativos para a guerra haviam sido feitos em Piemonte e que a guerra iria rebentar mais cedo ou mais tarde. Além disso, a posição financeira da Áustria era tal que ela devia ou começar a guerra imediatamente, ou seria incapaz de fazê-lo. O orçamento de guerra chegou ao seu ponto mais alto. Depois do início da guerra, a Áustria podia passar com empréstimos compulsórios internos e suspender um número de pagamentos, e desta maneira seria capaz de superar uma crise financeira. Mas, ao adiar a guerra, a Áustria só criaria novas dificuldades financeiras para si. Assim, a Áustria foi compelida a declarar guerra contra a Sardenha. Ela enviou o famoso ultimato: desarmem-se em três dias. Quando Cavour recebeu este ultimato estava feliz porque significava guerra. Cavour ficou tão cheio de alegria por este ultimato que ele quase se atirou ao pescoço do embaixador austríaco que lhe transmitiu o documento. Ele chorou de alegria como uma criança quando seus amigos o parabenizaram pela guerra iminente.

A Áustria, então, tinha sido a primeira a declarar guerra contra a Itália em 1859 e foram os regimentos austríacos quem primeiro cruzaram a fronteira inimiga. Mas em termos diplomáticos a Áustria não era a agressora, pois o status quo era altamente cobiçado pela Áustria; ela não queria a guerra e a teria evitado com prazer. Em termos diplomáticos a guerra era de agressão da parte do adversário da Áustria. Mas, no sentido histórico, mais profundo e o único correto, foi uma guerra defensiva para a Itália, na qual a unidade italiana, o que significava um avanço histórico, foi criada e a atomização nacional e estatal semi-feudal eliminada.

Qual a importância do duelo diplomático entre Napoleão III e a Áustria? Por que cada lado estava tão ansioso para obter a declaração de guerra do outro? Naturalmente, apenas porque os dirigentes da política estrangeira queriam explorar para si próprios a impressão que o primeiro passo tem sobre as massas da população. Cada campo está ansioso por apresentar o inimigo como culpado da guerra aos olhos do povo.

Tchernichevski, um contemporâneo destes acontecimentos, descreveu a impressão causada pelo ultimato austríaco da seguinte maneira:

“O imprudente ultimato coloca todos as Potências neutras e a opinião pública da Europa contra a Áustria. Prússia, Rússia e Inglaterra protestaram contra tal comportamento nos termos mais agudos. Os jornais de toda Europa estavam indignados sobre a insolência sem sentido da Áustria. O imperador francês triunfou: o governo austríaco não podia ter feito nada para agrada-lo ainda mais. Toda a tática diplomática de Napoleão se resumia a mostrar a Áustria para a Europa como sendo a culpada pela guerra, e agora a Áustria realizou seu desejo, e até mesmo excedeu suas expectativas”. (Vol. V, Política)

Pessoas perspicazes como Tchernichevski imediatamente reconheceram que diplomaticamente a Áustria não era culpada pela guerra. Naturalmente, as Potências neutras que protestaram também o sabiam, mas para as amplas massas da população, para milhões, para os “jornais de toda Europa” que moldam a opinião pública, a Áustria era considerada a agressora até mesmo em termos diplomáticos.

Isto é o que aprendemos da Guerra Italiana de 1859. Vemos aqui relações muito complicadas. Napoleão III ficou do lado da Itália — a partir de “interesses compensatórios” um tanto egoístas. Ele estava tão pouco preocupado com a liberdade nacional quanto com as nevascas do ano passado. Ele precisava de Sabóia e Nice, ele tinha que fortalecer sua autoridade para conseguir consolidar sua posição dentro da França. Na Guerra Italiana, ele apareceu como um defensor do progresso histórico — contra sua vontade. De maneira similar, a Rússia reacionária, por sua neutralidade, facilitou a luta italiana contra a opressão austríaca.

E, apesar disso, a Guerra de 1859 foi, em termos históricos, uma guerra justa de defesa da parte da Itália, isto é, uma guerra na qual Cavour e Garibaldi estavam do lado do progresso e combateram pela causa da unificação do estado nacional burguês contra a atomização nacional feudal.

Em 1859, a Áustria — do ponto de vista histórico — era o lado agressor não porque ela foi a primeira a declarar guerra, não porque seus exércitos foram os primeiros a cruzar as fronteiras inimigas. A Áustria foi o lado agressor muito embora a tática diplomática ofensiva de Cavour e seus aliados tenha forçado a Áustria a declarar a guerra primeiro. A Itália (Piemonte) era o lado defensista em 1859 não porque ela recebeu o ultimato austríaco, mas apesar do fato de que ela tinha provocado o ultimato.

O significado histórico da guerra é decisivo. A preparação diplomática da guerra cumpre um papel inteiramente secundário.

A Guerra Franco-Prussiana de 1870-1871 oferece um interesse ainda maior sobre este assunto, por estar mais próxima de nós no tempo e, à sua própria maneira, como um exemplo clássico. Acompanhemos a pré-história diplomática desta última das grandes guerras nacionais da Europa! Vale a pena nos determos nos detalhes.

A guerra de 1877-1878 como uma transição para uma nova era

Já dissemos que a guerra de 1870-1871 foi a última grande guerra nacional na Europa na qual — vindo dos interesses do socialismo e da democracia — o critério de guerras defensivas e de agressão, no sentido histórico destes termos, podia ser aplicado.

E a guerra de 1877-1878? Não foi também uma guerra nacional? Esta questão pode ser respondida com um sim e um não:

Para os sérvios, búlgaros, romenos etc., era uma questão de independência nacional e a guerra, para eles, trazia uma característica nacional-emancipatória. O eco da luta nacional foi ouvido em todos os acontecimentos de 1876, 1877 e 1878 na península balcânica; levantes nacionais sucederam os conflitos militares. Por outro lado, no entanto, todos os eventos ocorreram sob o signo da corrida imperialista entre a Rússia e a Inglaterra. Estas duas grandes potências fizeram dos pequenos povos dos Bálcãs suas ferramentas, embora tenha sido uma questão de vida ou morte para estes últimos. Isto foi mais claramente compreensível a partir do Congresso de Berlim. A Inglaterra imperialista, apoiando-se no seu poder naval e explorando o antagonismo entre a Rússia e a Áustria, forçou a Rússia a revisar o Tratado de Sto. Estéfano. Os diplomatas das potências europeias correram ao Congresso de Berlim em 1878 — como um bando de corvos — inclinada a aquinhoar os pedaços mais suculentos para seus governos. A Inglaterra obteve a Ilha de Chipre, a Rússia tomou a Bessarábia novamente e recebeu Batum, Ardagan e Kars em acréscimo. A Áustria obteve um protetorado sobre a Bósnia e Herzegovina. A Bismarck, como “corretor honesto”, foram prometidas diversas vantagens para o comércio alemão nos Dardanelos e no Bósforo. A Rússia obteve o maior proveito de todos; o sultão tinha que “ceder” mais de 30.000 quilômetros quadrados. Ficou-se sabendo a princípio que posteriormente a França tinha obtido a garantia de obter a Tunísia da Inglaterra. Logo após, em 1881, a França, com a permissão de Bismarck e o apoio tácito da Inglaterra, tomou Tunis. Chipre pela Tunísia, a Tunísia pelo Chipre! Os búlgaros e sérvios estavam lutando por sua independência nacional; isto deu à França causa suficiente para roubar a Tunísia na África! Uma das melhores provas de que, tão logo quanto a guerra de 1877-1878, as motivações imperialistas cumpriram um papel enorme — pelo menos entre os atores principais do drama.

O que a luta pela independência nacional genuína tem a ver com as incursões imperialistas com que a Inglaterra e outras grandes potências imperialistas tomaram parte nesta guerra?

O camponês búlgaro, é claro, colocou seu coração e alma nesta guerra. Ele estava realmente lutando pela emancipação nacional. A pressão descomunal exercida pelos turcos chamou à frente um forte movimento nacional. A subjugação econômica e cultural foi especialmente agravada pela pressão exercida sobre assuntos religiosos. Quando os soldados búlgaros ouviram os sinos das igrejas construídas por Carlos da Romênia, entraram em êxtase. Estes sinos eram como maná vindo do paraíso para eles.

Os turcos proibiram os búlgaros por muitos anos de terem sinos em suas igrejas. Para os camponeses búlgaros, o som dos sinos era um arauto da emancipação do jugo turco. Mas os verdadeiros condutores da questão — os imperialistas da Inglaterra, França etc. — tinham interesse em um som bastante diferente, o som do dinheiro, do ouro que seria espremido dos territórios trocados. A unidade nacional em si os interessava muito pouco. O resultado da guerra foi que o povo sérvio estava, subitamente, dividido em quatro partes: as partes sérvias da Turquia e da Áustria, Montenegro e sua própria terra. Os búlgaros estavam divididos em duas partes. E também os romenos. A burguesia das grandes potências, sem a menor compunção, tinha dividido completamente os pequenos povos que haviam se juntado à luta por sua independência nacional.

A guerra de 1877-1878 mostrou que mesmo em um canto tão remoto da Europa quanto a península dos bálcãs, as grandes potências intervieram imediatamente, e os elementos da luta nacional foram completamente perdidos em sua luta imperialista mundial. O critério de guerras defensivas e de agressão estava historicamente ultrapassado. Era o amanhecer de uma nova era na qual, de acordo com todo o estado de coisas, tal critério tinha perdido todo seu significado. A guerra de 1877-1878 constituiu a transição para esta nova era. Nas guerras subsequentes, o elemento nacional cumpriu um determinado papel. Mas este papel era inteiramente subordinado. Estamos prontos para admitir que até mesmo na guerra de 1914-1916(8) há cantos remotos da Europa onde o elemento nacional ainda cumpre um pequeno papel — o elemento nacional no conflito austro-sérvio. Mas isto é apenas um episódio, um pequeno detalhe que não altera em nada o caráter imperialista da guerra.

A consideração diplomática-estratégica das guerras de defesa e de agressão nunca poderia oferecer a democracia como critério. Os exemplos das guerras italiana e franco-alemã mostram isso. Também o fazem as guerras do Século XX. Exemplos: a guerra dos Bálcãs de 1912 (ou seja, a guerra dos povos eslavos contra a Turquia) e a segunda guerra dos Bálcãs de 1913 (ou seja, a guerra dos povos eslavos entre si). Se o critério for aplicado de um ponto de vista diplomático, resultados inteiramente diferentes serão obtidos. Não foram os turcos que declararam a guerra — ostatus quo estava a seu favor — mas os povos eslavos. Poderia a democracia, então, tomar parte da Turquia, que foi alegadamente atacada? Claro que não! Em 1913, a Bulgária começou a guerra, não a Sérvia. A Bulgária foi — do ponto de vista diplomático — a parte diretamente culpada (sem levarmos em consideração aqui o papel da Rússia). Poderia a democracia concluir disto que deveria tomar o lado da Sérvia contra a Bulgária?

Com o início de uma nova era, a velha fita métrica se tornou obsoleta também em termos históricos. Pois todo o ambiente, todas as condições, se tornaram diferentes. Certa vez Wilhelm Liebknecht defendeu que em caso de uma guerra de agressão, a democracia está obrigada a apoiar aqueles que estão se defendendo; ele comparou a parte agressora com um simples ladrão e assaltante que invade a casa de outra pessoa para tirar de lá algo que pertence ao próprio dono da casa. Agora é diferente. Na época imperialista as guerras são conduzidas por toda uma série de ladrões e assaltantes consumados pela divisão da riqueza (e das vidas) de terceiros. Não há nada para pessoas honestas fazerem neste caso a não ser encontrar o caminho mais curto para tornar inofensivos todos estes ladrões, todo o bando. Quando dois arrombadores de casas estão brigando pelos despojos — que homem honesto se preocupa em saber qual dos dois foi o primeiro a violar o código de moral dos ladrões? É ridículo falar aqui do critério de uma guerra justa de defesa…

Modernos donos de escravos

Em um certo sentido, todas as guerras dos povos não-europeus, que foram transformados em meros objetos da política imperialista, são guerras “justas” de defesa. Estes povos foram divididos arbitrariamente. Dissecções são realizadas em seus corpos vivos. Os imperialistas europeus os negociam como gado. As grandes potências imperialistas da Europa dividem continentes inteiros entre si.

Quando Guilherme II, pouco antes da irrupção da Guerra Russo-Japonesa, enviou a Nicolau II o famoso telegrama: “o almirante do Oceano Atlântico saúda o almirante do Oceano Pacífico” — o que isto significou politicamente? Significou que os imperialistas alemães estavam propondo ao czar russo e aos imperialistas russos suprimir todos os povos da Ásia sob a condição de que o czar e os capitalistas russos não impedissem os imperialistas alemães de suprimir e explorar todos os povos da África. Era uma proposta para dividir os escravos entre os donos de escravos.

A população das colônias não significava nada além de bestas de carga para os cavalheiros imperialistas. Um pequeno exemplo: em 1904 ocorreu o levante dos Hereros na colônia alemã do Sudoeste da África. A infeliz população nativa não podia mais suportar a dor e o tormento ao qual foi sujeitada por anos pelos mercadores da civilização enviados por Guilherme II. Os mercadores alemães saquearam a população reduzindo-a à mendicância. Os oficiais alemães e policiais espancaram e mataram os desafortunados Hereros — mulheres e crianças foram impiedosamente mal tratadas — no interesse de manter a “disciplina”. Quando os Hereros se rebelaram, Guilherme enviou novos regimentos. Metade da população masculina da colônia foi morta. Os Hereros e suas famílias foram conduzidos aos milhares ao deserto escaldante e sem água, onde morreram de sede…

Dez anos se passaram desde estas desumanidades; os alemães sentiram a falta de força de trabalho naquela colônia — e agora eles se desculpam: quão “inoportunamente” agimos, dizem, porque promovemos tão insensatamente o assassinato de tantos burros de carga? Um dos mais proeminentes representantes do imperialismo alemão, Paul Rohrbach, escreveu em 1915 em seu livro Unsere koloniale Zukunftsarbeit (Nosso trabalho colonial futuro, em tradução livre), as cínicas palavras a seguir:

Quando o levante [dos Hereros] irrompeu, sua supressão não foi deixada a cargo do então governador Leutwein e seus antigos oficiais experimentados. Ao invés disso, foi enviado um comandante-em-chefe que não possuía a noção de que — nas palavras posteriores de Dernurg — os nativos eram os grandes ativos econômicos de uma colônia africana. Uma guerra de extermínio foi declarada contra os Hereros e algo próximo a metade do povo pereceu no deserto sem água e sem comida. É claro que os rebeldes tinham que ser punidos e, acima de tudo, desarmados, mas exterminar metade deles era tão absurdo quanto poderia ser. A perigosa falta de mão-de-obra que agora prevalece no Sudoeste da África deriva principalmente da maneira como se conduziu a guerra de 1904-1905. É responsável pelo atual desaceleramento do desenvolvimento econômico da colônia.

Não são estas as palavras de um proprietário de escravos?

Os imperialistas de todos os países tratam os povos que são o objeto de sua exploração imperialista como escravos. Naturalmente os escravos se rebelam contra seus torturadores e naturalmente os anseios destes povos por liberdade e independência se tornam mais fortes e mais frequentemente eles têm a oportunidade de conduzir uma guerra de defesa contra seus opressores.

Os socialistas devem reconhecer essas guerras dos povos coloniais contra seus governantes imperialistas europeus como guerras justas de defesa. E isto de maneira independente de quem é a parte imediatamente agressora.

A Guerra dos Bôeres do ponto de vista da agressão e da defesa

Em 1877, os imperialistas ingleses declararam a República Bôer uma parte da Inglaterra. Por muitos anos, eles empregaram todos os tipos de medidas violentas até que — apoiando-se em uma petição de 2.500 (!) bôeres que supostamente imploraram voluntariamente pela incorporação à Inglaterra — os imperialistas ingleses decidiram agir mais energicamente. Primeiramente os bôeres foram submetidos. Em 1881, no entanto, eles reuniram forças suficientes e, sob a liderança de Kruger, Paetorius e Joubert, atacaram o exército inglês que sofreu uma pesada derrota. Este foi o primeiro ato do drama Bôer. Os bôeres iniciaram mais um. Em 9 de outubro de 1899, o governo da República Bôer enviou ao governo inglês um ultimato consistindo de quatro pontos:

  1. o conflito devia ser decidido por um tribunal de arbitragem;
  2. a Inglaterra devia retirar seus exércitos da fronteira;
  3. todos os reservas enviados à África do Sul a partir de 1º de junho deveriam ser chamados de volta à Inglaterra;
  4. as forças armadas enviadas em navios de guerra não deveriam desembarcar em qualquer parte da África do Sul.

Sem esperar por qualquer das formalidades ligadas à consideração do ultimato pela Casa dos Comuns inglesa, os bôeres atacaram as tropas britânicas. Eles eram a parte agressora e a Inglaterra, formalmente, a defensora. E a Inglaterra proclamou o mundo inteiro que sua guerra era justa, eles tinham sido atacados, etc. Apesar disto, a Guerra dos Bôeres foi uma guerra justa da parte dos bôeres e o proletariado mundial ficou ao seu lado.

Por quê? Porque o povo bôer estava lutando por sua independência. O imperialismo inglês, no entanto, estava lutando para capturar os campos de diamante descobertos em Kimberley em 1867.

Por décadas os imperialistas britânicos oprimiram os bôeres, explorando-os politicamente e economicamente. Em 1896, o representante inglês na África do Sul, Jameson, lançou um ataque de cavalaria sobre os bôeres, durante o qual muitos cidadãos inocentes perderam suas vidas. Ele declarou mais tarde que ele foi forçado a agir em “autodefesa”. Na realidade, no entanto, os rifles ingleses dispararam um pouco antes do que o adequado para os planos do governo inglês. Foram compelidos a agir como se estivessem insatisfeitos com seu representante. Ele foi entregue a um tribunal e recebeu treze meses na prisão, mas foi então perdoado por ter a “saúde fraca”. Isto foi uma comédia hipócrita da parte dos imperialistas ingleses tanto quanto o famoso telegrama de simpatias que Guilherme II enviou aos bôeres por ocasião do evento. Os imperialistas ingleses e alemães jogaram com os bôeres como um gato com um rato. Daí que a guerra dos bôeres contra os ingleses foi, exteriormente, uma guerra de agressão — na realidade, foi uma guerra justa de defesa.

A guerra absínia considerada do mesmo ponto de vista

Ou um segundo exemplo: a guerra da Absínia contra a Itália em 1896.

Desde 1881, a Itália vinha tomando um território do Mar Vermelho após o outro. O ouro, marfim, borracha, café, algodão e outras colheitas aguçou o apetite dos imperialistas italianos. Em 2 de maio de 1889, Humberto, o rei da Itália, teve êxito ao atrelar Menelik a um tratado que levou a Absínia à completa dependência econômica da Itália. Em 1894-1897, Kassala já tinha pertencido aos italianos, que então a venderam aos ingleses por dinheiro vivo. Os imperialistas italianos se sentiam mais e mais “em casa” em suas colônias na Eritréia. Mas para manter estas colônias para sempre, o premiê italiano Crispi tomou o cuidado de fortalecer constantemente o exército italiano estacionado lá. Em 1896 ele decidiu aumentá-lo em 10.000 homens. A esta altura Menelik, sem esperar pelos 10.000 novos soldados italianos, atacou os italianos com um exército de 90.000 homens e, em 1º de março de 1896, infligiu uma derrota completa sobre eles em Abba Kapima. Em dezembro, o tratado ítalo-franco-inglês foi assinado, reconhecendo a independência da Abssínia e estabelecendo apenas o princípio da “porta aberta”.

Assim, a Abssínia foi a primeira a declarar guerra à Itália em 1896. Exteriormente, portanto, a Abssínia era a parte agressora, mas na realidade ela estava conduzindo uma guerra justa de defesa contra os imperialistas italianos.

A China e as grandes potências

Consideremos a China. Este país tem excitado especialmente os apetites das grandes potências. Tratemos dela em detalhe.

Como um exemplo clássico das guerras de repressão do período que precedeu diretamente a época imperialista, há a guerra conduzida pela Inglaterra contra a China em 1840-1842 sobre a compra de ópio.

O comércio inglês na China era um monopólio da Companhia Britânica das Índias Orientais. No interesse do seu enriquecimento, a companhia se adaptou completamente às ordens das autoridades chinesas; estas últimas menosprezaram os “bárbaros” do Ocidente e foram da opinião de que os “bárbaros” tinham o direito de comércio na China devido apenas à graça do Filho do Céu. Os capitalistas ingleses resistiram a tal concepção dos seus direitos.

Em 22 de abril de 1834, o monopólio da Companhia Britânica das Índias Orientais foi abolido pelo Parlamento Britânico. A Inglaterra fez um esforço para adquirir o direito ao livre comércio na China.

Já em 1834-1836, os problemas quase chegaram ao ponto de um conflito militar sobre a questão. A Inglaterra tentou se estabelecer na China; ela tinha a concepção de que, de acordo com a lei internacional em vigor, os povos não-cristãos em geral não eram iguais. É assim que um defensor da política britânica, Eitel, explica a conduta da Inglaterra (A História de Hong Cong).

Nesta situação já tensa, o conflito sobre o comércio do ópio já cumpria um papel decisivo.

O comércio do ópio alcançou uma dimensão enorme na China. No início do século XIX, o número de caixas de ópio importadas anualmente chegou a 4.100, isto é, vinte vezes o tamanho de vinte anos antes. Em 1820, 10.000 caixas foram importadas, em 1830, 18.000 caixas, em 1835, 30.000 (Loc. cit., p. 134).

O governo chinês protestou enfaticamente contra este comércio de ópio que era muito prejudicial para a população chinesa devido à promoção do vício, da doença e da degeneração. O contrabando era severamente punido. O comissário chinês, Liu, confiscou e destruiu 20.283 caixas em 1839. Apesar disto, a colheita de ópio indiano continuou a ser exportada para a China.

Liu passou a métodos mais incisivos. Ele forçou todos os ingleses a se retirarem de Hong Cong. E, embora Liu tenha proposto aos ingleses condições bastante aceitáveis para o comércio de ópio, em novembro de 1839 a Inglaterra decidiu lançar uma guerra.

A guerra começou. Em 26 de janeiro de 1841, os ingleses ocuparam Hong Cong. A crueldade dos ingleses não conhecia fronteiras. Os chineses ofereceram uma resistência desesperada aos “seres inferiores contra os quais os deuses e os homens se rebelaram” Os chineses não podiam se deixar capturar vivos pelos ingleses. Nos campos chineses prestes a serem ocupados pelos ingleses, os chineses, antes de se renderem às forças superiores dos ingleses, matavam suas esposas e filhos e então cometiam suicídio. Os comandantes de regimento chineses — oficiais e generais — preferiam se matar a queimar em uma fogueira, ao invés de cair nas mãos dos ingleses. Tão grande foi a crueldade dos ingleses e tão grande o ódio dos chineses.

A Inglaterra, é claro, triunfou sobre a desafortunada China. A paz foi assinada em Nanquim em 29 de agosto de 1842. A ilha de Hong Cong passou às mãos dos ingleses perpetuamente sobre a base de um tratado de paz. Cantão, Xangai e outros portos foram tornados livres para o comércio britânico. A China pagou 21.000.000 de libras pelo ópio destruído, por indenização de guerra etc.

Assim começaram as grandes expedições europeias contra a China.

A paz de 1842 piorou as relações tensas entre a Inglaterra e a China apenas por um curto período de tempo. A China era incapaz de resistir ao assalto das potências europeias. A iminente divisão da China era discutida abertamente na imprensa europeia. Napoleão III juntou forças com os imperialistas britânicos. Em 1856-1860, a China foi forçada a uma guerra contra a Inglaterra e a França. O ódio dos ingleses cresceu ainda mais. Uma conspiração foi descoberta em Hong Cong que tinha como objetivo envenenar todos os ingleses que ali residiam. O plano falhou apenas porque a comida (sanduíches) continha uma dose muito grande de arsênico. Tão grande era o amargor dos chineses. Os ingleses insistiram em estender seus direitos sobre a China. Eles começaram uma nova guerra, bombardeando e destruindo cidades inteiras. Em 1858, ditaram à China a paz de Tientsin. A Inglaterra teve êxito em abrir quase mais dez portos chineses ao comércio britânico. Os impostos de comercialização foram alterados em favor da Inglaterra, o direito a enviar um embaixador inglês à China foi reconhecido, a China pagou indenizações, etc. Um dos pontos do tratado de paz (?) dizia: o termo “bárbaros” não pode mais ser aplicado a qualquer sujeito britânico. (Loc. cit., p. 172).

Tais são os métodos pelos quais os imperialistas restauram sua “honra” e assim respondem à noção sobre o seu “barbarismo”.

A segunda potência imperialista agiu da mesma maneira. Atrocidades que os chineses cometeram contra oficiais franceses eram vingadas pelas tropas francesas de tal forma — pouco antes da conclusão da paz — que 200 castelos e templos e uma biblioteca muito valiosa foram queimados. E então eles ditaram a paz aos chineses em Pequim que estavam em harmonia com a de Tientskin e era, em alguns pontos, ainda pior.

Em novembro de 1860, o general Ignatiev forçou a China a não só confirmar o tratado de Aigun mas, em acréscimo, ceder todo o território a Leste do Ussuri à Rússia.

Em 1880, o Japão tomou posse da ilha chinesa de Tsiukin.

Em 1895, a Rússia ampliou ainda mais suas posses na China, e flertou com a Coreia; a Inglaterra tomou para si Port Hamilton, uma ilha ao Sul da Coreia.

Em 1884-1885, a China foi forçada a combater contra a França, que havia roubado toda a parte Sul da Cochinchina(9). Em julho de 1885, a China assinou a paz, prometeu não interferir nas relações entre a França e Annam e pagou uma grande indenização.

Em julho de 1886, a Birmânia finalmente passou às mãos dos ingleses e em 1890 a China foi forçada a reconhecer o protetorado britânico sobre o estado de Tsikim no Himalaia. (Loc. cit., p. 227).

Em 1894, a guerra sino-japonesa irrompeu. Os imperialistas alemães estavam felizes com o fato de que o assassinato de dois missionários ofereceu a eles o pretexto: eles ameaçaram a China com uma guerra e, então, receberam Kiaochow por um período de 99 anos. Kiaochow pela cabeça de dois missionários. Os imperialistas alemães não seriam avessos a fazer um acordo vantajoso como este todos os meses. Em 1899, a Itália também tentou espremer alguma coisa para si, mas a China tinha a força de mostrar-lhe a porta.

As potências imperialistas não apenas expropriaram a China, não apenas continuaram a vê-la como um objeto das incursões imperialistas, mas além disso intervieram nos assuntos domésticos da China, cumprindo um papel contrarrevolucionário e apoiando a reação chinesa. Há diversos exemplos disso.

No início dos anos 50, um movimento insurrecional se iniciou na China e ficou conhecido sob o nome de Taiping. Este movimento, que tinha um caráter relativamente religioso (lembrava o movimento dos anabatistas), era dirigido ao mesmo tempo contra a dinastia chinesa governante. O movimento continuou a ganhar adesões e foi levado de cidade a cidade. Um estado de guerra regular existia entre as tropas da dinastia e os Taipings. A dinastia estava preparando uma derrota muito sanguinária para os rebeldes. As tropas das potências imperialistas, no entanto, assumiram como seu dever apoiar este trabalho sangrento. Um papel especialmente lamentável foi desempenhado pelos soldados da nobre grande potência, a França, na dispersão dos rebeldes de Xangai em 1855. Depois deles terem se rendido, 1.700 rebeldes foram executados, com a cooperação das grandes potências. Como recompensa, a França exigiu e recebeu uma extensão de seus assentamentos.

A Rússia também tomou parte na repressão do levante chinês de 1858 — um equivalente da suas apreensões de Amur.

Mas o movimento Taiping durou até os anos 60. As tropas que tinham permanecido leais ao governo chinês, achavam cada vez mais difícil acabar com o movimento. A reação chinesa se viu cada vez mais compelida a apelar às grandes potências europeias. E elas vieram contentes ao seu auxílio — naturalmente, não sem “compensações” correspondentes. Em 1862, as tropas inglesas e francesas se empenharam em “purgar” os rebeldes em uma zona de 60 quilômetros no entorno de Xangai. Em fevereiro de 1862, a França incorporou 900 soldados, e a Inglaterra 1.000 aos regimentos chineses liderados por Li Hung-chang. Junto com ele, elas combateram os rebeldes.

A tradição desta política “contrarrevolucionária” das grandes potências na China foi continuada pela Alemanha imperialista durante a Revolução Chinesa de 1911. Em seu livro, destacado oficialmente por reconhecimento das autoridades alemãs, Schuler narra que no Norte da China, Tsingtao ofereceu proteção a todos os oficiais de alta patente e à nobreza, que tinham meios de salvar suas vidas e posses neste abrigo seguro. Curiosamente, o autor se queixa de que durante o levante a imprensa revolucionária chinesa constantemente ventilava o ódio contra os alemães devido a seu “suposto” apoio à dinastia com armas, munições etc.

Pode-se imaginar depois de tudo isto que o ódio às potências europeias é grande na China? Pode-se sustentar — sem hipocrisia — que a Europa foi forçada a responder aos surtos de fanatismo chinês com “guerras defensivas”?

Em 1899, o Ta Tin Tin (Sociedade da Grande Faca) surgiu na China. Em 1900, a liga secreta do “Grande Punho” (os ingleses chamavam os membros desta sociedade de Boxers) surgiu e se colocou o objetivo de combater os europeus e os expulsar da China. Estes eram excessos. Os chineses atacaram os cônsules europeus, mataram, por exemplo, o cônsul alemão von Ketteler etc. Então, os governos europeus enviaram tropas à China, que cometeram crueldades que fizeram os feitos dos Boxers parecerem inocentes jogos infantis.

Mas o que causou o movimento Boxer? O fato de que os imperialistas de todos os países caíram sobre a China como uma matilha de lobos famintos.

Em 1894, a China conduziu a guerra contra o Japão pela Coreia. Os japoneses triunfaram e ditaram a paz aos chineses em Ximonoseki. Os imperialistas europeus prontamente interferiram no assunto. Os despojos de sua companhia japonesa não lhes deixaram descanso. Depois da Paz de Ximonoseki, o Japão pilhou Formosa, Port Arthur e um bilhão em indenização. A Coreia caminhava para se tornar independente. Rússia, França e Alemanha se uniram contra o Japão. Para atirar areia aos seus olhos, afirmaram que a intervenção foi causada pela declaração de independência do Norte da China. Na realidade, tanto a Rússia quanto a Alemanha sentiam apenas desejo pelo botim. Na Alemanha também o imperialismo havia levantado sua cabeça. A Alemanha decidiu reivindicar Kiaochow. Em 4 de maio de 1895, o Japão foi forçado a devolver Port Arthur e Liaotung à China. Por este “serviço amigável” as quatro grandes potências foram recompensadas da seguinte maneira: a Alemanha recebeu Hiaochow em um acordo de 99 anos, e foi tomada pelos japoneses em 1914. A Rússia recebeu Port Arthur em um acordo de 35 anos e a Inglaterra “emprestou” Weihaiwei e a França, Kwang Chu-wan.

Assim a China foi dividida e saqueada pelos imperialistas europeus. Naturalmente isto causou uma justa indignação entre o povo chinês, que adotou métodos desesperados para se defender dos assaltantes. Nenhuma pessoa honesta pode afirmar que os governos europeus conduziram uma guerra justa de defesa em 1900 durante a guerra dos Boxers. e o fato de que os cônsules dos governos europeus foram atacados pelos chineses não altera em nada os fatos.

A ilha de Cuba

Guerras conduzidas pelos povos contra os imperialistas dos quais são dependentes, são guerras justas de defesa. As guerras imperialistas contra povos coloniais são guerras injustas de agressão. As guerras que os imperialistas travam entre si têm por objetivo dividir ou redividir os escravos e devem, portanto, ser condenadas; nenhum dos dois lados está conduzindo uma “guerra justa de defesa”.

Consideremos, a título de ilustração, do último caso a guerra da Espanha contra a ilha de Cuba e a guerra dos EUA contra a Espanha pela ilha de Cuba.

A ilha de Cuba era, desde tempos imemoriais, oprimida pela Espanha. Em 1868-1878, uma série de levantes aconteceu na ilha de Cuba. A ilha obteve a mesma autonomia que todas as províncias espanholas possuíam. A partir de 1881, Cuba enviou 30 deputados e 14 senadores para a Corte espanhola. Em 1888 a escravidão foi abolida. Em 1895, um novo levante irrompeu em Cuba; a guerra contra a Espanha. A Espanha mobilizou um exército de 200.000 homens que se distinguiam por uma crueldade desumana. Apesar disto a Espanha não podia chegar a lugar algum. Então os EUA intervieram na situação. Para os imperialistas norte-americanos era uma questão de preparar os Estados Unidos para participar na luta pelas costas do Oceano Pacífico. Além disso, os norte-americanos haviam despejado grandes somas de dinheiro em diversos empreendimentos em Cuba. Acima de tudo, as grandes reservas de tabaco, café, açúcar, etc. em Cuba, nas Filipinas e em Porto Rico tinham há muito tempo deixado os norte-americanos inquietos. Em 23 de abril de 1898 a Espanha recebeu um ultimato do presidente dos Estados Unidos, McKinley. A guerra começou entre os EUA e a Espanha. Os EUA triunfaram e tomaram da Espanha (pelo Tratado de Paris de 10 de dezembro de 1898) Cuba, as Filipinas e Porto Rico. A Doutrina Monroe venceu e com ela os sacos de dinheiro dos imperialistas norte-americanos. Embora os EUA tenham proclamado em toda parte que estavam lutando pela liberdade e a independência, agora recusavam-se a garantir a liberdade às Filipinas. Em 1900-1901, levantes surgiram intermitentemente nas Filipinas e foram suprimidos pelos norte-americanos pelos meios mais sangrentos. Cuba obteve sua autonomia e uma constituição republicana em 1901; enquanto que às Filipinas só foi permitido reunir uma Assembleia Nacional em 1907, e todas as suas decisões precisavam primeiro ser confirmadas pelos EUA.

Agora a questão: quem é o lado agressor aqui, quem é que se defende? Quem conduziu uma guerra justa e quem conduziu uma injusta? A resposta é clara: ambos os lados, tanto os imperialistas espanhóis quanto os norte-americanos conduziram uma guerra injusta de dois proprietários de escravos pela posse de escravos. Seria ridículo examinar qual deles foi o agressor e qual o defensor. Apenas a terceira parte conduziu uma guerra justa de defesa — os povos oprimidos de Cuba e das Filipinas que lutaram pela liberdade e independência — contra os donos de escravos espanhóis e norte-americanos.

Marrocos

Nos dez anos entre 1895 e 1905 vimos cinco grandes guerras imperialistas: a guerra entre China e Japão pela Coreia em 1895, a guerra entre os EUA e a Espanha por Cuba em 1898, a guerra entre a Inglaterra e os Bôeres pelos campos de diamantes de Transvaal em 1899, a guerra entre toda a Europa e a China em 1900, porque as grandes potências queriam impor suas ferrovias à China e enriquecer às custas da China, e finalmente a guerra entre Rússia e Japão pelo direito de explorar a Manchúria em 1904.

Todas estas guerras sangrentas não trouxeram aos vencedores nenhuma expansão territorial em particular: a Manchúria continuou a pertencer à China, a China formalmente manteve sua independência, a África do Sul constitui um estado politicamente autônomo, Cuba se tornou uma república “independente”. Apesar disto, no entanto, os vencedores colheram seus despojos: ferrovias, empréstimos, taxas alfandegárias, concessões etc. tornaram-se as posses dos imperialistas daquela “terra natal” que obteve sua vitória com rios de sangue.

Um segundo conflito tipicamente imperialista foi o que ocorreu no Marrocos, que mesmo antes de 1914 quase conduziu a uma guerra mundial.

A corrida industrial entre os capitais alemães e britânicos forçou a Inglaterra imperialista a procurar uma aliança com seu antigo adversário, a França. Em 1903, Eduardo VII visitou a França. Qual foi o verdadeiro motivo desta visita? À época aquele truste germano-francês estava quase concluído. Os imperialistas alemães procuravam uma aproximação com os franceses e estavam preparados para “ceder” uma parte da Ferrovia de Bagdá. Os alemães precisavam do capital francês. O truste germano-francês foi fundado. Arthur von Gwinner, diretor do Deutsche Bank, foi nomeado presidente. Para vice-presidente, Vernes, colega dos Rothschilds na Compagnie du Nord e na Compagnie du Midi, mebro do Conselho se o banco Union Parisiènne e o banco Otomano, membro da Companhia Ferroviária Salônica-Constantinopla etc. Detrás do sr. Vernes estava Rouvier & Cia.

Eduardo VII apareceu em Paris como o agente da burguesia imperialista britânica, para evitar o truste franco-germânico. Ele obteve êxito e pagou com o Marrocos. Os imperialistas franceses renunciaram a todas as possessões no Egito e as deixaram em favor dos ingleses, recebendo destes o Marrocos. Egito pelo Marrocos, o Marrocos pelo Egito!

Esta maquinação foi apresentada ao “povo” como uma “Entente cordiale” (uma “aliança de coração” na qual não era tanto o coração que cumpria um papel quanto as carteiras).

Porque os imperialistas franceses abandonaram toda cooperação com os imperialistas alemães, os imperialistas ingleses deixaram aos últimos o monopólio sobre as ferrovias, portos, sistemas de telégrafos, obras públicas etc. do Marrocos.

Os imperialistas alemães, no entanto, começaram a brandir suas baionetas. Eles ameaçaram a acender o mundo em guerra a menos que recebessem sua parte no Marrocos. A conferência em Algeciras encontrou-se forçada a fazer certas concessões aos imperialistas alemães. Uma dada porcentagem dos empréstimos marroquinos foi atribuída a eles e uma esfera de influência suficiente para a importação de capital etc. foi garantida.

Embora a paz tenha sido concluída assim, não teve longa duração. A Europa estava a apenas um passo de uma guerra mundial. Tanto os imperialistas alemães quanto os franceses e ingleses queriam esta guerra. Foi adiada, mas apenas porque a Alemanha não tinha terminado seus armamentos navais, os franceses decidiam sobre o serviço militar de três anos etc. A guerra podia acontecer a qualquer momento. Mesmo então todos os beligerantes teriam alardeado que tinham sido atacados, que estavam conduzindo uma guerra de defesa etc. Mas, na realidade, teria se tornado apenas uma guerra imperialista, uma guerra de poucos círculos do capital financeiro pelos despojos ainda não divididos

Trípoli

Tomemos a guerra tripolitana de 1911, que pode ser considerada, juntamente com a guerra turca dos Bálcãs de 1912-1913, como a abertura a Guerra Mundial de 1914-1916. Esta guerra é o exemplo clássico de quanto podem ser enganosos e inúteis os critérios de guerra defensiva.

Em setembro de 1911, a Itália de modo inesperado enviou à Turquia um ultimato: a Itália mostrou até agora — caso vocês não saibam — paciência e moderação inusitadas, mas a Turquia absolutamente se recusou a considerar o “legítimo interesse italiano” em Trípoli. Daí que “a Itália considera-se compelida” a ocupar Trípoli. A Turquia não tinha ainda encontrado tempo de responder a este ultimato quando, em 30 de setembro de 1911, o bombardeio dos fortes de Trípoli foi iniciado pelos italianos. Esta guerra também, é claro, foi declarada como “justa” pelos imperialistas italianos. Todo o aparato à disposição da dominação burguesa foi colocado em movimento para evocar o espírito patriota entre o povo italiano. E não sem sucesso. Um entusiasmo genuíno e um espírito empreendedor tomou conta de todo o povo italiano que se juntou ao seu rei e seu governo. Até mesmo a maior parte dos socialistas (dos social-reformistas, para ser mais exato; Bissolati & Cia. foram expulsos do Partido Socialista Italiano por terem reaprendido o social-chauvinismo) não ficou à margem deste entusiasmo e estava pronta para o auto-sacrifício. É assim que o conhecido historiador da política externa alemã, o conde Reventlow, descreve o estado de coisas na Itália no início da guerra por Trípoli.

E qual foi o verdadeiro significado da guerra tripolitana, qual foi o verdadeiro fundamento de toda esta questão?

A guerra era puramente imperialista, e todo o conflito estava atrelado à corrida de dois trustes imperialistas concorrentes.

A partir do momento em que a aproximação entre Inglaterra e França, dirigida contra a Alemanha, se tornou perceptível, a Inglaterra começou a alimentar a Itália com promessas. Logo após Fashoda, a Inglaterra prometeu Trípoli à Itália. Agora a França também estava preparada, pela dor que causou à Itália ao tomar Tunis, para “ceder” Trípoli à Itália em nome da “solidariedade dos povos da cultura românica”. Em 1899 e em 1902, a Inglaterra e a França formalmente deram à Itália uma nota por Trípoli. Para o sucesso de seu truste imperialista, tinham que distrair a Itália de sua Tríplice Aliança a qualquer preço. Para este fim, os imperialistas italianos tinham que ser subornados de alguma forma. Eles pagaram — como de costume — com as possessões de outros. Trípoli não pertencia nem à França nem à Inglaterra. A França tinha posto seus olhos sobre ela apenas porque estava nas vizinhanças de suas possessões.

Após a “Entente cordiale” entre os imperialistas da Inglaterra e da França (1904), os imperialistas italianos pensaram que já tinham Trípoli em seus bolsos. A “Entente cordiale”, no entanto, como vimos, concluiu-se sobre a palavra de ordem: Egito pelo Marrocos. Ampliada, a palavra de ordem dizia: Pelo Egito, Marrocos; pelo Marrocos, Trípoli.

Depois da conferência em Algeciras (1906), na qual a Itália, esperando a prometida Trípoli, já abertamente apoiava a Inglaterra e a França contra sua “aliada”, a Alemanha, os imperialistas da Itália eram da opinião de que tinham merecido “honestamente” Trípoli e consideravam a si próprios os donos desta colônia.

Quando a Itália declarou guerra à Turquia em 1911 por Trípoli, a situação tornou-se difícil para a Alemanha. Pois Itália e Turquia eram oficialmente aliados da Alemanha. Voltar-se contra a Itália significava para a Alemanha, primeiro, empurrar a Itália ainda mais longe da Tríplice Entente, e secundariamente, iria provocar imediatamente uma guerra mundial para a qual a Alemanha não estava ainda suficientemente armada. Voltar-se contra a Turquia significava conduzir o “aliado” turco aos braços da Inglaterra, pois os turcos tinham se convencido de que a Alemanha era incapaz de defendê-los e que seu destino estava inteiramente nas mãos da Inglaterra. Uma situação muito difícil. A Alemanha imperialista contorceu-se como uma enguia e finalmente encenou a comédia da neutralidade. Por este preço, a Alemanha comprou a continuidade da existência da Tríplice Entente com a participação da Itália — depois de a Itália ter tomado Trípoli dos turcos.

A guerra por Trípoli foi, como o leitor pode ver, um elo na cadeira de conflitos imperialistas. A Turquia concluiu a paz com a Itália em Lausanne em 18 de outubro de 1912, em um momento em que uma nova guerra já havia começado nos Bálcãs. Aqui também as grandes potências imperialistas eram diretores de cena. O nó se tornou cada vez mais complicado até que o inevitável aconteceu em 1914.

A guerra tripolitana foi um conflito imperialista típico, produzido pela sanha imperialista que marcou toda a época.

A questão é: quão longe podem socialistas e democratas ir nestes casos com o velho critério de guerras defensivas e de agressão? A Itália foi o agressor. Temos, portanto, que simpatizar com o outro lado, reconhecendo que a Turquia estava conduzindo uma guerra “justa”? Neste caso não teríamos sido nada além de brinquedos nas mãos do imperialismo alemão! Tomar parte da Itália? Então teríamos nos tornado uma ferramenta de outro truste imperialista! A Itália imperialista pisava, com um pé, o campo da Tríplice Entente, e com o outro o campo da Tripla Aliança. Os imperialistas italianos estenderam sua mão direita aos imperialistas da Inglaterra e da França, mas continuavam com a sua esquerda segurando a mão dos imperialistas alemães. Quem então estava se defendendo, quem era o agressor?

Foi apenas um episódio em toda a corrente da política imperialista de dois trustes de Estados, ambos os quais atacaram o mais fraco e desarmado, ambos dos quais dividiram o mundo e saquearam continentes inteiros. Apenas os levantes nacionais das populações nativas, dirigidos contra ambas as coalizões imperialistas, poderia ser caracterizado como “justo”. Das duas coalizões, no entanto, nenhuma conduziu uma guerra justa. A teoria da guerra de defesa fica — quando aplicada a esta guerra — sem sentido, uma frase vazia. Na realidade, serve apenas para que os governos imperialistas, que transferiram a ideologia de guerras de libertação nacional para uma época completamente diferente, enganem seus povos…

É desta maneira que as coisas são em todos os conflitos e guerras do período imperialista. Nos enfrentamentos dos bandos imperialistas de todos estes países, não pode haver, de um ponto de vista histórico, uma parte agressora e uma parte que se defende. Todos eles atacam estes povos que eles próprios destacaram como seu botim. Todos eles procuram no imperialismo sua salvação do perigo socialista.

É por isto que seria absurdo aplicar o critério de guerras “justas” de defesa às guerras imperialistas das grandes potências.

As conquistas coloniais desde os anos 70 — guerras que se materializaram e guerras que não 

Consideremos os acontecimentos mais importantes no terreno das conquistas coloniais desde os anos 70 do século XIX.

Desde 1870, a Inglaterra se enriqueceu na Ásia com os seguintes territórios: Baluquistão, Birmânia, Chipre, Bornéu do Norte britânico e Wei-hai-wei. Os Estabelecimentos dos Estreitos(10) se expandiram. Em 1899, o protetorado do Coveite foi tomado, a Península do Sinai conquistada etc.

Na Austrália, a Inglaterra conquistou a parte Sudeste da Nova Guiné, uma parte das ilhas Salomão e Tonia.

Na África: o Egito, o Sudão egípcio com Nianda, a África Oriental britânica, o Somáli britânico, Zanzibar; no Sul da África, as duas repúblicas bôeres, Rodésia, África Central britânica; no Oeste da África, a Nigéria etc.

A França conquistou: Tonkin, Annam, Laos, Tunis, Madagascar, partes do Sahara, do Sudão, dos territórios da Costa do Marfim em Dahomei, da costa Somáli etc.

A Alemanha tomou a partir de 1885 (o início oficial da política colonial alemã): Camarões, Togo, o Sudoeste Africano alemão, o Leste Africano alemão, Nova Guiné, uma série de ilhas (Ilha do Keiser Guilherme, o Arquipélago Bismarck, as Ilhas Carolinas etc.).

A Rússia tomou posse de Urga (na China) em 1870, Kulchu em 1871, Fergana em 1870, e então da Manchúria; finalmente, finalmente, vem perseguindo sua política mais recente na Pérsia…

Mencionamos aqui apenas quatro grandes potências. Mas o Japão também, desde 1874, começou sua política imperialista com a expedição contra Formosa.

No início do século XX, alguns anos trouxeram à tona três conflitos agudos sobre o Marrocos, dois sobre os assuntos dos Bálcãs. E a cada momento a paz europeia ficou por um fio.

Apresentamos aqui uma tabela incompleta das guerras conduzidas desde 1870:

 

1870-1871 A Guerra Franco-Alemã
1873-1879 Guerra da Holanda contra o Sultão em Sumatra
1876 Sérvia e Montenegro contra a Turquia
1877-1878 A Guerra Russo-Turca
1879 Três exércitos ingleses invadem o Afeganistão (concessões são feitas à Inglaterra)
1883-1885 França contra a China (sobre Tonkin)
1885 A Guerra Servo-Búlgara (os sérvios são derrotados em Slirnitza, Paz de Bucareste em 3 de março de 1886)
1885 Rússia contra o Afeganistão (“vitória” do general Komarov)
1893 Guerra dos franceses e a conquista de Dahomey (Guiné)
1894 Japão contra a China sobre a Coreia (vitória do Japão)
1895 Espanha contra a Ilha de Cuba
1896 Itália contra Menelik (a guerra da Absínia, Itália derrotada)
1897 A Guerra Greco-Turca (derrota dos gregos, a Ilha de Creta obtém autonomia em 1898)
1898 A Guerra Hispano-Americana (por Cuba, a Espanha é derrotada)
1899-1900 Guerra da Inglaterra contra os Bôeres
1900 Guerra das potências europeias contra a China (a Guerra dos Boxers)
1904 Inglaterra contra o Tibete (vitória da Inglaterra)
1904-1905 Alemanha contra os Hereros
1904-1905 A Guerra Russo-Japonesa
1911-1912 Itália contra a Turquia (sobre Trípoli)
1912 Guerra dos povos eslavos dos Bálcãs contra a Turquia
1913 Sérvia e Grécia contra a Bulgária
1914 Irrompe a Guerra Mundial

Se estas guerras forem analisadas, será percebido que a maioria delas possuía uma natureza puramente imperialista. Está diante de nós um segmento de guerras inteiramente novas que são bastante diferentes das guerras nacionais de uma época passada. Suas causas são diferentes. Seu conteúdo social é diferente. São a expressão de um estágio diferente de desenvolvimento do capitalismo.

A maioria daqueles conflitos de tempos recentes que foram resolvidos sem guerra têm esta mesma característica. O famoso pacifista, professor Frieda, tentou fazer uma lista das guerras evitadas. No período entre 1904 e 1916, ele enumerou 17 guerras que não chegaram ao ponto de ruptura. Entre elas estão os seguintes conflitos:

  1. O incidente de Hull, 1904 (conflito entre a Inglaterra e a Rússia)
  2. Conflito marroquino, 1905 (conflito entre Alemanha e França)
  3. Separação da Noruega da Suécia, 1905
  4. Conflito entre o Japão e os Estados Unidos, 1907
  5. Conflito marroquino, 1908 (França contra a Alemanha)
  6. O incidente em Casablanca, 1908 (Alemanha contra França)
  7. Anexação da Bósnia e Herzegovina.
  8. Áustria contra a Turquia, 1908
  9. Bulgária contra a Turquia, 1908
  10. Turquia contra a Grécia, 1908 (sobre a Ilha de Creta)
  11. Japão — China, 1909 (sobre a Ferrovia da Manxúria)
  12. Bolívia — Peru — Argentina, 1909
  13. Estados Unidos — Chile, 1909
  14. Rússia — Japão, 1909 (conflito sobre a Manxúria)
  15. Grécia — Turquia, 1910 (Creta)
  16. Chile — Peru, 1910
  17. Equador — Peru, 1910

Vemos, portanto, diante de nós todo um período de conflitos imperialistas e guerras imperialistas.

 Algumas palavras sobre a selvageria da política colonial moderna

 Os imperialistas alemães começaram sua política colonial mais tarde que os demais. Seus primeiros passos neste terreno foram dados quase no início do século XX. E, no entanto, quanto sangue e sujeira, quanta violência e crueldade estão em suas cabeças!

Toda sua política colonial, do início ao fim, é um crime. Como soam inacreditáveis seus “tratados” concluídos com os nativos com os nativos enquanto roubam sua terra! “Nós, subscritos reis e chefes militares independentes (!) de Camarões, cedemos nossas possessões aos senhores Eduard Schmidt e Johann Voss, representantes da firma de G. Wermann”, diz um tratado desses. Em lugar de suas assinaturas, 23 Negros (“reis independentes”), uma vez que não sabiam escrever, colocavam um “X” … a outra parte de Camarões foi vendida à mesma companhia de Wermann por 150 toneladas de rum!

Os capitalistas ingleses e franceses atuaram da mesma forma apenas há algum tempo atrás na Índia. Quem quer que chegue ao local primeiro, quem quer que hasteie sua bandeira nacional primeiro, é o dono…

E então [tiveram lugar] as crueldades e assaltos dos servos do imperialismo alemão contra a população das colônias! O açoite é a pena mais leve em Camarões. Durante o levante em Camarões, centenas de negros foram amarrados juntos sob as ordens de oficiais alemães, Leist e Wehlau, e deixados sob os quentes raios solares até morrerem de sede. A escória do militarismo alemão foi enviada às colônias, daí as crueldades inauditas. Mulheres são chicoteadas com bastões na presença de seus maridos, assentamentos inteiros são queimados até o chão e deixados para morrer de fome. Recorrem às armas de fogo em todas as ocasiões. No início do Levante dos Hereros, esta tribo possuía cerca de 100.000 pessoas. De acordo com estatísticas oficiais, havia apenas 21.699 restantes em 1º de janeiro de 1913: 7.071 homens, 9.209 mulheres e 5.420 crianças.

Em 1905, um novo levante irrompeu na África Oriental. A introdução do trabalho forçado, impostos desumanos e execuções constantes provocou o levante da tribo Matmuba. Os soldados alemães deram liberdade à sua sanha pela pilhagem. Em 1913, o Escritório Colonial Alemão declarou em um relatório oficial que 20.000 nativos perderam suas vidas à época. O professor alemão Shilling, no entanto, afirmou que nada menos que 150.000 nativos foram mortos durante o levante. Vilhas foram queimadas, as colheitas destruídas. Muitos nativos enfraquecidos se tornaram presas dos leões. Os leões eram saciados com carne humana naquela época…

Estamos escrevendo sobre a crueldade dos imperialistas alemães. Mas a crueldade não é uma característica apenas dos imperialistas alemães. Lembremos daquilo que se tornou público sobre a política do imperialismo britânico na Índia, da política do governo belga no Congo Belga, da política francesa nas colônias francesas! Mencionemos apenas isso: que de acordo com os cálculos de Sir. William Diglys , no período de 1850 a 1870 na Índia, 5.000.000 de pessoas morreram de fome, e que no período de 1875 a 1900, foram cerca de 26.000.000(11). Acrescentemos que em 1896, 2.000.000 de indianos morreram de peste. Lembremos ainda que o ex-Vice-rei da Inglaterra na Índia, Lord Curzon, estimou que a média anual de renda de um habitante das Índias Britânicas era de 6,50 libras. E toda esta atrocidade foi produzida principalmente devido às exportações britânicas da maior parte da colheita indiana (daí a fome), e que impostos e taxas foram levantados principalmente sobre a população agrícola (cerca de 80% de todos os impostos)!

Recentemente, um livreto interessante sobre as exportações britânicas na Índia foi escrito pelo ex-Secretário de Estado norte-americano, William Bryan, que reuniu suas experiências pessoais. Este livreto, que apareceu em hindu, foi imediatamente confiscado pelo governo britânico. O periódico norte-americano, Coast Seaman, produziu algumas informações que foram tiradas deste livreto. O peso dos impostos na Índia é relativamente duas vezes mais pesado do que na Inglaterra. A mortalidade, que era de 2,4% em 1882-1884, foi 3% em 1892-1894, e agora está em 3,4%. A fome assumiu dimensões aterrorizantes. “A Inglaterra se vangloria de ter levado a paz à Índia, na realidade o que ela levou foi a morte para milhões de pessoas na Índia (…) Ela suga a seiva da vida da Índia por meio de assaltos que são justificados pela lei”. Assim escreve não um “agitador”, nem mesmo qualquer “alemão”, mas um homem que ocupou um alto posto no amigável governo norte-americano.

Em 16 anos, 8.000.000 de pessoas morreram de peste na Índia; e os impostos sobre a terra chegaram a 65%; os ganhos médios de um indiano chegam a 10 centavos. Mas a Inglaterra recebe uma renda anual de $ 166.000.000 da Índia. Assim escrevem o comitê do Partido Revolucionário da Índia em um manifesto tornado público em São Francisco em 1916.

Lembremos as “expedições internacionais”, que o famoso político norte-americano, Morgan Schuster (que foi ministro da Pérsia em 1911), escreveu em seu livro de 1912, deixando todos os europeus letrados indignados — um livro que leva um título eloquente, O estrangulamento da Pérsia(12).

 Os verdadeiros motivos da guerra imperialista

Em 1909, o bem conhecido mensário britânico, The United Service Institution, publicou um excelente tratado premiado de um alto oficial naval britânico. Em seu tratado, encontramos as seguintes linhas notórias:

“Nós (Inglaterra) não entramos em guerra por nenhum motivo sentimental. Duvido que isto tenha acontecido mesmo uma única vez. A guerra é o produto de conflitos comerciais; o objetivo da guerra: impor sobre o inimigo aquelas condições comerciais que se considera necessário para si. Utilizamos todos os pretextos possíveis para a guerra, mas suas verdadeiras causas são sempre questões comerciais. Quer seja alegado que a causa da guerra é para defender, ou a necessidade [de obter], uma posição estratégica, quer seja que tratados tenham sido violados ou motivos similares tenham desempenhado um papel — no final das contas, tudo tem origem em interesses comerciais. Pois o motivo simples, mas decisivo, é que o comércio é o sangue dos nossos corações”.

Aquilo que é, é dito aqui claramente e abertamente:

“Nós imperialistas (isto, é claro, também se aplica aos imperialistas alemães) tomamos qualquer pretexto, falamos de defesa, de tratados violados etc., mas o essencial é apenas uma coisa: o dinheiro, os interesses dos capitalistas”.

Esta é a pura verdade. Isto é o que são as guerras imperialistas. Causas e pretextos exteriores podem parecer verossímeis. Um está se “defendendo”, outro está lutando nobremente pela independência de um país, um terceiro está defendendo os interesses da “civilização”, puramente a partir do idealismo, contra “bárbaros russos”.

Na realidade, no entanto, todos lutam pelos interesses de um punhado de magnatas do capital financeiro.

O que aquele critério de guerras de defesa tem a ver com tudo isto?

“É extremamente fácil distinguir a defesa do ataque em palavras, mas extremamente difícil, na prática, estabelecer exatamente quem é o agressor e quem está se defendendo. Em quase todas as guerras de décadas recentes, como em tempos anteriores, ambos os lados se consideram atacados”. (Ruedorffer, Grundzüge der Weltpolitik, p. 218.)

“Em geral, o instrumento de tribunais de arbitragem serve apenas para evitar a eclosão de guerras indesejadas…” (Loc. cit., p. 167)

“Quem quer que considere a história da expansão colonial das grandes potências europeias nas décadas recentes … encontrará sem problemas que todas as guerras dos tempos modernos nas quais as grandes potências europeias participaram tiveram, se não a contribuição dos interesses do capital, pelo menos seu início dado por eles”. (Loc. cit., p. 157).

Estas são as valorosas afirmações de um bem conhecido imperialista alemão, Ruedorffer. Até onde a sinceridade é levada em consideração, elas não são inferiores às declarações do ilustre autor inglês o acima citado.

Mesmo os pacifistas burgueses-democráticos avaliaram corretamente o verdadeiro valor das afirmações de todos os governos imperialistas: “Nós” somos os atacados, “eles” são os que atacaram. No órgão internacional destes pacifistas, La Voix de l’Humanité, de 5 de janeiro de 1916, encontramos a seguintes tabela, elaborada não sem uma dose de humor:

Todo Estado beligerante afirma:

  1. Que está conduzindo uma guerra de defesa e está lutando por uma causa justa.
  2. Que está conduzindo uma luta pela liberdade e a civilização de todos os povos.
  3. Que aspira a uma paz duradoura.
  4. Que está se desdobrando em esforços e irá combater até que o inimigo tenha sido derrotado de maneira conclusiva.
  5. Que ele será o vencedor, sem sombra de dúvidas.
  6. Que está avançando de maneira vitoriosa e que há apenas umas poucas baixas a serem registradas.
  7. Que as bombas de seus aviões atingem apenas as instituições militares do inimigo e sempre com grande êxito.
  8. Que seus aviões e sua artilharia são muito melhores do que os aviões e a artilharia dos inimigos.
  9. Que neste mesmo momento ele está planejando grandes medidas que prometem um sucesso absoluto.
  10. Que o bom Deus está do seu lado.

 E cada Estado beligerante afirma, além disso:

  1. Que o inimigo queria a guerra e estava se preparando para isto há muito tempo.
  2. Que o inimigo iniciou a guerra e “nos” atacou.
  3. Que o inimigo está conduzindo uma guerra de conquista e quer dominar o mundo.
  4. Que o inimigo pisoteia os direitos do povo.
  5. Que o inimigo violou a neutralidade dos pequenos Estados e ameaça a neutralidade de outros pequenos Estados.
  6. Que o inimigo está conduzindo a guerra com meios bárbaros.
  7. Que o inimigo usa balas dum-dum.
  8. Que o inimigo está fazendo mal uso da Cruz Vermelha.
  9. Que o inimigo maltrata prisioneiros.
  10. Que o inimigo estupra mulheres, assassina e saqueia.
  11. Que os tribunais militares do inimigo são um deboche da lei.
  12. Que o inimigo mata prisioneiros.
  13. Que o inimigo bombardeira cidades abertas, mata mulheres e crianças, mas não “nos” causa o menor dano militar por perto.
  14. Que o ataque do inimigo é sempre cortado pela raiz ou rebatido com grandes perdas para o inimigo.
  15. Que o inimigo está usando bombas de gás.
  16. Que o inimigo é um pirata dos altos mares.
  17. Que o inimigo está impedindo o comércio neutro de maneira desnecessária.
  18. Que as informações dadas pelo inimigo são mentiras de ponta a ponta, calúnias para promover a pilhagem.
  19. Que o inimigo está tentando influenciar os neturos por meio de mentiras, ameaças e subornos.
  20. Que o inimigo está empurrando os lados neutros à guerra — para o seu grande revés.
  21. Que o inimigo está sofrendo de falta de dinheiro, alta dos custos de vida, crises industriais.
  22. Que os empréstimos de guerra do inimigo foram feitos apenas por meio mentiras e enganação.
  23. Que epidemias estão devastando o inimigo.
  24. Que greves e distúrbios domésticos são a norma na terra do inimigo.
  25. Que os ministros e generais do inimigo estão renunciando.
  26. Que o inimigo está desgastado pela guerra(13).

Esta lista poderia ser ampliada ainda mais… Se as amplas massas do povo pudessem ler os jornais de todos os países, veriam que as classes dominantes dizem a mesma coisa em todos os lugares, se convenceriam de que a burguesia emprega os mesmos métodos em toda parte, as mesmas “técnicas” de enganação de “seu” povo. Mas as massas do povo leem — se é que leem — apenas a imprensa da “sua” burguesia e de “seus” social-chauvinistas, que apenas alardeiam a sabedoria da burguesia da sua terra natal. E é notório que os mesmos argumentos, as mesmas “técnicas” funcionam em todos os países beligerantes. Resta apenas uma coisa a fazer para os escritores burgueses e social-chauvinistas: no lugar do nome da pátria de um, colocar o nome de outro, por exemplo, a Alemanha no lugar da Rússia, e seu objetivo será alcançado.

Algumas observações finais

A etapa do armamento militar de um dado país pode servir como um dos fatores importantes para a estimação objetiva de qual lado é o agressor do ponto de vista diplomático e de qual lado se defende. Diga-me quem está melhor preparado militarmente para a guerra, e eu lhe direi quem é que queria a guerra em um dado momento, quem a fez acontecer! Naturalmente, pode acontecer que este ou aquele governo tenha superestimado sua preparação para a guerra, ou que esteja compelido, apesar de estar armado insuficientemente, a começar a guerra — por exemplo, por motivos de política interna etc. Mas uma vez que todas as outras condições estejam satisfeitas, a tese apresentada é absolutamente aplicável.

Antigamente, havia grandes discussões sobre a questão de qual lado foi o agressor e qual se defendia. A eclosão da guerra é mais decisiva em si, a vitória ou a derrota na guerra. A história geralmente caracteriza como agressor aquele que triunfou. A guerra dos hunos contra os visigodos nos anos 70 do século IV pode servir de exemplo clássico da antiguidade. A maioria dos historiadores concorda que em 373 os visigodos atacaram. Os hunos, no entanto, são conhecidos na história como “hunos” porque provaram ser mais fortes no decurso da guerra.

Livro após livro foi escrito sobre a história diplomática da guerra de 1914-1916. Os social-chauvinistas tratam as datas e os conteúdos dos despachos deste ou daquele diplomata às vésperas da guerra com argumentos abrangentes. Estamos muito pouco interessados na questão. Os conteúdos dos livros brancos, amarelos, cinzas e de outros livros, que contém fragmentos das negociações diplomáticas, têm é claro grande importância para a avaliação do sistema da diplomacia moderna. Mas não está contida neles uma grande importância para julgar o caráter da guerra de 1914-1916 e para estabelecer a tática socialista nesta guerra. É muito provável que a opinião pública considerará como agressor aquele lado que obtiver a vitória final.

Tal julgamento não seria absolutamente arbitrário. Ambos os lados beligerantes gostariam de vencer; mas a vitória depende principalmente do grau de armamento militar. Aquele que estava melhor preparado militarmente, tem mais perspectivas objetivas de vencer, e, uma vez que todas as condições sejam iguais, teve mais motivos para empenhar-se na guerra; e pode, portando — sendo, novamente, todas as condições iguais — ser considerado como o lado diretamente agressor.

Sobre a base de seu armamento militar, a Prússia foi capaz de conduzir uma guerra de agressão contra a França em 1870. As maquinações de Bismarck conduziram Napoleão III a declarar a guerra primeiro. Mas quando, mais tarde, evidenciou-se que a França não estava de modo algum preparada militarmente, enquanto a Prússia estava armada de modo excelente, até o último botão dos casacos de seus soldados — esta foi a melhor prova objetiva de que a Prússia, naquele momento, quis a guerra.

O grau de armamento militar ainda tem a mesma importância hoje, no início da guerra de 1914. A Alemanha estava melhor preparada para a guerra; e mais uma vez isto dá o direito de pensar que naquele momento a Alemanha queria a guerra.

Mas isto não possui absolutamente nenhuma importância para a posição da classe operária diante das guerras de nossa época em geral, e diante da guerra de 1914 em particular.

Vimos que mesmo na época das guerras nacionais, a questão de quem atacou primeiro não era decisiva para a democracia. Na época atual, no entanto, guerras defensivas no velho sentido da palavra se tornaram impossíveis de conjunto.

Há vinte e cinco anos, Wilhelm Liebknecht, que tinha a época das guerras nacionais em mente, falou de uma guerra “justa”, uma na qual ele admitia a participação dos social-democratas. Um quarto de século depois, Plekhânov desencavou estas palavras para poder dizer: está certo, nós também somos a favor de uma guerra “justa”.

Ao se referir às palavras de Liebknecht sobre uma guerra “justa”, Plekhânov facilita a correção da sua falsa afirmação: Pois, na realidade, em que consiste a brincadeira de Plekhânov com o critério de guerra defensiva? Disto, que ele mistura duas épocas — a época das guerras nacionais e a época das guerras imperialistas.

Podem as guerras “justas” em geral ainda acontecem na época imperialista?

Sim, mas apenas em dois casos. O primeiro caso seria o da guerra do proletariado que tenha triunfado em um país e que defenda o socialismo contra outros Estados que representam o regime capitalista. O segundo — uma guerra da China, Índia ou países semelhantes que são oprimidos pelo imperialismo de outras terras e estão combatendo por sua independência contra estas potências imperialistas.

A substituição de uma época por outra parece de maneira mais evidente na Itália. Em 1859, vimos aí uma típica guerra nacional. Em 1859, era uma questão da emancipação da Itália do jugo austríaco, da unificação italiana, na qual todo o povo, toda a democracia, estava interessada. A Áustria era o opressor, a Itália a oprimida.

Em 1859, pouco antes da guerra, vimos um homem como N. A. Dobrolyubov estigmatizar a Áustria fazendo-a dizer as seguintes palavras:

“Nós, seus senhores, estamos ultrajados além do que podemos expressar.
Que você, povo rebelde, nos perturbe com seu levante! …
O quê? Por quarenta anos, sem nunca ter cedido,
Protegemos o mundo dos seus erros! …
Sobre vós lançamos tudo o que possuíamos:
Espiões, novos carrascos, guarnições e prisões.
Até mesmo nossos discursos, nossas alfândegas, a lei e os tribunais.

E qual é o seu agradecimento pela ajuda fiel da Áustria?
Que vergonha! O que você que conceder-lhe mais?
Por que não podemos, como dantes, na mais nobre concórdia viver?
Ou por ventura são nossos soldados ainda muito poucos para você?
Ou talvez a polícia que temos você ache que seja inapropriada?
Ora, rapidamente avançaremos! O remédio é instantâneo,
Um regimento aquartelaremos de bom grado em cada cidade e aldeia…

E agora? Agora as coisas parecem um tanto diferentes. Agora a Itália luta contra a Turquia por Trípoli, contra a Áustria pela Albânia, Dalmatia, Ístria. Pode-se ainda hoje falar de uma guerra justa de defesa da Itália?

Uma guerra justa entre governos imperialistas é impossível, da mesma maneira que é impossível uma luta “justa” entre diversos ladrões pela divisão de seu botim. Toda guerra — exceto pelos dois casos assinalados — é, na nossa época, uma guerra absolutamente “desonrosa”.

Nem poderia ser o contrário, enquanto aplicarmos uma terminologia adequada para uma época à outra que é inteiramente diferente. Não pode haver agora nenhuma guerra “justa” entre as grandes potências europeias que seguem uma política imperialista. A Tríplice Aliança e a Tríplice Entente foram os dois agrupamentos de poderes importantes, decisivos para toda a política europeia. E estes dois agrupamentos surgiram, viveram e atuaram sob o signo do imperialismo, onde, como Káutski corretamente observou, um interpreta o agressor hoje, o outro amanhã, e então trocam novamente.

Se estes socialistas que até agora consideravam o critério de guerras de defesa correto pudessem aprender com a história, teriam que afirmar hoje: “até agora nós nos ativemos a este critério e — agora experimentamos o colapso da Segunda Internacional, uma desgraça desconhecida, sem precedentes. Qualquer coisa menos a repetição de 4 de agosto de 1914!. Qualquer coisa menos a repetição desta vergonha, na qual, aplicando o critério de guerras de defesa, nos tornamos traidores do proletariado, agentes da burguesia!”

E qualquer que seja o destino da Internacional Operária, uma coisa pode ser dita hoje com segurança: a teoria das guerras de defesa deve ser enterrada por todos os socialistas honestos. A experiência de 1914 a enterrou.

Pode haver uma lição mais convincente, mais abominável, do que aquela dada pela guerra de 1914-1916? Uma teroria que levou ao colapso da Internacional durante tais eventos não pode mais ser defendida.

Para onde a “defesa da pátria” e a teoria da guerra de defesa nos conduziram? À política de 4 de agosto, aos Südekums(14) de todos os países, ao completo colapso! Durante a guerra, enquanto as paixões ainda ardem, uma pessoa pode, se for teimosa, continuar a aderir ao critério da guerra de defesa: “estamos nos defendendo, estamos no nosso direito!”. Mas, uma vez que a guerra acabe, e se é forçado a fazer o balanço, todos os que pensem honestamente terão que desistir deste critério.

Poderia se falar, nas guerras nacionais “justas” de épocas anteriores, da luta da burguesia contra o proletariado, que colocou a virada socialista na ordem do dia? Não, não seria o caso. Pois as condições ainda não estavam maduras para o socialismo, o proletariado ainda não tinha se reunido, em toda parte, como classe. Nas guerras imperialistas, no entanto, a luta contra o movimento operário é uma das principais tarefas …

Só é possível para um agente da burguesia caracterizar uma guerra imperialista como “justa”. Agora, no entanto, isto é feito, infelizmente, também por pessoas que se chamam a si mesmas socialistas.

“Estamos conduzindo uma guerra justa!”, grita Südekum e… Hindenburg. “Não, somos nós que estamos conduzindo a guerra justa”, responde Plekhânov e Thomas…

O critério de guerra de defesa tornou-se obsoleto há muito tempo atrás. Se não tivesse acontecido muito antes da guerra de 1914, esta guerra o teria enterrado. O que esta guerra mostrou? Quem apelou para o critério de guerra de defesa? Todos e ninguém. Todos — pois para justificar sua política de pirataria, os imperialistas de todos os países se agarraram a ele, os diplomatas e governos de todos os povos, os mentirosos da imprensa europeia, independentemente do seu idioma. Ninguém — pois ninguém realmente leva a sério este critério.

E então a Internacional! Poderia o critério de uma guerra de defesa salvá-la do colapso? Todos os partidos, incluindo os social-chauvinistas oficiais, nos asseguram de que estão se atendo estritamente ao critério de guerra de defesa. Alemães, franceses, italianos — todos afirmam que estão observando o princípio de uma guerra de defesa. Quem entre eles está certo? Todos e ninguém. Pois o princípio, em si, não é mais válido. Para o proletariado, no entanto, levou agora ao colapso da Segunda Internacional.

Houve um tempo em que mesmo Plekhânov sabia que o critério abstrato de guerra de defesa não valia muito. Em agosto de 1905 ele escreveu:

“Tão dogmático é o ponto de vista de que os socialistas podem apenas simpatizar com ‘guerras defensivas’. Tal ponto de vista é correto apenas a partir da posição dos suum cuique conservadores. O proletariado internacional que defende esta posição consistentemente, deve simpatizar com toda guerra que — independentemente de ser uma guerra de defesa ou de agressão – possa remover um obstáculo importante na estrada para a revolução socialista”.

A terminologia de Plekhânov não é muito clara. Ele não faz distinção entre a guerra de defesa no sentido histórico e a guerra defensiva no sentido diplomático. Em todo caso, no entanto, ele percebe que a teoria da guerra de defesa é inadequada e falsa. Guerra de defesa ou de agressão, não faz diferença, diz Plekhânov. Apenas um dogmático pode pensar que a “defesa” ou “ataque” é decisivo para nós. Para nós socialistas o problema é um tanto diferente. O que é decisivo para nós são os interesses da revolução social.

“A luta de classes assume uma característica agudamente revolucionária, ela derruba as velhas concepções legadas por gerações anteriores; e mais ainda onde a classe oprimida se convence de que seus interesses são idênticos aos interesses das classes oprimidas de outros países, mas opostos aos interesses das classes dominantes do seu próprio país, o conceito de pátria perde em grande medida sua atração anterior” (Plekhânov).

Por décadas os marxistas trabalharam para privar a ideia burguesa de pátria do seu poder de atração, eles repetidamente mostraram aos trabalhadores o quanto são semelhantes em forma as posições das classes oprimidas em diversas pátrias. Mas agora, quando a primeira guerra imperialista começou, quando os imperialistas utilizam a ideia de pátria para enganar os trabalhadores de todos os países — agora, o ex-marxista Plekhânov também glorifica a ideia de pátria! Que enorme reviravolta! De Marx e Engels a Heine e Südekum — este é o caminho trilhado pelos ex-marxistas que agora rendem homenagens ao social-chauvinismo.

Frederico, o Grande, certa vez disse que quando monarcas querem a guerra, eles a começam e delegam a algum jurista zeloso a tarefa de provar que o direito está a seu lado.

Quando vemos como os Plekhânovs e Südekums de todos os países estão agindo agora, a expressão de Frederico, o Grande, pode ser modificada da seguinte maneira: quando os imperialistas querem uma guerra, eles a começam e então delegam a algum zeloso social-chauvinista a tarefa de provar que o direito está a seu lado.

 Gregori Zinoviev
Hartenstein, Suíça


Notas de rodapé:

(1) Kautski, Sozialismus and Kolonialpolitik, 1907. No início da época do imperialismo alemão, Káutski procurou Engels perguntando como os trabalhadores ingleses se posicionavam diante da política colonial inglesa. Engels respondeu a isto em uma carta em 12 de setembro de 1882. Como esta carta é de grande interesse, citamo-la aqui na íntegra:
“Você me pergunta o que os trabalhadores ingleses pensam da política colonial. Bem, exatamente da mesma maneira que eles pensam em política em geral. Não há um partido operário aqui, há apenas conservadores e liberais radicais e os operários vivem tranquilamente do mercado mundial e do monopólio colonial da Inglaterra. Na minha opinião, as colônias de fato, por exemplo, os países estabelecidos por uma população europeia, o Canadá, o Cabo, a Austrália se tornarão todos independentes; por outro lado, os países que foram apenas governados, estabelecidos por nativos: as possessões da Índia, Argel, dos Países Baixos, dos portugueses e espanhóis, serão tomadas provisoriamente pelo proletariado e conduzidas à independência o mais rapidamente possível. Como este processo se desdobrará, é difícil dizer. A Índia, talvez, faça uma revolução, que é mesmo muito provável, e uma vez que o proletariado, que está se emancipando, não pode conduzir qualquer guerra colonial, teria que ter plena execução, o que significa que não passaria sem todos os tipos de distúrbios. Mas tais coisas são precisamente inseparáveis de todas as revoluções. A mesma coisa pode acontecer em outro lugar, por exemplo, em Argel e no Egito e seria, certamente, a melhor coisa para nós. Teremos bastante a fazer em casa. Uma vez que a Europa seja reorganizada, e a América do Norte, elas representarão um poder colossal e um exemplo para o qual o despertar dos países semi-civilizados será atraído por sua própria conta; as exigências econômicas por si só darão conta disso. Sobre para que fases sociais e políticas, no entanto, estes países terão que ir então até que eles da mesma forma cheguem a uma organização socialista, podemos apenas apresentar hoje, acredito, hipóteses um tanto ociosas. Uma coisa, no entanto, é certa: o proletariado vitorioso não pode forçar qualquer bênção sobre um povo estrangeiro sem com isso minar a sua própria vitória. Pela qual, é claro, guerras defensivas de diversos tipos não estão, de modo algum, excluídas. [O que quero dizer com isso é que guerras de defesa do proletariado vitorioso contra países que defendem o capitalismo e, portanto, ameaçam o socialismo de outros países — G.Z.]
“O caso do Egito foi planejado pela diplomacia russa. Gladstone vai tomar o Egito (do qual ele está longe de possuir, e se ele o possuir, está muito longe de conseguir manter) para que a Rússia possa tomar a Armênia; que, de acordo com Gladstone, seria novamente a libertação de uma terra cristã do jugo muçulmano. Tudo o mais neste caso é um embuste, uma bobagem, uma mentira. Se este pequeno plano terá sucesso, isto será revelado em breve”.
A conclusão faz referência à ocupação do Egito pelos ingleses dpois do levante dos egípcios. Uma carta de Engels depois disso, em 9 de agosto de 1882, foi recentemente publicada, na qual ele alertava contra julgar o movimento nacional egípcio apenas do ponto de vista sentimental. Disto, foi tirada a conclusão de que Engels possuía uma simpatia especial pela anexação do Egito pelos ingleses. Vemos aqui como isto não é o caso. (retornar ao texto)

(2) Trata-se do 1º capítulo do livro “A Guerra e a Crise do Socialismo”, do qual foi extraído o presente texto. (N. do E.) (retornar ao texto)

(3) Piemonte: região situada no Norte da Itália. (retornar ao texto)

(4) Plombières: uma cidade da Bélgica, na província de Liège, região da Valônia. (retornar ao texto)

(5) Sabóia: região que corresponde ao atual departamento de mesmo nome na França, localizado na região Ródano-Alpes. (retornar ao texto)

(6) Nice: cidade francesa, situada no departamento dos Alpes Marítimos, na região de Provença-Alpes-Costa Azul. Pertenceu à Itália de 1815 a 1860, por força do Tratado de Viena. (retornar ao texto)

(7) Sardenha: uma ilha do Mar Mediterrâneo ocidental situada a Oeste da Península Itálica e Sul da Córsega. (retornar ao texto)

(8) Trata-se da I Guerra Mundial, que durou até 1918. O texto foi escrito em 1916. (retornar ao texto)

(9) Região à qual pertence o atual Vietnã. (retornar ao texto)

(10) Estabelecimentos dos Estreitos: um grupo de territórios britânicos localizados no Sudeste Asiático firmados a partir de 1826 como parte dos territórios controlados pela Companhia Britânica das Índias Orientais. (retornar ao texto)

(11) Para mais detalhes, veja, por exemplo, Dr. Herm v. Staden, Indien im Weltkrieg, Stuttgart, 1915. (retornar ao texto)

(12) W. Morgan Schuster, ex-Tesoureiro-Geral da Pérsia, O Estrangulamento da Pérsia, o relato de um diplomata europeu e a intriga oriental, London e Leipzig, 1912. (retornar ao texto)

(13) La Voix de l’Humanité, nº 58, 1916. Políticos de destaque da França, Inglaterra e outros países contribuem com a edição deste periódico. (retornar ao texto)

(14) Albert Südekum (1871-1944): um dos dirigentes oportunistas da social-democracia alemã. Social-chauvinista durante a primeira guerra mundial (1914-1918) (retornar ao texto)

Inclusão: 09/11/2019