Pela constituição dos conselhos operários na Itália

Amadeu Bordiga

1920


Primeira publicação: Il Soviet, 4 de janeiro, 11 de janeiro, 1º de fevereiro e 22 de fevereiro de 1920.

Fonte: Marxismo Heterodoxo. Editora Brasiliense: 1981. Organizado por Maurício Tragtenberg.

Tradução: Beatriz Berg.

Transcrição: Thiago Paulino.

HTML: Lucas Schweppenstette.


Trata-se de um longo artigo, em cinco partes, que constitui o esforço supremo de elaboração feito por Bordiga sobre o problema dos conselhos de fábrica.

A polêmica com o Nova Ordem é amigável e nada rancorosa; ataca de um modo especial as posições de Tasca.

Bordiga identifica a revolução proletária com a luta política contra o Estado burguês, e os sovietes, com os órgãos do Estado proletário (acentuando, porém, o poder do Partido comunista acima dos próprios sovietes).

Portanto, na parte que publicamos, ele nega o caráter intrinsecamente revolucionário da forma “conselho de fábrica”, sobretudo quanto à atribuição de tarefas administrativas antes do advento da revolução. A direção da economia do Estado operário, propriamente dita, não diz respeito diretamente aos conselhos. O “nova-ordismo” é por isso assimilado ao sindicalismo revolucionário.

Segundo muitos historiadores, como Massimo L. Salvadori, em Gramsci e il problema storico della democrazia, Einaudi, Turim, 1970, p. 155-185, o II congresso da Internacional confirmará tais posições ou pelo menos divergirá das perspectivas defendidas pelo Nova Ordem.

Mas o que não é bolchevique, aqui, é a recusa de construir conselhos de fábrica naquela situação. Está, além do dado estratégico da questão, parece-nos ser, em Bordiga, a falha tática mais grave no biênio vermelho.

I

Reunimos algum material em torno das propostas e das iniciativas pela constituição dos sovietes na Itália, e nos propomos a expor ordenadamente os termos do argumento. Queremos agora remetermo-nos a algumas considerações, de ordem geral a que já aludimos nos nossos últimos números.

O sistema de representatividade proletária, que foi introduzido pela primeira vez na Rússia, exerce uma dupla ordem de funções: políticas e econômicas.

As funções políticas consistem na luta contra a burguesia, até sua total eliminação. As econômicas, na criação de um mecanismo totalmente novo da produção comunista.

Com o desenvolvimento da revolução, com a eliminação gradual das classes parasitárias, as funções políticas vão se tornando cada vez menos importantes diante das econômicas: mas num primeiro momento, e sobretudo quando ainda se trata de lutar contra o poder burguês, a atividade política é prioritária.

O verdadeiro instrumento da luta de libertação do proletariado, e primordialmente da conquista do poder político, é o partido de classe comunista.

Os conselhos operários, no poder burguês, podem ser unicamente organizações onde trabalha o partido comunista, motor da revolução. Dizer que eles sejam os órgãos de libertação do proletariado, sem mencionar a função do partido, como no programa aprovado pelo Congresso de Bolonha, parece-nos um erro. Defender, como os companheiros do Nova Ordem de Turim, que os conselhos operários, antes mesmo da derrubada da burguesia, já são órgãos, não só de luta política, mas de preparação econômico-técnica do sistema comunista, é, pois, um puro e simples retorno ao gradualismo socialista: chame-se ele reformismo ou sindicalismo, sua delimitação está incorrendo no erro de que o proletariado possa se emancipar ganhando terreno nas relações econômicas, enquanto o capitalismo. ainda detém, com o Estado, o poder político. (...)

II

(...)

O PROGRAMA DE BOLONHA E OS CONSELHOS

É deplorável que no atual programa do partido não apareça expressa a proposição marxista de que o partido de classe é o instrumento da emancipação proletária; e aí está presente o codicilo anódino: “delibera (quem? Nem ao menos a gramática ficou a salvo, na pressa de deliberar... pelas eleições) informar a organização do Partido Socialista italiano nos seus princípios expostos”.

É preciso discutir sobre o trecho que nega a transformação de qualquer órgão do Estado em órgão pela luta de libertação do proletariado, mas para chegar-se a outras conjecturas, faz-se urgente a indispensável elucidação dos termos.

Mas divergimos ainda mais do programa no ponto em que diz que os novos órgãos proletários funcionarão antes, no domínio burguês, como instrumentos da violenta luta pela libertação e, depois, se tornarão os organismos de transformação social e econômica, uma vez que são especificados como tais órgãos, não só os conselhos de trabalhadores, camponeses e soldados, mas até os conselhos de economia pública, órgãos inconcebíveis no regime burguês.

Os conselhos políticos operários também podem ser considerados, antes, institutos em que se explica a ação dos comunistas pela libertação do proletariado.

Mas, ainda recentemente, o companheiro Serrati depreciou, nas barbas de Marx e Lênin, a tarefa do partido de classe na revolução.

“Com a massa operária”, disse Lênin, “o partido político, marxista, centralizado, vanguarda do proletariado, guiará o povo no caminho justo, à ditadura vitoriosa do proletariado, à democracia proletária em vez da burguesa, ao poder dos conselhos, à ordem socialista.”

O atual programa do partido se ressente de escrúpulos libertários e despreparo doutrinário.

OS CONSELHOS E A MOÇÃO LEONE

Esta moção se resumia em quatro pontos expostos no sugestivo estilo do autor.

O primeiro deles é admiravelmente inspirado na constatação de que a luta de classes é o verdadeiro motor da história e de que ela desmembrou as uniões sociais-nacionalistas.

Mas em seguida a moção exalta nos sovietes nos órgãos da síntese revolucionária que eles teriam a capacidade de criar, quase que pelo próprio mecanismo de sua constituição, e afirma que somente os sovietes podem conduzir ao triunfo as grandes iniciativas históricas, acima das escolas, dos partidos, das corporações.

Este conceito de Leone, e de muitos dos companheiros que assinaram a moção, é bastante diferente do nosso, deduzido do marxismo e das diretrizes da revolução russa. Se se trata de supervalorizar uma forma em lugar de uma força, analogamente o fizeram os sindicalistas com o sindicato, atribuindo à sua prática minimalista a capacidade de se resolver com a revolução social.

Da mesma forma como o sindicalismo foi demolido, em primeiro lugar, através da crítica dos verdadeiros marxistas, depois pela experiência dos movimentos sindicais que por toda parte colaboraram com o mundo burguês, fornecendo-lhe elementos de conservação, assim também o conceito de Leone não se mantém diante da experiência conselhos operários sociais-democratas contra-revolucionários, que são justamente aqueles em que não houve a vitoriosa penetração do programa político comunista.

Só o partido reúne em si as energias dinâmicas revolucionárias da classe. Seria intriga objetar que os partidos socialistas também transigiram, a partir do momento em que não exaltamos a virtude da forma partido, mas a do conteúdo dinâmico que está contida somente no partido comunista.

Cada partido se define pelo seu próprio programa; e suas funções não encontram campo de analogia com as dos outros partidos, ao passo que necessariamente as funções tornam comuns entre si todos os sindicatos e, no sentido teórico, também todos os conselhos operários.

O mal dos partidos sociais-reformistas não foi de serem partidos, mas o de não serem comunistas e revolucionários.

Estes partidos conduziram a contra-revolução, enquanto que, na luta com estes, os partidos comunistas dirigiam e alimentavam a ação revolucionária.

Não existem, portanto, os organismos revolucionários por virtude formal; existem somente forças sociais revolucionárias pelas direções em que agem, e estas forças se encontram num partido que luta com um programa.

OS CONSELHOS E A INICIATIVA DO NOVA ORDEM DE TURIM

Vão ainda mais longe, em nossa opinião, os companheiros do Nova Ordem. Não estão nem ao menos contentes com as propostas do programa do partido, porque pretendem que os sovietes, inclusive os de tendência técnico-econômica (os conselhos de fábrica), não só existam e sejam órgãos da luta pela libertação proletária no regime burguês, como sejam até mesmo os órgãos da reconstrução da economia comunista.

De fato, publicam em seu jornal o trecho do programa do partido por nós acima citado, com a omissão de algumas palavras que lhe alteram o sentido, conforme seu ponto de vista:

“Deverão ser opostos novos órgãos proletários (conselhos de trabalhadores, camponeses e soldados, conselhos de economia pública, etc., (...) organismos de transformação social e econômica e de reconstrução da nova ordem comunista.”

Mas o artigo já está longo e remeteremos ao próximo número a exposição de nossa profunda discordância deste critério que, a nosso ver, apresenta o perigo de tornar-se uma pura experimentação reformista, com a modificação de certas funções dos sindicatos é talvez a promulgação de uma lei burguesa pelos conselhos operários.

III

Na conclusão do segundo artigo sobre a constituição dos sovietes na Itália, aludimos ao movimento turinense pela constituição dos conselhos de fábrica.

Não compartilhamos do ponto de vista em que se inspiram os companheiros do Nova Ordem e, embora apreciando sua vigorosa obra por uma consciência melhor dos fundamentos do comunismo, cremos que estão incorrendo em erros graves de princípio e de tática.

Segundo eles, o fato essencial da revolução comunista está justamente na constituição de novos órgãos de representatividade proletária destinados à gestão direta da produção, cujo caráter fundamental é aderir estreitamente ao processo produtivo.

Já dissemos que nos parece que se exagera a respeito deste conceito da coincidência formal entre as representações da classe operária os diversos agregados do sistema técnico-econômico de produção. Esta coincidência tenderá a verificar-se num estágio muito avançado da revolução comunista, quando a produção será socializada e todas as atividades particulares que a constituem serão harmonicamente subordinadas e inspiradas nos interesses gerais e coletivistas.

Por ora, e durante o período de transição da economia capitalista à comunista, os agrupamentos de produtores atravessam um período de contínua transformação, e seus interesses podem vir a se chocar com os gerais e coletivos do movimento revolucionário do proletariado.

Este encontrará seu verdadeiro instrumento em uma representação da classe operária na qual cada representante entrará enquanto membro dessa classe, interessado numa mudança radical, das relações sociais, e não como participante de uma categoria profissional, de uma fábrica ou de qualquer grupo local.

Como o poder político ainda se acha em mãos da-classe capitalista, uma representação dos interesses gerais revolucionários do proletariado não pode ser alcançada senão no terreno político, num partido de classe que reúna as adesões pessoais daqueles que superaram, para dedicar-se à causa da revolução, a estreita visão do interesse egoístico, do interesse da categoria, e finalmente do interesse de classe, no sentido de que o partido admite no seu seio também os desertores da classe burguesa que são defensores do programa comunista.

É um grave erro crer que, trazendo para o ambiente proletário atual, entre os assalariados do capitalismo, as estruturas formais que se pensa poderão formar-se na gestão da produção comunista, as forças, por si próprias e por virtude intrínseca, se determinem como revolucionárias.

Este foi o erro dos sindicalistas e este é também o erro dos mais acalorados promotores dos conselhos de fábrica.

Oportunamente, o companheiro C. Niccolini num artigo no Comunismo adverte que na Rússia, mesmo depois da transmissão do poder ao proletariado, os conselhos de fábrica têm frequentemente criado obstáculos às medidas revolucionárias, contrapondo-se, ainda mais que os sindicatos, às pressões de interesses limitados ao desenvolvimento do processo comunista.

Os conselhos de fábrica não são nem mesmo, na engrenagem da economia comunista, os agentes principais da produção.

Nos órgãos que têm essa tarefa (conselhos de economia popular), os conselhos de fábrica têm representações de menor peso que as dos sindicatos profissionais, as que se distinguem do poder estatal proletário, que, com sua engrenagem política centralizada, é o instrumento e o fator principal da revolução, não só quanto à luta contra a resistência política da classe burguesa, mas também enquanto processo de socialização da riqueza.

No ponto em que estamos, quando, aliás, o Estado do proletariado é ainda uma aspiração programática, o problema fundamental é o da conquista do poder por parte do proletariado e, melhor ainda, do proletariado comunista, isto é, dos trabalhadores organizados, num partido político de classe e decididos a realizar a forma histórica do poder revolucionário, a ditadura do proletariado.

O mesmo companheiro A. Tasca, no n. 22 do Nova Ordem, expõe claramente sua divergência do programa da maioria bolchevique do Congresso de Bolonha e, também, de nós abstencionistas, no seguinte trecho que vale a pena transcrever:

“Um outro ponto do novo programa do partido merece ser considerado: os novos órgãos proletários (conselhos de trabalhadores, camponeses e soldados, conselhos de economia pública, etc.), funcionando inicialmente (no domínio burguês) como instrumentos da luta violenta pela libertação, tornar-se-iam depois organismos de transformação social e econômica, de reconstrução da nova ordem comunista. Nós havíamos insistido, ao participar de uma reunião de comissões, no erro de uma tal formulação, que atribuía aos novos órgãos funções diversas, de acordo com um antes e um depois, separados pela conquista do poder por parte do proletariado. Gennari prometera modificar com um “a princípio prevalentemente como instrumentos, etc.”, mas depois se vê que abandonou a ideia e eu, ausente por motivo de força maior da última reunião, não pude retomá-la.

“Há, porém, nesta formulação um ponto de discordância, verdadeiro e importante, que, embora aproxime Gennari, Bombacci, etc., dos abstencionistas, afasta-os de todos os que acreditam que os novos órgãos não possam ser “instrumentos da luta violenta pela libertação” se não forem já (não depois) “organismos de transformação social e econômica”. A libertação do proletariado se efetua precisamente mediante a explicação de sua capacidade de administrar, de forma autônoma e original, as funções da sociedade por ele e para ele criada: a libertação está na criação de tais órgãos que, se estão vivos e funcionam, por esta razão mesma provocam a transformação social e econômica em que consiste sua finalidade.

“Não é uma questão de forma, mas de conteúdo e essencial. Na formulação atual, repetimos, os compiladores têm aderido à concepção de Bordiga, que dá mais importância à conquista do poder que à formação dos sovietes, nos quais reconhece, no momento, mais uma função “política” stricto sensu do que orgânica de “transformação econômica e social". Como Bordiga julga que o soviete integral será criado somente durante o período da ditadura proletária, assim também Gennari, Bombacci, etc. julgam que só a conquista. do poder (o que, portanto, adquire um caráter político, isto é, nos reconduz aos “poderes públicos” já superados) poderá dar aos sovietes suas funções verdadeiras e completas. É justamente este, segundo nós, o ponto central que nos deve conduzir, cedo ou tarde, a uma nova revisão do programa há pouco votado.”

De acordo com Tasca, a classe operária pode, portanto, construir as etapas de sua libertação, antes mesmo de arrebatar o poder público da burguesia.

Mais adiante, Tasca deixa transparecer que essa conquista poderá também ocorrer sem, violência, quando o proletariado tiver esgotado a obra de preparação técnica e de educação social, que constituiria por sua vez o método revolucionário concreto, propugnado pelos companheiros do Nova Ordem. Não nos delongaremos em demonstrar o quanto este conceito tende ao reformismo e se distancia dos fundamentos do marxismo revolucionário, segundo os quais a revolução não se determina pela educação, cultura, capacidade técnica do proletariado, mas pelas crises internas do sistema de produção capitalista

Assim, Enrico Leone, Tasca e seus amigos supervalorizam na revolução russa o aparecimento de uma nova representação social, o soviete, que, por virtudes inerentes à sua própria formação, constituiria uma original solução histórica da luta da classe operária contra o capitalismo.

Mas os sovietes — otimamente definidos pelo companheiro Zinoviev como as organizações do Estado da classe operária — não são outra coisa senão órgãos do poder proletário que executam a ditadura revolucionária da classe trabalhadora, eixo do sistema marxista, cujo primeiro experimento positivo foi a Comuna de Paris em 1871. Os sovietes são a forma, não a causa da revolução.

Além dessa divergência, há outro ponto que nos separa dos companheiros turinenses.

Os sovietes, organizações do Estado do proletariado vitorioso, são bem diferentes dos conselhos de fábrica, e nem estes constituem o primeiro degrau, a primeira escada, do sistema político soviético. O equívoco está, na realidade, contido também na declaração de princípio votada na primeira assembléia dos comissários de repartições das oficinas turinenses, que começa exatamente assim:

“Os comissários de fábrica são os únicos e verdadeiros representantes sociais (econômicos e políticos) da classe proletária, porque foram eleitos por sufrágio universal por todos os trabalhadores no próprio local de trabalho.

“Nos diversos graus de sua constituição, os comissários representam a união de todos os trabalhadores que se realiza nos organismos de produção (seção de trabalho — repartição — oficina — união das oficinas de uma determinada indústria — união dos estabelecimentos de produção da indústria mecânica e agrícola de um distrito, de uma província, de uma nação, do mundo) em que os conselhos e o sistema de conselhos representam o poder e a direção social.”

Esta declaração é inaceitável, uma vez que o poder proletário se forma diretamente nos sovietes municipais da cidade ou do campo, sem passar pelos trâmites dos conselhos e comitês de fábrica, como várias vezes temos dito, e como é evidente nas claras exposições do sistema soviético russo publicadas no próprio Nova Ordem.

Os conselhos de fábrica são organismos destinados a representar os agrupamentos de operários no período da transformação revolucionária da produção e representam, não somente a aspiração daquele grupo de libertar-se através da socialização do capital privado, mas também a preocupação pelo modo como os interesses do grupo serão resguardados no próprio processo de socialização, disciplinado pela vontade organizada de toda a coletividade trabalhadora.

Os interesses dos trabalhadores, no período em que o capitalismo se apresenta estável, e em que se trata, portanto, apenas de fazer pressões por melhor remuneração, foram até agora representados pelos sindicatos profissionais. Estes continuam a existir durante o período revolucionário e é natural que estejam em flagrante contraste sobre sua competência com os conselhos de fábrica, que surgem quando se aproxima a abolição do capitalismo privado, como aconteceu também em Turim.

Não é, porém, uma grande questão de princípio revolucionário saber se, nas eleições dos comunistas, devem ter a menor participação possível os operários não organizados.

Se é lógico que estes delas participam, em vista da própria natureza do conselho de fábrica, não nos parece igualmente lógica a mistura que em Turim se quis fazer de órgãos e de funções entre conselhos e sindicatos, com a imposição feita à seção turinense pela federação metalúrgica de eleger o próprio conselho diretivo através da assembléia dos comissários de repartição.

De qualquer forma, as relações entre conselhos e sindicatos, enquanto reivindicadores de interesses particulares específicos de grupos operários, continuarão a ser muito complexas e poderão se regularizar e harmonizar somente num estágio muito avançado da economia comunista, quando se reduzirá ao máximo a possibilidade de contrastes entre os interesses de um grupo de produtores e o interesse geral do andamento da produção.

O que importa estabelecer é que a revolução comunista está sendo conduzida e dirigida por uma representação política da classe operária, à qual, antes do aniquilamento do poder burguês, é um partido político; depois, é a rede do sistema dos sovietes políticos, eleitos diretamente pelas massas com o propósito de designar representantes que tenham um determinado programa político geral e deixem de ser neste momento reivindicadores dos interesses limitados a uma categoria ou a uma empresa.

O sistema russo está tão articulado que o soviete municipal de uma cidade se compõe de um delegado para cada agrupamento de proletários, que votam em um único nome. Os delegados são, porém, apresentados aos eleitores pelo partido político, e assim também se procede quanto aos delegados de segundo e terceiro grau, para os organismos superiores do sistema estatal.

É sempre, portanto, um partido político — o comunista — que pede e obtém dos eleitores o mandato de administrar o poder.

Não queremos por certo afirmar que os esquemas russos devam ser adotados inteiramente e em toda parte, mas pensamos que se deva tender a uma maior proximidade, até mais que na Rússia; com o princípio em que se funda a representatividade revolucionária: a superação dos interesses egoísticos e particulares no interesse coletivo.

Poderá ser vantajosa para a luta revolucionária dos comunistas a constituição desde agora da engrenagem de uma representatividade política da classe operária? É o problema que examinaremos no próximo artigo, discutindo o projeto elaborado por responsabilidade da direção do partido, e deixando bem claro que, como se reconhece parcialmente nesse projeto, essa representatividade seria bem diferente daquela do sistema dos conselhos de fábrica que começou a se formar em Turim.

(...)

V

Os sovietes, órgãos do Estado proletário vitorioso, podem ser órgãos de luta revolucionária do proletariado, quando ainda o capitalismo impera no Estado? Sim, mas no sentido de que possam se constituir, em um determinado estágio, no terreno próprio para a luta revolucionária que o partido conduz. E, nesse determinado estágio, o partido tende a formar um terreno semelhante, um enquadramento de forças semelhantes

O partido comunista, que deveria agir nos sovietes, ainda não existe. Não dizemos que, para surgirem, os sovietes irão esperar por ele: poderá acontecer que os fatos se apresentem de uma outra forma. Mas, aí então, se delineará este grave perigo: a imaturidade do partido deixará cair estes organismos em mãos de reformistas, de cúmplices, da burguesia, de torpedeadores ou de falsificadores da revolução.

E, então, pensamos que a existência de um verdadeiro partido comunista na Itália é um problema bem mais urgente que o da criação dos sovietes.

Estudar os problemas conjuntamente, e equacionar as melhores condições de enfrentá-los conjuntamente, sem demora, também pode ser aceitável, mas sem que se estabeleçam datas fixas e esquemáticas para uma inauguração quase oficial dos sovietes na Itália.

Determinar a formação do partido autenticamente comunista, significa selecionar os comunistas dos reformistas e dos sociais-democratas. Alguns companheiros pensam que a própria proposta de formar os sovietes possa abrir o terreno para esta seleção. Nós não acreditamos nisso — justamente porque o soviete não é, em nossa opinião, um órgão, na sua essência, revolucionário.

De qualquer forma, se o nascimento dos sovietes deva ser fonte de esclarecimento político, não vemos como se possa chegar a um entendimento — como no projeto de Bombacci — entre reformistas, bolcheviques, sindicalistas e anarquistas!

Ao contrário, a criação na Itália de um movimento revolucionário sadio e eficiente não se fará nunca colocando-se em primeiro plano novos organismos antecipadores de formas futuras, como os conselhos de fábrica ou os sovietes — assim como foi uma ilusão querer salvar do reformismo o espírito revolucionário trazendo-o para os sindicatos, vistos como núcleo de uma sociedade futura.

A seleção, não a realizaremos com uma nova receita, que não amedrontará ninguém, mas com o abandono definitivo de velhas “receitas”, de métodos perniciosos e fatais. Nós — por razões bem conhecidas — pensamos que o método que se deve abandonar, para que então, junto com ele, os não-comunistas possam ser rechaçados de nossas fileiras, é o método eleitoral — e não vemos outro caminho para o nascimento de um partido comunista digno de aderir a Moscou.

Trabalhemos neste sentido, começando — como o disse muitíssimo bem Niccolini — por elaborar uma consciência, uma cultura política, nas “cabeças”, através de um estudo mais sério dos problemas de revolução, menos perturbado pelas manobras espúrias da atividade eleitoral, parlamentar e minimalista.

Trabalhemos nesse sentido — ou seja, façamos já a propaganda pela conquista do poder, pela consciência do que será a revolução, do que serão seus órgãos, de como verdadeiramente agirão os sovietes — e teremos na verdade trabalhado para constituir os conselhos do proletariado e conquistar neles a ditadura revolucionária que abrirá os caminhos luminosos do comunismo.

A.B.


Inclusão: 04/08/2023