A intervenção na comissão política no Congresso de Lion

Amadeu Bordiga

20 de janeiro de 1926


Fonte: Marxismo Heterodoxo. Editora Brasiliense: 1981. Organizado por Maurício Tragtenberg.

Tradução: Beatriz Berg.

Transcrição: Thiago Paulino.

HTML: Lucas Schweppenstette.


Como é notório, perderam-se, talvez para sempre, os discursos verbais originais do Congresso de Lion de 1926. No entanto, estamos reconstruindo as posições fundamentais tiradas naquela ocasião, não só através de um amplo relato de Gramsci, mas também através do exame de todo o debate preparatório, registrado pelos jornais do partido e discussões verbais das reuniões.

Neste âmbito, essencial porque faz considerações sobre a transição do partido bordiguista ao gramsciano, assume relevo especial a discussão oral da comissão política para o Congresso de Lion que registra, entre outras coisas, de forma esquemática, a oposição de Bordiga às teses de Gramsci,

Note-se que, entre os diversos pontos de divergência, dois deles adquirem importância fundamental: o ponto referente ao Estado e à política da Internacional e o que se refere à concepção de partido.

A polêmica sobre o partido entendido como “parte” da classe operária (Gramsci), ou como seu “órgão” (Bordiga), é só formalmente abstrata, porque um modelo de organização sempre “inserido” no movimento de massa pode dever adaptar sua política até mesmo por influência democrático-burguesa da classe operária (ou ao menos assim pensava Bordiga), enquanto que um modelo de partido entendido como “órgão” da classe representa a classe em si, razão por que estará em minoria ou eventualmente em maioria entre os trabalhadores, mas não dependente de suas influências historicamente determinadas, podendo, portanto — para permanecer como tal —, também transformar-se em seita em situações de refluxo revolucionário (esta é a concepção de Bordiga).

Mas acima de tudo se coloca na Internacional a divergência sobre o monolitismo, a tática, o obreirismo, o predomínio exclusivo do partido russo: todos temas que logo serão retomados nas intervenções no VI Comitê Executivo ampliado da Internacional.

A exposição apresentada por Gramsci dos pontos fundamentais de divergência entre a Central do partido e a extrema-esquerda convenceu-me da necessidade de uma completa diferenciação. À extrema-esquerda, portanto, apresentará um projeto próprio de teses completamente oposto ao da Central, e que servirá para completar a parte já publicada sobre o cotidiano do partido.

No fundo, existe uma única divergência fundamental entre nós e a Central e a Internacional, e a ela podem ser reduzidos todos os pontos divergentes. Reservando-me o direito de fazer uma exposição completa na reunião plenária, limitar-me-ei aqui a indicar os pontos fundamentais.

Antes de mais nada, no que diz respeito à ideologia, consideramos que estamos seguindo as diretrizes do marxismo revolucionário enquanto que os companheiros da Central se afastaram delas, aproximando-se de concepções filosófico-idealistas que a própria Internacional condena.

A respeito da natureza do partido, sustentamos que este é um “órgão” da classe operária. O fato de sustentar que o partido é “parte” e não “órgão” da classe operária indica uma preocupação de identificar de uma forma estatística o partido e a classe e é um sintoma de desvio oportunista. A identificação estatística do partido e da classe sempre foi uma das características do trabalhismo oportunista.

Negamos que a organização por célula tenda a dar ao partido um espírito proletário. Afirmamos, antes, que esta tende a tolher-lhe este espírito; fazendo prevalecer um espírito corporativista. Não é correto afirmar que não mais existe na Itália o problema do combate ao corporativismo. Este problema existe e só o partido, como órgão unitário da classe operária, pode resolvê-lo. Ao debater este problema, tivemos um exemplo singular do método que consiste em apresentar posições de esquerda como posições de direita. Disseram que não temos confiança no proletariado; ora, recordamos que este mesmo argumento era apresentado contra os revolucionários pelos reformistas. Hoje, como naqueles tempos da luta contra o reformismo, estamos contra o otimismo obreirista demagógico e o consideramos como um perigoso desvio. No que diz respeito à tática, isto é, à ação do partido em relação às situações, achamos que as formulações apresentadas pela central do partido são muito perigosas. Por exemplo, agora se diz que o partido deve ficar, “em qualquer situação”, em contato com as massas para exercer uma influência predominante sobre elas. Esta não é nem ao menos uma tese de Lênin. Lênin formulou a tese da conquista da maioria num período que era considerado como precedente a uma luta pela conquista do poder. Lênin opôs essa tese à da “ofensiva”, isto é, à tese segundo a qual seria possível ao partido comunista lutar pela conquista do poder mesmo sem ter sob seu controle uma parte decisiva das massas.

Aceitamos a tese de Lênin como ele a formulou, isto é, para o período que precede a conquista do poder, mas rejeitamos sua extensão para agora, e é o que se quer fazer, e consideramos até que esta extensão está a um passo do oportunismo. Ela contradiz, aliás, até mesmo a história do bolchevismo. Esta história que mostrou que há períodos em que é melhor ser poucos do que muitos. Esta divergência é considerada por nós como alarmante.

Sobre as questões internacionais, que colocamos deliberadamente em primeiro plano, afirmamos que existe uma crise na Internacional comunista. Esta crise se origina no fato de que nem sempre se seguiu um caminho correto na construção dos partidos comunistas. Temos nos esquecido de que, às vezes, não nos deve preocupar tanto o sucesso imediato quanto a conquista de posições estáveis, que não se perderão no futuro. Num primeiro período, a única preocupação foi aglutinar forças, sem se dar relevância se se tratava de forças autenticamente comunistas, e, em seguida, foi necessário iniciar uma série de depurações e todos os partidos tiveram que atravessar crises profundas. Este estado de coisas tem suas repercussões até na atual situação da Internacional.

Com o mesmo sistema resolveram-se questões de tática, isto é, não segundo uma linha clara, precisa e imutável, mas com um deplorável “ecletismo” que é justificado com o propósito de levar em conta as mudanças das situações objetivas. O exemplo mais evidente é o que diz respeito às relações entre o movimento político e o movimento sindical. Em um primeiro momento foram aceitas nas fileiras da Internacional comunista organizações que tinham caráter sindical, questionando-se menos, dessa forma, princípios fundamentais de organização (IWW, sindicalistas espanhóis, etc.). Depois foi fundada a Internacional sindical vermelha e se estruturou todo um plano de ação para fazer aderir a ela os movimentos sindicais de determinados países e, naturalmente, se sustentou que este era o único método justo. Mas no V Congresso e, o que é mais grave, sem nenhuma preparação e discussão adequada, uma terceira via foi adotada, a da luta pela unidade orgânica do movimento sindical internacional. É este método de aglutinação eclético e “pluralista”, dominado pela única preocupação do sucesso imediato, que nos levou ao insucesso. Contava-se ter tudo e, em vez disso, nada caminhou bem e hoje estamos mais fracos do que antes.

Esta colocação errada dos problemas políticos e de tática geral é acompanhada de uma falha fundamental no método de trabalho interno da Internacional. É errado o sistema que vem sendo adotado com a criação de direções de alguns partidos, e errado o sistema pelo qual são colocadas e dirigidas as discussões dos congressos mundiais. Aceitamos, neste campo, as críticas formuladas por Trotski ao método de trabalho da Internacional.

A crise existente na Internacional se quis superar com a tão discutível bolchevização. Repudiamos esta palavra de ordem na medida em que ela significa uma transposição artificial e mecânica aos partidos ocidentais dos métodos que eram próprios do partido russo.

Com a bolchevização, procura-se resolver questões políticas com fórmulas de caráter organizativo. Assim acontece, por exemplo, no que diz respeito ao fracionismo. Sobre este ponto há uma oposição direta entre a nossa posição e a da Central do nosso partido. A Central fez uma campanha contra o fracionismo que era uma perfeita e verdadeira campanha derrotista. Desta campanha, os operários foram levados a um unitarismo puro, o que é uma posição errada. A questão do fracionismo não é solucionável no terreno da organização e disciplina, mas somente no terreno político e histórico. Se a Internacional não for bem dirigida deverá seguramente advir o fracionismo, porque a origem dele está precisamente na inadequação da organização internacional para resolver os problemas históricos do proletariado no momento presente. Uma campanha contra o fracionismo conduzida com os sistemas adotados pela Central do nosso partido teria levado a consequências bastante graves se não tivesse havido entre nós o propósito de evitar todo perigo para o conjunto do partido.

Outro dos aspectos fundamentais da campanha de bolchevização é o que se refere à transformação da organização por célula. Somos contrários a fazer da organização por célula uma questão de princípio. Além disso, julgamos que, para os partidos não russos, a base da organização deve ser territorial e as células devem ser órgãos saídos do partido para o trabalho a se realizar nas oficinas. Quanto à tática, mantemos as nossas velhas críticas à palavra de ordem da frente única e do governo operário. E a este argumento acrescentamos novas críticas às novas posições táticas, das quais vimos os primeiros exemplos na tática seguida pela Central italiana com relação a Aventino, na tática aconselhada ao partido alemão nas eleições presidenciais e na tática seguida pelo partido francês nas eleições municipais (Clichy). Estas novas posições táticas estão sendo avaliadas dentro de uma situação objetiva. É importante que se saiba que nós estamos fundamentalmente de acordo com esta avaliação (estabilização temporária do capitalismo), mas o que nos alarma são as deduções táticas e políticas que dela se quer tirar. Achamos que, mesmo neste período, devemos fazer uma política revolucionária. Ao contrário, por parte da corrente que prevalece na Internacional e em nosso partido, a determinação da política do partido neste período se dá na dependência de um contraste artificial e não marxista entre duas frações da burguesia. Supervaloriza-se o dualismo entre a direita e a esquerda burguesa. Apresenta-se o fantasma de uma parte da burguesia, que estaria querendo destruir os progressos alcançados durante estes dez anos passados, para concluir que à classe operária cabia manobrar para manter estes progressos. Achamos que um erro feito nesta direção é mais grave que um erro na direção oposta, isto é, na direção de desvalorizar os contrastes entre as diversas frações da burguesia.

O erro de vocês é exatamente o de supervalorizar o perigo da vitória de um grupo burguês de direita. A vitória do fascismo só foi possível pela política de concessões no movimento operário realizada pela burguesia de esquerda durante o período democrático. Estas concessões serviram para evitar que se formasse uma unidade operária. A liberdade de mobilização do proletariado no período democrático era, portanto, uma condição contra-revolucionária e nós devemos impedir que se volte a esta mesma situação, combatendo, desde já, a ilusão de que existe uma burguesia de esquerda. Vocês não contribuíram para destruir esta ilusão e deixaram que o proletariado caísse sob a influência de outras classes.

É verdade que o partido não pode limitar-se a fazer somente proselitismo, como não pode limitar-se a guiar ações parciais. Isto deve, porém, colocar hoje o problema do amanhã, precavendo-se contra as influências contra-revolucionárias das duas políticas da burguesia. Por isso, a tática de vocês contra Aventino foi fundamentalmente errada. Na proposta do Antiparlamento, vocês apresentaram o problema da liberdade e etc., como um problema prejudicial; isto é; vocês aceitaram o terreno das oposições. Isto significou prejudicar nossa situação, até mesmo diante de um eventual desenvolvimento revolucionário. Pensamos, na verdade, que, até mesmo se as oposições tivessem se engajado na luta contra o fascismo, teríamos podido intervir utilmente nessa luta e voltá-la para as nossas finalidades, mas somente se a massa nunca tivesse visto um único ponto de contato entre nós e as oposições. Qualquer contato ou semelhança entre nós e as oposições contribuía, na verdade, para manter os operários sob a influência delas.

Quanto ao que se refere às tradições do partido, a esquerda se julga representar a tradição e a continuidade da luta contra os desvios oportunistas e contra o centrismo.

Não acreditamos que se possam fazer propostas de ação nem resolver os problemas do partido italiano se em primeiro lugar não forem resolvidas as questões no plano internacional. O problema fundamental para nós é o da Internacional comunista. Para resolver este problema, é absolutamente inadequado o método de teorizar experiências do Partido comunista russo. Ao contrário, nossa opinião é que as próprias questões do Partido Comunista russo não podem hoje serem resolvidas senão com base nos elementos colhidos da experiência da luta de classe, na forma em que ela se desenvolve nos outros países. Teve-se uma confirmação da exatidão desta opinião na recente discussão que se desenvolveu no partido russo. Temos, sobre esta discussão, informações mínimas, mas é certo que ela levanta problemas que estão ligados a toda a situação internacional e por isso nos espantamos quando lemos a carta do Partido Comunista russo na qual se exprime o desejo de que os problemas recentemente discutidos no congresso russo não sejam objeto de discussão em outros partidos. Fora este fato, o modo como se desenvolveu a recente discussão demonstra que aquela plataforma que se queria fazer crer apropriada para a resolução de todos os problemas que se apresentam aos diversos partidos no atual período histórico (o leninismo) é uma plataforma muito instável na medida em que, embora voltando-se para ela, podem se dar oscilações tão profundas como as que apareceram na discussão russa.

Em conclusão, julgamos que o único modo de resolver a nossa crise e a da Internacional é iniciar uma séria e exaustiva discussão sobre os problemas da própria Internacional.


Inclusão: 04/08/2023