Dialética ou Ecletismo?

Notas polêmicas sobre a “compreensão” e “aplicação” maoísta da dialética

Evald Vasilyevich Ilyenkov

Julho de 1968


Primeira publicação: Диалектика Или Эклектика? (Полемические Заметки о Маоистском “Понимании” и “Применении” Диалектики), revista Questões da Filosofia (Вопросы философии), nº. 7, 1968, págs 40-49.
Tradução: Thales Caramante – Jornal A Verdade.
HTML: Lucas Schweppenstette.

Um diagnóstico completo de uma doença chamada maoísmo não é algo fácil. Não podemos subsumir nosso diagnostico apenas a um ou outro fenômeno — seja o “culto à personalidade” ou a “distorção militar-burocrática do comunismo”, “pragmatismo” ou o “dogmatismo”, “a prática metafisica do pensamento” ou a “sofistica”, “ecletismo” ou “dualismo”.

Em primeiro lugar, é necessário fazer uma profunda análise do maoísmo do ponto de vista das condições e causas que lhe deram origem, tanto das condições objetivas e subjetivas, ou, evidentemente, não excluí de forma alguma a crítica mais severa, tanto em essência e na forma, correspondendo aos danos que o maoísmo causa ao movimento comunista internacional, desacreditando, tanto moral quanto politicamente, os mais elevados ideais humanistas do nosso movimento e da nossa teoria. Tentaremos considerar aqui apenas alguns aspectos deste grande e complexo problema — a relação do maoísmo com a dialética materialista.

Vale a pena, ao menos, uma leitura rápida das obras filosóficas de Mao Zedong para nos convencermos de que, por mais que se tente, é impossível detectar nelas qualquer base de apoio à secular tradição marxista e aos mecanismos do pensamento social mais avançado. A tradição marxista é aqui apresentada na forma de um reduzido e minúsculo número de citações dos clássicos do marxismo-leninismo, e a raiz do pensamento social avançado é representado por uma série de ditos, provérbios e parábolas conhecidas por cada habitante da China.

É conveniente, naturalmente, considerar os seguintes artigos de Mao Zedong em questão — Sobre a Prática e Sobre a Contradição — em essência, (e devemos assumir, de acordo com a intenção original), obras de propaganda popular destinadas a um leitor com pouca formação. E se abordarmos com um olhar padronizado, veremos que não há sentido em fazer sérias sanções contra eles.

As coisas ficam mais sérias, no entanto, tomam rumos completamente diferentes quando estes artigos são considerados “os mais altos picos” no desenvolvimento do pensamento filosófico mundial, quando são considerados o topo acima do qual qualquer pensamento filosófico não tem mais o direito de subir, quando começam a transformá-los artificialmente em norma, no ideal e no limite do desenvolvimento do “pensamento marxista-leninista”.

A citação seguinte pertence a um dos exemplos da obra de Mao Zedong e representa algo novo que ele introduz à teoria dialética: “Por que um ovo com segue transformar-se em uma galinha, mas uma pedra não pode transformar-se em uma galinha? Por que existe uma relação entre guerra e paz, mas não existe a mesma relação entre a guerra e uma pedra? Por que uma pessoa pode dar à luz apenas a um ser humano e não a outra coisa?”

Realmente, por que? Este é uma das questões agudas e complexas que deixaria qualquer um perplexo, menos Mao Zedong. Ele resolve essa equação com duas frases: “A questão aqui demonstra, nada mais e nada menos, que a unidade dos contrários só possível a partir de certas condições determinadas”(1).

Agora nós entendemos porquê um ovo pode virar uma galinha, mas uma pedra não? Assim, agora entendemos o poder heurístico da “dialética” como método para resolver questões mais complexas do nosso tempo? Segundo Mao, não é difícil dominar esta “dialética”. Seu esquema é simplista. Aqui está: “a unidade dos contrários só possível a partir de certas condições determinadas” (para maior compreensão, esta frase é repetida de uma forma ligeiramente modificada, “em certas condições determinadas, não poderá haver unidade”). Consequentemente, “uma pessoa só pode dar à luz a um ser humano e não a outra coisa”, mas entre uma pedra e uma pessoa “não” há unidade e não poderia haver, “um macaco só pode dar à luz a um macaco, e não outra coisa” etc. etc. e assim por diante. De quem nasceu o primeiro ser humano é uma questão diferente, não relacionada com esse tipo de “dialética”.

No pensamento de Mao e dos seus seguidores mais ortodoxos podemos facilmente detectar muito do “salto à frente” de uma situação extremamente geral para um caso particular. A arte de dar esses “saltos à frente” sem se preocupar nem com o estudo de casos particular e nem com a preocupação com a sequência do salto de uma frase geral para um problema complexo do nascimento de uma galinha a partir de um ovo é uma técnica que mais caracteriza esta escola. Nem mesmo requer lógica elementar aqui, ao que se recorre ao velho esquema de inferências forçadas do modo mais “bárbaro”.

Pode-se dizer que estamos criticando abruptamente um recorte aleatório dos pensamentos de Mao, que é verdadeiramente ridículo do ponto de vista da dialética e da lógica formal? Infelizmente não.

Não é esta mesma “lógica” em ação durante a “justificação teórica” de qualquer ação política do maoísmo? O mesmo esquema, por exemplo, foi usado como necessário para comprovar a tese sobre a necessidade de dividir o movimento comunista internacional. O esquema em tese é o seguinte: qualquer processo da natureza, da sociedade e do pensamento se desenvolve através da “divisão do um em dois”. Sem bifurcação do todo, nenhum processo poderá ser realizado. Consequentemente, é necessário “bifurcar” a unidade do movimento comunista internacional, vendo nisso o triunfo da dialética.

Seria uma blasfêmia refutar a “dialética” acima, comparando-a com exemplos de uma dialética genuína. Isto seria, no mínimo, um sinal de desrespeito pelos últimos.

Contudo, algumas comparações ainda precisam ser feitas. Falando das vantagens da “dialética” em comparação com o pensamento filosófico do período pré-marxista, o próprio Mao Zedong e os seus discípulos não poupam tinta preta para retratar o “modo metafísico de pensar” dos materialistas dos séculos 17 e 18. Os materialistas destes séculos, na sua representação, parecem tão estúpidos que qualquer Zaofan, depois de ler sobre eles nas obras de Mao, imediatamente começam a se sentir como um pensador muito superior à Espinoza, Plekhanov e outras “pessoas confusas importadas da Europa”.

Assim, no livro Materialismo Dialético, publicado em Pequim, de um pessoal “altamente qualificado” (conforme explicado na primeira página), lemos: “Os materialistas pré-marxistas dos séculos 17 e 18 atribuíram o movimento universal da matéria caíram em Hilozoísmo. Plekhanov cometeu o mesmo erro, afirmando que até uma pedra tem pensamento”.

Como sabemos, não há fumaça sem fogo. Sentimos o cheiro da fumaça. E o fogo está no fato de Plekhanov realmente apreciar, em particular, a posição materialista de Denis Diderot, ao qual defendeu o materialismo em uma disputa com o matemático idealista D’Alembert:

D’Alembert: Afinal, se a sensibilidade que você confere à matéria é sua propriedade geral e essencial, então devemos supor que a pedra também sente?

Diderot: Por que não?

“Você assimila os objetos, faz deles seu corpo, anima-os, torna-os sensíveis, e o que você faz com os objetos, eu farei, quando for conveniente, com o mármore”(2); com essa mesma “pedra”, que, de acordo com a dialética de Mao Zedong, não pode nem mesmo se tornar uma galinha. Isso é o que o espinozista Diderot quisera dizer com seu “Por que não?”.

Este é o próprio “por que não?” e, aparentemente, deu aos autores do livro de Pequim uma razão para acusar Espinoza, Diderot e Plekhanov do erro infantil do Hilozoísmo. Eles não leram profundamente, muito menos fizeram questão de entender a essência da disputa.

Deixamos ao leitor o julgar onde há mais dialética real — na posição de Espinoza e Diderot ou no raciocínio de Mao e seus discípulos, que, duzentos anos depois, repetiram o mesmo argumento de D’Alembert contra esta posição, isto é, eles tomaram o lado do idealista na disputa entre materialismo e idealismo.

Interpretando, desta forma, a história do pensamento dialético, os maoístas não agem de forma alguma além do interesse individualista, nascido do desejo de retratar o estilo do pensamento de Mao Zedong a todo custo, como o auge do desenvolvimento da cultura mundial e do pensamento marxista. O objetivo de tais táticas — claro, não ditas abertamente — continua a ser um: criam um pano de fundo tal para as declarações de Mao, que qualquer banalidade formulada pelo “grande timoneiro” parece ser a mais profunda revelação. Deve-se presumir que o próprio Mao, sob influência dos elogios mais inebriantes, se sente o maior sábio, escrevendo recomendações filosóficas como as seguintes: “pelo fato de o particular estar ligado ao universal, pelo fato de cada fenômeno ser inerente não apenas àquilo que está em contradição com o particular, mas é aquilo que é universal nele, o universal existe no particular. Portanto, ao estudar um determinado fenômeno, é necessário revelar ambos os lados e suas conexões mútuas, para revelar aquele particular e aquele universal, que é inteiramente inerente a esse fenômeno, e a conexão mútua entre eles, para revelar a conexão mútua deste fenômeno com muitos outros fenômenos exteriores a ele etc.”(3) e assim por diante.

É claro que só um leitor muito pouco exigente pode aceitar estes argumentos, deprimentes pela pobreza na exposição do léxico, pela repetição incômoda das mesmas palavras e pelo tom didático presunçoso, com a “melhor e mais engenhosa apresentação” da dialética.

Mao Zedong compreendeu firmemente a lógica segundo a qual nenhum fenômeno pode ser compreendido sem ligação mútua, porque qualquer fenômeno só pode ser compreendido em sua interdependência. Tem a vantagem de ser absolutamente irrefutável, pois inclui apenas “verdades absolutas” — verdades que podem ser decoradas e depois citadas e recitadas com reverência — solitário ou em coral. É nessas “verdades absolutas” que consiste toda a bobagem teórica da “dialética” de Mao, transformada em padrão e picos da sabedoria por seus zelosos adeptos. A “aplicação” da dialética assim entendida à prática consiste simplesmente no fato de que as “fórmulas dialéticas” são citadas e recitadas em todas as ocasiões e sem motivo — tanto ao nadar na piscina, quanto na venda de melancias, e, para justificar o vandalismo e as palhaçadas dos Zaofans etc.

Neste uso, a dialética acaba por se transformar simplesmente em uma técnica de demagogia política — na “linguagem” desta demagogia, concebida para pessoas que respeitam a linguagem da ciência marxista-leninista. Esta é a principal característica da perversão maoísta da dialética, nomeadamente, que as ações políticas arbitrárias e injustificadas de Mao são carimbadas com disposições pedantemente citadas com precisão dos clássicos da filosofia materialista: a política cismática no movimento comunista internacional — a tese da “bifurcação do um em dois”, as atrocidades da Guarda Vermelha — a tese de “traduzir uma ideia em realidade”, sobre “transformar o ideal em real” e assim por diante.

Este tratamento da dialética, que por vezes se assemelha a uma piada sem graça, pode trazer momentos de muita felicidade aos inimigos da filosofia marxista-leninista, que retiram lucros consideráveis deste desempenho. Isto seria verdadeiramente engraçado se não causasse danos tão enormes à reputação da filosofia materialista que o mais perverso e venenoso malfeitor não poderia afligir-lhe.

É precisamente essa circunstância que obriga a todos os marxistas a pensar seriamente sobe a essência da questão, a fim de traçar uma linha de demarcação clara entre a dialética materialista real e o pensamento praticado pelos maoístas.

Seria não apenas infrutífero, mas, pior ainda, seria um erro traçar essa linha de demarcação verificando as formulações da dialética materialista com suas traduções chinesas, ou seja, discernir nas obras de Mao Zedong e seus discípulos teóricos as “alterações” e “deformações” desta ou daquela tese universalmente admitida entre os marxistas, seria totalmente estéril ou, pior ainda, seria como passar a linha de chegada fazendo acrobacias. Nesse sentido — no plano da exposição — os maoístas se esforçam para ser infalivelmente ortodoxos. É claro que aqui eles se entregam a todos os tipos de imprecisões, algumas delas bastante grosseiras. Mas concentrar a atenção nessas imprecisões específicas e depois se envolver em uma discussão escolástica sobre essas imprecisões só estaria fazendo um favor aos maoístas ao desviar a atenção da principal deformação em seu pensamento.

E a principal distorção consiste justamente no fato de que eles transformam, precisamente, aquelas teses da dialética, que são em si mesmas totalmente justas e inquestionáveis, em um cadáver, em dogmas ritualísticos e religiosos. Quanto mais barulho é feito sobre a letra, sobre o esboço hieroglífico das teses gerais e extremamente abstratas da filosofia, mais absurdas e arbitrárias são as ações políticas concretas que são “filosoficamente justificadas” com a ajuda dessas teses gerais.

A esse respeito, o barulhento e longo debate em torno do “núcleo dialético”, em torno da compreensão do problema da contradição, em torno do problema da unidade e da luta dos contrários, que eclodiu (ou melhor, foi artificialmente provocado por sugestão de Mao) justamente quando era necessário “fundamentar filosoficamente” a política faccionalista nas fileiras do movimento comunista e operário internacional, sua linha abertamente antissoviética, pode servir como um exemplo suficientemente palpável e instrutivo.

Em seu conteúdo teórico, essa discussão nos faz lembrar tão vividamente da famosa disputa entre os “cabeças pontudas” e os “cabeças redondas” que basta simplesmente expor seu curso, sem acrescentar ou subtrair nada, para que essa triste semelhança se torne óbvia para a pessoa mais ou menos sã. Tão óbvio se tornará o sentido político direto, ou mais precisamente, o sentido de tais discussões em sua realização.

Como esse debate começou e se desenvolveu? Foi assim que começou. Dois filósofos comuns escreveram um artigo bastante adaptado ao padrão de popularização sobre “a unidade e a luta dos contrários” e ele foi publicado no jornal Guangming Ribao.

No artigo, de forma óbvia e popular, no estilo das obras de Mao Zedong e com uma infinidade de citações de “do mesmo - do mesmo - do mesmo”, é explicado que todas as coisas e fenômenos entre o céu e a terra incluem em si “contradições”, “contrários em unidade”, e que, portanto, é necessário que esses contrários, unidos em um, sejam revelados com o método de “um se divide em dois”, a fim de compreender cada um deles separadamente e sua conexão entre si; os autores dizem para que e por que é necessário “estudar concretamente seus lados contrários (coisas e fenômenos), sua contradição interna”, aprendendo essa arte com Mao Zedong, lendo e relendo suas obras. Somente nos “exemplos” que confirmam a justeza “das ideias de Mao Zedong”, os autores do artigo podem se permitir o prazer da criatividade. Que tipo de discussão pareceria começar com um artigo tão bem-intencionado?

Mesmo assim, o debate começou. Começou, como sempre, pequeno. Algum tempo depois, outro filósofo popular chamado Xiang Qing publicou seu artigo no mesmo jornal. Ele intitulou seu contra artigo de forma polêmica e contundente: “A conexão de dois em um não é dialética!”.

Calibrado no estilo popular e expositivo de Sobre a Contradição, ele explica que a “a divisão do um em dois é uma lei universal do mundo objetivo, e não apenas a lei geral do conhecimento” e que, portanto “o conceito da unidade de dois princípios, pregados por Ai Hengwu e Lin Xingshan contradiz fundamentalmente a dialética marxista-leninista”, pois “prega a metafísica e distorce a linha política do PCCh e joga água no moinho dos americanos e dos soviéticos”.

Aqui, uma série de respostas foi organizada para a discussão que surgiu. Os filósofos chineses, ao que parece, não entenderam a princípio o que se queria deles e não conseguiram perceber a profundidade e a importância fundamental dessas discrepâncias que surgiram de repente. O fogo da discussão claramente tendeu a se extinguir, pois no aspecto puramente teórico não havia nenhuma divergência séria. Então, eles colocaram parafina na ponta da vara seca.

O artigo sedicioso de Ai Hengwu e Lin Xingshan foi publicado nas páginas do Guangming Ribao (certamente, eles não teriam merecido essa honra de outra forma). No dia seguinte, a equipe editorial da revista Hongqi convocou uma conferência urgente de filósofos com a participação de quadros do PCCh, a fim de dar ao assunto a nitidez e a incandescência necessárias. Imediatamente, as paixões se inflamaram e o fogo da discussão se tornou de fato ameaçador.

E então ficou claro para aqueles que acenderam a fogueira quem seria assado nela. Era Yang Xianzhen, um homem que não tinha absolutamente nada a ver com a discussão que havia surgido. Antigo membro do partido, membro do Comitê Central do PCCh e dirigente do partido, ele, a julgar pelo que foi dito e escrito sobre ele, era culpado de pertencer à “quadrilha pérfida”, “aos poderosos” e “seguir a via capitalista”.

Descobriu-se em seus antigos trabalhos filosóficos que ele também, assim como Ai Hengwu e Lin Xingshan (e, como todos eles — eles seguiam Mao Zedong — o que, no caso em questão, é claro, não foi lembrado), usava a fórmula sacramental sobre “unir o dois em um”, mas a tese sobre “dividir o um em dois” ele interpretou principalmente como uma lei geral do conhecimento, embora, é claro, ele nunca tenha negado que essa lei do conhecimento é um reflexo de uma lei análoga do desenvolvimento da natureza e da sociedade. E então ficou bastante claro que a fórmula “unir o dois em um” não é simplesmente uma tese filosófica, mas a marca registrada de um partido falso, metafísico, idealista, revisionista e contrarrevolucionário em filosofia e política, liderado por Yang Xianzhen. E o fato de que o próprio Yang Xianzhen, ao mesmo tempo em que afirmava a tese de “unir o dois em um”, também falava e escrevia sobre “dividir o um em dois”, aparentemente é apenas um disfarce habilidoso...

E então não é difícil imaginar que caráter assumiu esta discussão “filosófica”, onde e em que trilhos ela deslizou.…

E a mente do leitor está muito imbuída da ideia de que o próprio Yang Xianzhen causou toda essa comoção, que “ele mesmo a inspirou secretamente” e que, embora nunca tenha se envolvido na discussão (o que mais uma vez mostra sua perfídia), foi ele o verdadeiro instigador. Ele deveria assumir total responsabilidade por isso. “Digne-se a responder!”

“O termo ‘dividir o um em dois’ expressa de forma extraordinariamente exata, vívida e alcançável o núcleo da dialética, enquanto o termo de Yang Xianzhen ‘unir o dois em um’ é, do começo ao fim, a sistematização da metafísica”(4).

E quanto ao fato de Yang Xianzhen ter copiado essa frase de uma obra “do mesmo - do mesmo - do mesmo”?

“Nós, chineses, estamos acostumados a dizer: ‘Coisas que se opõem umas às outras, se sustentam’. Em outras palavras, há identidade entre coisas que se opõem umas às outras. Esse ditado é dialético e contrário à metafísica. ‘Elas se opõem’ significa que os dois aspectos contraditórios se excluem ou lutam entre si. ‘Elas se sustentam’ significa que, sob certas condições, os dois aspectos contraditórios se interconectam e adquirem identidade”(5).

Mao Zedong pode e Yang Xianzhen não pode. Uma mesma frase denota dialética em Mao Zedong e metafísica em Yang Xianzhen. Acontece que o importante não é o que é dito. O importante é quem diz e por quê.

A lógica da “intensificação” da discussão é muito simples. Um certo filósofo A intervém com um artigo que populariza os artigos já super-populares de Mao. Na medida em que ele não apenas copia o artigo de Mao palavra por palavra, mas se esforça para relatá-lo em parte com “suas palavras”, encontramos imediatamente o filósofo B, que aponta em detalhes as “diferenças” que surgiram como resultado. Mas, na medida em que “toda diferença já implica uma contradição” (Mao Zedong), não há nada mais fácil do que desmascarar o imprudente filósofo A como propaganda de teses que “contradizem” as brilhantes ideias de Mao Zedong. Aqui encontramos o filósofo C, que acha que a crítica de B à A “não foi suficientemente profunda” e, por esse pecado, ele deve sofrer as críticas mais severas e ser punido da maneira mais rigorosa. Mas, ao mesmo tempo, o filósofo D estuda detalhadamente as obras de C e descobre com alegria que estas, por sua vez, são impuras e culpadas também de tentar falar com “suas palavras”, e incapazes, portanto, de “desnudar até o fim os erros de B”, por conta do que seu artigo crítico contra A só contribui para a preservação da “essência mais nociva e profunda de sua concepção”.

Assim, a fronteira entre a verdade absoluta e a heresia mais absoluta é gradualmente deslocada cada vez mais para baixo no alfabeto, até que em um lado da linha resta apenas um único Z; Z com “do mesmo - do mesmo - do mesmo”, e todas as outras letras que não estão “desse lado” da linha estão na categoria de revisionistas, cujos pontos de vista “diferem” da escrita de referência de Z e, portanto, “contradizem”.

Todo esse trabalho “investigativo” tem o objetivo de provar que ninguém no mundo entende e pode entender a dialética, exceto Mao Zedong, e, portanto, todos os filósofos — se não quiserem cair no pecado do revisionismo — devem simplesmente, sem muita divagação, declamar de memória as palavras do “grande timoneiro”, sem mudar nelas nem vírgulas nem acentos. Não é preciso dizer que um filósofo que atende a esses critérios é muito mais parecido com um gramofone do que com uma pessoa viva dotada de sua própria razão.

O propósito propagandístico da discussão que descrevemos é inequivocamente transparente. Seu objetivo não é, obviamente, a elucidação da lei da unidade e da luta dos contrários. O objetivo é um só: organizar a logomaquia retumbante de modo que os cérebros de todos sejam povoados e impressos com a presciência de que “dividir o um em dois” é a verdade absoluta, que explica tudo repetidamente, que não está sujeito a nenhuma deliberação e compreensão, tudo o mais é gritaria desnecessária, palavreado, sob o qual o maldito revisionista deseja enterrar o principal da própria dialética: seu “núcleo”.

É natural que, em tal concepção, a “dialética” se torne algo como um machado, que só serve para dividir (“dividir em dois”) tudo o que cai em seu alcance de um só golpe. Movimento comunista e operário internacional? Divida-o! Frente de luta contra a agressão imperialista no Vietnã? Dividam-na! Dividam-no em dois e desunam tudo que inclua até mesmo a menor “diferença” em sua composição, levando essa “diferença” à “contradição” e a “contradição” ao “antagonismo”. Ao meio, a partir da metade, e cada metade mais uma vez pela metade: cada metade conhecida até que não reste um tronco no universo; então a fogueira para a revolução mundial arderá!

Tudo isso é sabedoria dialética maoísta. Nada é necessário além do “parafuso inoxidável de Mao Zedong”. Todo o resto é ferrugem, o engano pérfido dos revisionistas... Essas são precisamente as conclusões teóricas da discussão que descrevemos.

À luz dos eventos políticos que se desenrolaram na China logo após a surra “teórica”, a versão maoísta da “dialética” em todo o seu primitivismo grosseiro veio à tona. Essa é a “filosofia” degradada ao nível da consciência iconoclasta, ou seja, exposta e interpretada de acordo com esse nível extremamente baixo de cultura intelectual.

A fórmula sobre “dividir o um em dois” é tão apreciada pelos maoístas que a tese de “unir o dois em um” já lhes parece um revisionismo desenfreado, e os filósofos, que antes tinham a imprudência de falar e escrever sobre “identidade”, sobre a “unidade dos contrários”, agora cospem e são forçados a cuspir em si mesmos (esse procedimento, por alguma razão, ainda é chamado de “crítica” e “autocrítica”).

As declarações em voz alta sobre as bênçãos da “divisão do um em dois” são lucrativas para os maoístas, quando se trata do movimento comunista internacional, das discrepâncias e contradições em suas fileiras. Naturalmente, não há necessidade de argumentar contra isso. Elas são de fato muito vantajosas. A questão é apenas: para quem?

As fórmulas gerais da dialética, que são apenas isso, fórmulas gerais, não falam sobre esse cálculo. E é apenas o arbítrio de Mao que decide precisamente qual dessas fórmulas gerais abstratas deve ser lembrada e “aplicada” no caso em questão, ou seja, simplesmente pendurá-la como um rótulo no fato, no evento, no empreendimento político do dia. Parece que “do mesmo - do mesmo - do mesmo”, que no caso em questão é oportuno e vantajoso declamar sobre “dividir um em dois”, que eles expõem. Parece-lhes que isso é desvantajoso em outro caso, e eles recitam a fórmula diretamente oposta. Boa dialética! Em vez disso, esse método de pensamento deveria ser chamado por seu próprio nome: pensamento dualista.

E, no interesse do marxismo-leninismo genuíno e do internacionalismo proletário genuíno, o método maoísta de pensar deve, a partir de agora, ser designado por esse nome para não empobrecer o bom termo “dialética”.

A terminologia dialética aqui não é nada mais do que um jargão usado para expressar egoísmos nacionalistas e de grupelhos, que são absolutamente acríticos em relação a si mesmos, e é por isso que eles impedem a consideração objetiva da realidade. De que dialética se pode falar em geral nesse caso? Certamente, a “linguagem da dialética”, da dialética genuína, que se baseia nas tradições seculares do pensamento filosófico de Zenão e Aristóteles, Descartes e Espinoza, Kant e Hegel, Marx e Lênin, é mal adaptada a esse uso, e é por isso que todas as inconsistências e incongruências que causam tantos problemas terríveis para os guardiões da “pureza” (quero dizer, esterilidade) do pensamento teórico de fato surgem.

Isso explica o ridículo pedantismo com que os ecléticos profissionais chineses são obrigados a se relacionar com a letra, com o aspecto formalmente verbal do pensamento, ou seja, com o lado puramente hieroglífico da questão.

Assim, por muitos anos, nas páginas de dezenas de revistas e jornais, os filósofos chineses foram forçados a conduzir um debate interminável e, em essência, completamente sem propósito sobre a chamada identidade do pensamento e do ser. O debate se resumiu ao seguinte: o marxista pode ou não usar essa expressão no sentido em que Friedrich Engels a usou, ou seja, como uma fórmula que expressa uma solução positiva para o “segundo aspecto do pensamento e do ser”, ou seja, “segundo aspecto da questão básica da filosofia”?

A partir da essência da questão, é claro, não havia e não poderia haver discussão aqui. Ambos os lados partiram do pressuposto de que a matéria é primária e o pensamento é secundário, que a consciência é a forma mais elevada de reflexão do ser, que o mundo externo é cognoscível, etc., etc., etc. A discussão era apenas sobre a admissibilidade ou inadmissibilidade de se desenhar o hieróglifo, equivalente à palavra russa tozhdetvo e à latina identitatem, onde se trata de concordância, de correspondência, da convergência do conhecimento com as coisas. Os filósofos lutaram com tanta fúria, como se não houvesse mais problemas sérios e vitais no mundo.

Não se sabe por quanto tempo essa discussão sedutora teria se arrastado se um belo dia a “estrela vermelha” do gênio de Mao Zedong não tivesse surgido no campo de batalha. Seu artigo popular regular sobre a transformação do “material” em “ideal” e vice-versa foi publicado, no qual, enquanto discutia a transformação dialética desses “contrários”, Mao Zedong escreveu com sua própria mão o hieróglifo da “identidade”.

E a discussão foi subitamente interrompida. Ficou claro que, a partir de então, falar sobre a “identidade dialética” do ideal e do real, ou seja, do pensamento e do ser, não era apenas permitido, mas obrigatório. Daquele dia em diante, todos começaram a falar e a escrever sobre a “identidade” do pensamento e do ser, e não apenas em trabalhos sobre o tema da cognoscibilidade do mundo, mas em todas as ocasiões e, antes de tudo, em conexão com a recém-lançada campanha para a realização do “Pensamento Mao Zedong”, para provar a sabedoria do pensamento de Mao Zedong, que é sempre infalível e totalmente “idêntico” ao ser.

E, acima de tudo, ele começou a se preocupar com a “identidade”, ou seja, com a “transformação de ideias em realidade”, quando iniciou a insana “revolução cultural”.

As teses gerais da dialética são citadas e declamadas de maneira completamente autoritária e, em todas as ocasiões, equivocada. Elas são aplicadas simplesmente como simples frases de efeito aos empreendimentos de Mao que são inventados de uma maneira totalmente alheia à dialética, à teoria marxista-leninista, a qualquer análise teórica concreta da realidade contemporânea e de suas contradições reais.

A dialética materialista genuína é, antes de tudo, o método de investigação crítico-revolucionária científica-objetiva tanto da realidade quanto daqueles conceitos, com a ajuda dos quais a realidade é refletida na consciência.

Na consciência dos maoístas, “funciona” uma lógica completamente diferente. Para seus “conceitos”, aqueles com os quais seu pensamento opera, os teóricos do comunismo maoísta-soviético não demonstram a menor crítica. “Críticas” (ou, mais precisamente, cusparadas) somente aqueles que pensam de forma diferente têm de sofrer. Mas o pensamento, não crítico de si mesmo, é organicamente incapaz de ser dialético com o mundo ao seu redor, pois a egolatria inevitavelmente leva a pessoa afetada por ela a ver apenas a si mesma no mundo ao seu redor. Ela mede tudo de acordo com seu próprio critério limitado. Para ele, o mundo inteiro se torna um espelho que reflete seu próprio rosto, que ele admira devotamente, como Narciso. Mas tudo o que tem pouca semelhança com sua própria fisionomia, com seu pensamento limitado, ele imediatamente avalia como uma distorção deliberada desse “belo protótipo”, como “revisionismo”.

Olhar para o mundo inteiro ao nosso redor “apenas como o objeto de sua própria atividade”, não reconhecer nenhum direito à sua própria dialética, nenhum direito ao autodesenvolvimento, e valorizar a si mesmo como o único “sujeito da atividade revolucionária” adequada, é encontrar-se sob o poder de uma ilusão muito perigosa e pérfida. Essa ilusão é, como Karl Marx mostrou há muito tempo, a dos burocratas profissionais. O pensamento burocrático é, na realidade, incompatível com a dialética, como o gênio com o mal, como o culto religioso em todas as suas variantes — incluindo o secular — com a genuína revolução proletária.

A filosofia materialista é, por sua vez, absolutamente incompatível com Deus, com o culto e, portanto, com o pensamento dos sacerdotes do culto, qualquer que seja o nome que sua divindade suprema possa ter. Ou ela destrói esse culto ou arruína a si mesma, degenerando em um método de apologia de todos os absurdos e disparates com os quais todo culto está orgânica e inseparavelmente ligado, em virtude da própria natureza desse fenômeno.

O zelo da camarilha de Mao Zedong transforma a dialética em uma caricatura, no sofisma do pensamento dualista. E então se torna uma farsa quando as teses dialéticas são citadas a torto e a direito, quando começam a “aplicá-las” ao problema do comércio de melancias, aos cabeleireiros, ao tratamento de surdos, ao uso de contraceptivos e a tudo o mais.

Aqui a tragédia é transformada em uma comédia não muito engraçada.

Sobre o conteúdo teórico da “dialética” do maoismo, é duvidoso que possamos nos aprofundar mais.

As discussões “filosóficas” que desvendamos há muito tempo ficaram em segundo plano. Elas serviram ao seu propósito. Elas foram seguidas pela “realização de ideias”, que tomou a forma da tragédia do povo chinês, que foi chamada de “Grande Revolução Cultural Proletária”.


Notas de rodapé:

(1) Mao Zedong: Sobre a Contradição (retornar ao texto)

(2) Denis Diderot: Diálogo entre D'Alembert e Diderot (1769) – De Diderot, Intérprete da Natureza, traduzido por Jean Stewart e Jonathan Kemp – International Publishers; Nova York, 1943. (retornar ao texto)

(3) Mao Zedong: Sobre a Contradição (retornar ao texto)

(4) Hongqi, número 16, 1964. (retornar ao texto)

(5) Mao Zedong: Sobre a Contradição. (retornar ao texto)

Inclusão: 24/11/2023