Porque Crê em Deus a Burguesia

Paul Lafargue

V — Causas da irreligião do proletariado


As numerosas tentativas realizadas na Europa e América para cristianizar o proletariado industrial, têm fracassado completamente: — não tem bastado afastá-lo da sua indiferença religiosa, que se generaliza à medida que a produção mecânica realiza novos recrutamentos de aldeões, de artistas e de pequenos burgueses para o exército dos assalariados.

O processo mecânico de produção, que engendra a religiosidade no burguês, cria, pelo contrário, a irreligiosidade no proletariado.

Se é lógico que o burguês creia numa providência atenta às suas necessidades e num Deus que o elege entre milhares e milhares de homens para ornar de riquezas a sua pureza e a sua inutilidade social, é mais justo ainda que o proletário desconheça a existência de uma providência divina, pois sabe que nenhum pai celestial lhe proporcionaria o pão cotidiano se o pedisse de manhã até á noite e que o salário que lhe proporciona as primeiras necessidades da vida o tem ganho com o seu trabalho, pois demasiadamente sabe que, se não trabalhasse, morreria de fome, apesar de todos os bons deuses do céu e de todos os filantropos da terra. O assalariado é a providência de si mesmo. As suas condições de vida tornam impossível a concepção de outra providência. Não existe na sua vida, como na do burguês, esses rasgos de fortuna que poderiam, por mágico acaso, tirá-lo da sua triste situação. Assalariado nasceu, assalariado vive e assalariado morre. A sua ambição não pode ir mais além de um aumento de salário e de uma continuidade de salários durante todos os dias do ano e durante todos os anos da sua vida. Os azares e as fortunas imprevistas, que predispõem os burgueses à superstição, não existem para o proletariado e a ideia de Deus não pode aparecer no cérebro humano senão quando vá preparada e unida a ideias supersticiosas, não importa de que origem.

Se o operário se deixasse levar pela ideia de Deus, do qual ouve falar em sua volta sem prestar nenhuma atenção, começaria por discutir a sua justiça, que só o carrega de trabalho e de miséria; ter-lhe-ia horror e ódio e representa-lo-ia sob a forma e condição de um burguês explorador, como os escravos negros das colónias, os quais diziam que Deus era branco como os seus amos.

Certamente, o operário, assim como o capitalista e seus economistas, não se apercebe do desenvolvimento das ideias económicas nem se explica porque, com a mesma regularidade com que a noite sucede ao dia, os períodos de prosperidade industrial e de trabalho a alta pressão, são seguidos de crises e de falta de trabalho. Este desconhecimento, que predispõe o espírito do burguês à crença em Deus, não provoca o mesmo efeito no operário, porque ocupam posições distintas na produção moderna. A posse dos meios produtivos, dá ao burguês a direcção total da produção e obriga-o, por consequência, a preocupar-se, com as causas que influem nestas questões. Pelo contrário, o operário não tem direito a inquietar se por isso. O operário não participa nem da direcção da produção, nem da adopção e abastecimento das matérias primas, nem da forma de produzir, nem da circulação dos produtos: — êle só tem que proporcionar a fôrça de trabalho como uma besta de carga. A passiva obediência dos jesuítas, que subleva a verbosa indignação dos livre-pensadores, é a lei imposta na oficina.

O capitalista coloca o assalariado diante da máquina em movimento, abastecida de matéria prima e ordena-lhe que trabalhe: — o operário converte-se numa roda da máquina, não tendo, na produção, mais do que um objecto, o salário, o único interêsse que a burguesia se vê forçada a dar-lhe. Depois de ter recebido o salário, já nada mais tem que reclamar. Sendo o salário a única remuneração que aquela lhe permitiu conservar na produção, não deve preocupar-se com outra coisa que o ter trabalho para receber um salário. E como o patrão, ou os seus representantes, são os que proporcionam trabalho, é a eles, homens de carne e osso como êle, a quem culpa quando aquele falta, e não aos fenómenos económicos, que ignora; contra eles se irrita pelas reduções de salário e pela escassês de trabalho, e não contra as perturbações gerais da produção. A eles torna responsáveis de tudo que acontece, seja no que fôr. O assalariado personaliza os acidentes da produção que o afectam, enquanto que a posse dos meios de produção se despersonaliza à medida que êstes se mecanizam!

A vida que leva o operário da grande indústria, subtrái-o, mais ainda que ao burguês, às influências do meio natural, que mantém no aldeão a crença nas aparições, nas bruxas, nos maus olhados e noutras ideias supersticiosas. Não vê o sol senão através dos vidros da oficina e não conhece, da natureza, senão os campos que rodeiam a população em que trabalha, que visita em memoráveis ocasiões de folga.

Não saberia distinguir um campo de aveia dum campo de trigo, nem um de batatas de outro de cânhamo. Os produtos da terra só os conhece na forma em que os consome. Vive numa ignorância completa no que diz respeito ao trabalho dos campos e nas causas que influem no rendimento das colheitas. A séca, as chuvas torrenciais, o graniso, os furacões, etc, não o induziram nunca a pensar na sua acção sôbre a natureza das suas colheitas. A sua vida urbana põe-o a coberto das inquietações e das grandes preocupações que assaltam o espírito do cultivador. A natureza não preocupa a sua imaginação.

O trabalho da oficina mecânica põe o operário em relação com as terríveis forças naturais que o aldeão desconhece; em vez, porém, de ser dominado por elas, êle guia-as. O gigantesco mecanismo de ferro e aço do que constitúe a fábrica, que faz mover como um autómato, e que às vezes o colhe e mutila, em vez de provocar nele um terror supersticioso como o trovão — ao camponez, deixa-o impassível e impávido, pois sabe que os membros do monstro metálico foram fabricados e montados por camaradas e que uma simples correia basta para pô-lo em marcha ou detê-lo. Apesar-da sua potência e da sua milagrosa produção, a máquina não encerra para êle nenhum mistério.

O operário das fábricas produtoras de electricidade, que só tem que mover uma manivela sôbre um quadrante para mandar, a quilómetros de distancia, a força motriz para comboios ou iluminação duma população, só tem que dizer, como o Deus do Génesis:—«Faça-se a luz», para que esta seja feita. Jamais bruxaria tão fantástica havia sido concebida. Todavia, para o operário, esta bruxaria é coisa simples e natural, e ficaria sumamente surpreendido se alguém lhe dissesse que qualquer Deus poderia, se quizesse, deter as máquinas e extinguir a luz das lâmpadas quando se lhes abrisse a corrente; por fim teria que contestar que êste Deus anarquista seria simplesmente uma engrenagem gasta ou um fio condutor partido, e que seria fácil procurar e encontrar êste Deus perturbador.

A prática da oficina moderna ensina ao assalariado o determinismo científico, sem necessidade de passar pelo estudo teórico das ciências.

Como nem o burguês nem o proletário vivem no campo, os fenómenos naturais não podem provocar neles as ideias supersticiosas que foram utilizadas pelo selvagem para elaborar a ideia de Deus. Se um deles, porém, por pertencer à classe dominante e parasitária sofre a acção geradora das ideias supersticiosas dos fenómenos sociais, o outro, por fazer parte da classe explorada e produtora, acha-se subtraído à sua acção supersticiosa. A burguesia não poderá ser descristianizada nem afastada da crença em Deus enquanto não fôr expropriada da sua ditadura de classe e das riquezas que diariamente arrebata aos trabalhadores assalariados.

O estudo livre e imparcial da natureza, tem feito germinar e tem estabelecido firmemente em determinados meios científicos a convicção de que todos os seus fenómenos estão submetidos à lei de precisão e que deve procurar-se as suas causas determinantes na natureza e não fora dela. Este estudo tem permitido, além disso, o domínio das forças naturais para o uso do homem.

Porém, o emprego industrial das forças naturais tem transformado os meios de produção em organismos económicos tão gigantescos que escapam à investigação dos capitalistas que os monopolizam, conforme demonstram as crises económicas da indústria e do comércio.

Embora de criação humana, êstes organismos de produção, alteram, quando se produzem, o meio social, tão cegamente como as forças naturais alteram a natureza quando se desencadeiam. Os meios de produção moderna só podem ser assistidos pela sociedade, e para que esta intervenção possa estabelecer-se, devem converter-se, previamente, em propriedade social. Então, e só então, deixarão de provocar desigualdades sociais, de proporcionar as riquezas aos parasitas, de impor a miséria aos produtores assalariados e de criar as perturbações mundiais que o capitalista e os seus economistas não sabem atribuir senão ao acaso e a causas desconhecidas. Quando êstes meios de produção estiverem em poder da sociedade, terá desaparecido o desconhecimento da causa social. Então, e só então, será definitivamente eliminada da cabeça humana a ideia de Deus.

A indiferença em matéria religiosa dos operários modernos, cujas causas determinantes tratei de investigar, é um fenómeno novo, que se produz pela primeira vez na história. As massas populares teem elaborado sempre, até hoje, as ideias espiritualistas que os filósofos reduziram à quinta-essência e mistificaram, tal como as lendas e as ideias religiosas, que os curas e as classes dirigentes nada mais fizeram que organizá-las em religião oficial e em instrumentos de opressão intelectual.


Inclusão 09/02/2010