Sobre a cooperação

Vladimir Ilitch Lênin

4 e 6 de janeiro de 1923


Primeira edição: Publicado pela primeira vez nos dias 26 e 27 de maio de 1923 em Pravda, nº 115 e 116. Assinado: N. Lênin. V. I. Lênin, Obras, 4.ª ed. em russo, t. 33, págs. 427/435

Fonte: A aliança operário-camponesa, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, Edição anterior a 1966 - págs. 612-618

Tradução: Renato Guimarães, Fausto Cupertino Regina Maria Mello e Helga Hoffman de "La Alianza de la Clase Obrera y el Campesinado", publicado por Ediciones en Lenguas Extranjeiras, Moscou, 1957, que por sua vez foi traduzido da edição soviética em russo, preparada pelo Instituto de Marxismo-Leninismo adjunto ao CC do PCUS, Editorial Política do Estado, 1954. Capa e apresentação gráfica de Mauro Vinhas de Queiroz

HTML: Fernando Araújo.

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I

capa

Parece-me que não damos atenção suficiente à cooperação. É pouco provável que todos compreendam que agora, a partir da Revolução de Outubro e independentemente da Nep (pelo contrário, neste sentido se deveria dizer: precisamente graças à Nep), a cooperação adquire em nosso país uma importância verdadeiramente extraordinária. Nos sonhos dos velhos cooperativistas há muita fantasia. Amiúde são cômicos pelo seu caráter fantasioso. Mas em que consiste este caráter fantasioso? Em que essa gente não compreende a importância fundamental, essencial, da luta política da classe operária para derrubar o domínio dos exploradores. Agora já é um fato esta derrubada, e muito do que parecia fantástico, mesmo romântico e até vulgar nos sonhos dos velhos cooperativistas, converte-se em realidade sem artifícios.

Com efeito, sendo a classe operária dona do poder do Estado e pertencendo a este poder estatal todos os meios de produção, na realidade só nos resta a tarefa de organizar a população em cooperativas. Conseguindo a máxima organização dos trabalhadores em cooperativas, chega por si mesmo a seu objetivo aquele socialismo que antes provocava ironias justificadas, sorrisos e uma atitude de desprezo por parte dos que estavam convencidos, e com razão, da necessidade da luta de classe, da luta pelo poder político, etc. Pois bem; nem todos os camaradas percebem a importância gigantesca e incomensurável que adquire agora para nós a organização cooperativista na Rússia. Com a Nep fizemos uma concessão ao camponês em sua qualidade de comerciante, uma concessão ao princípio do comércio privado; precisamente disso emana (ao contrário do que pensam alguns) a gigantesca importância da cooperação. No fundo, tudo o que necessitamos é organizar em cooperativas a população russa em grau suficientemente amplo e profundo, durante a dominação da Nep, pois agora encontramos o grau de conjugação dos interesses privados, dos interesses comerciais privados, com os interesses gerais, os métodos de comprovação e de controle dos interesses privados pelo Estado, o grau de sua subordinação aos interesses gerais, o que antes constituiu obstáculo para muitos socialistas. Com efeito, todos os grandes meios de produção em poder do Estado e o poder do Estado em mãos do proletariado; a aliança deste proletariado com milhões e milhões de pequenos e muito pequenos camponeses; assegurar a direção dos camponeses pelo proletariado, etc. — acaso isto não é tudo que se necessita para edificar a sociedade socialista completa partindo da cooperação, e nada mais que da cooperação, que antes tratávamos de mercantilista e que agora, nas condições da Nep, merece também, de certo modo, o mesmo tratamento; acaso não é isto tudo o que é imprescindível para edificar a sociedade socialista completa? Isso não é ainda a edificação da sociedade socialista, mas é tudo o que é necessário e suficiente para esta edificação.

Pois bem, esta circunstância é subestimada por muitos de nossos militantes dedicados ao trabalho prático. Entre nós, sente-se menosprezo pelo cooperativismo, sem compreender a excepcional importância que tem, em primeiro lugar, do ponto-de-vista dos princípios (a propriedade dos meios de produção em mãos do Estado); em segundo lugar, do ponto-de-vista da passagem a uma nova ordem de coisas pelo caminho mais simples, fácil e acessível para o camponês.

É nisto, uma vez mais, está o essencial. Uma coisa é fantasiar sobre toda espécie de associações operarias para a construção do socialismo e outra é aprender na prática a construir esse socialismo, de tal modo que cada pequeno camponês possa colaborar nessa construção. A esse degrau chegamos agora. É é certo que, uma vez alcançado, o aproveitamos muito pouco.

Ao passar à Nep excedemo-nos, não no sentido de havermos dedicado lugar exagerado ao princípio da indústria e do comércio livres, mas no sentido de que nos esquecemos do cooperativismo, não o apreciamos agora o suficiente e começamos já a esquecer sua gigantesca importância, nos dois aspectos de sua significação acima indicados.

Proponho-me agora a conversar com o leitor sobre o que pode e deve ser feito praticamente no momento, partindo desse princípio «cooperativo». Com que recursos podemos e devemos hoje começar a desenvolver esse princípio «cooperativo», de modo que para todos e cada um seja evidente o seu significado socialista?

É necessário organizar politicamente o cooperativismo de modo que não só desfrute, em todos os casos, de certas vantagens, mas ainda que estas sejam de índole puramente material (o tipo de juro bancário, etc.). É necessário conceder à cooperação créditos do Estado que superem pelo menos um pouco os concedidos às empresas privadas, elevando-os inclusive ao nível dos créditos destinados à indústria pesada, etc.

Todo regime social surge exclusivamente com o apoio financeiro de uma classe determinada. É desnecessário recordar as centenas e centenas de milhões de rublos que custou o nascimento do «livre» capitalismo. Agora devemos compreender, para trabalhar de acordo com isso, que o regime social ao qual, no presente, devemos prestar um apoio excepcional é o regime cooperativo. Mas é preciso apoiá-lo no verdadeiro sentido da palavra, isto é, não basta entender por tal apoio a ajuda prestada a qualquer troca cooperativa, e sim, por tal apoio se deve entender aquele prestado a uma transformação cooperativa da qual participem efetivamente verdadeiras massas da população. Conceder um prêmio ao camponês que participe do intercâmbio cooperativo é, sem dúvida, uma forma acertada, mas, ao mesmo tempo, é preciso comprovar essa participação e averiguar até que ponto é consciente e valiosa; nisto reside o cerne da questão. Quando um cooperativista chega a uma aldeia e organiza ali um armazém cooperativo, a população, a rigor, não tem aí qualquer participação, mas, ao mesmo tempo, e guiada por seu próprio interesse, procurará participar o mais depressa possível.

Esta questão tem também outro aspecto. Resta-nos muito pouco por fazer, do ponto-de-vista de um europeu «civilizado» (antes de mais nada, que saiba ler e escrever), para que a população inteira participe, e não de maneira passiva, mas ativa, nas operações das cooperativas. Propriamente falando, falta-nos «apenas» uma coisa: elevar nossa população a tal grau de «civilização» que compreenda todas as vantagens da participação de todos nas cooperativas, e que organize esta participação. «Apenas» isso. Não necessitamos agora de nenhuma outra espécie de sabedoria para passar ao socialismo. Mas para realizar esse «apenas» é necessária toda uma revolução, toda uma etapa de desenvolvimento cultural da massa do povo. Por isso, nossa norma deve ser: a menor quantidade possível de especulações e a menor quantidade de artifícios. Neste sentido a Nep já representa um progresso, pois adapta-se ao nível do camponês mais comum e não lhe exige nada de superior. Mas para conseguir, por meio da Nep, que o conjunto da população tome parte nas cooperativas, é preciso toda uma fase histórica. Esta fase poderá ser atravessada, no melhor dos casos, em um ou dois decênios. Mas será uma fase histórica especial, e sem passar por ela, sem conseguir que todos saibam ler e escrever, sem um grau suficiente de compreensão, sem acostumar em grau suficiente a população à leitura de livros e sem uma base material para isso, sem certas garantias, digamos, contra as más colheitas, contra a fome, etc., sem isso, não podemos alcançar nosso objetivo. Toda a questão está agora em saber combinar esse impulso revolucionário, esse entusiasmo revolucionário, que já revelamos com suficiente amplidão e que coroamos com êxito completo, em saber combiná-lo (por assim dizer) com a habilidade de um mercador inteligente e instruído, o que é inteiramente suficiente para ser um bom cooperativista. Por habilidade de um mercador entendo a habilidade de ser um mercador culto. Que o lembrem bem os russos ou simplesmente os camponeses, que acreditam que porque comerciam já sabem ser comerciantes. Isto é completamente falso. Comerciam, mas daí a saber ser um comerciante culto há muita distância. Agora comerciam em estilo asiático, enquanto que para saber ser comerciante deve-se comerciar em estilo europeu. É disto os separa toda uma época.

Termino: é preciso conceder uma série de privilégios econômicos, financeiros e bancários à cooperação; nisto deve consistir o apoio prestado por nosso Estado socialista ao novo princípio de organização da população. Mas com isso o problema está apenas formulado em linhas gerais, posto que ainda permanece indeterminado e sem particularizar detalhadamente o aspecto prático do problema: isto é, é preciso saber encontrar a forma dos «prêmios» (e as condições para sua entrega) que concederemos pelo trabalho realizado em prol do cooperativismo, a forma dos «prêmios» que nos permita prestar uma ajuda suficiente às cooperativas e preparar cooperativistas cultos. Pois bem, quando os meios de produção pertencem à sociedade, quando é um fato o triunfo de classe do proletariado sobre a burguesia, o regime dos cooperativistas cultos é o regime socialista.

4 de janeiro de 1923

II

Sempre que escrevi algo sobre a nova política econômica, citei meu artigo de 1918 sobre o capitalismo de Estado. Isto, em mais de uma ocasião, despertou dúvidas entre alguns camaradas jovens. Mas suas dúvidas giravam sobretudo em torno de questões políticas abstratas.

Acreditavam que não se devia qualificar de capitalismo de Estado um regime em que os meios de produção pertencem à classe operária e em que esta é dona do poder estatal. Não obstante, não se davam conta de que utilizava o qualificativo de «capitalismo de Estado», em primeiro lugar, para estabelecer a ligação histórica de nossa posição atual com a posição adotada em minha polêmica contra os chamados comunistas de esquerda; e também demonstrei já então que o capitalismo de Estado seria superior à nossa economia de hoje; o importante para mim era estabelecer uma continuidade entre o capitalismo de Estado ordinário e o não ordinário, e mesmo extraordinário, ao qual me referi ao expor ao leitor a nova política econômica. Em segundo lugar, para mim sempre foi de grande importância o objetivo prático. É o objetivo prático de nossa nova política econômica consistia na obtenção de concessões; concessões que, sem dúvida alguma, em nossas condições, seriam já um tipo puro de capitalismo de Estado. Eis aqui em que sentido tratava da questão do capitalismo de Estado.

Mas existe além deste outro aspecto da questão, que nos levaria a necessitar do capitalismo de Estado ou, pelo menos, a traçar um paralelo com este. Trata-se da cooperação.

O cooperativismo, sem dúvida, representa, nas condições do Estado capitalista, uma instituição capitalista coletiva. Tampouco há dúvida de que, nas condições de nossa atual realidade econômica, quando unimos as empresas capitalistas privadas — mas apenas à base da terra socializada e sob o controle do poder do Estado, pertencente à classe operária —- com as empresas de tipo consequentemente socialista (quando tanto os meios de produção como o solo em que se acha situada a empresa, e toda esta em seu conjunto, pertencem ao Estado), surge a questão de um terceiro tipo de empresa, que anteriormente não era independente do ponto-de-vista da importância de seus princípios, ou seja: a empresa cooperativa. No capitalismo privado, as empresas cooperativas diferenciam-se das empresas capitalistas, assim como as empresas coletivas diferenciam-se das empresas privadas. No capitalismo de Estado, as empresas cooperativas diferenciam-se das capitalistas de Estado, em primeiro lugar, em que são empresas privadas, e, em segundo lugar, em que são empresas coletivas. Sob nosso regime atual, as empresas cooperativas diferenciam-se das empresas capitalistas privadas por serem empresas coletivas, mas não se diferenciam das empresas socialistas, sempre que estejam construídas em uma terra e empreguem meios de produção pertencentes ao Estado, isto é, à classe operária.

Esta circunstância não é suficientemente considerada por nós quando discutimos a cooperação. Esquece-se que o cooperativismo adquire em nosso país, devido à peculiaridade de nosso regime político, uma importância verdadeiramente excepcional. Se deixamos de lado as concessões, que, por certo, não alcançaram em nosso país um desenvolvimento importante, em nossas condições, a cada passo o cooperativismo coincide plenamente com o socialismo.

Explicarei minha ideia: Em que consiste o caráter fantasioso dos planos dos velhos cooperativistas, a começar por Robert Owen? Em que sonhavam com a transformação pacífica da sociedade moderna por meio do socialismo, sem levar em conta questões fundamentais como a luta de classe, a conquista do poder político pela classe operária, a derrubada da dominação da classe dos exploradores. É por isso, temos razão ao considerar esse socialismo «cooperativo» como uma pura fantasia, algo romântico e até vulgar por seus sonhos de transformar por meio do simples agrupamento da população em cooperativas, os inimigos de classe em colaboradores de classe, e a guerra de classes em paz de classes (a chamada paz civil).

Não há dúvida de que, do ponto-de-vista da tarefa fundamental da atualidade, nós tínhamos razão, já que sem luta de classes pelo poder político do Estado o socialismo não pode ser realizado.

Mas atentem para como mudou agora a questão, uma vez que o poder do Estado encontra-se em mãos da classe operária, uma vez que o poder político dos exploradores foi derrubado e todos os meios de produção (exceto aqueles que o Estado operário, voluntária e condicionalmente, entrega, durante certo tempo, como concessão aos exploradores) estão em mãos da classe operária.

Agora temos o direito de afirmar que, para nós, o simples desenvolvimento da cooperação identifica-se (salvo a «pequena» exceção acima referida) com o desenvolvimento do socialismo e, ao mesmo tempo, vemo-nos obrigados a reconhecer a mudança radical ocorrida em todo o nosso ponto-de-vista sobre o socialismo. Essa mudança radical consiste em que antes púnhamos e devíamos pôr o centro de gravidade na luta política, na revolução, na conquista do poder, etc.; enquanto que agora o centro de gravidade desloca-se até chegar ao trabalho pacífico de organização «cultural». É estou disposto a dizer que o centro de gravidade se transladaria em nosso país para o trabalho de cultura, se não fosse em virtude das relações internacionais, se não fosse o fato de termos que lutar por nossas posições em escala internacional. Mas, se deixamos essa questão de lado e limitamo-nos a nossas relações econômicas internas, em realidade, o centro de gravidade do trabalho reduz-se hoje ao trabalho cultural.

Colocam-se diante de nós duas tarefas principais, que representam toda uma época. Uma é a tarefa de refazer nosso aparelho, que agora não serve para absolutamente nada e que recebemos integralmente da época anterior; não conseguimos refazê-lo seriamente em cinco anos de luta, e não podíamos consegui-lo. A segunda de nossas tarefas é nosso trabalho cultural entre os camponeses. É este trabalho cultural entre os camponeses visa precisamente como objetivo econômico à cooperação. Se pudéssemos organizar nas cooperativas toda a população, já estaríamos com ambos os pés em solo socialista. Mas esta condição, a de organizar toda a população em cooperativas, exige tal grau de cultura dos camponeses (precisamente dos camponeses, que representam uma massa imensa), que ela é impossível sem toda uma revolução cultural.

Nossos adversários disseram mais de uma vez que empreendemos uma obra desarrazoada ao implantar o socialismo em um país de cultura insuficiente. Mas enganaram-se ao afirmar que começamos não na ordem em que se devia começar de acordo com a teoria (de toda espécie de pedantes), e que entre nós a revolução política e social precedeu a revolução cultural, essa revolução cultural diante da qual, apesar de tudo, nos encontramos agora.

Hoje é-nos suficiente esta revolução cultural para nos convertermos em um país completamente socialista, mas essa revolução cultural apresenta incríveis dificuldades para nós, tanto quanto ao aspecto puramente cultural (pois somos analfabetos), como quanto ao aspecto material (pois, para sermos cultos, é preciso um certo desenvolvimento dos meios materiais de produção, é necessária uma certa base material).

6 de janeiro de 1923


Inclusão: 11/02/2022