O Jovem Hegel e os Problemas da Sociedade Capitalista

Georg Lukács


Introdução


A história da origem e desenvolvimento da filosofia clássica alemã é para a concepção marxista da história um problema importante que ainda não chegou a uma clareza completa. Embora os clássicos do marxismo tenham referido repetidamente à extraordinária importância deste problema, apesar de que Engels o situe entre os antecedentes da filosofia do movimento revolucionário operário em Kant, Fichte e Hegel, e apesar de que Marx, Engels e Lenin, tenham esclarecido luminosamente os problemas centrais de todo este complexo de problemas em diversos e profundos trabalhos, a história daquele desenvolvimento em seu conjunto ainda está longe de haver conseguido uma elaboração satisfatória.

Nem sequer conseguimos ainda de um modo completo o esclarecimento histórico concreto dos problemas temáticos desta história, nem uma análise suficiente concreta dos fatos e textos que são os dados de partida, nem tampouco, consequentemente, uma crítica básica radical das teorias burguesas mais importantes daquela história, na sua falsidade ou confusão de estrutura.

No seio da ciência burguesa, a interpretação da origem histórica e do desenvolvimento da filosofia clássica alemã esteve durante muito tempo determinada pela concepção – deformada à maneira idealista – do próprio Hegel, a qual é sem dúvida genial, porém também esquemáticas em vários aspectos. O genial pensamento histórico de Hegel consiste essencialmente na afirmação da conexão interna dialética, dos sistemas filosóficos, uns com os outros. Hegel foi o primeiro a levar a História da filosofia desde seu estádio primitivo de uma coleção doxográficas de anedotas e biografias, de proposições metafísicas sobre a verdade ou erro de concepções de filósofos isolados, até ao nível de uma verdadeira ciência histórica. Pelo que faz à história da filosofia clássica alemã, esta concepção tem o resultado seguinte: Hegel vê na “filosofia transcendental” ou “crítica” de Kant o ponto de partida do desenvolvimento da filosofia dialética do idealismo, ponto culminante e de chegada da qual considera, e com razão, seu próprio sistema; simultaneamente mostra com maior nitidez e com profundidade os principais problemas da dialética (coisa-em-si e seu conhecimento, antinomia e doutrina da contradição, etc.) como a problemática central de Fichte nascem das contradições e meias verdades do sistema kantiano, e como as contradições do próprio Fichte e os problemas deixados sem solução por ele levaram por seu turno aos sistemas filosóficos de Schelling e Hegel.

Nessa exposição de Hegel há muito de verdadeiro e importante. Mas ele como um idealista objetivo, pensa auto movimento do espontâneo do conceito na filosofia, vê-se forçado a inverter também aqui as conexões reais, pondo-as de “cabeça para baixo”. Engels mostrou repetidamente que os diversos sistemas filosóficos se enredam sem dúvida com a problematização não resolvida de seus antecessores; mas na sua condição de pensador materialista dialético mostra também em cada caso que essa conexão puramente técnico-filosófica, é somente a superfície da conexão real, e que a história da filosofia tem aprofundar e achar os motivos da conexão real e objetiva. Quando, como ocorre com Hegel, se absolutiza idealisticamente o modo aparente imediato da história da filosofia, fazendo dela uma sucessão “histórico-problemática” e “imanente” dos diversos sistemas filosóficos, forçosamente de apresentar de forma exagerada e deformada o núcleo, em si correto, que existe sempre na afirmação de tais conexões técnicas de um sistema ao outro. Este fato tem como consequência – e mesmo no próprio Hegel – o necessário esquecimento da irregularidade e confusão da história real da filosofia inclusive no período do próprio filósofo: deste modo, os diversos reflexos dos fatos materiais da história – reflexos extremamente complexos na realidade -, assim como as tentativas científicas de captar dialeticamente os resultados do desenvolvimento da ciência da natureza, acabam, por se ver reduzidos à conexão “imanente” entre poucas categorias, sem dúvida muito importante.

Assim nasce um esboço para a compreensão das conexões histórico-filosóficas que então, no curso da decadência posterior da filosofia burguesa, deu lugar a deformações e inversões da história ausentes de caráter científico.

Este tratamento “imanente” da história da filosofia penetra posteriormente, durante o período da Segunda Internacional, nas concepções de marxistas como Plerranov e Mehring. As condições histórico-filosóficas do idealismo de tendência menchevista foram fortemente influenciadas pelos erros e falhas da concepção hegeliana da história da filosofia. A superação das deformações e debilidades, no domínio do progresso filosófico representado pelo período leninista do marxismo, o estudo da obra filosófica de Lênin, oferece uma perspectiva, a partir da qual se faz possível uma posição coerente marxista-leninista diante desses problemas. As obras de Marx e Engels, descobertas e editadas nos últimos decênios desempenham também um papel decisivo na construção de tal história da filosofia baseada no estudo crítico de seu desenvolvimento.

Na própria filosofia burguesa, a concepção hegeliana da história filosófica, não sobrevive depois da derrota da Revolução Burguesa de 1848. Já muito antes daquela data foram oferecidas, com algum êxito, histórias bem inferiores à de Hegel e nitidamente hostis à história real. A concepção anti-histórica mais importante é a de Artur Schopenhauer, começou a ter influência ampla só depois da Revolução de 1848. A tese básica de Schopenhauer é que ele avalia as tentativas de Fichte, Schelling e Hegel de ir além das contradições kantianas, como um erro grave. Segundo Schopenhauer, a filosofia deveria retornar ao único método verdadeiro – o método de Kant, todo o resto é somente engano, tagarelice vazia, charlatanismo. Assim, pois, Schopenhauer, por seu lado, liquida com todo o desenvolvimento dialético da filosofia clássica alemã, divulgando uma volta a concepção metafísica da realidade. Por outro lado, Schopenhauer “depura” a Kant de toda oscilação deste no sentido do materialismo; Schopenhauer reduziu Kant a um denominador comum com Berkeley. (Parecida é de muitos pontos de vista a tendência de Herbart, apesar de motivos diferentes).

Esta concepção, que no fundo é a anulação completa da história da filosofia clássica alemã, se apresenta de forma mais vulgarmente provinciana e pequeno-burguesa nos posteriores neokantianos. Assim pode-se avaliar talvez de modo mais claro as obras de Otto Liebmann (Kant und die Epigonen [Kant e os epígonos], 1865, etc.). Com Liebmann chega a uma posição de domínio filosófico aquele neokantismo que faz de Kant um subjetivista e agnóstico integral e rejeita como “metafísica científica” todo esforço de conhecer a realidade objetiva tal como ela é independente da consciência. Assim se constitui consequentemente no neokantismo a diretriz schopenhaueriana na história da filosofia ainda de modo, sem dúvida, mais prosaico, sem as pitorescas extravagâncias de Schopenhauer. A concepção consiste em supor que toda a filosofia pós-kantiana é um único e gigantesco erro cometido ao separar-se da corrente subjetivista de Kant, única correta, Hegel é tratado por estes autores como um “cachorro morto”.

Esta concepção determina a maioria das exposições da história da filosofia clássica alemã – e, especialmente daquela de Hegel – escritas em meados do século. De qualquer modo, neste mesmo período seguem acalentando algumas sobras do hegelianismo nacional-liberais já sem dúvida, doentias. A concepção relativa a estas sobras se expressa nas conhecidas histórias da filosofia de Kuno Fischer e J. E. Erdmann. Contudo o escrito mais importante sobre Hegel aparecido na época – o trabalho de Rudolf Haym – é definitivamente um panfleto volumoso contra a natureza “científica” do objetivismo e da dialética em Hegel.

Na época imperialista renasce o estudo da filosofia clássica alemã. O neokantismo liberal satisfaz cada vez menos as necessidades ideológicas da burguesia imperialista alemã. Cada vez mais é decidido o surgimento de correntes que, sem alterar em nada os fundamentos agnosticistas do neokantismo, almejam, porém uma renovação reacionária do idealismo objetivo (renascimento romântico, vitalismo, fenomenologia husserliana, psicologia real diltheyana, etc.). Em contato íntimo com as correntes reacionárias tem espaço uma renovação da filosofia clássica alemã – sobretudo a de Hegel – e estreita ligação com isto torna-se a propor o problema de sua história, com a intenção de menosprezar tanto o esquematismo dos hegelianos de ultima hora quanto à recusa global do hegelianismo pela ortodoxia neokantista.

O “renascimento” da filosofia clássica alemã no período imperialista não é, pois, uma renovação nem um desenvolvimento posterior da dialética hegeliana, nem uma intenção de concretizar o historicismo de Hegel, contudo a intenção de por a filosofia hegeliana a serviço de uma reconstrução reacionária e imperialista do neokantismo. Por isto a polêmica dos teóricos e historiadores do inicio deste neo-hegelianismo se dirige principalmente contra os argumentos da época de descrédito de Hegel que tendiam situá-lo em oposição irreconciliável a Kant. O neo-hegelianismo imperialista ignora completamente aprofunda e aniquiladora crítica do subjetivismo e agnosticismo kantianos por Hegel. A tese básica desse neo-hegelianismo é , ao contrário, a unidade de toda a filosofia clássica alemã e especialmente a unidade entre Kant e Hegel. Todos os filósofos (Windelband, J. Ebbinhaus, Brunstäd, etc.) se esforçam por demonstrar que todos os problemas da filosofia hegeliana se encontram já em Kant, que a única coisa que Hegel fez é formular consciente e explicitamente o que já estava implícita e inconscientemente em Kant. Assim, surge uma concepção da história que somente aparentemente é uma repetição ou renovação do esboço hegeliano do desenvolvimento da filosofia clássica alemã; esta concepção contem todos os defeitos exacerbados do idealismo e todos que seguem que se servem desta construção esquemática. Porém, em verdade, é uma concepção completamente em oposição a Hegel. Enquanto este critica severamente, por seu lado, todas as deficiências e insuficiências de seus antecessores do ponto de vista do idealismo objetivo e da dialética e sublinha, por seu turno, energicamente todos os traços daqueles antecessores nos quais, apreciando o sentido histórico, os neo-hegelianos da época imperialista dissertam no sentido contrário, reduzindo Hegel e Kant, quer dizer, não reconhecendo em Hegel senão aquilo que pode conviver sem violência com o agnosticismo kantiano. A atitude consiste um rebaixar ao nível puramente kantiano toda a história do desenvolvimento da filosofia clássica alemã. Esta tendência pode se ver também com toda clareza no neo-hegelianismo do após-primeira guerra mundial, o qual, além disso, usa outros motivos mais abertamente reacionários. Hermann Glockner, diretor da nova edição de Hegel e um dos autores principais do neo-hegelianismo depois da I Guerra Mundial, expressou com completa clareza no primeiro congresso hegeliano: “O problema hegeliano é hoje na Alemanha, sobretudo um problema kantista”.

Aqui só faremos uma breve menção ao contexto de classes geral e aos meandros da política de cada modificação na compreensão de Hegel. Um determinado confronto poderá nos ajudar a iluminar o sentido no qual se modificava a situação hermenêutica. Quando Haym combatia em seu tempo o objetivismo e a dialética da filosofia hegeliana, sua tendência capital era ainda liberal, mesmo sem dúvida na forma especificamente alemã do nacional-liberalismo. De qualquer forma, Haym recusou as concepções de Hegel – ignorando completamente seu caráter dialético – por reacionárias, pensando que a eliminação da filosofia hegeliana possibilitaria o desenvolvimento de uma ideologia liberal na Alemanha. Por outro lado, para o conhecido historiador do período imperialista Friedrich Meinecke, tão intimamente relacionado com o neokantismo de Baden (Windelband, Rickert), a filosofia hegeliana é um bom preparativo da política e concepção de Estado de Bismarck. A renovação do hegelianismo neste período está, pois, intrinsecamente relacionada com o fato de que aquelas resistências contra a forma bismarquiana da fundação do Reich, contra o caráter pseudoconstitucional e reacionário da Constituição alemã, que também se manifestavam como vivas, mesmo com timidez e incoerência da burguesia alemã. O neo-hegelianismo está fadado então a promover uma concepção do mundo que possibilite a “reconciliação” plena, concreta e positiva, da burguesia alemã no Estado Bismarqueano. Não será preciso esclarecer que nessas circunstâncias tem forçosamente que se situar em primeiro plano precisamente os motivos ideológicos mais reacionários da filosofia hegeliana.

Contudo. como é natural, esses motivos reacionários não procedem exclusivamente da temática diretamente histórico-política de Hegel. Os neo-hegelianos até agora estudados por nós tendiam conseguir uma ampliação e modernização do neokantismo pelo procedimento de estender sua validade a toda história da filosofia clássica alemã. Mas isto não era suficiente para satisfazer todas as necessidades ideológicas reacionárias do período imperialista. Já falamos da crescente importância das tendências filosóficas irracionalistas “vitalistas”. A grande popularidade alcançada pela forma especificamente diltheyana de renovação do hegelianismo se deve exatamente ao fato de que Dilthey falsificou a dialética de Hegel no sentido de abri-la a uma recepção do irracionalismo filosófico. Deste ponto de vista a monografia de Dilthey sobre o jovem Hegel (1906) representa um ponto importante de inflexão na concepção alemã de Hegel. O essencial histórico-filosoficamente é que Dilthey abre caminho às tendências imperialistas e reacionárias encarnadas na renovação do romantismo filosófico ao por Hegel em ligação direta com este, ignorando ou falsificando inclusive os fatos mais evidentes e importantes da biografia de Hegel sobre este assunto.

O neo-hegelianismo do após-guerra percorre, no essencial, os caminhos traçados por Dilthey, mesmo utilizando, naturalmente, os resultados filosóficos das demais correntes neohegelianas. Richard Kroener afirmou em seu livro Von Kant zu Hegel [De Kant a Hegel], que é uma obra decisiva para o desenvolvimento posterior do neo-hegelianismo: “A dialética é o irracionalismo tornado método, o irracionalismo tornado racional”. E a aspiração geral destes neo-hegelianos – tal como pode apreciar-se nos discursos proferidos por Kroener, Glockner, etc. nos vários congressos hegelianos – consiste em aplicar a “reconciliação” hegeliana, em utilizar aparentemente o método hegeliano da história da filosofia para alcançar uma “síntese” de todas as correntes filosóficas contemporâneas (incluindo, naturalmente, as fascistas).

Não é por acaso que o ponto de partida de todo esse desenvolvimento se encontre na monografia de Dilthey que tem como tema central o jovem Hegel. Dilthey acreditou descobrir o período de passagem do pensamento de Hegel, e mais exatamente os momentos críticos dessa passagem, determinados motivos mentais que considera aproveitáveis para uma interpretação místico-irracionalista da filosofia hegeliana. Já antes de Dilthey falsificou no mesmo sentido a figura do companheiro e amigo de juventude de Hegel nesse período: Hölderlin. (Ofereci uma critica pormenorizada dessa falsificação reacionária de Hölderlin no meu ensaio sobre o “Hyperion”: Goethe und seine Zeit [Goethe e sua época], Aufbau-Verlag, Berlim, 1950).

Como afirmei, a interpretação por Dilthey de Hegel foi decisiva para o desenvolvimento seguinte do neo-hegelianismo. E assim a figura do jovem Hegel, que mesmo em Kuno Fischer ou em Haym somente desempenhavam um papel episódico, se converte no centro de interesse dos estudos hegelianos. Fica cada vez mais frequente a prática de tomar rascunhos e notas juvenis de Hegel que não estavam destinadas a publicação e interpretá-los de tal modo que deem de si a imagem de “verdadeiro alemão”, isto é, irracionalista-místico: aceitável para o fascismo. O ponto culminante deste processo é a monografia de Th. Haering sobre Hegel (vol. I. 1929).

Embora esta falsificação da interpretação da história da filosofia clássica alemã, pelo que fez de Hegel, atinja o cume, tal movimento teve pelo menos a utilidade de que se chegasse finalmente à publicação dos manuscritos juvenis de Hegel, dispersos até então, ignorados e esquecidos. Assim começamos agora, em certa medida, a dominar o material que esclarece o desenvolvimento juvenil do filósofo.

A seguir enumero as principais obras, às que teremos, em meu julgamento, de consultar constantemente no estudo do desenvolvimento juvenil de Hegel:

Hegels Theologische Jugendschiften [Escritos teológicos juvenis de Hegel], Tubinga, 1907. Publicados por Hermann Nohl. (Citaremos: Nohl)

Die Verfassung Deutschlands [A Constituição da Alemanha] e System der Sittlichkeit [Sistema de Moralidade], ambos publicados nos Schriften zur Politik und Rechtsphilosophie Hegels [Escritos de Hegel sobre política e filosofia do direito] por G. Lasson, Leipzig, 1923. (Citado: Lasson.)

Jenenser Logik, Methaphysik und Naturphilosophie Hegels [Lógica, metafísica e filosofia natural de Hegel em Iena], editada por G. Lasson, Leipzig. 1923. (Citado: Jennenser Logik [Logica de Iena].)

As aulas ditadas por Hegel na época imediatamente anterior a Phämenologie des Gesteis [Fenomenologia do Espírito], editadas por J. Hoffmeister, Leipzig, 1931, com o título de Jenenser Realphilosophie [Filosofia da realidade da época de Iena), vol. I e II. (Citadas: Realphilosophie.)

Dokuments zu Hegels Entwickling [Documentos relativos ao desenvolvimento do pensamento de Hegel], editados por J. Hoffmeister, Sttugart, 1936. (Citadas: Hoffmeister.)

O conjunto dessas publicações oferece um material bastante rico – e praticamente não aproveitado até hoje – para o estudo da formação da dialética hegeliana. A reconstrução desse processo de formação se vê facilitada, às vezes, pelo trabalho filológico realizado paralelamente com a edição e aproveitamento destes textos. Nohl, Hoffmeister, Haering, Rosenzweig e outros levaram adiante uma exata pesquisa cronológica dos manuscritos de Hegel baseando-se nas cartas e demais fragmentos datados com certeza. Assim, dataram com exatidão a modificação de letra e, uma vez conseguido este importante instrumento, puderam estabelecer, com maior ou menor precisão, as datas dos diversos manuscritos. Embora não possamos submeter a uma prova essa cronologia, a aceitaremos basicamente sempre que não as desmintam os dados do conteúdo filosófico de pública importância.

No entanto. Isso não significa em absoluto que temos todos os documentos que sejam cientificamente úteis e relevantes para o desenvolvimento das visões do jovem Hegel. Os primeiros manuscritos importantes de Hegel, finalmente se perdeu. Este são, por exemplo, os primeiros manuscritos econômicos relacionados ao período de Franckfurt e, acima de tudo, um grande comentário sobre as obras de Stuart. No segundo capítulo veremos claramente a medida da perda que significa o desaparecimento destes manuscritos para o desenvolvimento das concepções econômicas de Hegel. Rosenkranz, que teve em mãos este documento, não tinha em troca nenhuma ideia da importância da economia nas concepções de Hegel. Por isso é impossível fazermos uma ideia do manuscrito sem outra base que as observações de Rosenkranz. Assim, pois, ocorre que nos deparamos enviados e reduzidos a observações, mais ou menos hábeis, a conclusões baseadas em observações isoladas e argumentações baseadas nas obras posteriores, na hora de tentar entender este ponto de inflexão no desenvolvimento do pensamento de Hegel.

Além disso, a justificativa da utilização científica é muito discutível e variável nos manuscritos editados total ou parcialmente por Rosenkranz. Assim, por exemplo, Rosenkranz editou – embora parcialmente – notas históricas do período de Berna e observações filosóficas do período de Iena, inserindo tudo em sua biografia de Hegel, sem dizer-nos nada sobre a fase dos referidos períodos em que se redigiram tais notas. Para ele, que conservava os manuscritos, não havia dificuldade em data-los. Hoje, perdidos os manuscritos, nada mais resta como instrumento do que a combinação e nitidez. A importância objetiva das observações publicadas para estudo do desenvolvimento de Hegel é sempre grande, e às vezes decisivas. Assim, por exemplo, as notas de Berna, contêm algumas observações sobre a Revolução Francesa. Seria muito importante poder estabelecer sua sucessão cronológica, como meio de conhecer as fases da atitude de Hegel diante aquele problema – para ver, por exemplo, a quais acontecimentos da Revolução Francesa reagia o filósofo em suas tomadas de posição -. Ainda mais importante seria conhecer a cronologia exata das notas filosóficas do período de Iena. Como se sabe, em Iena, Hegel começou a ficar ao lado de Schelling na luta contra Kant e Fichte, para orientar-se contra o próprio Schelling na Introdução à Phämenologie des Geistes [A Fenomenologia do Espírito]. Pois bem: essas anotações de Iena contêm observações críticas contra os discípulos de Schelling e contra o próprio Schelling. Estará claro que um conhecimento do momento exato que Hegel rompeu com Schelling – sem dúvida um momento no qual ainda não o fazia publicamente – nos revelaria o desenvolvimento juvenil de Hegel de um modo muito mais concreto do que hoje é possível consegui-lo. Assim, pois, utilizar este material, o único que pode se considerar seguro em cada caso, porque falta à cronologia, é a situação dos fragmentos em períodos gerais.

Apesar destas lacunas e deficiências, temos diante de nós um material relativamente grande para o estudo do desenvolvimento juvenil de Hegel. E como o neohegelianismo de tendência fascista utilizou exatamente este período do pensamento de Hegel para fazer do filósofo um irracionalista aceitável ao fascismo, é uma tarefa de certa importância o confrontar esta falsificação histórica dos fatos. Tanto mais quanto que as vozes da “nova ciência” penetraram também na literatura marxista, aproveitando a circunstancia de que, até agora, os marxistas não se interessaram praticamente pelo período juvenil de Hegel. Assim, por exemplo, muito pseudomarxistas recorreram à interpretação de Dilthey no centenário hegeliano de 1931 ao desenvolvimento juvenil do filósofo.

Mas, o interesse pelo desenvolvimento juvenil recebe apenas a simples tarefa de destruir com falsificações históricas de tendência fascistizante. Se se considera com olhos marxistas o desenvolvimento juvenil de Hegel se aprecia nele uma fase importantíssima da história da constituição da dialética na Alemanha. Não é irrelevante para a correta interpretação marxista da obra madura de Hegel o conhecer o caminho pelo qual Hegel chegou às referidas concepções. A atitude de Hegel em relação a seus antecessores – Kant, Fichte e Schelling – fica assim muito mais esclarecida do que antes. A fábula do parentesco de Hegel com o romantismo revela toda sua nulidade e insustentabilidade. Numa palavra – que para marxista é óbvia - : se entende incomparavelmente melhor o próprio Hegel se se estudou a constituição de seu sistema, uma vez confrontadas diretamente – como o faz Hegel em sua exposição histórico-filosófica – as obras da maturidade de Schelling, por exemplo, com as obras de maturidade de nosso filósofo, sem discernir entre as respectivas gêneses.

Contudo a história da filosofia hegeliana posiciona, ao mesmo tempo, aquelas grandes perguntas históricas que se constituíram o fundamento geral da filosofia clássica alemã e a implantação do método dialético nela até a concepção hegeliana da dialética. O presente trabalho não tem pretensão de fazer, em todas as suas dimensões, esta pesquisa extraordinariamente vasta, nem sequer por que faz ao caso pessoal de Hegel. Vai limitar-se, isto sim, a uma componente desse processo de desenvolvimento, a saber: a componente histórico-social.

Pois a crise de crescimento das ciências da natureza, então dominante, os importantíssimas descobertas que abalaram por esta época os fundamentos da ciência natural, a origem da nova ciência química, o posicionamento do problema da genética nas diversas investigações biológicas, etc. são fatos que desempenham um papel adequadamente decisivo na constituição da dialética no seio da filosofia clássica alemã. Em seu livro sobre Feuerbach, Engels descreveu detalhadamente a influência que teve esta revolução das ciências da natureza na crise do pensamento metafísico e a pressão da filosofia no sentido da concepção dialética da realidade.

Este importante processo não foram ainda realmente estudado na totalidade. A história burguesa da filosofia se limitou durante muito tempo a contemplar por alto as “especulações filosófico-naturais” da filosofia clássica alemã. Em meados e finais do século XIX, Marx e Engels foram os únicos que souberam ver claramente e apreciar como merecem os problemas reais problemas daquele período, sem deixar-se enganar pela forma idealista e às vezes absurdamente mística em que se manifestam. A este propósito Engels escreveu no Prefácio ao Anti-Dühring:

“É muito mais fácil irritar-se contra a velha Filosofia da Natureza como o leigo irreflexivo à la Karl Vogt que apreciar a importância histórica dessa especulação. A Filosofia da Natureza contem muito absurdo e muita fantasia, não menos porém que as teorias contemporâneas afilosóficas que a dos pesquisadores empíricos da natureza; e contem além disso muito sentido e muita compreensão como começa a apreciar-se desde a difusão da teoria da evolução (...) Os filósofos da natureza são em relação à ciência natural conscientemente dialética do que os utopistas são em relação ao comunismo moderno”.

A pesquisa marxista deste contexto pressupõe um conhecimento amplo e profundo do desenvolvimento concreto de todas as ciências da natureza. O autor deste livro não se considera competente nem sequer para esboçar concretamente esta problematização. Com estas observações não se propõe, pois, senão declarar abertamente ao leitor a necessária unilateralidade e o caráter não definitivo do presente estudo.

A necessária complementação deste estudo é importante e atual também por motivos diferentes dos mencionados. Acrescentemos que a atual filosofia reacionária da época imperialista assume em relação à Filosofia da Natureza uma atitude muito mais positiva que os seus antecessores. Contudo, esta mudança de comportamento contribui mais para confundir e deformar a verdadeira questão. Pois os que hoje em dia emitem um juízo positivo sobre a Filosofia da Natureza tomam dela exatamente o absurdo, o místico, o cientificamente reacionário, e pretendem desse modo utilizá-la como uma arma contra a concepção científica da natureza, O estudo da conexão real entre o desenvolvimento da ciência da natureza na época e o nascimento do método dialético inclui, pois, ao mesmo tempo uma luta contra as teorias anticientíficas e místicas do fascismo atual e de seus antecessores.

O presente estudo se ocupará também de outro complexo de problemas, da mesma importância extraordinária, posicionado pela história da constituição da dialética na filosofia clássica alemã, a saber: a influência dos grandes acontecimentos político-sociais da época, marcadamente a Revolução Francesa, e suas consequências no nascimento do modo dialético de pensar na Alemanha.

Tão pouco a história da influência da Revolução Francesa na Alemanha é terreno que esteja estudado detalhadamente. A ciência histórica burguesa, especialmente depois de 1848, esforçou-se constantemente para deixar em pleno esquecimento todos os esforços revolucionários democráticos que se produziram na vida alemã. Sabemos hoje assombrosamente pouco dos muitos alemães que aderiram direta e combativamente à Revolução Francesa. Georg Foster é o único que conseguiu escapar relativamente do esquecimento, e isso porque era previamente conhecido pelo mundo como cientista natural e como escritor; embora ainda careçamos de um estudo realmente marxista de sua atividade e de suas obras. Além disso, Foster é um entre muitos, e para conseguir um contexto fiel da influência da Revolução Francesa na Alemanha não bastaria um estudo aprofundado desta única personagem, mas haveria de conseguir além disso um conhecimento dos fatos em extensão. Em sua busca haveria de tentar recolher também, como é natural, o estado de ânimo de amplas massas populares. As obras autobiográficas de Goethe – apesar da extraordinária prudência com que Goethe se expressa nelas – permitem adivinhar o quanto profundamente ficou agitada a opinião pública alemã pelos acontecimentos em França.

Contudo, uma investigação deste tipo nunca deve esquecer o estado atrasado da Alemanha naquela época, tanto do ponto de vista econômico-social quanto no político. Tendo em conta este atraso é preciso examinar sempre as afirmações concretas e os posicionamentos das personagens alemãs a respeito da Revolução Francesa. Não é, pois, lícito aplicar mecanicamente, aos reflexos ideológicos dos acontecimentos franceses na Alemanha as mesmas categorias políticas que surgiram em França como consequência da real luta de classes no país, e que nele se desenvolveram. Recorde-se, por exemplo, que na própria França os girondinos tomaram parte durante muito tempo das reuniões do Clube dos Jacobinos, e que somente o radicalismo das reais lutas de classe deu posteriormente lugar à própria e clara diferença entre ambos partidos. Seria, consequentemente mecanicista e errado caracterizar manifestações e posições alemães com os mesmos rótulos políticos da Revolução Francesa, quando o fato é que a diferença social que se produz imediatamente em França não chega a ser real na Alemanha, senão muito mais tarde.

A isso se acrescente ainda outro problema de importância extraordinária, a saber: o problema central da revolução burguesa na Alemanha. È conhecido que Lenin indicou que o estabelecimento da unidade nacional dos alemães é uma questão central dessa revolução alemã. O entusiasmo pela revolução Francesa levou, por conseguinte, a uma explosão poderosa do sentimento nacional na Alemanha, uma enérgica aspiração à liquidação do fracionamento feudal-absolutista, em pequenos Estados e da impotência nacional, uma aspiração profunda para uma Alemanha livre, unitária e forte. Contudo, os fundamentos históricos dessa tendência encerram uma contradição irreconciliável. Falando da Guerra da Independência espanhola contra Napoleão, Marx escreveu que nela, como em todos os movimentos de independência análogos da época, “unem-se a reação com a regeneração”. Esta profunda observação de Marx pode aplicar-se literalmente à Alemanha da época. De um lado, as guerras revolucionárias da República Francesa se convertem necessariamente em guerras de conquista. E se bem as conquistas napoleônicas na Renânia – e especialmente nela – eliminam os restos feudais e cumprem assim objetivamente tarefas autênticas da revolução burguesa, a conquista em si não pode deixar de intensificar a divisão e a impotência da nação alemã. Por outro, e em consequência do atraso social da Alemanha, os movimentos nacionais estão cheios de mística reacionária. Não são capazes de livrar-se revolucionariamente do jugo dos pequenos príncipes para organizar uma resistência democrática nacional contra a conquista napoleônica; São inclusive tão débeis que nem sequer chegam a propor-se um projeto dessa natureza, e pretendem organizar a resistência nacional em aliança e sob a direção da monarquia reacionária da Prússia, Áustria, etc. Por este motivo se convertem necessariamente em promotores da reação que dominou a Alemanha inteira imediatamente depois da queda de Napoleão.

Essas contradições objetivas se encontram na vida, o pensamento e os fatos de todos alemães importantes do período. Trata-se de generais e estadistas como o barão von Stein, Gueisenau ou Scharnhorst, de poetas como Goethe e Schiller, de filósofos como Fichte e Hegel: sua vida inteira está dominada por estas contradições e por sua irreconciliação.

A exposição histórica desse período se enfrenta, pois, com a complicada e dúplice tarefa de manter simultaneamente diante dos olhos o grande acontecimento histórico ocorrido em França e o deformado reflexo dele na atrasada Alemanha. Marx formulou claramente esta situação, a respeito de Kant, na Ideologia Alemã: no pensamento de Kant encontra Marx um eco “do liberalismo francês, baseado nos reais interesses de classe, em Alemanha”; y acrescenta a seguir que o atraso da Alemanhaprovoca neste ponto uma deformação essencial dos problemas. “Kant”, continua Marx, “separou portanto essa expressão teórica dos interesses por ela expressos, transformou as determinações da vontade da burguesia francesa, que estavam materialmente motivadas, em puras autodeterminações da vontade livre, da vontade em si e para si, da vontade humana, e converteu esta em puras determinações conceituais ideológicas e em postulados morais”. Marx expressou nessas linhas, com argucia incomparável, um dos temas essenciais pelos quais o desenvolvimento ideológico alemão da época tinha de ser necessariamente idealista. Com isto, por certo, Marx caracteriza com a mesma argúcia e clareza, essas inevitáveis deformações de problemas que são produto necessário do idealismo filosófico.

Embora essa explicação da gênese do caráter idealista da filosofia clássica alemã, essa enérgica crítica de suas debilidades idealistas, não esgota de modo algum os problemas históricos dessa época da filosofia. O próprio Marx destacou nas suas Teses sobre Feuerbach o aspecto positivo do idealismo clássico. Após criticar o caráter simplesmente contemplativo do velho materialismo, afirma Marx: “Por isso ocorreu que o aspecto ativo fosse desenvolvido pelo idealismo em confronto ao materialismo: mas só abstratamente, pois o idealismo, naturalmente, ignora a atividade real, sensível, enquanto tal”. Com isto formula Marx os princípios essenciais de uma crítica correta, fecunda e autenticamente histórica da filosofia de Hegel, a crítica que ele mesmo ofereceu em seus escritos juvenis e que muitos decênios depois voltou a descobrir Lenin em suas geniais anotações das obras de Hegel.

A tarefa do historiador da filosofia clássica alemã consiste, pois, em explicitar concretamente a ação, tão fecunda para a dialética, desse “aspecto ativo”. Ao mesmo tempo tem de mostrar como surgiu aquela abstração idealista da real atividade humana em consequência do reflexo dos grandes acontecimentos históricos na atrasada Alemanha e como foram concebidos genialmente, nesse reflexo abstrato e parcialmente deformado da realidade, determinados princípios gerais da atividade, do movimento, etc. Pois a tarefa do historiador da filosofia seria muito simples, unilateral e limitada se reduzisse a estabelecer as consequências negativas do atraso da Alemanha. O papel do histórico-universal desempenhado pela filosofia clássica alemã para todo o pensamento humano é um fato tem de derivar-se também de um modo marxista daquelas circunstancias sociais.

Do mesmo modo criticaram Marx e Engels a filosofia clássica alemã. Porém sua tradição foi embotada também neste terreno durante o período da Segunda Internacional. E também aqui foi Lenin quem recolheu, renovou e continuou a linha de Marx. Escreve Lenin sobre a crítica a Kant por seus contemporâneos: “1 Plerranov critica o kantismo (e o agnosticismo em geral) mais do ponto de vista do materialismo vulgar do que do dialético-materialista na medida em que recusa in limine seus argumentos, em vez de corrigi-los (como Hegel corrigiu a Kant) aprofundando, generalizando-os ampliando-os e mostrando a conexão e os trânsitos de e entre todos e cada um desses conceitos. 2 Os marxistas criticavam (a princípios do século XX) aos kantistas e os seguidores de Hume mais a maneira de Feuerbach (e de Büchner) que a de Hegel”. Está claro que estas importantes observações de Lênin se aplicam plenamente a metodologia do estudo histórico e crítico da filosofia hegeliana.

Engels mostrou bela e convicentemente numa carta como a hegemonia filosófica passou sucessivamente da Inglaterra a França e da França a Alemanha, e que tão pouco no terreno da filosofia é sempre o país mais desenvolvido econômica e socialmente aquele que desempenha o papel de dirigente; tão pouco nos diversos países, tomados separadamente, coincide o ponto culminante do desenvolvimento econômico com o desenvolvimento econômico com o da filosofia; neste terreno, conclui, rege, pois, a lei do desenvolvimento desigual.

Os traços fecundos e geniais da filosofia clássica alemã estão aparentados do modo mais íntimo com a sua reprodução mental dos grandes acontecimentos históricos do período. Analogamente, os aspectos negativos do método idealista em geral são em determinados pontos reflexos das circunstâncias da atrasada Alemanha. Desta complicadíssima ação recíproca é preciso recolher a conexão dialética viva no desenvolvimento da filosofia clássica alemã.

Repetimos pois: os acontecimentos históricos centrais cujo reflexo mental temos que estudar aqui são a revolução Francesa e as grandes lutas de classe que se seguiram a ela em França, com a influência na problematização interna da Alemanha. Pode se dizer que, em geral, os grandes representantes ideológicos deste período são tanto maiores quanto mais resolutamente puseram em primeiro plano de seus interesses os acontecimentos histórico-universais que lhes são contemporâneos. A filosofia de Fichte se fragmentou internamente em seu choque com a irreconciliabilidade das contradições próprias da revolução nacional-democrática em Alemanha. Por outro lado, a poesia de Goethe, A Fenomenologia do Espirito e a Lógica de Hegel são obras que exerceram uma influência decisiva em todo o desenvolvimento ideológico seguinte a sua aparição.

Embora a posição de Hegel nesse processo, seu modo de orientar-se em relação aos grandes acontecimentos históricos de sua época, tem ainda outro traço característico que o diferencia de todos os seus contemporâneos no âmbito filosófico. Hegel não é apenas o filósofo que mais profunda e adequadamente tem a compreensão da essência Revolução Francesa e do período napoleônico para a Alemanha, mas também o único pensador alemão do período que se ocupou seriamente com os problemas da Revolução Industrial que ocorreu na Inglaterra, e o único que à época pois em relação os problemas da economia clássica inglesa com os problemas da filosofia da dialética. Marx mostrou na Ideologia Alemã como as ideias econômicas receberam dos materialistas franceses uma formulação filosófica abstrata que correspondia às necessidades ideológicas da burguesia francesa que se preparava objetivamente para a Revolução. E mostra logo como estas ideias tornam a Inglaterra e recebem ali uma formulação econômica mais concreta, a qual leva necessariamente, no pensamento dos ideólogos, da burguesia já dominante, a uma completa vulgarização filosófica (cf. o que escreve Marx sobre Bentham). Por outra parte, a muito diversificada oposição às consequências sociais e econômicas do violento desenvolvimento do capitalismo são uns dos principais momentos temáticos desencadeadores do Romantismo. Com a concepção dialética destes problemas Hegel se encontra tão longe da vulgaridade de Bentham como a errônea e reacionária “profundidade” romântica. Antes aspira abarcar com o pensamento a real estrutura interna, as forças realmente ativas de sua época, e a descobrir a dialética de seu desenvolvimento.

Seria incorreto limitar esta tendência da filosofia hegeliana àquelas observações nas quais Hegel discute explícita e diretamente os problemas da sociedade capitalista. Esta discussão determina antes toda a estrutura de seu sistema, a peculiaridade e grandiosidade de sua dialética. Neste ponto precisamente se encontra a sua superioridade filosófica e dialética sobre seus contemporâneos. Nosso estudo se propõe a tarefa de mostrar pelo menos alusivamente, o em esboço essa interação do desenvolvimento do jovem Hegel. Ele mostrará como num decisivo momento crítico desse desenvolvimento, no que Hegel vacila confusamente diante dos ideais revolucionários da sua grande Revolução contemporânea, o estudo da economia política, da situação econômica da Inglaterra, volta a proporcionar-lhe uma bússola que permite sair do labirinto encontrando a via da dialética. E, tentaremos mostrar concretamente a grande importância que teve a compreensão dos problemas econômicos para o nascimento do pensamento conscientemente dialético do jovem Hegel.

Esta concepção da filosofia hegeliana não passa no fundo de uma tentativa de aplicar ao desenvolvimento juvenil de Hegel a genial observação oferecida por Marx em seus Manuscritos econômico-filosóficos de 1844:

“A grandiosidade da Fenomenologia hegeliana (...) é, pois, uma parte, que Hegel concebe como um processo de autoprodução do homem (...) que concebe, em resolução, a essência do trabalho, e do homem objetivo, verdadeiro porque real, como resultado de seu próprio trabalho.”

Marx mostra aqui o quanto a filosofia hegeliana é um movimento mental análogo a economia clássica inglesa. Por certo, enquanto que nesta os problemas das sociedades burguesas aparecem em sua concreta regularidade econômica, Hegel não oferece mais do que o reflexo abstrato (idealista) de seus princípios gerais; porém, por outro lado, Hegel é o único capaz de passar assim disso a dialética geral. (Vale a pena recordar de novo ao leitor que com tudo isto – como já assinalamos – se toca apenas em um aspecto da origem da dialética hegeliana.)

Depois disso estará claro para o leitor que essa grandiosa concepção hegeliana da dialética da sociedade humana é uma dialética idealista, com todos os defeitos, limitações e deformações que o idealismo introduz necessariamente na concepção da dialética. A tarefa deste estudo é precisamente mostrar concretamente os aspectos importantes e os débeis do desenvolvimento da dialética hegeliana em suas diversas etapas. O autor espera que em breve sigam a esta obra trabalhos que corrijam e complementem a unilateralidade de seu posicionamento histórico – trabalhos que estudem a influência da ciência da natureza na origem da dialética hegeliana -. Somente quando contemos com resultados também neste terreno poderemos encontrar-nos com o contexto claro e dominado do desenvolvimento de Hegel. E é de se prever que esses trabalhos concentrarão e corrigirão algo deste meu trabalho que se deduz necessariamente da unilateralidade de meu posicionamento. Porém o autor tem a esperança de haver exposto em seus traços fundamentais o desenvolvimento do pensamento do jovem Hegel na medida em que este é concebível pelo material que dispomos atualmente.

O ponto de vista metodológico para o estudo da história da filosofia que domina o presente trabalho abarca muito mais que simples objetivo de conseguir uma reta compreensão do desenvolvimento juvenil de Hegel. Trata-se da conexão interna entre filosofia e economia, entre economia e dialética. No curso de tempo, a exposição da história da filosofia viu-se cada vez mais obrigada a rebaixar o complexo de problematização filosófica no sentido rigoroso para descobrir conexões mais profundas, e a dirigir sua atenção ao crescimento histórico do pensamento humano na ampla totalidade da compreensão científica da realidade concreta. É muito natural que ao fazê-lo assim as ciências da natureza estavam e estão em primeiro lugar. O estudo da interação entre ciência da natureza por uma parte, a teoria do conhecimento e a lógica por outra e a metodologia filosófica, a teoria do conhecimento e a lógica por outra, deram resultados nada desprezíveis, apesar de haver padecido do fato de que considerou quase sempre como critério metodológico definitivo o agnosticismo de Kant, Berkeley ou Hume, ficando assim cego para as complicadas influências recíprocas que existem entre a dialética filosoficamente consciente, por mais idealista (filosofia da natureza do período clássico alemão) e a dialética não esclarecida teoricamente e espontaneamente nascida da prática cientifico-natural (Lamarck, Darwin, etc.). Em troca, a relação metodológica entre filosofia e o domínio dos fenômenos sociais que até agora praticamente ficaram sem estudo.

Cremos que isso não é por acaso. O motivo encontra-se na situação social e em seu desenvolvimento. Enquanto que nos começos da economia burguesa os grandes representantes da nova ciência viram nela, por um lado, a ciência básica da vida social, e por outro, nas categorias econômicas, relações entre seres humanos – com uma honrada e espontânea ausência de preconceitos - , mais tarde penetra nessa ciência a feitizaçao das categorias econômicas, produto objetivamente necessário e crescente do desenvolvimento do capitalismo, até determinar cada vez mais profunda e decisivamente a metodologia das ciências sociais. Esta metodologia opera cada vez mais exclusivamente com tais categorias feiticizadas, sem penetrar até as relações entre homens (ignorando também as relações dos homens com a natureza, mediada por aquelas relações inter-humanas); em paralelo com este processo, e em grande medida em consequência dele, a metodologia econômica deixa de ser a ciência fundamental da vida social para converter-se em uma das numerosas disciplinas particulares radicalmente especializadas. E como também, a filosofia recorre em sua maior parte este caminho que leva a especialização como disciplina particular, se compreende que os filósofos na tenham sequer a ideia da fazer fecundar seu trabalho metodologicamente pelo estudo detalhado das categorias econômicas.

Repetimos: os velhos economistas adotaram uma atitude completamente diversa diante dessas questões. Lemos em Galiani: “O valor é uma relação entre pessoas”. E mesmo em tempos de dissolução da escola de Ricardo se sublinha consciente e energicamente este caráter inter-humano das categorias econômicas, como faz por exemplo, Thomas Hodgkin. Porem este importante conhecimento é só uma meia verdade. Depois de citar essas palavras de Galiani, Marx as comenta do modo seguinte: “porém teria de acrescentar: uma relação mascarada por uma crosta coisificada”; e em sua análise crítica de Hodgkin explica Marx:

“Hodgkin diz, pois, com outras palavras que os efeitos de uma determinada forma social do trabalho se atribuem à coisa, os produtos desse trabalho; que a relação mesma se transmuta fantasticamente tomando a figura coisificada. Vimos que este fato é uma característica específica do trabalho baseado na produção de mercadorias, no valor de troca e que esse quiproquó se manifesta na mercadoria, no dinheiro (coisa que Hodgkin não vê), e ainda mais potencialmente no capital. Os efeitos que tem as coisas tanto que momentos objetivos, do processo do trabalho atribui-se-lhe no capital como efeitos que elas tiveram na personificação, em sua independência diante do trabalho. Porem as coisas deixariam de ter esses efeitos se deixassem de enfrentar-se com o trabalho nessa forma alienada. O capitalista enquanto capitalista não mais que a personificação do capital, ou seja da criação do trabalho, revestida de vontade própria e personalidade, confrontada com o trabalho. Hodgkin concebe esta situação como uma ilusão puramente subjetiva por trás da qual se escondem o engano e o interesse da classe exploradora, e não vê esse modo de representação se depreende da própria relação, como esta última não é expressão da primeira, senão o contrário”. [Marx, Teorias sobre a mais-valia]

Com isto nos encontramos no centro da trama das relações recíprocas entre categorias econômicas e categorias filosóficas: as categorias dialéticas das ciências sociais aparecem como imagens mentais refletidas daquela dialética que se desenvolve objetivamente, independentemente do saber e da vontade dos homens em sua vida, e cuja objetividade faz da realidade natural uma “segunda natureza”. A reflexão posterior mostra que precisamente esta dialética da economia, se concebe corretamente, se expressam as relações inter-humanas mais originais, mais fundamentais, mas decisivas; e que esteja precisamente no terreno no qual a dialética pode estudar a vida social segundo seu modo autêntico e sem errar. Por isso não é por acaso que, do ponto de vista da teoria da ciência, o nascimento do materialismo dialético coincida com este descobrimento da dialética da vida econômica. O “genial esboço” de Friedrich Engels sobre as categorias econômicas publicado nos Anais Franco-Alemães e os Manuscritos econômico-filosóficos de Marx descrevem claramente estes começos; E tão pouco é casual que na última dessas obras se ofereça, por um lado, uma análise da natureza dialética do trabalho dos economistas clássicos e, por outro, uma análise dos fundamentos econômicos da Fenomenologia do Espírito hegeliana.

Como o leitor verá, essas observações de Marx resultaram decisivas para o presente livro. Porém se nos detivemos um tanto nelas além disso foi porque cremos que abram uma via de acesso a uma rica aplicação metodológica da história da filosofia. Nosso estudo pesquisa as relações recíprocas entre o desenvolvimento das concepções econômicas de Hegel e sua dialética puramente filosófica, e cremos que com ajuda do novo ponto de vista metodológico indicado nos foi possível descobrir cientificamente conexões até hoje desconhecidas ou contemplados incorretamente.

Porém se limita a Hegel a essa posição problemática? Hegel é o único pensador importante em cuja obra a economia desempenhe papel tão importante? Todo conhecedor da filosofia inglesa dará resposta negativa imediatamente a essas perguntas, pois conhecerá as relações existentes entre Hoebbes e Petty, saberá que Locke, Berkeley e Hume foram economistas além de filósofos, que Adam Smith foi filósofo além de economista, que as concepções sociais de Mendeville são inseparáveis de suas ideias econômicas, etc. Mas esse conhecedor saberá também que a conexão metodológica de Locke, por exemplo, entre a economia e a teoria do conhecimento dele é até o momento um terreno totalmente baldio enquanto a pesquisa, e que a literatura que existe até hoje se limitou a recolher biograficamente uma espécie de “união pessoal” de economia e filosofia nas pessoas desses pensadores, para tratar depois de um modo desconexo as atividades de referidos autores em um ou outro campo.

Como é natural, essas relações entre economia e filosofia não existem somente na filosofia inglesa. Desde Platão e Aristóteles, inclusive Heráclito, não existe apenas um pensador universal, um filósofo verdadeiro, que estudou estes problemas e prestou atenção. Porém não é de modo algum necessário, para que exista esta atenção, que o pensador em questão tenha posto conscientemente e como problemas especiais da economia essas relações inter-humanas que na Idade Média e Moderna chegaram finalmente a ser objeto desta ciência: basta que essas relações entre homens tenham chegado a ser de um modo ou de outro um problema para o filósofo.

Pensa o autor que neste ponto se abre um novo campo extraordinariamente fecundo à história da filosofia. Por isso conclui estas observações introdutórias expressando a esperança que o referido campo se veja muito em breve sujeito a um trabalho enérgico, e de que esta primeira tentativa de descobrir as conexões aludidas resulte logo superada por outros trabalhos mais exaustivos.


Inclusão 23/08/2018