Carta a Nikolai Frantsevitch Danielson
(em Petersburg)

Friedrich Engels

17 de Outubro de 1893

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Primeira Edição: Publicado pela primeira vez em russo na revista Minuvshie Godi, n.° 2, 1908. Publicado segundo o texto do manuscrito. Traduzido do inglês.
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!" - Edição dirigida por um colectivo composto por: José BARATA-MOURA, Eduardo CHITAS, Francisco MELO e Álvaro PINA, tomo III, pág: 562-564.
Tradução: José BARATA-MOURA.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.


Londres, 17 de Outubro de 1893

capa

... Muito obrigado pelos exemplares de ОчepКИ[N301]— três dos quais eu fiz seguir para amigos que os sabem apreciar. Alegra-me ver que o livro causou considerável brado e mesmo sensação, como bem merecia. Entre os russos com que me encontrei, era o principal assunto de conversa. Só ontem um deles(1*)* escreve: у наcъ нa Pycи идeтъ сиоръ о "cyдъбaxъ капитa лиэма въ России"(2*). Na Sozialpolitisches Centralblatt(3*) de Berlim, o senhor P. v. Struve tem um longo artigo sobre o seu livro; eu tenho de concordar com ele neste único ponto: que, também para mim, a presente fase capitalista de desenvolvimento na Rússia me parece uma consequência inevitável das condições históricas criadas pela Guerra da Crimeia, da maneira como a mudança de 1861 nas condições agrárias foi efectuada e da estagnação política na Europa, em geral. Onde decididamente ele não tem razão é ao comparar o estado presente da Rússia com o dos Estados Unidos, em ordem a refutar aquilo a que ele chama as visões pessimistas do futuro, de V. Ele diz que as consequências más do capitalismo moderno na Rússia serão tão facilmente superadas como o são nos Estados Unidos. Aqui ele esquece-se completamente de que os E[stados] U[nidos] são modernos, burgueses, desde a própria origem; de que eles foram fundados por petits bourgeois(4*) e camponeses que fugiram do feudalismo europeu a fim de estabelecer uma sociedade puramente burguesa. Enquanto, na Rússia, temos um alicerce de carácter comunista primitivo, uma Gentilgesellschaft(5*)anterior à civilização [pre-civilisation], a cair em ruínas, é verdade, mas servindo ainda de alicerce, de material sobre o qual a revolução capitalista (porque é uma real revolução social) age e opera. Na América. a Geldwirtschaft(6*) foi inteiramente estabelecida há mais de um século; na Rússia, a Naturalwirtschaft(7*) era a regra quase sem excepção. Por conseguinte, salta à vista que, na Rússia, a mudança tem de ser de longe mais violenta, de longe mais incisiva, e acompanhada por sofrimentos imensamente maiores do que na América.

Mas, apesar de tudo isto, parece-me que V. tem uma visão do caso mais escura do que os factos justificam. Não há dúvida de que a passagem do comunismo agrário primitivo para o industrialismo capitalista não pode ter lugar sem uma terrível desarticulação [dislocation] da sociedade, sem o desaparecimento de classes inteiras e a sua transformação em outras classes; e que enorme sofrimento, e perdas de vidas humanas e forças produtivas isso necessariamente implica, vimo-lo — em escala mais pequena — na Europa Ocidental. Mas daí até à ruína completa de uma nação grande e altamente dotada vai ainda uma longa distância. O rápido aumento de população a que haveis sido acostumados pode ser estancado; a desflorestação descuidada combinada com a expropriação dos velhos помещиков(8*) bem como dos camponeses pode causar uma colossal perda de forças produtivas; mas, apesar de tudo, uma população de mais de cem milhões fornecerá finalmente um mercado interno muito considerável para uma grande industrie(9*) muito respeitável, e convosco, tal como noutros lugares, as coisas encontrarão finalmente o seu próprio nível — se o capitalismo durar o tempo suficiente na Europa Ocidental.

V. mesmo admite que

«as condições sociais na Rússia depois da Guerra da Crimeia não eram favoráveis ao desenvolvimento da forma de produção herdada por nós da nossa história passada».

Eu iria mais longe e diria que, na Rússia, não mais do que em qualquer outro sítio, não teria sido possível desenvolver uma forma social mais elevada a partir do comunismo agrário primitivo, a não ser que essa forma mais elevada estivesse já em existência noutro país, de modo a servir de modelo. Sendo essa forma mais elevada, onde quer que seja historicamente possível, consequência necessária da forma capitalista de produção e do antagonismo social dualista por ela criado, não poderia ser desenvolvida directamente a partir da comuna agrária, a não ser por imitação de um exemplo já em existência nalgum outro sítio. Se o Ocidente da Europa tivesse estado maduro, em 1860-1870, para uma tal transformação, se essa transformação tivesse sido empreendida em Inglaterra, França, etc, então os russos teriam sido chamados a mostrar o que se poderia ter feito com a comuna deles que, nessa altura, estava mais ou menos intacta. Mas o Ocidente permaneceu estagnado, nenhuma transformação dessas foi tentada e o capitalismo foi desenvolvido cada vez mais rapidamente. E como a Rússia não tinha para escolher senão isto: ou desenvolver a Comuna numa forma de produção da qual ela estava separada por um [certo] número de estádios históricos e para a qual, nem mesmo no Ocidente, as condições estavam, nessa altura, maduras — evidentemente, uma tarefa impossível — ou então desenvolver-se para o capitalismo; que lhe restava, senão a última hipótese?

Quanto à Comuna, ela não é possível senão enquanto as diferenças de riqueza entre os seus membros não forem senão insignificantes. Assim que essas diferenças se tornam grandes, assim que alguns dos seus membros se tornam escravos por dívidas dos membros mais ricos, ela não pode viver durante mais tempo. Os кулaки(10*) e мiрoжды(11*) de Atenas destruíram, antes de Sólon, a gens ateniense com a mesma implacabilidade com que os do seu país destroem a Comuna. Receio que essa instituição esteja condenada. Mas, por outro lado, o capitalismo abre novas perspectivas e novas esperanças. Veja o que ele fez e está a fazer no Ocidente. Uma grande nação como a sua sobrevive a todas as crises. Não há nenhum grande mal histórico sem um progresso histórico compensador. Só o modus operandi(12*) muda. Que les destinées s'accomplissent!(13*)...


Notas de rodapé:

(1*) I. P. Goldenberg. (retornar ao texto)

(2*) Em russo no texto: Aqui, na Rússia discute-se acerca dos «destinos do capitalismo na Rússia». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(3*) III ano de publicação, n.° 1, 1 de Outubro de 1893[N302]. (Nota de Engels.) (retornar ao texto)

(4*) Em francês no texto: pequenos burgueses. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(5*) Em alemão no texto: sociedade gentílica. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(6*) Em alemão no texto: economia monetária. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(7*) Em alemão no texto: economia natural. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(8*) Em russo no texto: senhores de terras. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(9*) Em francês no texto: grande indústria. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(10*) Em russo no texto: kulaques. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(11*) Em russo no texto: exploradores. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(12*) Em latim no texto: modo de operar. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(13*) Em francês no texto: que os destinos se cumpram! (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N301] Trata-se do livro de N. F. Danielson Ensaios sobre a Nossa Economia Social depois da Reforma, publicado sob o pseudónimo de Nikolai-on em Sampetersburgo em 1893.

[N302] Sozialpolitisches Centralblatt (Folha Central Sociopolítico): semanário social-democrata; publicou-se em Berlim de 1892 a 1895. No n.° 1 de 1893 foi publicado o artigo de P. Struve «Apreciação do Desenvolvimento Capitalista na Rússia».

Inclusão 19/10/2011