Projeto de Declaração da ANL e do PCB

Luiz Carlos Prestes

Abril de 1944


Primeira Edição: Editorial Vitória, 1947.
Fonte: Luiz Carlos Prestes, Problemas Atuais da Democracia, Editorial Vitória, 1947, pág: 551-59.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, julho 2008.
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Concidadãos.

O último discurso do Chefe da Nação exige de todos os patriotas uma análise acurada e uma resposta respeitosa e construtiva. É o que passamos a fazer para concluir esta carta com uma proposta concreta de união nacional que dirigimos ao Governo, ao povo brasileiro e aos dirigentes de todas as tendências e correntes políticas não incluídas na Aliança Nacional Libertadora, signatária deste apelo.

Deixemos de parte e em respeitoso silêncio as críticas que faz o Chefe da Nação ao que denomina de «conservantismo retrógrado» dos governantes anteriores a 1930 e — sempre em benefício da pacificação da família brasileira — passemos em silêncio, sem críticas nem aplausos, sobre a longa enumeração daquilo que o Sr. Getúlio Vargas chama de «empreendimentos de vulto» do seu longo período de Governo. Não tenhamos nem alimentemos ilusões: tudo o que foi feito é nada em presença do que devemos fazer ainda. Uma só causa nos preocupa no momento — é a guerra patriótica contra o nazismo e acreditamos que lutar por abreviá-la e ganha-la é o único empreendimento de vulto para o nosso povo no momento histórico que atravessamos.

Lamentamos, por isso, que o Sr. Getúlio Vargas esteja tão mal informado a respeito do que se passa presentemente no país. «O panorama da nossa frente interna», justo ao contrário do que afirma S. Excia. não é absolutamente «de desafogo e confiança». Pode estar o Sr. Getúlio Vargas certo de que suas palavras são incompreensíveis para a esmagadora maioria de nosso povo, que sente de mil maneira e tem claramente demonstrado já haver compreendido que atravessamos um dos momentos mais graves de toda a nossa história — tão sério mesmo que, bem ao contrário do que igualmente afirma S. Excia., não «resiste ao confronto com qualquer outra situação anterior».

E, sinceramente, qual a vantagem para a Nação ou para o Governo de afirmações otimistas dessa natureza? Não seria muito mais prático e razoável usar a linguagem viril e realista de Churchill? O povo não quer ser acalentado, como criança: sabe por que sofre e prefere dos seus governantes ouvir a verdade dura e nua, a verdade necessária que desperta os inconscientes e retardados, os tolos e comodistas.

E, se a situação é de desafogo, por que não se tomam então as medidas necessárias ao abastecimento regular dos grandes centros urbanos e ao barateamento decisivo e definitivo do custo da vida? Serão, por acaso, ineptos ou incapazes os encarregados das comissões de abastecimento que só falam em dificuldades e empregam diariamente na explicação de seus insucessos uma linguagem diametralmente oposta ao otimismo do Chefe da Nação?

E, se a situação é de tanta confiança, por que não conceder imediatamente a inteira liberdade de crítica há tanto tempo já reclamada pela Nação?

Infelizmente, não podemos concordar com o otimismo que nos parece exagerado e infundado do Chefe da Nação. Como sempre acontece, é afinal S. Excia. a maior vítima do regime de censura em que vivemos e da falta completa de órgãos representativos autorizados, capazes de poder revelar pela palavra escrita ou falada a miséria e o mal estar em que se debate o nosso povo e a atmosfera de incertezas e desconfiança em que vivemos.

É falso, por exemplo, que a produção geral se multiplique. São os preços que se multiplicam, mas, a não ser num ou noutro produto, a tonelagem em geral pouco tem aumentado, e até diminuído para não raros artigos. Todos sabem que os víveres escasseiam e quanto à produção industrial é impossível pensar em multiplicação, em plena crise de combustíveis, e numa época em que a aquisição de máquinas se tornou praticamente impossível. E que dizer dos transportes? «A circulação dos valores» não é «abundante» como supõe o Sr. Getúlio Vargas(1) e disto podem informá-lo com conhecimento de causa o Sr. Amaral Peixoto, o Coordenador Sr. João Alberto e o Sr. Sousa Costa, pois, todos três, em discursos e declarações recentes, afirmaram justamente o contrário do que nos diz agora o Chefe da Nação.

Quanto à absorção da mão de obra, a que também se refere o Sr. Getúlio Vargas, é algo de muito relativo, já que não faltam desocupados, como os «marginais» lá do Rio Grande do Sul, por exemplo. E, além disso, nas regiões em que se dá tal absorção, tem ela imediatamente o seu reflexo negativo na diminuição da produção agro-pastoril, como acontece presentemente no Estado do Rio, em São Paulo e em parte do Nordeste.

Os lucros, certamente, são fartos para a meia dúzia de industriais, grandes comerciantes, banqueiros e especuladores que se aproveitam da guerra com audácia e desfaçatez, mas, ao contrário da aparente satisfação com que o Sr. Getúlio Vargas se refere a tais «fartos lucros», o povo os observa, com ódio crescente, refletidos na miséria em que vive e na fome que sofrem seus filhos, porque tais lucros não são fartos somente, mas excessivos e injustificáveis — exorbitantes, como confessa o insuspeito Sr. Marques dos Reis no último relatório do Banco do Brasil.

Não cremos por tudo isso que o Sr. Getúlio Vargas tenha pois razão quando se refere com igual otimismo à coesão interna que diz existir no país. Ainda não se completaram seis meses dos lamentáveis acontecimentos de São Paulo, que evidentemente não foram esquecidos, e, queira ou não queira o Chefe da Nação, não é possível ocultar com simples palavras a desmoralização e o desprestígio do atual governicho de São Paulo, em torno do qual nenhuma coesão será jamais possível. Não faltam, porém, em todo o país, muitas outras manifestações de desunião que seria enfadonho e talvez mesmo prejudicial enumerar nesta carta. Infelizmente, a coesão interna, a união em torno do Governo não é ainda a de que necessitamos para participar da guerra, para vingar o maior ultraje por que já passou a nossa bandeira desde a independência da Nação.

Noutro ponto ainda devemos honesta e serenamente discordar do otimismo do Sr. Getúlio Vargas, pois, ao contrário de S. Excia., não acreditamos que já se ache realmente conjurada a ameaça nazista que pesou sobre todos nós, segundo as suas próprias palavras. Sem dúvida, as magníficas vitórias do Exército Vermelho na frente oriental já reduziram de muito a força dos assassinos de Hitler e, além disto, as decisões de Moscou e Teerã nos trouxeram a esperança de uma ação coordenada das Nações Unidas com a próxima abertura de uma segunda frente no ocidente europeu. Mas já terá por isso diminuído realmente o perigo que ameaça o nosso povo? Não será, por acaso, cada vez mais grave a situação dos povos que lutam pela liberdade, à medida que a fera nazista vai sendo acuada em seu reduto? Não se nota, justamente agora, como os agentes de Hitler pelo mundo inteiro se exacerbam e se atiram às mais audaciosas aventuras políticas, aproveitando todas as brechas dos Governos fracos, dos povos que não souberam a tempo se unir, e da crise econômica que se aprofunda dia a dia com a duração da guerra? Na América do Sul pelo menos, a situação agravou-se seriamente nos últimos meses com a consolidação de um grupo de Governos fascistas na Argentina, Bolívia e Paraguai — nunca o inimigo esteve tão próximo das nossa fronteiras e nunca, por isso, foi menos justificável o otimismo das palavras presidenciais. E à medida que se prolonga a duração da guerra não se agrava, por acaso, a situação econômica do país?

Enfim, o Sr. Getúlio Vargas termina o seu discurso com uma declaração formal de democratização do país para depois da guerra. São palavras que todos os democratas, patriotas e antifascistas recebem com a mais viva satisfação sem se esquecer, porém, que se trata de simples promessa cuja efetivação não dependerá somente do desejo de cumprí-la e da boa vontade de S. Excia. Os acontecimentos são mais fortes do que os homens e se, nos dias de hoje, convém ate mesmo aos reacionários e aos simpatizantes do nazismo em nossa terra as promessas que agora nos faz o Sr. Getúlio Vargas, o mesmo talvez já não aconteça amanhã, no momento em que S. Excia. quiser executá-las. O Sr. Getúlio Vargas — todos o sabemos — vangloria-se, e com razão, de ser um político realista, saber adaptar-se às forças e tendências dominantes em cada momento histórico. Já em 1937, por exemplo, S. Excia. que prometera em discurso no dia 7 de Setembro a livre realização de eleições, de acordo aliás com a Constituição então em vigor, dois meses depois, a 10 de Novembro, se viu na contingência, sob a pressão de poderosa corrente reacionária, a fazer justamente o contrário do que prometera. Este fato precisava ser lembrado, porque nos ensina que o cumprimento das promessas atuais do Chefe da Nação só será possível na medida em que todos os democratas e antifascistas organizem desde já suas forças e se mantenham unidos, vigilantes e ativos em defesa das inclinações democráticas do Sr. Getúlio Vargas e em condições de sustentá-lo contra as maquinações reacionárias dos bandidos que estão enriquecendo com a guerra e que levantarão a mesma bandeira do perigo comunista com que o Sr. Geraldo Rocha, o fuehrer Plínio Salgado e o agente da Gestapo Filinto Muller mobilizaram em 1937 as forças que exigiram do Sr. Getúlio Vargas o golpe fascista de 10 de Novembro.

De tudo isso é fácil concluir como se vai tornando cada vez mais necessária ao nosso povo e ao próprio Governo a prática da democracia. Longe de ser incompatível com a guerra e com a união nacional de que necessitamos para ganhá-la, torna-se cada vez mais evidente que, sem liberdade, impossível será mobilizar a Nação para a guerra e organizá-la de maneira viva e consciente em torno do Governo. A liberdade de manifestação do pensamento é já indispensável ao próprio Governo para que possa conhecer a realidade nacional e desarmar por completo os «murmuradores derrotistas»; a liberdade de reunião e associação, a liberdade para os partidos políticos tornam-se igualmente cada dia mais necessárias à mobilização do povo para a guerra, à União Nacional e à própria defesa, como dissemos anteriormente, das promessas democráticas do Chefe da Nação, em que queremos sinceramente acreditar.

Compreendemos, no entanto, que os homens do Governo, naturalmente preocupados com a manutenção da ordem e da disciplina, receiem as conseqüências da democracia no País depois de tão longo período de censura à imprensa e de limitações de toda ordem às mais elementares liberdades populares. Ao Chefe da Nação e aos homens honestos que o cercam não são certamente desconhecidas as arbitrariedades cometidas por muitos de seus prepostos nestes tristes anos de ditadura, nem as prevaricações que se escondem ainda sob o negro manto da censura, e cuja revelação neste instante poderia ser perigosa à própria estabilidade do Governo.

Acreditemos, porém, no bom senso do nosso povo e no superior patriotismo com que saberá se colocar acima de tudo isso para fazer uso da liberdade, com discrição e prudência, com o único objetivo de consolidar a união nacional em torno do Governo e reforçar sua colaboração com as Nações Unidas, visando a mais rápida e decisiva vitória sobre o nazismo no mundo inteiro. Não tenhamos dúvida de que a liberdade de crítica reforçará o Governo, já que permitirá o desmascaramento dos murmuradores derrotistas, dos falsos antinazistas que, desafiando a censura e a vigilância policial, exploram as dificuldades do momento e o inevitável descontentamento das camadas mais atrasadas do nosso povo.

Mas se, para voltarmos o quanto antes à prática da democracia, julga o Governo indispensável assegurar-se previamente, de maneira formal, do apoio político de todas as correntes democráticas e antifascistas, a Aliança Nacional Libertadora não tem nenhuma dúvida em fazer tal declaração e empregar todos os esforços para conseguir a mesma coisa das demais tendências e correntes políticas, assim como dos homens de prestígio que até agora fizeram oposição à Carta de 1937 e ao Governo do Sr. Getúlio Vargas.

Somos no momento radicalmente contrários a qualquer luta contra o Governo constituído e estamos certos de que é esta também a opinião da maioria esmagadora da Nação. Apoiar o Governo para ganhar a guerra é o que todos desejamos e é com tal objetivo que solicitamos concretamente do Sr. Getúlio Vargas as decisões legais que assegurem imediatamente à Nação:

  1. Liberdade de manifestação do pensamento, com a censura rigorosamente limitada aos assuntos exclusivamente militares, relacionados com os indispensáveis segredos de guerra. A liberdade de imprensa particularmente deve ser assegurada no seu sentido mais amplo.
  2. Liberdade de reunião e de associação, revogadas todas as limitações atuais.
  3. Liberdade para organização e atividade dos partidos políticos, inclusive naturalmente a A.N.L. e o P.C.B.

Na base de tais promessas e como medida prévia para entrem em vigor, estamos convencidos de que será possível a constituição de uma União Democrática Nacional que congregue todas as forças políticas da Nação e que formule uma declaração clara e precisa de apoio ao Sr. Getúlio Vargas e ao seu Governo, cessando qualquer gesto ou atitude de oposição para aguardar com confiança a futura constitucionalização democrática do país para depois da vitória sobre o nazismo.

Precisamos agora de ordem e disciplina e para chegar à União Democrática Nacional(2) dirigimos desde já este apelo a todo o nosso povo e aos seus principais chefes políticos; às organizações de camponeses e operários, aos dirigentes sindicais, aos tenentistas não aliancistas, aos revolucionários de 1922, 1924 e 30, Marechal Isidoro Dias Lopes, Coronel Juarez Távora, Brigadeiro Eduardo Gomes, Major Jurací Magalhães, ao General M. Rabello, ao Sr. José Américo de Almeida, aos numerosos amigos de Pedro Ernesto, aos moços de nossas escolas, à União Nacional de Estudantes, ao Centro XI de Agosto, etc, ao General Flores da Cunha, ao Sr. Raul Pilla, ao Sr. Borges de Medeiros, ao Sr. Artur Bernardes e seus amigos, aos Srs. Otávio e João Mangabeira, ao Sr. Armando Sales, ao Sr. Washington Luís, a todos os ex-senadores e ex-deputados, aos intelectuais e publicistas de prestígio nacional, como os Srs. Gilberto Freyre, em Pernambuco, Jorge Amado, na Bahia, Plínio Barreto, em São Paulo, etc, a todos os homens políticos que ocupam postos no atual Governo, assim como às organizações religiosas, inclusive a Ação Católica Brasileira e ao seu Chefe, Sr. Amoroso Lima.

Estamos certos de que, como patriotas e democratas, nenhuma de tais pessoas se recusará a assinar conosco da A.N.L. e do P.C.B. a seguinte plataforma de união nacional em tomo do Governo, como declaração prévia para que entrem em vigor aquelas medidas acima solicitadas ao Sr. Getúlio Vargas:

PROGRAMA DE UNIÃO DEMOCRÁTICA NACIONAL

  1. Luta contra o fascismo, sob todas as suas formas.
  2. Respeito a todas as opiniões políticas, credos religiosos, filosóficos, etc.
  3. Defesa da democracia, definida desde logo como regime essencialmente representativo e temporário, com o direito de voto assegurado a todos, sem limitações de sexo, classe, fortuna, posição social, raça ou cor.
  4. Apoio declarado e decidido ao atual Governo para prosseguir a guerra até a vitória completa sobra o nazismo.
  5. Colaborar ativamente e sempre de maneira construtiva com as autoridades em todas as medidas que visem o barateamento do custo da vida, a elevação do nível de vida das massas trabalhadoras e o bem-estar único de todas as camadas sociais.
  6. Aconselhar ordem e disciplina e fazer esforços honestos nesse sentido, dentro da mais ampla liberdade assegurada pelo Governo.
  7. Indicar ao Governo oportunamente qual o melhor caminho a seguir no restabelecimento — finda a guerra e dentro da ordem e da lei — das instituições democráticas e representativas no país.
  8. Por outro lado, espera-se do Governo ir afastando pouco a pouco, dos postos que ocupem, aqueles de seus membros mais reacionários, incapazes de se adaptarem à atmosfera de liberdade e que dificultem por isso a consolidação da união nacional para ganhar a guerra.

É nesta base que cremos possível a pacificação da família, brasileira e a consolidação da união nacional.

O Governo dispõe no momento da força, do poder, mas é cada vez mais claro que o prestígio, a autoridade moral, está do lado dos antifascistas, dos perseguidos políticos, principalmente daqueles que apodrecem há longos anos nas prisões do Estado. A união nacional será praticamente possível pela união da força com o prestígio, do poder com a autoridade moral. Aos antifascistas cabe o dever de colaborar agora com o Governo; mas ao Governo também o de reconhecer o direito à liberdade de que necessitam os primeiros para tornar efetiva uma tal colaboração. É o que esperamos que seja em breve reconhecido.

Vinguemos os nossos mortos, ajudando cada vez mais os povos das Nações Unidas a esmagar o nazismo!

Viva a Segunda Frente e o nosso Corpo Expedicionário!

Glória aos soldados, marinheiros e aviadores do Brasil!

Abaixo o nazismo e viva o Brasil!

Rio de Janeiro, abril de 1944.

Pela A.N.L. e pelo PCB.


Notas:

(1) «15.000 vagões de pinho parados no Estado do Paraná, milhares de toneladas de açúcar paralisadas em Pernambuco, montanhas de sal sem escoamento no R. G. do Norte, pilhas de charque amontoadas no Rio Grande do Sul» — escreve o Correio do Povo, Porto Alegre, 18 de Abril de 1944. (retornar ao texto)

(2) Trata-se aqui do processo político de união nacional das forças democráticas e não da formação de um partido, como de fato veio a se formar mais tarde sob a denominação de União Democrática Nacional, ou abreviadamente, U.D.N. (retornar ao texto)

Inclusão 20/07/2008