Anti-Dimitrov

Francisco Martins Rodrigues


2. O Pacto com a Social-Democracia


“Quanto maior for a influência da social-democracia, mais grave é o perigo do fascismo. Para obter êxitos na luta contra o fascismo e a guerra, é necessário que todas as secções da Internacional intensifiquem a actividade no sentido de arrancar os trabalhadores à influência dos partidos social-democratas.”

O. KUUSINEN, 1933(1)

No centro do relatório de Dimitrov e da política nova do 7.º congresso da IC está a ideia de que seria possível unir de imediato os diversos partidos de base operária para a luta contra o fascismo e a guerra e de que toda a actividade política dos comunistas devia passar a ser subordinada a esse objectivo. Recordemos como Dimitrov colocou a questão:

“Uma única coisa falta ainda à classe operária dos países capitalistas: a unidade das suas próprias fileiras.” “É possível realizar esta unidade de acção do proletariado nos diferentes países e no mundo inteiro? Sim, é possível. E imediatamente.” “O estabelecimento da unidade de acção de todos os destacamentos da classe operária na luta contra o fascismo” é “a tarefa central imediata do movimento internacional do proletariado”(2)

Como se ia realizar essa unidade de acção imediata de todos os destacamentos operários? O que é que a tornara possível?

Acordos de cúpula

A perspectiva da unidade de acção imediata de “todos os destacamentos operários” era algo de inteiramente novo em relação à política de frente única até então seguida pela Internacional. A IC sempre orientara a frente única no sentido de unir contingentes cada vez mais vastos do proletariado sob a direcção da sua vanguarda comunista, libertando-os da influência social-democrata, combatendo e desagregando a social-democracia e as outras correntes pequeno-burguesas no movimento operário.

Dimitrov abordou a questão da frente única de uma maneira nova, como ele próprio sublinhou. Tomou a compartimentação dos operários em comunistas, social-democratas, católicos, etc., como um dado que havia que aceitar nesse momento, por força das circunstâncias; partiu da ideia de que o partido comunista era um entre vários “destacamentos operários” e passou portanto a encarar a unidade de acção na base de acordos, como uma coligação de forças partidárias.

Por isso, embora reafirmando o princípio de que a unidade se conseguia, antes de mais, na base e pela acção, acrescentou-lhe uma ideia nova que veio modificar por completo a táctica da frente única:

“É necessário trabalhar para realizar acordos, tanto a curto como a longo prazo, sobre as acções a praticar em comum com os partidos social-democratas, os sindicatos reformistas e as outras organizações dos trabalhadores.”

E indicou a necessidade de assinar “pactos” e criar “comissões de contacto entre as direcções dos partidos comunista e socialista”, seguindo o exemplo que já vigorava em França(3).

É inegável que esta política dos pactos e acordos com as cúpulas social-democratas introduziu uma inversão na política de frente única que vinha sendo seguida desde o congresso anterior. Staline e Molotov, no auge da luta contra o oportunismo de Bukarine, tinham indicado à IC a via da frente única pela base como a forma de enfrentar a traição da social-democracia. A sua táctica não excluía as propostas de acção comum às estruturas de base e intermédias dos PSD e dos sindicatos reformistas mas só depois de as confrontar com uma corrente unitária nas massas e como meio auxiliar para engrossar essa corrente. Recorria aos desafios às direcções social-democratas mas só como forma de melhor as desmascarar face a um movimento em marcha. Excluía por princípio qualquer entendimento com os chefes amarelos dos PSD e dos sindicatos.

Admitindo os pactos e acordos por cima, e isto no momento em que as direcções social-democratas acabavam de se confirmar como gerentes do capital imperialista e cúmplices do fascismo, Dimitrov varreu toda a política anterior e privou de sentido a palavra de ordem da unidade pela base e na acção.

Na nova dinâmica criada pela busca de acordos, compreende-se facilmente que as suas garantias de que a política de frente única conservava o objectivo de “fazer passar as massas das posições do reformismo para o lado da revolução” e continuaria a assentar numa “luta irreconciliável contra o social-democratismo enquanto ideologia e prática de conciliação com a burguesia”, tinham que esvaziar-se de todo o conteúdo e tornar-se garantias meramente verbais, declarações inócuas de princípios. A “maneira nova” de entender a frente única veio subordinar de facto toda a política de frente única à negociação e à busca de um entendimento com os inimigos de classe. Transformou a política de frente única, de elemento da táctica revolucionária, em elemento de uma táctica oportunista de coligação de partidos “operários”.

Esta ideia de que o “realismo” era procurar a frente única pela negociação de cúpula com os partidos pequeno-burgueses, já Dimitrov a manifestara e aplicara na Bulgária (o que o levara a ser criticado e afastado da direcção do partido em 1929). Foi a mesma ideia que ele manifestou com toda a nitidez desde que começou a trabalhar na redacção das teses para o 7.º congresso, em Junho de 1934: “Deve deixar de se considerar oportunista todo e qualquer gesto voltado para os órgãos directivos do partido social-democrata.” “Convém não deitar tudo para as costas dos chefes social-democratas, mas indicar também a responsabilidade dos operários social-democratas” (no avanço do fascismo)(4).

A busca de acordos com as direcções social-democratas — eis a “maneira nova” com que Dimitrov encarou a política de frente única.

Apoio aos governos social-democratas

A nova atitude face à social-democracia foi estendida por Dimitrov mesmo aos países onde os PSD estavam no governo. Embora assegurando que os comunistas continuariam a manter uma posição “absolutamente negativa” face a esses governos, Dimitrov afirmou que isto não devia ser visto como um obstáculo inultrapassável para a frente única e que “também neste caso a frente única é perfeitamente possível e indispensável”(5).

Em que consistiria? Os partidos comunistas não deveriam de futuro limitar-se a denunciar a política anti-operária dos governos social-democratas, mas passar a exigir-lhes que levassem à prática a parte positiva dos seus programas. Assim criariam um ponto de partida para em seguida alargar a campanha pela frente única entre as massas social-democratas.

Na Bélgica, por exemplo, deveriam dizer: “Ministro Vandervelde, apoiamos as reivindicações a favor dos operários contidas na sua plataforma, mas tomamo-las a sério, queremos actos e não palavras vãs”... (Vandervelde era um chefe da II Internacional que se passara para o campo da burguesia imperialista desde a I Guerra Mundial, pelo que fora denunciado por Lenine.) Do mesmo modo, na Suécia, na Noruega, na Checoslováquia, os PC tinham campo de acção na luta pela realização das promessas feitas pelos PSD.(6)

Na Inglaterra, onde os trabalhistas tinham perdido o governo a favor dos conservadores, depois de traições sucessivas à classe operária, o PC deveria dizer aos operários: “Querem um governo trabalhista? Seja... Estamos prontos a apoiar a vossa luta pela formação de um novo governo trabalhista. Mas exigimos dele que defenda os interesses económicos e políticos mais urgentes da classe operária e de todos os trabalhadores.” “Os comunistas ingleses estão prontos a apresentar-se em comum com as organizações do Partido Trabalhista às próximas eleições parlamentares contra o ‘governo nacional’.”(7) Esta seria a maneira mais frutuosa de libertar os operários de ilusões, na linha do que já vinha sendo aplicado em França.

Neste caso também, como no anterior, em nome da flexibilidade táctica, Dimitrov introduziu uma política inteiramente nova face à social-democracia. A IC nunca defendera que os comunistas se devessem limitar à simples propaganda contra os governos social-democratas. Sempre orientara os PC no sentido de porem em confronto perante a classe a contradição entre as promessas da social-democracia enquanto era oposição e os seus actos quando chegava ao governo. Mas sempre utilizara isso como uma parte no seu trabalho de agitação e propaganda, que visava encaminhar as massas na via das palavras de ordem revolucionárias do partido comunista e emancipá-las das esperanças reformistas. A IC sempre mantivera claro que a táctica dos comunistas assumirem como suas as promessas social-democratas só tinha aplicação revolucionária quando as massas operárias em ascenso estavam em condições de arrancar aos chefes amarelos promessas irrealizáveis no quadro do capitalismo, estreitando assim cada vez mais o campo de manobra da social-democracia e amadurecendo condições para uma crise revolucionária.

Ora, Dimitrov, ao rebaixar o campo das reivindicações comunistas à “parte positiva” dos programas de governo social-democratas, ao fazer dos PC os lutadores mais consequentes pela realização das promessas social-democratas, empurrava os partidos para o papel de apêndices de esquerda da social-democracia. Em nome de uma agitação “mais eficaz” junto das massas social-democratas, os PC iriam amarrá-las às palavras de ordem truncadas, ilusórias, dos PSD, incapazes, mesmo no melhor dos casos, de sair dos limites da ordem burguesa. Seriam os PC a fechar as massas no mesquinho horizonte reformista em que eram metidas pela social-democracia. Seriam os comunistas, em nome do falso radicalismo do “queremos actos”, a activar nas massas atrasadas a expectativa de que finalmente iriam obter de um governo “socialista” as reformas prometidas.

Apoio crítico e pressão positiva sobre os governos social-democratas — eis o segundo elemento da nova táctica de frente única de Dimitrov.

Liquidação da corrente sindical revolucionária

A acção sindical, que sempre constituíra o terreno mais fértil para a aplicação da política de frente única operária, só mereceu umas escassas cinco páginas no relatório. Nelas Dimitrov expôs a mesma tese que atravessa todo o relatório: embora no passado os chefes reformistas tivessem criado a divisão, com a sua política de colaboração com a burguesia e de discriminação contra os comunistas, estes deveriam fazer uma viragem para a unidade sindical à escala nacional e internacional. Sindicatos de classe únicos em cada país e Internacional Sindical Única com base na luta de classe seria o seu objectivo, a atingir pela unificação das organizações sindicais existentes.(8)

Esta ideia da unificação das organizações sindicais existentes constituía uma inversão completa da linha sindical que fora seguida pela ISV a partir do 10.º Pleno do CEIC, de Julho de 1929. De facto, esse pleno impulsionara, na linha das resoluções do 6.º congresso da IC, a disputa directa do movimento sindical aos reformistas, acabando com a expectativa seguidista que se viera infiltrando na acção sindical comunista. Fora aí colocada na ordem do dia a tarefa de “afirmar a influência directa do Partido Comunista sobre a maioria da classe operária por meio das suas correias de transmissão: sindicatos, comités de empresa, comités de greve, etc.”, fazendo “apelo directo à classe operária, aos operários social-democratas e sem partido, aos operários organizados e desorganizados”.(9) A táctica passiva de pressionar os caciques sindicais e esperar pela gradual transformação dos sindicatos por dentro fizera o seu tempo. Impunha-se apontar a actividade da corrente sindical revolucionária para a conquista das massas sindicalizadas, a fim de correr com os chefes amarelos e rompe com o legalismo sindical, que se confundia cada vez mais com a legalidade burguesa(10).

Vitalizada por esta política, a ISV decidira no seu 5.º congresso, de Agosto de 1930, fortalecer a oposição sindical revolucionária como núcleo potencial de uma nova estrutura sindical, criar núcleos sindicais revolucionários a nível das fábricas, concorrer com listas próprias às eleições sindicais, responder às perseguições dos caciques sindicais amarelos com a criação de sindicados vermelhos, lá onde, e apenas onde, a oposição sindical revolucionária já dispunha de uma forte implantação de massas(11).

Foi a aplicação desta linha de disputa aberta com a social-democracia que permitiu à ISV durante os anos da grande crise, sobretudo em 1932, conduzir grandes greves, manifestações de desempregados e actos de rebelião aberta, através dos quais a parte mais activa do proletariado se passou dos velhos sindicatos reformistas para sindicatos revolucionários.

Dimitrov nada disse no seu relatório sobre esta rica experiência no terreno sindical, que abria largas perspectivas de desagregação da corrente sindical reformista. E isto porque toda a sua nova política de frente única exigia um acordo geral com a social-democracia. Foi por isso que no 7.º congresso, em vez de dar novo impulso à ISV, corrigindo audaciosamente as vacilações e manifestações de passividade e estreiteza que ainda a limitavam, veio criticar a “presunção sectária” dos comunistas que insistiam em levar por diante a corrente sindical revolucionária em confronto com os reformistas, veio assegurar aos reformistas que “os comunistas não defendem a todo o preço a existência independente de sindicatos vermelhos”(12), veio condenar a experiência alemã, com o argumento de que “tudo se concentrava em volta da Oposição sindical revolucionária que visava de facto substituir os sindicatos”(13), veio exaltar a experiência francesa de compromisso com o sindicalismo social-democrata.

Dimitrov condenou, pelo silêncio ou pela crítica explícita, toda a orientação anterior da ISV, que visava a derrota do reformismo como condição para a unidade sindical. E, em lugar dela, propôs uma outra, a via da unificação sindical pelo acordo com a social-democracia. Quando declarou que a viragem para a unificação sindical seria “a etapa essencial na consolidação da frente única”(14), ele estava chamando a atenção do congresso para a necessidade de fazer concessões à social-democracia na questão sindical como contrapartida para tomar possível a negociação de um acordo político global entre PC e PSD.

Com efeito, a frente sindical era o ponto mais sensível nas relações entre PC e PSD, porque nela se jogava a disputa da influência directa, diária, sobre as grandes massas proletárias. Os social-democratas, que viam a sua hegemonia sindical ameaçada pelo avanço dos comunistas, exigiam, como condição para qualquer acordo, a dissolução da ISV e da corrente sindical independente. E foi isso que Dimitrov e o 7.º congresso lhes deram. A partir do 7.º congresso, a IC jogou toda a sua política sindical na negociação com a IOS e as cúpulas social-democratas, com vistas à fusão numa organização sindical única. Desmantelou-se a corrente sindical de classe, integraram-se os sindicatos vermelhos existentes nos sindicatos reformistas, e por fim dissolveu-se a ISV (1937).

As “condições” enunciadas por Dimitrov para a unificação — luta contra o capital, luta contra o fascismo, democracia no interior dos sindicatos — tinham só um valor de regateio. O que interessava isso se a unificação estava à partida decidida no sentido exigido pelos social-democratas, isto é, pela capitulação da política sindical independente dos comunistas?

Com a “viragem” do 7.º congresso, cumpriu-se a ameaça entrevista pelo 12.º Pleno do CEIC, ao alertar que “o perigo principal na actual etapa” é “a capitulação oportunista perante a burocracia sindical reformista, na ânsia de obter a unidade a todo o custo(15).

O “ascenso revolucionário” da social-democracia — uma invenção

Como iam os PC chamar os PSD à unidade de acção contra o fascismo e a ameaça de guerra? Porque se tornara de repente possível aquilo que até então fora impossível? Isso acontecia, afirmou Dimitrov, porque na social-democracia teria surgido “um campo de elementos revolucionários... partidário da realização da frente única com os comunistas e começando, cada vez em maior número, a passar para as posições da luta revolucionária de classe”, “um campo de social-democratas de esquerda (sem aspas), de operários em vias de se tornar revolucionários”(16).

Esta ideia, apresentada de forma ainda pouco desenvolvida no relatório, podia passar como uma mera reafirmação mais enfática da diferença que sempre a IC fizera entre as cúpulas social-democratas e a sua base operária. Mas ela tomou contornos precisos no discurso de encerramento do debate, como uma apreciação globalmente nova do papel da social-democracia.

A situação e a atitude da social-democracia em relação à burguesia, sustentou Dimitrov, “modificaram-se ou estão a modificar-se”, porque, devido à crise, “as camadas mais abastadas da classe operária, a que se chama a aristocracia operária... estão a rever cada vez mais as suas antigas opiniões sobre a utilidade da política de colaboração de classe com a burguesia”; “há um processo de ascenso revolucionário que se está verificando no seio dos partidos social-democratas de todos os países”; “torna-se mais difícil, e em certos países completamente impossível para a social-democracia a continuação do seu antigo papel de sustentáculo da burguesia”(17).

Não é demais insistir sobre o enorme alcance político desta tese (que Dimitrov não tentou sequer documentar com qualquer exemplo). Se toda a camada superior da classe operária renunciava à colaboração de classe, se a social-democracia entrava em ascenso revolucionário em todos os países e tendia a deixar de ser o sustentáculo da burguesia — isso significava que era preciso substituir a política de desagregação da social-democracia pela aliança com ela, a começar pela sua ala esquerda. Para justificar a nova política de aliança com a social-democracia, Dimitrov teve de inventar um “ascenso revolucionário” inexistente.

A verdade, que a história comprovou sem lugar para dúvidas, é que não se estava a dar nenhum ascenso revolucionário da social-democracia, nem qualquer mudança fundamental no alinhamento da aristocracia operária. Mantinha-se actual a observação do 6.º congresso de que “a aristocracia da classe operária, comprada e corrompida pelo imperialismo, que constitui os quadros dirigentes dos partidos social-democratas... colocou-se, no momento das batalhas de classe decisivas, ao lado do inimigo de classe do proletariado”(18).

O que havia de novo — e Dimitrov não podia ignorá-lo — era uma pressão crescente na massa operária dos PSD para se chegar a um acordo unitário com os comunistas, numa base democrático-reformista, na esperança de que assim se evitassem novas vitórias do fascismo semelhantes às da Alemanha e da Áustria. Longe de ser um “ascenso revolucionário”, tratava-se de uma reacção puramente defensiva, que visava reforçar o campo do reformismo com o concurso dos comunistas. Não se tratava de nenhuma renúncia por parte da aristocracia operária à colaboração com a burguesia, mas de um reforço da corrente democrático-burguesa nas massas intermédias, atemorizadas pelo avanço do fascismo.

Sem dúvida, os PC deviam utilizar esta deslocação, na medida em que ela favorecia a frente unida de resistência ao fascismo. Mas só poderiam fazê-lo se tivessem clara consciência dos seus limites. Isto significava que deviam manter a iniciativa política e a decisão revolucionária, redobrar nas propostas de acção unida aos operários social-democratas, redobrando ao mesmo tempo na denúncia implacável da atitude sabotadora dos dirigentes e aparelhos da social-democracia. Só esta ofensiva combinada teria acelerado a evolução das bases social-democratas vacilantes e não revolucionárias, transformando-a numa larga deslocação para a esquerda, teria agravado as discórdias nas esferas superiores da social-democracia (como de resto previra o 13.º Pleno)(19), e teria consumado a ruptura que se desenhava no campo social-democrata.

Com a tese inventada do “ascenso revolucionário” da social-democracia e a consequente viragem para a coligação com ela, os PC incapacitaram-se para aprofundar a brecha nos PSD e, pelo contrário, ajudaram a colmatá-la. Obtiveram êxitos imediatos e aparentes à custa do reforço da social-democracia, do reforço das ilusões democrático-reformistas nas massas operárias e do consequente enfraquecimento da corrente operária revolucionária.

Crítica de compromisso

Mas não é verdade que, ao dirigir-se aos PSD para tentar a todo o custo um acordo de acção contra o fascismo, Dimitrov não abdicou da crítica de princípios que a IC sempre fizera à social-democracia? Não reafirmou ele claramente que “a social-democracia abriu ao fascismo o caminho do poder... desorganizando e dividindo as fileiras da classe operária”? Não condenou com vigor o “papel cisionista reaccionário dos chefes da social-democracia” e a “política social-democrata de colaboração de classe com a burguesia”?(20)

Examinemos esta objecção, que costuma ser invocada em defesa de Dimitrov. É certo que não faltam, ao longo do seu relatório, as críticas à social-democracia. Era impossível omiti-las, no momento em que as sucessivas traições dessa corrente faziam sentir os seus resultados no avanço do fascismo. O que é significativo é que Dimitrov, forçado a criticar a social-democracia, neutralizou essa crítica sob uma avalanche de argumentos conciliatórios, que funcionaram como uma oferta de compromisso.

Veja-se a crítica aos partidos social-democratas por não terem aproveitado a sua passagem pelo governo (na Alemanha, na Áustria, na Espanha) para dissolverem as forças reaccionárias, depurar o exército, expropriar os latifundiários, etc., etc.(21) Parecerá aos comunistas inexperientes ou desprevenidos uma crítica de princípio. Mas discutir aquilo que a social-democracia devia ou não devia ter feito, do ponto de vista revolucionário, era já tratá-la como um partido operário vacilante e não como um partido burguês. Em vez de mostrar que os sucessivos serviços prestados à burguesia contra o proletariado é que tinham dado acesso aos lugares de ministros para os chefes amarelos, para irem continuar a trair a classe, num plano mais elevado, Dimitrov argumentou como se fosse possível esperar outra coisa desses governos. Criticando os maus governos social-democratas, deixava implícita a ideia de que poderiam vir outros melhores.

Vejam-se, por outro lado, as garantias prodigalizadas por Dimitrov à social-democracia, de que os comunistas só querem alargar a sua influência, não “por estreito interesse de partido”, mas porque anseiam por reforçar a frente unida; de que os comunistas não atacam a social-democracia como tal mas apenas criticam os inimigos da unidade; de que os comunistas convêm mais à social-democracia como aliados do que os partidos democrático-burgueses(!!); de que os comunistas não representam qualquer ameaça para a pequena burguesia, não pretendem para já a ditadura do proletariado mas apenas defender as liberdades, de que não são ditadores nem querem comandar nada, etc., etc.(22)

Toda esta confrangedora série de explicações à social-democracia, para tentar ganhá-la para um acordo, retirava os PC do seu terreno revolucionário próprio e deslocava-os para o terreno democrático-burguês. Implicava um compromisso de que os operários iriam deixar de lutar para si próprios, para passar a pôr-se ao serviço da coligação antifascista, isto é, da democracia burguesa. Formalmente dirigida às bases do PSD, ela continha na realidade uma transparente oferta de tréguas e de compromisso aos chefes social-democratas para um consórcio antifascista mediante um recuo estratégico dos PC.

Constatando que “o proletariado internacional sofreu demasiado com as consequências da cisão do movimento operário”, Dimitrov perguntava: “Não é claro que a acção comum dos aderentes dos partidos e organizações das duas Internacionais — da IC e da II Internacional — facilitaria a resposta de massas ao impulso fascista e aumentaria o peso político da classe operária?”(23)

Ora, as vantagens da unidade nunca ofereceram dúvidas a ninguém. O que importava era mostrar donde tinham partido os obstáculos à unidade de acção, explicar as causas sociais que tornavam impossível a unidade das duas Internacionais. O apelo unitário de Dimitrov não conseguiu mudar a natureza de classe da social-democracia. A única coisa que conseguiu, ao prender os comunistas à miragem da unidade, foi arrastá-los para o abandono das suas próprias posições revolucionárias.

A batalha anti-sectária

Um dos principais méritos de Dimitrov, diz-se desde há 50 anos, foi a coragem com que declarou guerra ao sectarismo que entorpecia as fileiras comunistas e as incapacitava para uma audaciosa política de frente única contra o fascismo. É altura de situarmos politicamente esta campanha contra o sectarismo, que desde então nunca mais deixou de estar no centro da vida dos partidos.

“Na situação actual — afirmou Dimitrov — é o sectarismo, o sectarismo auto-suficiente, como o qualificamos no projecto de resolução, que entrava antes de tudo a nossa luta pela realização da frente única.”(24). A tarefa central dos comunistas era pois “extirpar todos os vestígios do sectarismo”, esse “vício enraizado”, que vinha bloqueando a sua influência política e que “representa no momento actual o maior obstáculo à aplicação da verdadeira política bolchevique de massas dos partidos comunistas”(25). Havia que acabar com o “isolamento da vida real das massas”, meter-se na “escola das massas”, “pôr fim ao esquematismo e ao limitado espírito doutrinário”, não tomar os desejos por realidades, conformar-se com a situação objectiva, etc.

Com razão se vê nesta campanha anti-sectária lançada por Dimitrov uma autêntica revolução na vida da IC, uma linha de separação entre duas épocas distintas. Só que o sentido dessa “revolução” não foi o que normalmente se lhe atribui. O que ela trazia de novo era que, ao exigir que se derrubasse como “sectário” tudo o que entravava a imediata realização da frente única, Dimitrov privava os comunistas dos seus próprios critérios revolucionários e subordinava-os à pressão espontânea do movimento, que ia toda no sentido da coligação entre comunistas e socialistas. A batalha “anti-sectária” do 7.º congresso teve assim um papel decisivo na preparação dos comunistas para aceitarem como bom aquilo que antes criticavam, baseados em posições de princípio.

Ao “descobrir” no movimento comunista internacional o “vício enraizado do sectarismo”, Dimitrov falseou todos os fundamentos da linha de massas até aí praticada. Na realidade, os comunistas já sabiam que era preciso unir-se às massas, evitar o isolamento da vanguarda, traçar as tarefas correspondentes a cada etapa da revolução, escolher as formas de luta adequadas ao estado do movimento, etc. Mas também sabiam que a união às massas não podia ser absolutizada: a denúncia da colaboração de classe da social-democracia forçosamente pareceria “sectária” às massas operárias atrasadas, mas nem por isso podia deixar de ser feita; a denúncia dos conluios da burguesia liberal e da Igreja com o fascismo não podia ser calada, embora parecesse necessariamente “sectária” às grandes massas dominadas por preconceitos democrático-reformistas e religiosos; nem se podia desistir da crítica ao pacifismo, ainda que ela parecesse “sectária” e mesmo “insensata” a milhões de trabalhadores atemorizados pela ameaça de guerra, etc.

Numa palavra: era inevitável que uma política de defesa dos interesses revolucionários do proletariado aparecesse em certas alturas como “rígida”, “sectária”, “estreita”, aos olhos de grandes massas que só seriam instruídas nas batalhas de classe. Os comunistas tinham de procurar as palavras de ordem, as formas de acção, as iniciativas que melhor contribuíssem para deslocar as massas em direcção às tarefas que a vida delas exigia. Não podiam, em nome do combate ao sectarismo, pôr-se a reboque da consciência espontânea do movimento.

Mas foi esta adaptação que Dimitrov lhes veio exigir. Condenar o “sectarismo” como o mal supremo dos PC num momento em que sobre as massas se exercia a pressão avassaladora do reformismo e do pacifismo equivalia a nivelar o movimento pelas posições mais recuadas. Isto explica a popularidade fácil que a partir de então a “luta contra o sectarismo” obteve como tarefa central permanente no movimento comunista. Em nome da “ligação às massas” dissolveram-se os critérios de princípio, justificaram-se todas as cedências e adaptações oportunistas.

Lenine e a unidade operária

A ideia de que a política de frente única consistiria em tudo subordinar à conquista da maioria da classe operária foi apresentada por Dimitrov e pelas teses do CEIC para o 7.º congresso como se correspondesse às posições defendidas por Lenine no 2.º congresso da Internacional.

Ora, Lenine pusera aí a questão de forma muito diferente, que não é demais recordar. A tarefa, para alcançar a vitória do socialismo — dissera Lenine — consistia em “arrastar e conduzir atrás da vanguarda revolucionária do proletariado, do seu partido comunista, não apenas todo o proletariado ou a sua esmagadora maioria, mas também toda a massa dos trabalhadores e dos explorados pelo capital”(26).

E porquê se tornava necessário arrastar e conduzir atrás? Lenine não deixara dúvidas:

“Supor que a maioria dos trabalhadores e dos explorados poderia, nas condições da escravidão imperialista, sob o jugo da burguesia, ganhar uma consciência, convicções, um carácter socialista absolutamente claro e a toda a prova” é “idealizar o capitalismo e a democracia burguesa”.

“Só depois de a vanguarda do proletariado, apoiada por toda a classe que é a única revolucionária, ou pela sua maioria, ter derrubado os exploradores, os ter esmagado, ter libertado os explorados da escravidão e melhorado de imediato as suas condições de existência à custa dos capitalistas expropriados, só após uma áspera luta de classe e no próprio decurso dela, será possível realizar a instrução, a educação e a organização das mais largas massas trabalhadoras e exploradas em tomo do proletariado, sob a sua influência e direcção.”(27)

Lenine falava pois na conquista da maioria, mas como um processo que depende da coerência revolucionária da minoria. Combatendo a ideia de que o partido comunista, como minoria, não deveria tomar a direcção da revolução, disse Lenine também nesse congresso:

“Na época do capitalismo, quando as massas operárias estão submetidas a uma exploração contínua que impede o desenvolvimento das suas capacidades humanas, o traço mais característico dos partidos políticos operários reside precisamente no facto de só poderem atingir uma minoria da sua classe. O partido político agrupa apenas uma minoria da classe, do mesmo modo que em qualquer sociedade capitalista os operários realmente conscientes não passam de uma minoria dos operários. É forçoso pois reconhecer que só esta minoria consciente pode dirigir as largas massas operárias e arrastá-las consigo.”(28)

Estão aqui, como se vê, duas concepções antagónicas de frente única operária. Para Lenine, a chave da unidade operária está em elevar a consciência e capacidade revolucionária da vanguarda, para que ela se torne capaz de arrastar consigo a maioria da classe, e atrás dela, as grandes massas trabalhadoras. Por isso mesmo, Lenine nunca perdeu tempo a explicar as vantagens da unidade, nem espalhou sonhos numa ampla unidade geral dos operários. Trabalhando pela hegemonia do proletariado, sob a condução da sua vanguarda, estava a trabalhar pela unidade. A unidade viria (como se comprovou no Verão de 1917 com a conquista da maioria dos sovietes para o lado dos bolcheviques) como produto da hegemonia.

Para Dimitrov, o problema pôs-se de modo inverso. Alegando que a ameaça do fascismo e da guerra exigia um caminho mais rápido para a unidade operária, sacrificou o princípio da hegemonia e fez recuar a vanguarda comunista para o terreno mais aceitável para a massa. É esse o significado da sua batalha contra o “sectarismo”.

Condenação da linha de “classe contra classe”

Para fazer aceitar pelos partidos esta “maneira nova” de entender a frente única operária, era necessário rejeitar a política seguida pela IC desde o congresso anterior. Mas como isso implicaria um ataque directo a Staline, principal responsável por essa política, Dimitrov optou por desacreditá-la indirectamente, em nome da denúncia do sectarismo.

A linha aprovada pelo 6.º congresso, afirmou, fora justa, mas a sua aplicação fora distorcida devido a que a luta contra o sectarismo “não fora sequer iniciada”(29). E estendeu um verdadeiro rosário de erros que teriam sido cometidos:

“...o sectarismo travava em notável medida o crescimento dos partidos comunistas, entravava a realização de uma verdadeira política de massas, impedia a utilização das dificuldades do inimigo de classe para reforçar as posições do movimento revolucionário, dificultava os esforços para fazer passar as grandes massas proletárias para o lado dos partidos comunistas.” Sobrestimava-se a maturação revolucionária das massas, tentava-se queimar etapas, substituía-se com frequência a direcção das massas pela direcção de um estreito grupo do partido, subestimava-se a força de ligação tradicional das massas com as suas organizações, estandardizava-se a táctica e as palavras de ordem para todos os países, menosprezava-se o esforço para conquistar a confiança das massas, desdenhava-se a luta pelas reivindicações parciais dos operários, etc., etc.(30)

Aquilo que Dimitrov enumerou como práticas sectárias foram na realidade outras tantas acusações veladas de esquerdismo que dirigiu à política de “classe contra classe”. Só insinuando essa ideia podia fazer passar a sua viragem sem incorrer na acusação de direitismo.

Não sendo aqui o lugar para dar o balanço à política de “classe contra classe” e aos erros que eventualmente tenha comportado, é preciso dizer que esta imagem de um movimento afogado no sectarismo e paralisado pelo esquerdismo é uma deturpação grosseira da realidade.

Se isso tivesse sido assim, como se compreenderiam as grandes lutas, greves, etc., envolvendo milhões de trabalhadores, conduzidas nos anos da grande crise pelos PC da Alemanha, EUA, Checoslováquia, França, Polónia, Roménia, Espanha? Como se explicaria o aumento incessante da influência de massas do KPD antes do golpe nazi (de 10,6 parai 6,8 % dos votos entre 1928 e 1932)? Como teria sido possível que os PC, quase por toda a parte sujeitos a férrea clandestinidade (havia apenas 16 partidos legais), tivessem passado de 65 para 76 e o número de comunistas (sem contar o partido soviético) tivesse aumentado em 300 mil?(31)

Dimitrov não disse, porque isso enfraqueceria o crédito da sua campanha anti-sectária, que o CEIC mantivera desde 1928 uma luta perseverante em duas frentes, em primeiro lugar contra o oportunismo de direita, mas também contra as tendências esquerdistas e sectárias suscitadas nos partidos pela radicalização da luta de classes e pelas traições da social-democracia,

O 6.º congresso e os plenos do CEIC fizeram uma crítica enérgica aos comunistas que resistiam à táctica de frente única operária, que se recusavam a trabalhar nos sindicatos reformistas e tendiam a encerrar-se em pequenos sindicatos vermelhos sem base de massas, que identificavam a social-democracia com o fascismo e confundiam as massas social-democratas com os seus chefes amarelos, que substituíam as palavras de ordem parciais pela propaganda abstracta da revolução, ou que se deixavam arrastar para o aventureirismo putchista(32).

Se predominaram durante este período tendências esquerdistas e aventureiras em certos partidos, como foi o caso do PC da China, essa não foi de forma alguma a característica geral do movimento.

O que se passara nesse período, e devia ter sido realçado por Dimitrov para se entender a orientação geral da política de “classe contra classe”, fora uma brutal guinada à direita da social-democracia, a reboque da burguesia reaccionária. Como justamente observara a reunião do Presidium do CEIC, de Fevereiro de 1930, “quanto mais aguda a crise do sistema capitalista, tanto mais rapidamente os dirigentes da social-democracia se transformam num elemento acessório da oligarquia financeira, tanto mais activo e directo se torna o papel da social-democracia na defesa do sistema capitalista, na repressão do movimento revolucionário das massas operárias e dos povos coloniais, assim como na preparação da guerra contra a União Soviética”(33).

Esta situação objectiva não só justificava como exigia da IC uma intensificação da luta contra a social-democracia. O argumento, insinuado por Dimitrov e mais tarde repetido em coro por todos os revisionistas, de que a “rigidez” dos comunistas em 1928-1934 acentuara a divisão do movimento operário e favorecera o ascenso do fascismo, põe a questão de pernas para o ar para ilibar a social-democracia.

Staline e a esquerda da IC viram justo quando denunciaram a social-democracia alemã, polaca, austríaca, inglesa, como social-fascista, quando alertaram os comunistas contra a tentação de uma aliança com as alas “esquerda” social-democratas, que funcionavam como cavalos de Tróia da capitulação junto dos PC, quando insistiram em que, nas condições existentes, a frente única só podia ser obtida pela união na base e na acção.

Staline tivera razão ao centrar o fogo da luta interna na IC sobre as tendências direitistas e conciliadoras que obstruíam a disputa directa do movimento operário e tentavam impor uma negociação com a social-democracia. Se as tendências vacilantes e capituladoras de Bukarine, Droz, Tasca, Ewert, Togliatti, e do próprio Dimitrov, que tinham afinidades com as posições então defendidas por Trotski, não tivessem sido denunciadas e batidas em 1929-1933, toda a capacidade de luta dos comunistas contra o fascismo e a guerra teria sido esvaziada e o assalto imperialista contra a União Soviética teria sido desencadeado muito mais cedo.

Foi essa resistência inquebrantável à ofensiva reaccionária e aos seus servidores social-democratas que Dimitrov condenou sob a bandeira do “anti-sectarismo”.

Quem deu a vitória ao nazismo?

Para abrir espaço à nova política de entendimento com a social-democracia, Dimitrov teve que adoçar e diluir o balanço às causas da vitória do nazismo, Aquilo que era a principal tarefa política do 7.º congresso — analisar o processo de luta de classes que conduzira o fascismo ao poder no país de mais forte movimento operário e onde se vivera a mais profunda crise revolucionária da Europa — ficou reduzido no relatório a algumas críticas dispersas ao “papel cisionista reaccionário dos chefes da social-democracia alemã”, atenuadas inclusive pela crítica paralela aos comunistas, que também teriam sido culpados de sectarismo e de falta de vigilância contra o nazismo(34).

Com esta discrição e esta partilha das responsabilidades a meias, Dimitrov abriu as portas à campanha mistificadora com que a social-democracia desde então procurou fazer esquecer a sua traição histórica e lançar sobre a “cegueira sectária” dos comunistas a principal responsabilidade no advento do nazismo.

O que o 7.º congresso deveria ter analisado frontalmente para tirar lições era a política de classe que levara o SPD no poder a massacrar os manifestantes do 1.º de Maio de 1929 em Berlim, a pôr o reaccionário Hindenburg na presidência, a rejeitar o apelo à frente única operária lançado pelos comunistas quando da queda do governo Bruning em Maio de 1932, a capitular sem um tiro perante o golpe de von Papen, apesar de dispor de uma força de 90 mil homens armados, a rejeitar as propostas comunistas de greve geral quando Hitler subiu ao poder, contrapondo-lhes apelos “à calma e ao bom-senso”, a declarar obediência a Hitler quando milhares de operários eram presos e massacrados, a participar nos festejos nazis do 1.º de Maio, a expulsar por fim os judeus do SPD... numa espantosa sucessão de traições, para tentar salvar, mesmo de rastos, a legalidade, os postos parlamentares, sindicais e administrativos.

A Dimitrov não convinha remexer demasiado neste passado “doloroso”, porque isso obrigaria a reafirmar a linha de demarcação antagónica entre comunismo e social-democracia. Por isso recorreu ao subterfúgio de pôr o passado para trás das costas com brandas censuras e lamentações. Para Dimitrov era “pouco táctico” reconhecer que a social-democracia alemã se transformara num partido abertamente contra-revolucionário depois da repressão sangrenta que exercera sobre os operários durante os acontecimentos revolucionários de 1918 e 1923 e que o qualificativo de “social-fascista” que lhe fora dado pelo KPD era inteiramente merecido e o único apropriado.

Dimitrov precisava de fazer esquecer a apreciação do 12.º Pleno do CEIC, que pusera o dedo na ferida ao sublinhar que, “para a social-democracia, a questão do ‘mal menor’ põe-se, não como a escolha entre democracia ou fascismo, mas como a escolha entre fascismo ou revolução proletária. A social-democracia escolhe a ditadura fascista como mal menor face à ditadura do proletariado(35).

Mas fora isto precisamente que se passara. Perante a deslocação de milhões de operários para o campo do comunismo durante os anos da grande crise e perante a perspectiva de uma confrontação entre comunismo e nazismo, a social-democracia alemã optara pelo apoio deliberado ao nazismo, como barreira à ameaça da revolução.

Só neste quadro poderia o 7.º congresso ter feito uma análise correcta aos erros dos comunistas alemães. Erros tácticos pontuais, como a participação no plebiscito na Prússia (exigido pelos nazis para tentar derrubar o governo social-democrata), não podiam obscurecer o facto de que os comunistas tinham sido os únicos a ocupar a ponta da luta contra o ascenso do nazismo, a dar a vida desde 1930 nos combates de rua contra os bandos das SA, a lançar, apesar da sabotagem do SPD, acções antifascistas de massa e acções unitárias, como o Congresso de Unidade Antifascista, de Julho de 1932 em Berlim, a multiplicar as propostas de acção comum, sempre rejeitadas.

Uma análise de princípio à acção do KPD teria revelado que o seu erro principal não fora a “arrogância” que Dimitrov lhe censurou, mas, pelo contrário, fora a insuficiente decisão para assumir as suas responsabilidades revolucionárias, desagregar mais audaciosamente a influência social-democrata na classe operária, ganhar um apoio sólido no campesinato desorientado pela demagogia nazi e preparar-se a tempo para enfrentar pelas armas o assalto nazi, contando com as próprias forças. O erro essencial do KPD fora ainda a dependência da social-democracia, uma certa ilusão no comportamento dos chefes social-democratas.

A experiência alemã provara que, na nova época de ascenso da reacção e de marcha acelerada para a guerra imperialista, não havia terreno para qualquer política de coligação com a social-democracia e que se impunha mais do que nunca combatê-la e isolá-la, como condição para libertar as forças revolucionárias do proletariado. Ao apresentar a questão de pernas para o ar, Dimitrov tirou aos comunistas toda a clareza para enfrentarem as tarefas que os esperavam, abriu as portas dos partidos à penetração do oportunismo.

Em defesa do oportunismo

Nunca os defensores de Dimitrov e do 7.º congresso puderam explicar satisfatoriamente a omissão quase total que aí foi feita da luta contra o oportunismo de direita, e isto num momento em que a pressão reaccionária e reformista se exercia sobre os partidos com uma intensidade extrema.

Perante o alastrar do terror fascista, que nada parecia capaz de deter, era inevitável que o desencorajamento, a busca da protecção democrático-burguesa, a tendência para o compromisso e a capitulação inundassem os PC. Sintomas desses multiplicavam-se nas tomadas de posição dos dirigentes dos PC de França, de Espanha, dos Estados Unidos, um pouco por todo o movimento comunista.

O 7.º congresso era chamado a lançar uma grande batalha contra o oportunismo, como condição para preservar a integridade revolucionária da IC. O essencial era armar os comunistas para estarem à altura da prova histórica que lhes era imposta pela maior crise do sistema capitalista.

No relatório de Dimitrov não se encontram porém nem traços dessa batalha. O perigo do oportunismo desaparece, submergido na campanha obsessiva contra o “sectarismo”. Não interessa, diz Dimitrov, saber qual dos dois perigos, sectarismo ou oportunismo, é, “em geral”, o mais importante. Há perigos de oportunismo, concede, que tenderão a crescer à medida que se aplicar a nova política de frente única, mas há sobretudo sectarismo enraizado e este é o maior obstáculo à unidade operária. Conclusão: “em geral”, não interessa saber qual dos dois é mais perigoso; no concreto, o que interessa é combater o sectarismo e deixar por agora o oportunismo... Acabe-se, reclamou Dimitrov, com “o desporto de dar caça aos desvios e desviacionistas imaginários”(36). Era o que melhor podiam ouvir os oportunistas, ansiosos por abrir espaço nos partidos à sua tendência de conciliação e capitulação.

Em 1920, numa situação inteiramente oposta, quando o ascenso revolucionário subsequente à guerra e à revolução de Outubro alimentava no jovem movimento comunista uma explosão de esquerdismo, Lenine, saindo a dar combate a essa “doença infantil do comunismo”, não se esquecera de sublinhar:

“Sem preparar da maneira mais séria e aprofundada a parte revolucionária do proletariado para expulsar e aniquilar o oportunismo, seria absurdo pensar sequer na ditadura do proletariado.”

“O bolchevismo desenvolveu-se, fortaleceu-se e temperou-se combatendo, sobretudo e antes de mais, o oportunismo.” “Foi este, naturalmente, o inimigo principal do bolchevismo, no seio do movimento operário. É ele ainda o inimigo principal à escala internacional.”(37)

Pelo contrário, em 1935, às vésperas de uma nova guerra imperialista, quando as tendências para a capitulação eram mais fortes ainda do que as que tinham precedido a I Guerra Mundial, Dimitrov vinha reclamar que se acabasse com a caça aos “desviacionistas imaginários” e que se pensasse sobretudo em eliminar o “sectarismo auto-suficiente” e a “arrogância comunista”... Neste contraste está exemplarmente condensado o abismo que separa o dimitrovismo do leninismo.

Mas não podia ser de outro modo. Se a tarefa que se traçava aos partidos era unir “todos os destacamentos da classe operária, numa mesma luta comum contra o fascismo”, esquecendo a natureza do reformismo pequeno-burguês, era inevitável que a luta contra o oportunismo aparecesse a Dimitrov como um empecilho à unidade e um desporto inútil. O perigo do oportunismo tinha que desaparecer do campo de visão de Dimitrov no momento em que ele empreendia uma deslocação da política comunista para a direita, para o campo do democratismo antifascista pequeno-burguês. Nada mais difícil para um oportunista do que divisar o oportunismo...

A luta contra o oportunismo desapareceu do relatório de Dimitrov porque a sua nova frente única pela coligação com a social-democracia era a expressão mesma do oportunismo que avassalava o movimento comunista.

Velha tendência de capitulação

O que significava a defesa dos pactos e acordos com a social-democracia, a dissolução da corrente sindical revolucionária, a autocrítica pelo “sectarismo” anterior, o abandono do combate ao oportunismo? Significava que a IC renunciava à guerra aberta para arrancar os operários à influência social-democrata, reconhecia à social-democracia o seu “território” próprio e propunha-lhe um pacto de assistência mútua contra o fascismo. A política de frente única fora até aí uma política de guerra contra a social-democracia; passava a ser uma política de paz e cooperação.

Esta grande viragem estratégica, que punha o leninismo de pernas para o ar (Lenine consentira tréguas ocasionais, nunca admitira a paz com o oportunismo) vinha culminar uma velha tendência para fazer da frente única uma política de aliança com a social-democracia, tendência que a direcção da IC denunciara repetidamente como uma ameaça de degeneração oportunista.

Tornam-se necessárias algumas citações dos documentos da IC, para deixar a nu as raízes do pensamento de Dimitrov:

“Uma degeneração oportunista ameaça directamente no momento actual alguns partidos da IC. Ajusta palavra de ordem do 3.º congresso ‘Às massas!’ foi aplicada durante dois anos em muitos países de maneira tão falsa que corremos o perigo de substituir a táctica independente do comunismo por uma política de conciliação com a social-democracia contra-revolucionária.” (Tese sobre bolchevização do 5.º Pleno Ampliado do CEIC, Julho de 1924.)(38)

“Em alguns dos países mais importantes para o movimento operário, os representantes da direita tentaram deformar a táctica de frente única e do Governo Operário e Camponês, interpretando-a como uma estreita aliança política, como uma coligação orgânica de “todos os partidos operários”, isto é, como uma união dos comunistas com a social-democracia. Para a IC, a táctica da frente única tinha como objectivo principal combater os chefes da social-democracia contra-revolucionária e libertar os operários social-democratas da sua influência; a direita interpretou-a como o equivalente da união política com a social-democracia”. Assim, a táctica da frente única “ameaça transformar-se, de método, bolchevique e revolucionário, em táctica oportunista e fonte de revisionismo” o que “pode conduzir à degeneração dos partidos comunistas”. (Resolução sobre táctica do 5.º congresso da IC.)(39)

“A IC não vê qualquer motivo para rever a sua apreciação sobre o papel objectivo da social-democracia e em especial dos dirigentes social-democratas, inclusive os de ‘esquerda’.. Não duvida de que, no futuro como até aqui, a maioria deles sabotará a frente única”... “Hoje como ontem, a IC considera que a táctica de frente única não é mais do que um método para levar a cabo a agitação revolucionária entre as massas, para as mobilizar e conquistar a maioria dos trabalhadores para a causa da IC. ” (6.º pleno do CEIC, Março de 1926.)(40)

Ainda nas vésperas do 7.º congresso, o CEIC verificava, em balanço ao período anterior, que os oportunistas de direita tinham perdido cada vez mais de vista, no quadro da estabilização capitalista, a perspectiva revolucionária e tentavam “substituir a táctica de frente única por uma política capituladora face aos partidos social-democratas” e “formar um bloco indiferenciado com os chefes traidores da social-democracia”.(41)

Essa tendência de capitulação, que não deixara de crescer nos partidos durante o período de estabilização do capitalismo, transformou-se, com a subida de Hitler ao poder, em verdadeiro pânico capitulador. Mandar pela borda fora todas as veleidades de conquistar a classe à social-democracia, concluir com ela um acordo defensivo por qualquer preço — esta foi a palavra de ordem frenética da ala direita da IC, que Dimitrov se encarregou de argumentar politicamente com cores atraentes na tribuna do 7.º congresso. A “maneira nova” de encarar a frente única foi afinal a adopção das teses oportunistas que a IC vinha combatendo e que acabaram por submergir todas as resistências, jogando no pânico causado pelo ascenso do fascismo.

O perigo que rondava o movimento comunista fora divisado por Staline desde 1928, em palavras proféticas:

“Quando alguns dos nossos meios comunistas negam a utilidade da palavra de ordem de ‘classe contra classe’ na campanha eleitoral (em França), ou se afirmam contra a apresentação de uma lista independente pelo partido comunista (na Inglaterra), ou não querem avivar a luta contra a ‘ala esquerda’ da social-democracia (na Alemanha), etc., etc., isto significa que no interior dos partidos comunistas há pessoas que se esforçam por adaptar o comunismo ao social-democratismo”... “A vitória do desvio de direita nos partidos comunistas dos países capitalistas significaria a derrocada ideológica dos partidos comunistas e um reforço enorme do social-democratismo.”(42)

Foi sem dúvida esse o resultado da política nova de Dimitrov, aprovada pelo 7.º congresso da IC.