O Materialismo Histórico em 14 Lições

L. A.Tckeskiss


Lição XI: Liberdade e Determinismo; Atividade Social e Causalidade Social


Como se transforma a liberdade da atividade da atividade individual em determinismo social? A bola rolando, se tivesse noção do ato de rolar, pensaria que rola por sua própria vontade. Liberdade e livre arbítrio. A barreira e a fresta pela qual passa a corrente. Como imaginaria a correnteza o seu atravessar se tivesse consciência de seu ato. O arbítrio e os motivos. A luta entre os motivos. O motivo mais forte e a escolha. O caráter, a educação, as condições são que determinam a escolha. O determinismo dos atos humanos. Como se podem prever os atos. Como se podem saber os motivos? As causas principais da atividade humana. As divisões em classes e grupos e seus distintos e as vezes opostos interesses. Os interesses determinam os atos e os motivos. A sociedade e os interesses dos camponeses e dos senhores feudais. A sociedade burguesa, os interesses dos operários e capitalistas. A generalidade dos interesses-motivos e a semelhança com os atos dos indivíduos. A psicologia do homem é determinada pelo trabalho em todas as suas formas, as condições gerais de vida. Psicologia geral dos camponeses. Nuanças psicológicas internas. As psicologias internas. A psicologia da classe operaria e distintos grupos internos. Conhecendo a psicologia os interesses duma classe, podemos predizer os atos dos indivíduos que formam essa classe. O determinismo e resultado da atividade “livre”. Determinismo social e fatalismo. O determinismo social é uma arma da atividade humana; os atos livres são transformados em determinismo social.

Detivemo-nos na ultima lição na questão da liberdade e determinismo. O individuo, não obstante a dependência de sua psicologia de classe ou grupo, sente-se como homem livre, que tudo faz por sua própria vontade. E apesar disso, a vida da sociedade que é a soma dos indivíduos se realiza segundo certas leis determinadas. Surge portanto a seguinte questão: como se podem harmonizar liberdade e determinismo, segundo o qual se operam os fenômenos sociais.

Tentaremos gradualmente responder á pergunta formulada. Existe o homem com a sua atividade que brota de sua vontade? Assim pelo menos, explica ele suas ações. Donde vem esse sentimento de livre arbítrio, e como encaixá-lo no determinismo e na causalidade social? Se formularmos deste modo a questão poderemos achar a gênese da causalidade e do determinismo social.

Tomemos por exemplo uma bola à qual se deu um impulso e que começa a rolar. Imaginemos que a bola ficou rolando, ficou consciente do seu ato de rolar, sem saber para que foi impulsionada. Ela explicaria o seu rolar pela sua vontade livre. O mesmo se dá com a vontade livre do homem. O homem está consciente do ato que realiza, mas desconhece as causas que provocaram ou determinaram o ato. Assim responderam a questão, Hobes, Spinoza, Leibnitz. A resposta porem não é completa: se a questão fosse somente da consciência do ato, talvez fosse muito fácil de solucionar. Mas se a questão da liberdade e determinismo, foi tão palpitante para os gênios filosóficos do passado e ainda até hoje não foi, para todos, solucionada, isto quer dizer que existe algo mais, a espera de solução.

A bola rola e pode ela gritar bem alto que rola por sua própria vontade mas, ela é obrigada a rolar sem poder parar. Mas outra coisa se dá com o homem. Este ao praticar um ato pode perguntar a si próprio: devo ou não praticar este ato? Já aqui existe um momento de escolha. A atividade do individuo é dessa forma, dependente de sua escolha. O homem ao praticar um ato está às vezes diante de um dilema, pode fazer ou de outro modo. Esse fato de escolher é fato que não pode ser negado nem evitado. Devido a este momento de escolha torna-se a questão da vontade livre mais fácil de resolver.

Continuemos porem a analise. Quando surge a pergunta: fazer ou não fazer, há naturalmente motivos para o sim ou para o não. Esse conflito de motivos termina pela vitoria de um deles, que determina a vontade do homem. Assim é que esse fato se dá realmente, na vida.

Tomemos por exemplo uma corrente de água, contra a qual se constrói uma barreira que detém a corrente. A água tem por habito correr e faz pressão contra a barreira. Na barreira, casualmente havia alguns pontos fracos, e finalmente a água irrompe por uma fresta que se havia aberto. Imaginemos que, de repente a corrente d’água se torna consciente não só do trabalho (ação) de correr (como aconteceu com a bola), mas também das aspirações de vencer a barreira. Encontrando o obstáculo desta, e forçando os pontos fracos, está a água diante do problema de encontrar a saída (a satisfação de seu desejo ou aspiração) que ela própria pode escolher. A corrente d’água, que fora dotada de certa consciência, encontrará na barreira um entrave, um obstáculo de um lado e por outro há uma vontade, uma aspiração de vencer esse obstáculo. A corrente de água quer continuar a sua obra de correr, não obstante o obstáculo encontrado. Trava-se aqui uma luta entre a corrente consciente com a vontade de correr e a barreira. A fresta por ela feita na barreira deixou passar a água. A corrente forçou a barreira toda, procurando saída em todos os pontos fracos que quis arrombar, mas somente conseguiu passar pela fresta que havia arrombado. Aqui tivemos o momento da consciência e o livre arbítrio.

A atividade humana é determinada por vários motivos. A força geral da inércia é a barreira. Os motivos da atividade são quase representados pela corrente que impele o homem à atividade. A fresta pela qual irrompe é este ou outros motivos que vencem. Uma vez que a corrente forçou todos os pontos e somente irrompeu pelo mais fraco ou no ponto onde a corrente é mais impetuosa, temos aqui uma certa escolha — livre arbítrio, quando todo o processo é iluminado pela consciência. Na realidade a irrupção é determinada ou pela fraqueza da barreira ou pela força da corrente em determinado ponto.

O momento de vitoria de um motivo sobre outro depende de uma serie de causas e a “vontade livre” desempenha aqui papel de somenos importância. Por exemplo: se tomamos um esfomeado, que passa diante de uma vitrine de comestíveis, dar-se-á nele uma luta dos motivos da fome com os das idéias de justiça: que não se deve desejar o alheio e do simples medo de furtar, porque será preso e punido, etc. O resultado dessa luta dependerá em certo sentido do caráter do homem, de sua educação, das condições de momento, etc. Nuns, os assim chamados conceitos morais serão mais fortes, devido à sua educação, conceitos enraizados, etc., noutros o medo do castigo é que determinará sua atividade, vencendo portanto, os outros motivos. Se colocarmos esse homem numa posição tal que seu ato possa passar despercebidos para todos, o instinto da fome será mais forte que o do medo e vencerá o primeiro motivo. Num terceiro pode sempre vencer o motivo da fome e ele roubará sem conflito interior. Vemos de fato que se dá aqui uma luta entre dois motivos. Vencendo o mais forte. Ao homem, porem, ao realizar seu ato, parece-lhe agir segundo sua livre vontade e escolha.

Esses exemplos nos esclarecem que todos os atos individuais são determinados por certos motivos. A atividade humana, os atos do homem social, são dessa forma predeterminados, são provocados por motivos. A necessidade histórica, isto é, a necessidade da atividade social humana é por isso chamada determinismo.

Mas se todos os atos são determinados por certos motivos, surge uma nova pergunta: podem ser previstos todos esses motivos, suas causas podem ser descobertas e explicadas?

Aqui teremos que voltar á questão da formação da psicologia de cada individuo e de distintos grupos. Vimos que na primeira fase da evolução econômica o homem não representa um individuo independente, mas é como membro de um rebanho, psicologicamente semelhante a todos os outros indivíduos da sociedade inteira. Havia naturalmente diferenças físicas; e se mais tarde puderam em certo grau criar-se pequenas diferenciações psicológicas, essas só puderam evoluir com a evolução da técnica e com o aparecimento da divisão social do trabalho. Com o desenvolvimento da técnica e com o aparecimento da divisão social do trabalho surgiram distintos grupos econômicos, os quais com o tempo formaram todas as diferenciações e contrastes psicológicos que mais tarde notamos na sociedade.

Tomemos a sociedade humana. Que notamos aí? Vemos homens com necessidades, aspirações e paixões e certas obrigações. Certas necessidades, aspirações e paixões são comuns a todos os homens, porque não se pode imaginar, por exemplo, uma sociedade que não necessite de meios de subsistência, de meios de procriação etc. Queremos prever a atividade do homem com exatidão, podemos dizer sem receio de errar que o homem, em geral, sempre aspirará a satisfazer suas necessidades vitais e por isso desenvolverá seus meios de luta contra a natureza — desenvolverá o trabalho e a atividade social. Mas como e de que modo satisfazem os homens suas necessidades? Aqui já não há mais generalidade. Na sociedade feudal, por exemplo, a maioria da sociedade é de camponeses; os camponeses como tais terão em qualquer tempo o mesmo modo de adaptação á natureza, por conseguinte, os mesmos modos de satisfazer suas necessidades. Todos os camponeses terão mais ou menos os mesmos interesses (pequenos traços característicos, não tem aqui importância alguma). A classe camponesa inteira representará um todo, uma unidade, com certos e determinados interesses, pelos quais poderá ser predeterminada a atividade de cada camponês (aspiração de se libertar do jugo feudal, livre locomoção, conseguir uma propriedade em terras, etc.). Tomando a classe feudal como tal, poderemos segundo seus interesses mais ou menos singulares também predizer a aspiração e atividade de cada senhor feudal (aumentar o seu domínio sobre as terras, ocupar um lugar superior na hierarquia do poder, limitar o mais que for possível o poder do rei, escravizar na mesma medida todos os camponeses, etc.). Tomando a sociedade contemporânea, também poderemos fazer o mesmo. Conhecendo os interesses de cada classe e até mesmo de cada grupo, não é, portanto, difícil predizer e determinar suas aspirações e suas atividades, bem como a dos indivíduos a ela pertencentes. A classe operaria como um todo, porquanto todos os operários se encontram em condições iguais, no sentido de que todos são obrigados a vender o seu trabalho, terá interesses gerais cuja expressão consiste na aspiração de aumentar o salário e diminuir a exploração. A classe capitalista, não obstante as divergências internas, também apresentara uma aspiração geral, como em tudo, determinada por interesses, que estarão diametralmente opostos aos interesses da classe [operária] e terá sua expressão na aspiração de diminuir o salário dos operários e aumentar a exploração. Nessa direção determinada irá também a atividade dessas classes na sociedade capitalista.

Vemos, portanto, que podemos predeterminar a direção que tomará a atividade dos vários grupos sociais. Porque conhecemos de antemão os motivos de sua atividade. Mais ainda, conhecemos as causas pelas quais os motivos são determinados — conhecemos os interesses.

Vemos, portanto, que a pergunta: o que determina a psicologia? Deve ser respondida: o trabalho em todas as suas formas, que cria finalmente as condições gerais da vida. Estando a maioria dos camponeses nas mesmas condições de trabalho terão por isso a mesma psicologia, embora entre os camponeses possa haver uma certa diferenciação, isto é, certa parte dos camponeses começarem a viver em outras condições de trabalho — isso porem não passará de uma nuança especial na psicologia dos camponeses. O modo geral da psicologia camponesa será expressa, por exemplo, no apego à terra, sentimento de dependência da natureza, amor ao trabalho e à propriedade, conservantismo de seus costumes e limitação em seu modo de viver. O camponês diferenciado (o rico, o kulak) também estará debaixo da psicologia geral, possuindo, a par disto, uma nuança psicológica, como o desejo de aumentar suas terras, aspiração a riqueza, à exploração, etc. O mesmo se dá com a classe operaria. Também ele terá uma psicologia geral e nuanças das camadas diferenciadas, como operários aristocratas, funcionários, especialistas, etc. Quanto mais constatamos, que a psicologia é determinada pelas condições de vida (trabalho) de dado individuo e que a generalidade da psicologia de diversos indivíduos que vivem em condições econômicas idênticas, forma a psicologia de classe, tanto mais podemos prever a atividade desta ou daquela classe e na maioria dos casos a atividade individual de seus membros.

Assim, vemos como a questão da liberdade e determinismo é resolvida graças a termos achado os motivos da atividade humana, e a chave da previsão desses motivos. E também, porque conhecemos as causas dos motivos, a fonte de onde emanaram. Não falamos aqui, por isso da atividade individual como tal, mas da necessidade, segundo a qual a maioria duma classe deve manifestar sua atividade, e somente por isso podemos prever e adaptar a atividade duma classe ás suas necessidades.

Está claro que a necessidade histórica não exclui a “livre” atividade humana, mas ao contrario é ela o resultado dessa atividade “livre”. É nisso que consiste a grande diferença entre o determinismo na natureza e o determinismo na vida social e na historia. O determinismo na natureza consiste em que vários fenômenos resultantes de leis naturais (movimento dos planetas, as estações do ano, eclipses solares, etc.) devem realizar-se na natureza. A ciência os pode prever, indicar o tempo em que se darão, mas o homem não tem no desenvolvimento deles nenhuma participação. Se o que se passa na vida social fosse um determinismo do mesmo caráter, o determinismo social se transformaria em fatalismo. Entre o determinismo social e natural há pois, uma grande diferença. Essa diferença consiste em que na natureza tudo se realiza fora de nossa influencia e atividade, ao passo que o determinismo social graças à nossa atividade.

As leis do determinismo social são, por isso, também as leis da atividade humana. O determinismo social implica a atividade humana como um de seus elementos necessários. Excluindo esse elemento não haverá determinismo histórico. Se excluirmos, por exemplo, o proletariado combativo da sociedade capitalista, não haverá então determinismo histórico do socialismo. Está claro que o proletariado não surgiu do nada — é conseqüência determinada pelo desenvolvimento da técnica — mas esta ultima também é revelação da atividade humana.

Todo o determinismo social consiste na atividade humana; seu material é um tecido de atividades humanas. A atividade, porem, é determinada, porque, devido as condições econômicas objetivas, os motivos da atividade são também determinados; as próprias condições econômicas são também o resultado do estado da técnica — da atividade humana condensada. As leis da evolução social são expressões das leis da atividade humana. Podendo prever os atos humanos, isto é, a atividade social, podemos também estabelecer a marcha da evolução social e agir no sentido em que ela se deve realizar.


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Inclusão 04/04/2010