História da Revolução Russa

Léon Trotsky


Cinco Dias: do 23 ao 27 Fevereiro 1917


O dia 23 de Fevereiro, era o “Dia internacional das Mulheres”. Planeava-se, nos círculos da social-democracia, dar a esse dia o seu significado por meios de uso corrente: reuniões, discursos, panfletos. Ainda na véspera, ninguém pensaria que este “Dia das Mulheres” poderia inaugurar a revolução. Nenhuma organização preconizou a greve para esse dia. Ainda mais, uma organização bolchevique, e das mais combativas, o comité de bairro essencialmente operário de Vyborg, desaconselhava qualquer greve. O estado de espírito das massas segundo os testemunhos de Kaiorov, um dos chefes operários do bairro, estava muito tenso e cada greve ameaçava tornar-se em confrontação aberta. Mas o comité considerava que o momento de iniciar as hostilidades não tinha chegado – o partido ainda não era suficientemente forte e a ligação entre operários e soldados sendo demasiado insuficiente – decidiu portanto de não apelar à greve, mas de preparar-se para a acção revolucionária para uma data indeterminada. Tal foi a linha preconizada pelo Comité na véspera do dia 23, e parecia que todos a tinham adoptado. Mas no dia seguinte pela manhã, apesar de todas as directivas, os operários do têxtil abandonaram o trabalho em várias fábricas e enviaram delegados aos metalúrgicos para lhes pedir apoio na greve. Foi de “contra-vontade” escreve Kaiorov, que os bolcheviques marcharam seguidos pelos operários mencheviques e socialistas-revolucionários. Mas no momento que se tratava de uma greve de massa, foi preciso comprometer toda a gente a descer à rua e tomar a cabeça do movimento: tal foi a resolução que propôs Kairov, e o comité de Vyborg viu-se na obrigação de apoiar”. A ideia de uma manifestação amadurecia há muito tempo entre os operários, mas, nesse momento, ninguém fazia ideia do que é que resultaria”. Tomemos nota do testemunho de um participante, muito importante para a compreensão do mecanismo dos acontecimentos.

Acreditava-se antecipadamente que, sem a menor dúvida, em caso de manifestação, as tropas deveriam sair dos quartéis e opor-se-iam aos operários. Que iria passar-se? Estava-se em tempo de guerra, as autoridades não estavam dispostas a brincar. Mas, por outro lado, o soldado da “reserva”, nesses dias, não era mais aquele que, outrora se conheceu nos quadros do “activo”. Era verdadeiramente temível ? Sobre isso, pensava-se muito nos círculos revolucionários, mas sobretudo abstractamente, porque ninguém, absolutamente ninguém – pode afirmar categóricamente segundo todos os documentos recolhidos – pensava ainda que o dia 23 de Fevereiro marcaria o início de uma ofensiva decisiva contra o absolutismo. Tratava-se somente de uma manifestação cujas perspectivas eram indeterminadas e, de qualquer modo, muito limitadas.

De facto, estabeleceu-se que a Revolução de Fevereiro foi desencadeada por elementos da base que ultrapassaram a oposição das suas próprias organizações e que a iniciativa foi espontaneamente tomada por um contingente do proletariado explorado e oprimido mais que todos os outros – as trabalhadoras do têxtil, cujo número, deveria-se pensar, devia-se contar muitas mulheres soldados. A última impulsão veio das intermináveis sessões de espera às portas das padarias. O número de grevistas, mulheres e homens foi, nesse dia, cerca de 90 000. As disposições combativas traduziram-se em manifestações, comícios, confrontações com a polícia. O movimento desenvolveu-se primeiro no bairro de Vyborg, onde se encontram as grandes companhias, e ganhou seguidamente o bairro dito “de Petersburgo”. Nas outras partes da cidade, segundo as relações da Segurança, não houve greves, nem manifestações. Nesse dia, as forças da polícia foram completadas com destacamentos de tropas, aparentemente pouco numerosas, mas não houve confrontações. Uma multidão de mulheres, que não eram todas operárias, dirigiu-se para a Duma municipal para reclamar pão. Era como pedir leite ao bode. Em diversos bairros apareceram bandeiras vermelhas cujas inscrições atestavam que os trabalhadores exigiam pão, mas não queria mais autocracia nem guerra. O “Dia das Mulheres” tinha conseguido, ele estava cheio de entusiasmo e não tinha causado vítimas. Mas era um dia difícil e à noite ainda ninguém duvidava.

No dia seguinte, o movimento, longe de se acalmar, redobrou em recrudescência: cerca de metade dos operários industriais de Petrogrado fazem greve no dia 24 de Fevereiro. Os trabalhadores apresentaram-se a partir da manhã nas suas fábricas e, em vez de iniciarem o trabalho fizeram comícios, depois disso dirigiram-se para a baixa da cidade. Novos bairros, novos grupos da população foram levados no movimento. A palavra de ordem “Pão” foi afastada ou coberta por outras formulas: “Abaixo a autocracia!” e “Abaixo a guerra!” As manifestações não param na Perspectiva Nevsky: primeiro as massas compactas de operários cantando hinos revolucionários; depois uma multidão disparata de citadinos, de bonés azuis de estudantes. “O público nos passeios nos testemunhava simpatia e, nas janelas de vários hospitais, soldados nos saudaram acenando com o que lhe vinha à mão”. Eram numerosos os que compreendiam o alcance desses gestes de simpatia dos soldados doentes em relação aos manifestantes ? Todavia, os cossacos atacavam a multidão, ainda sem brutalidade; seus cavalos estavam cobertos de espuma; os manifestantes jogavam-se de lado e de outro, depois tornavam a formar grupos compactos.

A multidão nada temia. O rumor corria de boca em boca: “Os cossacos prometeram não atirar.” Era claro que os operários tinham conseguido entender-se com um certo número de cossacos. Um pouco mais tarde, portanto, os dragões surgiram meio bêbados, lançando injúrias e furando a multidão, golpeando as cabeças com lanças. Os manifestantes aguentaram com todas as suas forças, com coragem. “Eles não dispararão”. E, ele não dispararam.

Um senador liberal que observou, nas ruas, os tróleis imobilizados (mas isso não se passava no dia seguinte?), alguns com os vidros partidos, outros deitados de lado sobre os carris, evocou as jornadas de Julho de 1914, na véspera da guerra. “Acreditava-se ver renovar-se a tentativa de outrora.” O senador via com justeza, havia seguramente um laço de continuidade: a história recolhia as pontas do fio revolucionário quebrados pela guerra e reatava-os.

Durante todo esse dia, a multidão circulava de bairro em bairro, violentamente perseguidos pela polícia, contida e empurrada pela cavalaria e por certos destacamentos de infantaria. Gritava-se “Abaixo a polícia!” mas, cada vez com mais frequência, lançavam-se urras dirigidas aos cossacos. Foi significativo. A multidão testemunhava à polícia um ódio feroz. Os agentes a cavalo eram acolhidos com assobios, pedras, gelo. Diferente foi o contacto dos operários com os soldados. À volta dos quartéis, junto das sentinelas, das patrulhas e dos cordões de barragem, trabalhadores e trabalhadoras juntavam-se, conversando amigavelmente com a tropa. Foi uma nova etapa devido ao crescimento da greve e da confrontação dos operários com o exército. Esta etapa é inevitável em toda a revolução. Mas ela parece sempre inédita e, com efeito, apresenta-se cada vez sob um novo aspecto: os que leram ou escreveram sobre o assunto não se dão conta do acontecimento quando ele se produz.

A Duma do Império, contava-se, nesse dia, que uma formidável multidão cobria a praça Znamenskaia, toda a Perspectiva Nevsky e todas as ruas vizinhas, e que se constatava um fenómeno absolutamente insólito: a multidão revolucionária, e não patriótica, aclamava os cossacos e os regimentos que marchavam ao som de música. Como um deputado perguntava o que isso significava, um transeunte, respondeu-lhe: “Um policia agrediu uma mulher com uma nagaika; os cossacos intrometeram-se e perseguiram a polícia”. É possível que as coisas não se tenham passado assim, ninguém estava em condições de confirmar. Mas a multidão acreditava que foi assim mesmo, que a coisa foi possível. Crença que não caía do céu, mas que vinha da experiência já feita e que, por consequência, devia ser uma aposta da vitória.

Os operários da fábrica Erikson, que conta entre as mais modernas do bairro de Vyborg, depois de se terem juntado na manhã, avançaram em massa, cerca de 2 500 homens, na Perspectiva Sampsonovky, e, numa passagem estreita caíram sobre os cossacos. Empurrando seus cavalos, os oficiais cortaram a multidão. Atrás deles, sobre toda a largura da calçada, trotavam os cossacos. Momento decisivo ! Mas os cavaleiros passaram cuidadosamente, numa longa fila, pelo corredor que acabavam de lhes abrir os oficiais”. Alguns dentre eles sorriam, escreve Kaiorov, e um deles piscou o olho, como amigo, do lado dos operários”. Significava qualquer coisa, esse piscar de olhos! Os operários encorajaram-se, num espírito de simpatia e não de hostilidade em relação dos cossacos que eles tinha ligeiramente contaminado. O homem que tinha piscado o olho teve imitadores. A despeito das novas tentativas dos oficiais, os cossacos, sem transgredir abertamente a disciplina, não perseguiram a multidão com demasiada insistência e passaram somente através dela. Assim foi três ou quatro vezes e as duas partes opostas ainda se reaproximaram mais. Os cossacos respondiam individualmente às questões dos operários e tiveram mesmo com eles breves conversas. Da disciplina, só restava as finas aparências e as mais ténues, com o perigo de uma quebra iminente. Os oficiais apressaram-se a afastar as tropas da multidão e, renunciando à ideia de dispersar os operários, dispuseram as tropas em barragem de uma rua para impedir os manifestantes de alcançar o centro. Foi tempo perdido: colocados e de guarda, os cossacos não se opuseram porém, aos “mergulhos” que faziam os operários entre as pernas dos cavalos. A revolução não escolhia os seus caminhos à vontade: ao princípio da sua marcha à vitória, ela passava sob o ventre de um cavalo cossaco. Episódio notável! Notável também o golpe de vista do narrador que fixou todas estas peripécias. Nada de espantar, o contador foi um dirigente, ele tinha atrás dele mais de dois mil homens: o olho do chefe que se mantém vigilante contra as nagaikas ou as balas do inimigo é aguçado.

A mudança de opinião no exército parece ter-se manifestado primeiro nos cossacos, perpétuos fazedores da repressão e de expedições punitivas. Isso não significa portanto que os cossacos tenham sido mais revolucionários que os outros. Ao contrário, esses sólidos proprietários, montados nos seus próprios cavalos, orgulhosos das particularidades da sua própria casta, tratando com um certo desdenho os simples camponeses, desconfiados em relação aos operários, eram imbuídos de um forte espírito conservador. Mas é precisamente a esse título que as mudanças provocadas pela guerra pareciam ser mais vivas neles. E, por outro lado, não era precisamente eles que eram puxados por todos os lados, enviando-os constantemente em expedição, lançando-os contra o povo, enervando-os, e que, foram os primeiros postos à prova ? Eles estavam “fartos”, queriam voltar aos seus lares e piscando o olho: “Façam à vossa vontade, se forem capazes, nós não vos estorvaremos.” Porém, só existiam sintomas, aliás muito significativos. O exército está ainda armado, lidado pela disciplina, e os fios condutores encontram-se ainda nas mãos da monarquia. As massas operárias estão desprovidas de armas. Seus dirigentes nem mesmo sonham ainda à conclusão decisiva.

Nesse dia, em conselho de ministros, a ordem do dia comportava, entre outras questões, a dos sarilhos na capital. A greve ? Manifestações ? Já se tinham visto outras... Tudo é previsto, ordens são dadas. Passa-se simplesmente à expedição dos assuntos correntes.

Mas quais eram então as ordens ? Ainda que os dias 23 e 24, vinte e oito polícias tivessem sido agredidos – sedutora exactidão da estatística ! - o general Khabalov, chefe da região militar de Petrogrado, investido de poderes quase ditatoriais, não recorria ainda ao fuzilamento. Não por bondade de alma ! Mas tudo tinha sido previsto e premeditado; os tiros seriam disparados na sua hora.

Não houve revolução inesperada senão no momento que ela se desencadeou. Em suma, os dois polos contrários, o dos revolucionários e o do governo, tinham-se preparado cuidadosamente há anos, desde sempre. No que diz respeito aos bolcheviques, toda a sua actividade desde 1905 tinha consistido unicamente nesses preparativos. Mas a obra do governo tinha sido, ela também, em muita boa parte, preparar com antecedência o esmagar da segunda revolução que se anunciava. Nesse domínio, o trabalho do governo tomou, a partir de Outono de 1916, um carácter particularmente metódico. Uma comissão presidida por Khabalov tinha acabado, cerca de meados de Janeiro de 1917, a elaboração minuciosa de um plano para esmagar a nova insurreição. A capital tinha sido dividida em seis sectores administrados por “mestres da polícia” e subdivididos em bairros. À cabeça de todas as forças armadas tinha-se colocado o general Tchebykine, comandante em chefe das reservas da Guarda. Os regimentos foram repartidos nos bairros. Em cada um dos seis principais sectores, a polícia, a guarda e o exército eram agrupados sob o comando de oficiais do estado-maior especialmente designados. A cavalaria cossaca ficava à disposição de Tchebikine em pessoa, para as operações de maior envergadura. O método de repressão era ordenado da maneira seguinte: fazer-se-ia primeiro marchar a polícia; seguidamente, lançar-se-iam os cossacos com as sua nagaikas; no fim, meter-se-iam em linha as tropas com seus fuzis e metralhadoras. Foi precisamente esse plano, aplicação alargada da experiência de 1905, que foi aplicado em Fevereiro. A infelicidade não estava num defeito da previdência, nem numa concepção viciosa, mas no material humano. Foi aí que a arma devia se encravar.

Formalmente, o plano contava sobre o conjunto da guarnição que contava até cento e cinquenta mil homens; mas na realidade considerava-se no máximo o emprego de uma dezena de milhar de homens; independentemente dos agentes da polícia que eram cerca de três mil e quinhentos, a mais firme esperança fixava-se sobre os alunos cadetes. Isso explica-se pela própria composição da guarnição nessa data: ela era composta quase exclusivamente de reservistas, antes de mais 14 batalhões de reserva, ligados aos regimentos da Guarda que se encontravam na frente. Além disso, a guarnição incluía: um regimento de infantaria de reserva, um batalhão de reserva automóvel, uma divisão de reserva de autos blindados, alguns contingentes de sapadores e de artilharia e dois regimentos de cossacos do Don. Era muito, mesmo demasiado. Os efectivos da reserva, demasiados copiosos, consistiam numa massa humana apenas trabalhada ou melhor, livre desse treino. Além disso, todo o exército não tinha a mesma composição ?

Khabalov seguia cuidadosamente o plano que tinha elaborado. O primeiro dia, 23, só a polícia surgiu. No 24, fizeram avançar nas ruas sobretudo a cavalaria, mas somente armada de lanças e de nagaikas. Não se pensava utilizar a infantaria e abrir fogo segundo o desenvolvimento dos acontecimentos. Ora os acontecimentos não se fizeram esperar.

No dia 25, a greve tomou uma nova amplitude. Segundo os dados oficiais, ela englobava 24 000 operários. Elementos atrasados comprometeram-se a seguir da vanguarda, um bon número de pequenas empresas pararam o trabalho, os tróleis não funcionaram, as casas de comércio ficaram fechadas. No correr do dia, os estudantes do ensino superior juntaram-se ao movimento. Cerca do meio-dia, foi por dezenas de milhar que a multidão se juntou à volta da catedral de Kazan e nas ruas vizinhas. Tentou-se organizar comícios a céu aberto, produziram-se conflitos com a polícia. Diante da estátua de Alexandre III homens tomaram a palavra. A polícia montada começa a disparar. Um orador cai, ferido. Tiros partem da multidão: um comissário da polícia é morto, um mestre da polícia ferido assim que vários dos seus agentes. Lançam-se sobre os guardas garrafas, bombas, granadas. A guerra deu boas lições sobre esta arte. Os soldados dão prova de passividade e por vezes de hostilidade em relação à polícia. A emoção entre a multidão é grande quando se sabe que os polícias dispararam sobre o povo junto da estátua de Alexandre III e que os cossacos dispararam uma salva sobre a polícia: os “faraós” a cavalo (assim chamavam aos agentes da polícia) foram forçados a fugir a galope. Não era verdadeiramente uma legenda propagada com o objectivo de reforçar a coragem, porque o mesmo episódio, ainda que relatado diferentemente, foi certificado por vários lados.

Um dos autênticos condutores dessas jornadas, o operário bolchevique Kaiorov, conta que os manifestants fugiram todos, a um certo momento, sob os golpes de nagaika da polícia a cavalo, na presença de um pelotão de cossacos; então Kaiorov, e mais alguns operários que não fugiram, destaparam a cabeça, aproximaram-se dos cossacos, e de boné na mão: “Irmãos cossacos, vinde ao socorro dos operários na luta pelas reivindicações pacíficas ! Vocês vêm como nos tratam, nós, operários esfomeados, esses faraós. Ajudai-nos ! Esse tom conscientemente obsequioso, esses bonés na mão, que justo cálculo psicológico, que geste inimitável ! Toda a história dos combates de rua e das vitórias revolucionárias fervem de tais improvisações. Mas elas perdem-se habitualmente nos abismos dos grandes acontecimentos, e os historiadores colhem somente um tegumento dos lugares comuns. “Os cossacos trocaram entre neles olhares singulares, diz ainda Kaiorov, e nós mal tivemos tempo de nos afastar já eles se lançaram em cheio na confusão”. Alguns minutos mais tarde, diante da entrada da gare, a multidão levava em triunfo um cossaco que acabara de passar o sabre sobre um comissários da polícia.

Os faraós logo desapareceram, dito de outra forma, actuaram pela calada. Mas os soldados mostraram-se baionetas em riste.

Operários interpelavam-os, angustiados: “Camaradas, vocês vêm ajudar a polícia ?” Tiveram como resposta: “Circulai !”

Nova tentativa para retomar conversações; o mesmo resultado. Os soldados estão deprimidos, atormentados por um mesmo pensamento, e toleram mal que a sua ansiedade seja atingida em cheio.

Entretanto, a palavra de ordem geral é desarmar os faraós. A polícia é o inimigo feroz, inexorável, odiado e odioso. A questão da conciliação nem se coloca. Eles são agredidos ou abatidos. Mas em relação às tropas é diferente; a multidão esforça-se de todas as maneiras em evitar conflitos com o exército; ele procura, pelo contrário, os meios de conquistar os soldados, de os convencer, de os atrair, de os associar. Apesar dos rumores favoráveis – talvez ligeiramente exagerados – que correram sobre o comportamento dos cossacos, a multidão considera ainda a cavalaria com uma certa inquietação. Um cavaleiro domina do alto a multidão; entre a sua mentalidade e a do manifestante há quatro patas de cavalo. Uma personagem que se é obrigado de olhar de baixo para cima parece sempre mais considerável e mais temível. Com a infantaria, encontramos-nos em pé de igualdade na calçada, ela está mais próxima, mais acessível. A massa esforça-se para abordar o soldado, olhá-lo francamente, de lhe soprar o hálito quente. Nesses encontros entre soldados e operários, as trabalhadoras jogam um papel importante. Mais ousadas que os homens, elas avançam em direcção às tropas agarram-se às armas, suplicam e comandam quase: “Retirai as baionetas, juntem-se a nós!” os soldados emocionam-se, sentem-se envergonhados, trocam olhares entre eles com ansiedade, hesitam; um deles, enfim, decide-se antes dos outros e as baionetas são retiradas num movimento de arrependimento sobre os ombros dos manifestantes, a barragem abre-se, no ar soam os huras alegres de reconhecimento, os soldados são rodeados, de todo o lado discute-se, crítica-se, apela-se; a revolução dá mais um passo.

No Grande Quartel General (G. Q. G.), Nicolau telegrafou a Khabalov para que metesse fim às desordens “a partir de amanhã”. A vontade do czar concordava com a segunda parte do plano de Khabalov; o telegrama limitava-se a dar um impulso suplementar. A partir do dia seguinte a tropa deveria falar. Não é demasiado tarde ? Ainda não se pode dizer. A questão é colocada, mas está longe de ser resolvida. A condescendência dos cossacos, as oscilações de certas barreiras de infantaria são somente episódios cheios de promessas, às quais a rua em ebulição dá ressonância aos milhares de ecos. É bastante para exaltar a multidão revolucionária, mas muito pouco para a vitória. Tanto mais que são os produtos de incidentes de características contrárias. Na tarde, um pelotão de dragões, dito em réplica aos disparos de revolver vindos da multidão, abriu, pela primeira vez, fogo sobre os manifestantes, diante das Galerias do Comércio (Gostiny Dvor): segundo o relatório de Khabalov enviado ao G. Q. G., houve três mortos e dez feridos. Sério aviso ! Ao mesmo tempo, Khabalov ameaça expedir para a frente todos os operários mobilizáveis que não teriam retomado o trabalho antes do dia 28. Ultimato do general dava portanto um prazo de três dias: era mais que do que necessário para a revolução derrubar Khabalov e a monarquia acima de tudo. Mas só após a vitória é que nos demos conta disso. E na noite de 25, ninguém sabia ainda como seria o dia seguinte.

Tentemos de constituir mais claramente a lógica interna do movimento. Sob a bandeira do “Dia das Mulheres”, 23 de Fevereiro, desencadeou-se uma insurreição há muito madura, e contida, das massas operárias de Petrogrado. A primeira fase foi a greve. Em três dias, ele estendeu-se ao ponto de se tornar praticamente geral. Esse único facto bastou já para dar à massa e empurrá-la por diante. A greve, tomando o carácter cada vez mais ofensivo, grave, combinou-se com manifestações que confrontaram as tropas e as multidões revolucionárias. O problema era levado no seu conjunto, a um plano superior onde devia resolver-se pela força das armas. Esses primeiros dias foram marcados pelos sucessos parciais, sintomáticos em vez de efectivos.

Um levantamento revolucionário que se prolongou vários dias não pode ser vitorioso senão, por degrau em degrau, se ele regista constantemente novos sucessos. Uma paragem no movimento de vitórias é perigoso; marcar passo, é perder-se. Os sucessos por eles próprios não bastam; é preciso que a massa tenha consciência do tempo útil e que possa apreciá-los. Pode-se deixar escapar uma vitória no momento onde basta estender a mão para a colher. Viu-se na história.

Os três primeiros dias foram marcados pela ascensão e agravamento constante da luta. Mas é precisamente por esta razão que o movimento chegou a um nível onde os sucessos sintomáticos tornaram-se insuficientes. Toda a massa activa desceu à rua. Ela resistiu à polícia com bons resultados e sem demasiadas dificuldades. As tropas, nas duas últimos desses três dias, encontraram-se já comprometidas nos acontecimentos: no segundo dia, só a cavalaria tinha avançado; no terceiro dia, a infantaria. Elas resistiam, formavam barragens, às vezes deixavam fazer, mas quase que não recorreram às armas de fogo. A autoridade superior não se apressava a modificar o seu plano, subestimava em parte a importância dos acontecimentos ( esta ilusão de óptica da reacção foi completada pelo erro paralelo dos dirigentes da revolução) e, em certa medida, não tendo confiança no seu exército. Mas, justamente, no terceiro dia, por causa do desenvolvimento da luta como em consequência da ordem do czar, o governo viu-se forçado a alinhar as tropas. Os operários, sobretudo a elite, tinham compreendido, tanto mais que na véspera, os dragões tinham disparado. Desde então, a questão estava colocada pelos dois lados com todo a sua amplitude.

Na noite do 25 a 25, nos diferentes bairros, uma centena de militantes revolucionários foram presos. Incluindo cinco membros do comité dos bolcheviques de Petrogrado. Isso significou também que o governo tomava a ofensiva. Que iria então passar-se ? Qual seria o despertar dos operários após o tiroteio do dia precedente ? E – problema essencial – que diriam as tropas ? A aurora do dia 26 foi coberta de um nevoeiro de incertezas e de vivas ansiedades.

O comité de Petrogrado tendo sido preso, a condução das operações na cidade é transmitida ao distrito de Vyborg. Talvez seja para melhor. A alta direcção do partido zig-zaga desesperadamente. É só na manhã do 25 que o bureau do comité central dos bolcheviques decidiu enfim publicar um panfleto apelando à greve geral em toda a Rússia. No momento que este panfleto saiu – a greve geral em Petrogrado, tornava-se em insurreição armada. A direcção observava do alto, hesitou, atrasa, isto é, não dirige. Ela está a reboque do movimento.

Mais nos aproximamos das fábricas, mais se descobre a resolução. Todavia, hoje, no 26, o alarme chega a todos os distritos. Famélicos, estafados tremendo, sob o fardo de uma enorme responsabilidade histórica, os cabecilhas de Vyborg mantêm conciliábulos, fora da cidade, nas hortas, trocam impressões, tentam estabelecer um itinerário. O qual ?... o de uma nova manifestação? Onde levaria uma manifestação de pessoas desarmadas se o governo decidisse ir até ao fim ? Questão que atormenta as consciências”.“Disse-se somente que a insurreição iria ser liquidada.” Assim se exprime uma voz já conhecida, a de Kaiorov, e, primeiro, esta voz, parece, não é a sua. O barómetro tinha tombado muito abaixo da tempestade.

Nas horas onde as hesitações atingem os revolucionários mais próximos das massas, o movimento foi, de facto, muito mais longe daquilo que imaginavam os participantes. Ainda na véspera, na noite do 25, os bairros de Vyborg encontraram-se totalmente na posse dos insurrectos. Os comissariados da polícia foram arrombados, os agentes massacrados; a maior parte dos outros desapareceram. O centro prefeitoral do sector (gradonatchalstvo) teve as comunicações cortadas com a maior parte da capital. Na manhã do 26, constata-se que não somente esse sector, mas os bairros de Peski, quase até à Perspectiva Liteiny, estavam no poder dos rebeldes. Foi pelo menos o que os relatórios da polícia descreviam da situação. Num certo sentido, era exacto, ainda que, muito provavelmente, os insurrectos não se dessem conta: está fora de dúvida que em muitos casos a polícia fugiu dos buracos antes mesmo de se encontrarem ameaçadas pela ofensiva operária. Mas, independentemente do facto, a evacuação dos bairros industriais pela polícia não podia ter, aos olhos dos trabalhadores, um significado decisivo, porque as tropas não tinham ainda dito a sua última palavra. A insurreição “vai ser liquidada”, pensaram os bravos dos bravos. Ora, ela desenvolvia-se.

No dia 26 de Fevereiro foi um domingo; as fábricas continuaram fechadas, e, seguidamente, foi impossível calcular logo de manhã, segundo a amplitude da greve, a força do desenvolvimento das massas. Além disso, os operários não puderam reunir-se, como eles tinham feito nos dias precedentes, nas suas fábricas, e era mais difícil manifestar. A Perspectiva Nevsky esteve calma na manhã. É então quando a czarina telegrafou ao czar: “ a calma reina na cidade”. Mas esta tranquilidade não durou muito tempo. Pouco a pouco os operários operaram a concentração e, em todos os bairros, convergiram para o centro. Impediram-nos de atravessar as pontes. Eles descem sobre o gelo; porque, em Fevereiro, todo o Neva é uma ponte de gelo. Não basta puxar pela multidão que atravessa o rio gelado para a reter. A cidade mudou totalmente de aspecto. Por todo o lado as patrulhas, barragens, reconhecimentos de cavalaria. As artérias que levam à Perspectiva Nevsky estão particularmente bem guardadas. Frequentemente rebentam salvas, partindo de pontos de emboscadas. O número de mortos e de feridos aumenta. Ambulâncias circulam nos diversos sentidos. De onde disparam ? Quem dispara ? Nem sempre é possível dar-se conta. Sem nenhuma dúvida, a polícia, fortemente corrigida, resolveu não se expor mais. Ela dispara a partir das varandas, por detrás das colunas, do alto dos telhados. Hipóteses são avançadas que se tornam facilmente legendas. Conta-se que, para assustar os manifestantes muitos soldados vestiram o uniforme dos polícias. Conta-se que Protopopov estabeleceu numerosos postos de metralhadores nos telhados. A comissão de inquérito que foi instituida após a revolução não encontrou traços desses postos. Não há provas que não tivessem existido. Todavia, nesse dia, a polícia passa para segundo plano. É o exército que, definitivamente, entra em acção. Os soldados receberam ordem rigorosa de disparar, e eles disparam, principalmente aqueles que pertencem às escolas de oficiais subalternos. Segundo os dados oficiais, houve, nesse dia, cerca de quarenta mortos e o mesmo número de feridos, sem

contar os que a multidão pôde levar. A luta chegou à fase decisiva. A massa vai recuar, sob as balas, em direcção dos seus bairros ? Não, ela não recua. Ela quer ganhar a partida.

A vida dos funcionários, dos burgueses, dos liberais, Petersburgo, está aterrorizada. O presidente da Duma do Império, Rodzianko, reclamava, nesse dia, o envio de tropas seguras da frente seguidamente ele “mudou de ideia” e aconselha ao ministro da Guerra, Beliaev, de a empregar contra a multidão não as armas mas as lanças dos bombeiros, água fria... Beliaev, após ter consultado o general Khabalov, respondeu que os duches de água fria tinham o efeito contrário, “precisamente porque são um excitante”. Tais eram as conversações que levavam os liberais com os altos dignitários e os polícias sobre as vantagens relativas do duche frio ou quente para dominar um povo insurrecto. Os relatórios da polícia, nesse dia, provam que as lanças dos bombeiros não eram suficientes: “No decurso dos sarilhos, observou-se de maneira geral, uma atitude extremamente provocante dos ajuntamentos de amotinados em relação dos destacamentos de tropas, sobre os quais a multidão respondia aos avisos lançando pedras e pedaços de gelo colhidos na calçada. Quando a tropa disparava para o ar, como aviso, a multidão, em vez de se dispersar, respondia às salvas com risadas. É somente em disparando sobre a multidão que se conseguia deslocar os ajuntamentos: ainda os participantes se escondiam, na maior parte, nas traseiras das casas vizinhas e, desde que o tiroteio cessava, voltavam para a rua.” Esse relatório da polícia testemunha a elevada temperatura das massas. Na realidade, é pouco provável que a multidão tenha sido a primeira a começar a bombardear com pedras e gelo os soldados, mesmo os contingentes das escolas de oficiais subalternos: há aí uma grande contradição com a psicologia dos insurrectos e a sua táctica sábia em relação ao exército. Par melhor justificar os massacres de massas, as impressões transmitidas pelo relatório e a sua disposição não são completamente as que convinham. Todavia, o essencial encontra-se aí exactamente representada, e com um realismo notável: a massa não quer bater mais em retirada, ela resiste com um furor optimista e mantém-se na rua na mesma após ter recebido as salvas mortíferas; ela agarra-se não à vida, mas ao asfalto, às pedras, aos pedaços de gelo. A multidão não está simplesmente exasperada, ela é intrépida. A despeito do tiroteio, ela não perde confiança na tropa. Ela conta na vitória e quer obtê-la custe o que custe.

A pressão exercida pelos operários sobre o exército acentua-se, contrariando a acção das autoridades sobre as forças militares. A guarnição de Petrogrado torna-se definitivamente o ponto de mira dos acontecimentos. O período de expectativa, que dura quase três dias, durante os quais a grande maioria da guarnição pode ainda guardar uma neutralidade amigável em relação aos insurrectos, chegava ao fim. “Disparai sobre o inimigo !” ordenou a monarquia. “Não disparai sobre os vossos irmãos e irmãs !” gritam os operários e as operárias. E não somente isso: “Vinde connosco !” Assim, nas ruas, nas praças, diante das pontes, nas portas dos quartéis, desenvolve-se uma uma luta incessante, ora dramática, ora imperceptível, mas sempre renhida, pela conquista do soldado. Nesta luta, nesses violentos contactos entre trabalhadores, trabalhadoras e soldados, sob contínuas detonações de espingardas e das metralhadoras, decidem-se os destinos do poder, da guerra e do país.

Os disparos dirigidos sobre os manifestantes aumentam a incerteza dos líderes. A amplitude do próprio movimento começa a parecer perigosa. Mesmo a sessão do comité de Vyborg, na noite do 26, isto é doze horas antes da vitória, alguns vieram perguntar se não era tempo de acabar com a greve. O facto pode parecer surpreendente. Mas deve-se compreender que uma vitória constata-se mais facilmente no dia depois que na véspera. Além disso, os estados de espírito modificam-se muitas vezes em resposta aos acontecimentos e às notícias recebidas. A prostração sucede rapidamente ao novo entusiasmo. Os Kairov e os Tchogorine têm coragem suficiente, mas, em certos momentos o que dói é o sentimento de responsabilidade diante das massas. Há menos hesitações nas fileiras operárias. Das suas disposições de então, possuía-se um relatório dirigido à autoridade superior por um agente bem informado da Segurança, Chorkanov, que jogou um papel importante na organização bolchevique: “Dado que as tropas não colocaram obstáculos à multidão – escrevia o provocador – que em certos casos, tomaram medidas com o objectivo de paralizar as iniciativas da polícia, as massas sentiram-se seguras da sua impunidade, e, actualmente, após dois dias de idas e vindas livres na rua, enquanto que os círculos revolucionários lançaram palavras de ordem tais como “Abaixo a guerra !” o povo convenceu-se que a revolução tinha começado, que o sucesso estava assegurado às massas, que o poder seria incapaz de reprimir o movimento, visto que as tropas alinhavam do lado dos revoltosos e que a sua vitória decisiva está próxima, visto que o exército, hoje ou amanhã, tomará abertamente o partido das forças revolucionárias e que então o movimento, longe de se acalmar, crescerá constantemente, até à vitória completa e à queda do regime.” A apreciação de uma brevidade e de uma luminosidade notável ! Esse relatório é um documento histórico de grande valor. Isso não devia impedir, bem entendido, os operários, após a vitória, de fuzilar o autor.

Os provocadores, cujo número era formidável, sobretudo em Petrogrado, temem, mais que ninguém, a vitória da revolução. Eles dirigem a sua política: nas conferências dos bolcheviques, Chorkanov pronuncia-se a favor das medidas mais extremistas; nos seus relatórios à Segurança, ele sugere a necessidade de fazer resolutamente uso das armas. Talvez Chorkanov se esforce, com esse fim, exigir a mesma certeza dos operários na sua ofensiva. Mas, no essencial, ele tinha razão: os acontecimentos deviam brevemente justificar a sua avaliação.

Hesitava-se e conjecturava-se nas esferas superiores dos dois campos, porque nenhum podia, à priori, medir a relação de forças. Os índices exteriores tinham definitivamente parado de servir de medida: um dos principais aspectos de uma crise revolucionária consiste, com efeito, num violento contraste entre a consciência e as antigas formas das relações sociais. As novas proporções das forças albergavam-se misteriosamente na consciência dos operários e dos soldados. Mas, precisamente, a passagem do governo à ofensiva chamada e precedida pela das massas revolucionárias transformou a relação de forças de potencial a efectivo. O operário considerava o soldado em frente, avidamente e imperiosamente; este, inquieto, desnorteado, olhava para o lado; o que assinalava que o soldado já não estava seguro dele. O operário avançava mais ousadamente que o soldado. O militar melancólico, sem ser hostil, sobretudo arrependido, defendia-se através do silêncio e às vezes cada vez mais – replicava com um tom de severidade fingida para dissimular a angústia com a qual batia o seu coração. É assim que se realizava a ruptura. O soldado desembaraçava-se evidentemente do espírito soldadesco. Mesmo assim, nesse caso, não se reconhecia logo a ele próprio. Os chefes diziam que o soldado estava embriagado pela revolução; parecia ao soldado que ao contrário ele retomava o sentido após o ópio do quartel. Assim se preparou o dia decisivo: o 27 Fevereiro.

Portanto, na véspera ainda, um facto produziu-se que por ser episódico, não deixa de dar uma nova cor a todos os acontecimentos do 26 de Fevereiro: ao anoitecer se revolta a 4ª companhia do regimento Pavlovsky, guardas da sua majestade. No seu relatório escrito um comissário da polícia, a causa dessa revolta é indicada, em termos completamente categóricos: “É um movimento de indignação em relação dos alunos oficiais subalternos do mesmo regimento que, encontrando-se de serviço na Perspectiva Nevsky, dispararam sobre a multidão.” Por quem a 4ª companhia foi informada ? Sobre esse ponto nos informa um testemunho conservado por acaso. Cerca das duas da tarde, um pequeno grupo de operários acorreu às casernas do regimento Pavlovsky; em palavras entrecortadas, eles falavam do tiroteio sobre o Nevsky. “Digam aos camaradas que os vossos também disparam sobre nós; nós vimos sobre a Perspectiva soldados que têm o vosso uniforme!” A reprimenda foi implacável, o apelo foi ardente. “Todos estavam cansados e lívidos.” A semente não cai sobre a pedra. Cerca de seis horas, a 4ª companhia deixou de livre vontade o quartel, sob o comando de um oficial subalterno – qual ? O seu nome perdeu-se sem deixar marca, entre as centenas e milhares de outros nomes heróicos – e se dirigiu para o Nevsky para substituir os alunos oficiais subalternos do regimento. Não era um motim sobre a carne estragada; era um acto de alta iniciativa revolucionária. A caminho, a 4ª companhia teve uma escaramuça com uma patrulha da polícia montada, disparou, matou um agente e um cavalo, fere outro polícia e outro cavalo. O itinerário que seguiram então os “pavlovtsy”, na barafunda, não foi reconstituido. Eles voltaram para o quartel e revoltaram o regimento completo. Mas as armas tinham sido escondidas; segundo certos dados, os amotinados ter-se-iam apoderado de trinta espingardas. Logo, ele foram cercados pelo regimento Preobrajensky; dezanove dos “pavlovtsy” foram presos e levados para a fortaleza; outros renderam-se. Segundo outras informações, vinte e um soldados faltaram à chamada, nessa noite,com as suas armas. “Fuga” perigosa. Esses vinte e um soldados levaram a noite à procura de aliados, defensores. Só a vitória da revolução os pôde salvar. Os operários aprenderam com eles, certamente, o que se passou. Não foi um mau presságio para as batalhas do dia seguinte.

Nabokov, um dos líderes liberais mais popular e cujos verídicas Memórias parecem ser por vezes o diário íntimo do seu partido e da sua classe, voltava a pé de uma noite passada na casa de amigos, cerca de uma da manhã, por ruas sombrias e ansiosas; ele voltava “alarmado e cheio de pressentimentos sombrios”. Pode ser que ele tenha encontrado em qualquer cruzamento um dos desertores do regimento Pavlovsky. Todos os dois apressaram-se a se afastar: eles não tinham nada a se dizer. Nos bairros operários e nos quartéis, alguns vigiavam ou se consultavam, outros, mergulhados num sono leve sonhavam febrilmente sobre o dia seguinte. Por aí o desertor “pavlovets” encontrava asilo.

Como eram indigentes as notas tomadas sobre os combates de massas em Fevereiro, mesmo comparadas aos relatos pouco rigorosos que foram dados das batalhas de Outubro. Em Outubro, os insurrectos mantinham-se diariamente sob a direcção do partido, cujos artigos, manifestos, processos verbais representam pelo menos a continuação exterior da luta. Em Fevereiro não se passou assim. Do alto, as massas quase que não eram dirigidas. Os jornais calavam-se, a greve era toda-poderosa. As massas, sem olharem para trás, faziam elas próprias a sua própria história. Reconstituir um quadro vivo dos acontecimentos que se produziram na rua é quase inconcebível. Deve-se estar feliz se se conseguiu a encontrar a sucessão geral e a lógica interna.

O governo, que não tinha ainda abandonado o aparelho do poder, considerava o conjunto dos acontecimentos de uma maneira mesmo mais pessimista que os partidos de esquerda que , portanto, sabemos-lo, estavam menos que os outros à altura. Após o tiroteio “conseguido” do 26, os ministros sentiram-se por um momento reconfortados. Na madrugada do 27, Protopopov afirmava, num comunicado tranquilizador, que, segundo as informações recebidas, “um certo número de operários estariam dispostos a retomar o trabalho”. Ora, os operários nem sonhavam de forma nenhuma voltar para as suas máquinas. O tiroteio e o revés da véspera não tinham desencorajado as massas. Como explicar o facto ? Evidentemente, os “menos” eram largamente compensados por certos “mais”. Propagam-se nas ruas, confrontando-se com o inimigo, sacudindo os soldados pelos ombros, penetrando sob o peito dos cavalos, dirigindo-se para a frente, pondo-se em debandada, deixando os cadáveres nos cruzamentos, apoderando-se por vezes de algumas armas, transmitindo notícias, captando rumores, a massa insurgida torna-se um ser colectivo que tem um sem número de olhos, orelhas e tentáculos. Abandonando ao anoitecer o terreno da batalha para voltar para casa, nos bairros das fábricas, a multidão remói as impressões do dia, e, deixando cair os factos menores, os factos acidentais, estabelece o balanço pesado. Na noite do 27, esse balanço foi aproximadamente o que o provocador Chorkanov tinha apresentado às autoridades. A partir do dia seguinte, os operários correm para as fábricas e, nas suas assembleias gerais, decidem continuar a luta. São os do bairro de Vyborg que, como sempre, mostram-se os mais resolutos. Mas, nos outros distritos, os comícios dessa manhã estão cheios de entusiasmo. Continuar a luta ! Mas o que isso significa nesse dia ? A greve geral levou a manifestações revolucionárias de massas imensas, as manifestações levaram os manifestantes a choques com as tropas. Continuar a luta significa, nesse dia, apelar à insurreição armada. Todavia, esse apelo não foi lançado por ninguém. Inevitavelmente, os acontecimentos impõem-no, mas ele não está de forma nenhuma inscrito na ordem do dia do partido revolucionário.

A arte de uma direcção revolucionária, nos momentos mais críticos, consiste, para os nove décimos, saber surpreender a voz das massas – assim como Kaiorov tinha surpreendido o movimento de sobrancelhas de um cossaco – ainda que seja necessário ter uma visão ampla. A faculdade nunca ultrapassada em surpreender a voz da massa fazia a força de Lenine. Mas Lenine não se encontrava em Petrogrado. Os estados-maiores “socialistas”, legais ou meio legais, os Kerensky, os Tchkeidzé, os Skobelev e todos os que giravam à volta deles, preferiam muitos avisos e contrariavam o movimento. Mas mesmo o estado-maior central dos bolcheviques, que se compunha de Chliapnikov, de Zalotsky e de Molotov, mostra uma incapacidade e uma falta de iniciativa cada vez mais impressionantes. De facto, os bairros da cidade e os quartéis estavam entregues a eles mesmos. O primeiro manifesto dirigido às tropas por uma organização da social democracia próxima dos bolcheviques só foi lançada no 26. Esse manifesto, concebido em termos bastante hesitantes, que nem sequer exortava o exército a tomar o partido do povo, foi distribuido, logo na manhã do 27, em todos os distritos. “Porém – declara Ioreniev, um dos dirigentes da organização – o desenrolar dos acontecimentos revolucionários foi tal que as palavras de ordem vinham atrasadas. Quando os panfletos foram difundidos nas massa dos soldados, esta estava já em movimento. “No que diz respeito ao centro dos bolcheviques, Chliapnikov, seguindo os conselhos de Tchogorine, um dos melhores líderes operários de Fevereiro, redigiu somente na manhã do 27 um apelo aos soldados. Este apelo foi imprimido ? No melhor dos casos, só pôde aparecer no fim da sessão, à hora da saída. É impossível que tivesse qualquer influência sobre os acontecimentos do 27 de Fevereiro. Deve-se ter como princípio que nesses dias, os dirigentes atrasaram-se de tal forma que eles dominavam do alto a massa.

Mas a insurreição, que ninguém ainda chamava pelo seu próprio nome, era, todavia, levada à ordem do dia. O pensamento operário concentrava-se sobre o exército. Este poderia arrastar aquele ? Não bastava uma agitação disseminada. Os trabalhadores do bairro de Vyborg organizaram um comício diante dos quartéis do regimento moscovita. A acção deu mau resultado: é difícil a um oficial ou a um ajudante premir o gatilho de uma metralhadora ? Os operários foram dispersados por um tiroteio violento. Outra tentativa fora feita diante do quartel do regimento de reserva. O mesmo resultado: entre os operários e os soldados se colocaram oficiais, armados de metralhadora. Os instigadores operários, exasperados, procuravam armas, reclamavam-as ao partido. Responderam-lhes que as armas estavam em posse dos soldados, entre os quais dever-se-ia procurá-las. Os operários já sabiam disso. Mas como se apoderar ? E se o jogo estivesse totalmente perdido durante o dia ? Foi assim que se chegou ao ponto crítico da luta. A metralhadora devia varrer a insurreição, ou esta apoderar-se-ia das metralhadoras.

Nas suas memórias, Chliapnikov, principal figura de então no meio dos bolcheviques de Petrogrado, conta que, a pedido dos operários que queriam armas, pelo menos revolveres, ele lhe recusava, enviando-os procurarem nos quartéis. Ele queria assim evitar afrontamentos sangrentos entre operários e soldados, apostando exclusivamente na agitação, isto é sobre a conquista dos soldados pela palavra e o exemplo. Não conhecemos outros testemunhos que confirmariam ou refutariam esta disposição de um dos dirigentes mais populares nesses dias, deposição mais evasiva que providencial. Teria sido mais simples confessar que os dirigentes não tinham armas. Sem sombra de dúvida a sorte de toda revolução, numa certa etapa, decide-se por uma reviravolta de opinião no exército. Contra uma tropa numerosa, disciplinada, bem equipada e habilmente dirigida, as massas populares desprovidas, completamente ou pouco mais, de armas de combate, não poderiam vencer. Mas nenhuma crise nacional profunda não pode deixar de alcançar, a qualquer grau que seja, o exército; de maneira que, nas condições de uma revolução verdadeiramente popular, a possibilidade abre-se – bem entendido sem garantia – de uma vitória do movimento. Todavia, a passagem do exército para o lado dos insurrectos não se faz sozinha e não é o resultado unicamente da agitação. O exército é heterogéneo e os seus elementos antagónicos estão ligados pelo terror da disciplina. Os soldados revolucionários, na véspera da hora decisiva, não sabem ainda o que eles representam como força e qual pode ser a sua influência. Bem entendido, as massas operárias não são homogéneas. Mas elas têm infinitamente mais possibilidades de rever seus efectivos no decurso dos preparativos de um conflito decisivo. As greves, os comícios, as manifestações são tanto actos de luta como meios de os medir. A massa não se compromete inteiramente na greve. Os grevistas não estão todos dispostos a baterem-se. Nos momentos mais graves, os mais decididos encontram-se na rua. Os que hesitam, seja por lassidão, seja por espírito conservador, ficam em casa. Aí, a selecção revolucionária faz-se sozinha; os homens são escolhidos pela história. No exército passa-se de outro modo. Os soldados revolucionários, simpatizantes, hesitantes, hostis, ficam ligados por uma disciplina rígida cujos comandos se juntam até ao último momento, sob a férula do oficial. Os soldados estão ainda como antes contados como de “primeira” ou de “segunda” classe; mas como é que eles se repartem entre amotinados e submissos ?

O momento psicológico onde os soldados passam à revolução é preparado por um longo processo molecular que, como todo o processo revolucionário, atinge o seu ponto crítico. Mas onde colocar exactamente esse ponto ? A tropa pode estar pronta a juntar-se ao povo, mas não pode receber de fora o impulso necessário. A direcção revolucionária não acredita ainda na possibilidade de ganhar para si a tropa e deixa escapar as oportunidades de vitória. Após esta insurreição amadurecida, mas não realizada, uma reacção pode produzir-se nas tropas: os soldados perderão a esperança que os inflamava, terão uma vez mais a cabeça sob o jugo da disciplina e, a partir de um novo encontro com os operários, encontrar-se-ão a partir de então instigados contra os insurrectos, sobretudo à distancia. Nesse processo, os imponderáveis ou dificilmente ponderáveis, as correntes cruzadas, as sugestões colectivas ou individuais são numerosas. Mas desta combinação complexa de forças materiais e físicas, uma dedução impõe-se, numa nitidez irresistível: a massa dos soldados são tanto mais capazes de virar as suas baionetas, ou então passar para o lado do povo com as suas armas, que eles vêm melhor que os insurrectos são verdadeiramente em insurreição, que não é uma manifestação após a qual o soldado deverá voltar novamente e dar contas; que haja luta mortal; que o povo possa vencer se nos juntarmos a ele, e que assim não somente poder-se-à assegurar-se da impunidade, mas dos consolos na existência. Noutros termos, os insurrectos não podem provocar uma reviravolta no estado de espírito do soldado senão com a condição de estarem eles próprios prontos a arrancar a vitória a qualquer preço, em consequência também ao preço do sangue. Ora, esta determinação superior não pode e não quererá passar-se das armas.

A hora crítica da tomada de contacto da massa insurrecta com os soldados que lhe barram o caminho no momento crítico, é quando a barragem dos capotes cinzentos ainda não se deslocou, quando os soldados mantêm-se ainda ombro a ombro, mas hesitam já, enquanto o oficial, juntando o que lhe resta de coragem, comanda o fogo. Os gritos da multidão, os urros de pavor e de ameaça, cobrem, a metade, a voz do chefe. As espingardas estão suspensas, a multidão pressiona. Então, tal oficial aponta o seu revolver sobre o mais suspeito dos soldados. No minuto decisivo, eis o segundo decisivo. A morte do soldado mais ousado em direcção do qual os outros se voltam involuntariamente, o tiro da espingarda dado sobre a multidão por um oficial subalterno que apanhou a arma do morto – e eis que a barragem se volta a apertar, as armas disparam sozinhas, varrendo a multidão, pelas ruas e quintais. Quantas vezes, desde 1905 não se passou assim: no segundo mais crítico, quando o oficial aperta o gatilho, o seu gesto é previsto por um disparo saído da multidão que tem os seus Kaiorov e os seus Tchogorine. Isso decide não somente a questão de uma escaramuça na rua, mas talvez os resultados de todo o dia ou mesmo de toda a insurreição.

A tarefa que se atribuiu Chliapnikov – preservar os operários dos afrontamentos violentos com os soldados, recusando distribuir armas aos insurrectos – não é em geral realizável. Antes de chegar ao encontro com as tropas, houve numerosas escaramuças com a polícia. A batalha das ruas começava pelo desarmamento dos faraós odiados, portanto os revolveres passaram para as mãos dos insurrectos. O revólver, em si, é uma arma fraca, quase um brinquedo, quando se opõe às espingardas, às metralhadoras e aos canhões do inimigo. Mas essas armas estão verdadeiramente nas mãos do inimigo ? É para verificação que os operários reclamavam armas. A questão é do domínio psicológico. Todavia, mesmo uma insurreição, os processos psíquicos não podem ser isolados dos factos materiais. Para atingir a espingarda do soldado, é preciso primeiro retirar o revólver ao polícia.

As emoções dos soldados nessas horas foram menos presentes que as dos operários, mas não menos profundas. Lembremos ainda que a guarnição compunha-se principalmente de batalhões de reservistas contando bastantes milhares de homens destinados a completar os regimentos da frente. Esses homens, na maior parte pais de família, previam o seu envio para as trincheiras, enquanto na frente a jogo estava já perdido e o país arruinado. Eles não queriam guerra, eles queriam voltar para casa, voltar para as suas famílias. Eles sabiam de antemão o que se preparava na Corte e não se sentiam de forma nenhuma ligados à monarquia. Eles não queriam lutar contra os alemãs e ainda menos com os operários de Petrogrado. Eles detestavam a classe dirigente da capital que festejava em tempo de guerra. Entre eles encontravam-se operários que, tendo um passado revolucionário, sabiam dar a todos esses estados de espíritos uma expressão generalizada.

Conduzir os soldados, partindo dum descontentamento revolucionário profundo mas ainda não manifestado, aos actos de franca rebelião ou pelo menos, para começar, a uma sediciosa recusa da acção – tel era o problema. Cerca do terceiro dia de luta, os soldados tinham perdido definitivamente toda a possibilidade de se manterem em posições de uma neutralidade benevolente em relação à insurreição. Foi somente por acaso que indicações fragmentárias sobre o que se passou nessas horas entre operários e soldados nos chegaram. Sabe-se como, na véspera, os trabalhadores tinha retirado face aos “pavlovtsy”, queixas veementes contra o comportamento dos cadetes. Cenas, conversações, reprimendas, citações do mesmo género tiveram lugar sobre todos os pontos da cidade, os soldados não tinham mais tempo para hesitações. Forçaram-nos , na véspera, a disparar; forçá-los-ão ainda hoje. Os operários não cedem nada, não recuam e sob as balas, conseguem chegar aos seus objectivos. Depois deles, as operárias, mães e irmãs, esposas e companheiras. Então a hora sobre a qual se falava em voz baixa ainda não chegou: “Se nos juntássemos todos ?” E no momento das supremas aflições, o terror intolerável diante do dia que se aproxima, de um ódio sufocante em relação aos que vos impõem o papel de carrasco, os primeiros gritos de revolta aberta levantam-se nos quartéis, e nessas vozes que ninguém sabe nomear, todo o quartel, aliviado, entusiasta, reconhece-se. Foi assim que surgiu o dia da queda da monarquia dos Romanov.

A reunião da manhã, na casa do infatigável Kaiorov, uma quarentena de delegados de fábrica pronunciaram-se maioritariamente pela continuidade do movimento. A maioria, mas não a unanimidade. É lamentável que não se pudesse estabelecer o que foi essa maioria. Mas a hora não era propícia para redacções de processos verbais. Aliás, esta decisão estava atrasada em relação os factos: a reunião foi interrompida por uma notícia perturbante; os soldados tinham-se revoltado e as portas das prisões tinham sido arrobadas. “Chorkanov trocou beijos com todos os assistentes”: beijos de Judas que, felizmente, não anunciavam uma crucificação.

Um depois do outro, logo pela manhã, antes de sair dos quartéis, batalhões da reserva da Guarda revoltaram-se, seguindo o exemplo dado, na véspera, pela quarta companhia dos “pavlovtsy”. Na documentação, notas e memórias, só restam pálidos traços desse grandioso acontecimento da história humana. As massas oprimidas, mesmo quando elas sobem aos mais altos cumes da criação histórica, contam poucas coisas delas próprias e ainda menos tomam notas. E o sentimento lancinante do triunfo apaga logo o trabalho da memória. Contentemo-nos do que resta.

Foram primeiro os soldados do regimento de Volhynia que se insurgiram. Desde das 7 horas da manhã, um comandante do batalhão chamou Khabalov pelo telefone para lhe comunicar uma terrível notícia: os alunos cadetes, isto é um contingente especialmente destinado à tarefa da repressão, tinham recusado marchar, e o respectivo chefe tinha sido morto ou tinha-se suicidado diante das tropas; a segunda versão foi aliás logo abandonada. Tendo queimado as naves, os “volhynianos” esforçaram-se e alargar a base da insurreição: era a sua única chance de salvação. Eles precipitaram-se para os quartéis vizinhos, os regimentos lituano e Preobrajensky, para aí “desobstruir” os soldados, assim que os grevistas, correndo de fábrica em fábrica, “desobstruindo” os operários. Pouco depois, Khabalov soube que os “volhynianos” não somente recusavam-se a devolver seus fuzis como o general tinha ordenado, mas, com os “preobrajentsy” e os “lituanos”, e, o que era pior, “unindo-se aos operários”, tinham saqueado os quartéis da divisão da guarda. Isso prova que a experiência feita, na véspera, pelos “pavlovtsy” não tinham sido perdida: os amotinados tinham encontrado dirigentes e, ao mesmo, um plano de acção.

Nas primeiras horas do dia 27, os operários imaginavam a solução do problema da insurreição como infinitamente mais longínquo que ela não era na realidade. Mais exactamente eles acreditavam ainda ter tudo a fazer, enquanto que a sua tarefa, pelos nove décimos estava realizada. O ímpeto revolucionário dos operários do lado dos quartéis coincidia com o movimento revolucionário dos soldados que saíam já na rua. No decorrer do dia, essas duas correntes impetuosas misturaram-se para descer e levar o telhado do velho edifício, a seguir as paredes, e mais tarde as fundações.

Tchogorine foi um dos primeiros a se apresentar no local dos bolcheviques, de espingarda na mão, com uma fita de munições à bandoleira, “todo sujo, mas resplandecente e triunfante”. Porque não resplandecer! Os soldados passam para o nosso lado, de armas na mão ! Aqui e acolá, os operários já conseguiram unir-se com as tropas, a penetrar nos quartéis, a obter espingardas e munições. O grupo de Vyborg, em colaboração com os soldados mas resolutos, esquematizou um plano de acção: amparar-se dos comissários da polícia, onde estão os agentes da polícia, e desarmar todos os agentes; libertar os operários encarcerados nos comissariados, assim como os detidos políticos nas prisões; esmagar as tropas governamentais na cidade, agrupar as tropas ainda não revoltadas e os operários dos outros bairros.

O regimente “moscovita” aderiu ao levantamento não sem luta interior. O que é impressionante, é que houvesse esse tipo de luta no exército. A pequena cimeira da monarquia impotente, caía, tendo perdido o apoio da massa dos soldados, e escondia-se nos interstícios, ou então apressava-se a vestir as novas cores. “Cerca das duas horas da tarde – conta Korolev, operário da fábrica “Arsenal” - como o regimento “moscovita” saía, nós pegámos em armas... Cada um tinha um revolver e uma espingarda. Nós treinámos um grupo de soldados que se aproximou (alguns deles nos pediram para os comandar e de lhes indicar o que seria necessário fazer) e nós nos dirigimos para a rua Tikhvinskaia para abrir fogo sobre o comissariado da polícia.” Foi assim que os operários não se embaraçaram para mostrar aos soldados “o que havia a fazer”.

As boas notícias da vitória sucediam-se umas às outras: os insurrectos tinham carros blindados. Cobertos de bandeiras vermelhas, eles espalhavam o pânico nos lugares ainda não submetidos. Já não havia necessidade de rastejar sob os cavalos. A revolução assumia toda a sua grandeza.

Pelo meio-dia, Petrogrado voltou a ser um campo de batalha: os tiros e os e o ruído das metralhadoras ouviam-se por todos os lados. Nem sempre é fácil saber quem dispara e de onde. O que é claro, é que se dispara entre o passado e o futuro. Bastantes disparos foram inúteis: os adolescentes disparam com revolvers que procuraram para a ocasião. O arsenal foi pilhado: “O que se diz, se contarmos só as brownings, distribuíram-se várias dezenas de milhares.” A fumaça subia em colunas do palácio da justiça e dos comissariados da polícia que ardiam. Em certos pontos, as escaramuças e as trocas de fogo agravavam-se até se tornarem verdadeiros combates. Na Perspectiva Sampsonovsky, diante dos edifícios ocupados pelos soldados viaturas de guerra, algumas juntavam-se às portas, os operários aproximavam-se:” O que é que vocês esperam camaradas ?” Os soldados sorriem, mas “um mau sorriso”, e eles calavam-se, diz uma testemunha; os oficiais ordenam brutalmente aos trabalhadores para seguir caminho.

Os condutores do exército, assim como a cavalaria, mostraram-se, em Fevereiro como em Outubro, como sendo as forças mais conservadoras. Brevemente, diante da palissada, se agruparam os operários e os soldados revolucionários. É preciso obrigar a sair o batalhão duvidoso. Alguém vem dizer que enviaram carros blindados: de outra forma não haveria provavelmente os carros do exército, cuja equipa se fortaleceu com as metralhadoras. Mas a massa pena em esperar, ela impacienta-se, alarma-se, e, na sua impaciência, ela tem razão. Os primeiros disparos partem dos dois lados. No entanto, a palissada é um obstáculo entre os soldados e a revolução. Os assaltantes decidem demolir esta barreira. Abate-se parcialmente, incendia-se a outra parte. Os edifícios são saqueados, há uma vintena. Os automobilistas refugiam-se em dois ou três. Os edifícios são evacuados são imediatamente incendiados. Seis anos mais tarde, Kairov escreveu nas suas Memórias: “Os edifícios em fogo, e à volta deles a palissada derrubada, o tiro das metralhadoras e das espingardas, a animação visível dos assaltantes, a rápida chegada de um camião trazendo revolucionários armados e, enfim, um auto blindado cujas peças de artilharia brilhavam, formavam um esplêndido quadro inesquecível”. Era a velha Rússia dos czares, da servidão, dos papas e da polícia que ardia com os seus edifícios, cuspindo fogo e fumo, morrendo nos soluços dos tiros das metralhadoras.

Como os Kairov, dezenas, centenas, milhares de Kairov não se teriam entusiasmado? O auto blindado que surgiu disparou alguns tiros de canhão sobre o edifício onde se tinham refugiado os oficiais e os soldados condutores. O comandante da defesa foi morto. Os oficiais, despossuidos dos seus galões e decorações, fugiram a través das hortas da vizinhança. Os outros renderam-se. Foi talvez o maior afrontamento do dia.

O levantamento no exército tomava entretanto um carácter epidémico. Nesse dia os efectivos que não se sublevaram foram só os que acharam que ainda não era o momento de o fazer. Pela noite juntaram-se ao movimento os soldados do regimento Semenovsky, conhecido por ter esmagado impiedosamente a insurreição moscovita em 1905: onze anos passados tinham deixado a sua marca ! Com os caçadores, os “semenovtsy” vieram à noite raptar os soldados do regimento Ismailovsky que as chefias mantinham fechados nas casernas; esse regimento que, no 3 de Dezembro de 1905 tinha cercado e feito prisioneiros os membros do primeiro Soviete de Petrogrado, era ainda considerado como um dos mais atrasados. A guarnição do czar, na capital, com cerca de 150 mil homens, se desagregava, fundia-se, eclipsava-se. Pela noite, ela já não existia.

Informado pela manhã do levantamento dos regimentos, Khabalov tenta opor ainda alguma resistência, ao enviar contra os insurrectos um destacamento seleccionado de cerca de mil homens, munidos das mais draconianas instruções. Mas a sorte desse destacamento envolve-se de mistério. “Passa-se qualquer coisa, nesse dia, coisas inacreditáveis, conta, após a revolução, o incomparável Khabalov: o destacamento mete-se a caminho, e parte sob o comando de um oficial bravo e resoluto – trata-se do coronel Kotiepov – mas...sem resultados ! “Companhias enviadas a seguir ao destacamento desapareceram igualmente sem deixar rasto. O general começou a formar reservas na praça do Palácio, mas “as munições faltavam e não sabíamos onde as procurar”. Tudo isso está estabelecido autenticamente nas deposições de Khabalov diante da comissão do governo provisório. Para onde tinha escapado os destacamentos destinados à repressão ? Não é difícil adivinhar: desde que eles se encontraram fora , eles se fundiram com a insurreição. Operários, mulheres, adolescentes, soldados insurrectos penduravam-se por todos os lados às tropas de Khabalov, tomando-os como novos recrutas ou esforçavam-se por os converter e não lhes davam possibilidades de se moverem de outra forma senão com a imensa multidão. Fazer guerra a essa massa aglutinante que não temia nada, que se agitava inesgotável, que penetrava por todo o lado, teria sido como fazer espadachim num amassadouro !

Ao mesmo tempo que chegavam os relatórios sobre a extensão da revolta nos regimentos, Khabalov reclamava tropas seguras para a repressão, para a protecção da Central telefónica, do palácio Litovsky, do palácio Maria e outros lugares ainda mais sagrados. O general telefonou à fortaleza de Cronstadt, exigindo reforços, mas o comandante respondeu que ele próprio temia sobre a segurança da própria fortaleza. Khabalov não sabia ainda que a insurreição tinha ganho guarnições vizinhas. Ele tentou, ou fez de conta, em transformar o palácio de Inverno em reduto, mas esse plano foi logo abandonado como irrealizável, e o último punhado de tropas “fiéis” foram enviados para o almirantado. Aí, o ditador preocupou-se enfim em tomar as medidas urgentes e importantes; ele mandou imprimir dois avisos à população que constituem os últimos actos oficiais do regime: um sobre a demissão de Protopopov “por motivo de doença”; outro decretando o estado de sítio em Petrogrado. Era efectivamente urgente tomar esta última medida porque, algumas horas mais tarde, o exército de de Khabalov levantava o “estado de sítio” e, esquivando-se do almirantado, dispersava-se, voltado cada um para casa. Foi somente por inadvertência que a revolução não prendeu logo na noite de 27 o general, cujos poderes eram enormes, mas que ele próprio não era de temer. A prisão teve lugar no dia seguinte sem complicações.

Era toda a resistência que o terrível regime imperial da Rússia pode manifestar diante do perigo de morte ? Sim, pouco mais ou menos tudo, em despeito de uma grande experiência na repressão, apesar dos planos minuciosamente elaborados. Mais tarde, os monarquistas, tendo acordado, explicaram a vitória fácil do povo em Fevereiro pelo carácter particular da guarnição de Petrogrado. Mas o curso ulterior da revolução refuta esta explicação. É verdade que, desde do início do ano fatal, a camarilha sugeria ao czar a necessidade de modificar a guarnição da capital. O czar acreditou sem dificuldades que a cavalaria da Guarda, considerada como particularmente devotada, tinha-se “suficientemente exposto ao fogo” e tinha merecido descanso nos quartéis de Petrogrado. No entanto, cedendo às respeitosas advertências vindas da frente, o czar concordou em substituir quatro regimentos da Guarda montada por três unidades da tripulação da frota da Guarda. Segundo a versão de Protopopov, esta troca teria sido feita sem o consentimento do czar, pela premeditação traidora dos grandes chefes: “os marinheiros foram recrutados entre os operários e constituem o elemento mais revolucionário de todas as Forças Armadas.” Mas são evidentes absurdidades. Simplesmente, o alto comando da Guarda, sobretudo na cavalaria, estabelecia uma excelente carreira para voltar. Além disso, esses oficiais superiores deviam sentir-se apreendidos ao pensar na obra de repressão que lhes seria imposta, à cabeça dos regimentos que não se pareciam com nada ao que eles tinham na guarnição da capital. Como provaram logo os acontecimentos na frente, a Guarda montada não se distinguia mais do resto da cavalaria, e os marujos da Guarda que se instalaram em Petrogrado não jogaram nenhum papel activo na Revolução de Fevereiro. Porque o tecido do regime estava definitivamente podre e não havia um só fio inteiro...

No dia 27, a multidão libertou sem encontrar resistência, os detidos políticos de numerosas prisões da capital, e, nesse número, o grupo patriótico das indústrias de guerra que tinha sido preso no 26 de Janeiro e os membros do comité bolchevique de Petrogrado que Khabalov tinha mandado prendes quarenta horas antes. As distâncias políticas estabeleciam-se desde da saída da prisão: os mencheviques patriotas dirigiam-se para a Duma, onde se distribuíam os papeis e os postos: os bolcheviques voltam para os bairros, para os operários e soldados, para acabar juntamente com eles a conquista da capital. Não se dá ao inimigo o tempo de retomar o fôlego. A revolução, mais necessariamente que qualquer outro assunto, deve ser levada até ao fim.

Quem deu a ideia de dirigir os regimentos insurrectos para o palácio Tauride ? Não se sabe. Esse itinerário político resultou do conjunto da situação. Para o palácio Tauride, como centro de informação da oposição, se dirigiam naturalmente todos os elementos do radicalismo sem ligação às massas. É muito provável que foram precisamente esses elementos que, no dia 27 de Fevereiro, sentindo um inesperado afluxo de forças vitais, tomaram a liderança da Guarda revoltada. Foi um papel honroso que não comportava quase nenhum perigo. O palácio Potemkine, por todas as suas disposições, era o que se podia conceber de melhor como centro da revolução. O jardim de Tauride não é separado senão por uma rua de uma pequena cidadela militar onde se encontram as casernas da Guarda e diversos serviços administrativos do exército. É verdade que, durante muitos anos, esta parte da cidade tinha sido considerada, tanto pelo governo como pelos revolucionários, como o torreão da monarquia. E assim era. Mas, presentemente, tudo mudou. É um sector da Guarda que sai uma insurreição de soldados. As tropas só tinham que atravessar a rua para chegar ao jardim de Tauride que só estava separado do rio Neva por um quarteirão de casas. Ora, do outro lado do Neva, estende-se o bairro de Vyborg, caldeira da revolução: aos operários bastava-lhes passar a ponte Alexandre, ou então, se esta estivesse cortada, descer sobre o gelo do Neva, para alcançar os quartéis da Guarda ou o palácio de Tauride. É assim que esta formação heterogénea e de origens opostas, o tringulo do nordeste de Petrogrado – a Guarda, o palácio Potemkim, as fábricas gigantes – se concentra em bastião da revolução.

No interior do palácio de Tauride criaram-se ou esboçaram-se diversos centros, cujo estado-maior insurreccional. Não se saberia dizer que este estado-maior tenha tido uma carácter sério. Oficiais “ revolucionários”, isto é oficiais que qualquer coisa, mesmo um mal-entendido, ligou à revolução, mas que beatamente adormeceram nas primeiras horas da insurreição, apressam-se a lembrar, após a vitória, que existem, ou melhor, solicitados por outros vêm meter-se “ao serviço da revolução”. Eles examinam com um ar sagaz o conjunto da situação e agitam a cabeça com pessimismo. Porque essas multidões de soldados exasperados, muitas vezes desarmados, são incapazes do que quer que seja. Eles não têm nem artilharia , nem metralhadoras, nem ligação, nem chefes. O inimigo safar-se-ia com uma único destacamento sólido ! Pelo momento, as multidões revolucionárias impedem, na realidade, qualquer operação metódica nas ruas. Mas, vinda a noite, os operários voltam para casa, os citadinos acalmar-se-ão, a cidade ficará deserta. Se Khabalov ataca os quartéis com um contingente forte, ele pode tornar-se mestre da situação. Esta ideia, diga-se de passagem, apresenta-se, sob diversas variantes, em todas as etapas da revolução. “Dêem-me um regimento sólido, dirão mais de uma vez nos seus meios de valentes coronéis, eu varrerei em rapidamente todo esse lixo”. Vários desses oficiais tentaram a aventura, como nós veremos. Mas todos só podiam repetir a declaração de Khabalov: “O destacamento está a caminho, comandado por um bravo oficial, mas...não há resultados...”

E donde poderiam eles provenir ? O contingente mais firme compunha-se de agentes da polícia, de guardas e parcialmente de cadetes de alguns regimentos. Mas esses efectivos revelavam-se lamentáveis diante do avanço das massas, assim que os batalhões de São Jorge e as escolas de oficiais, oito meses mais tarde, em Outubro. Onde é que a monarquia teria ela encontrado, para a sua salvação, a força armada pronta e capaz de encetar um duel prolongado e desesperado com uma cidade de dois milhões de habitantes ? A revolução parece-se com chefes de exércitos, empreendedores em palavras, indefensável porque é terrivelmente caótica: por todo o lado movimentos sem objectivo, correntes contrárias, agitações humanas, rostos espantados e como subitamente pasmados, capotes ao vento, estudantes que gesticulam, soldados sem armas, armas sem soldados, miúdos disparando para o ar, o rumor de milhares de vozes, o turbilhão dos rumores desencadeados, medos injustificados, alegrias enganadoras...; bastava, ao que parece, levantar o sabre sobre toda esta multidão e ela espalhar-se-ia imediatamente sem pedir contas. Mas é aí que está a grande ilusão de óptica. Um caos somente em aparência. Sobre isso tem lugar uma irresistível cristalização das massas sobre novos eixos. Essas multidões numerosas ainda não se deram conta completamente de que elas querem, mas elas estão cheias de ódio ardente que elas não querem mais. Elas deixam atrás de si um irreparável desmoronamento histórico. Sem meio de regresso possível. Se alguém as dispersasse, elas votavam a reunir-se, uma hora mais tarde, e o novo ascenso da multidão seria ainda mais furioso e sangrento. A partir desses dias de Fevereiro, a atmosfera de Petrogrado tornou-se de tal forma incandescente que toda a tropa hostil caindo ao seu alcance, ou se aproximando somente e expondo-se ao seu hálito ardente, transforma-se, perde toda a segurança, sente-se paralizada, e rende-se, sem resistência, à mercê do vencedor. Era o que devia compreender, no dia seguinte, o general Ivanov que, sob ordem do czar, chegou à frente com um batalhão de cavaleiros de São Jorge. Cinco meses mais tarde, a mesma sorte foi reservada ao general Kornilov. Oito meses depois, a Kerensky.

Na rua, no decorrer dos dia precedentes, os cosacos pareciam os mais conciliantes: foi assim que, mais que os outros, foram atormentados. Mas quando chegamos à verdadeira insurreição, a cavalaria justifica uma vez mais a sua reputação de elemento conservador ao deixar-se ultrapassar pela infantaria. No dia 27, ela tinha ainda na expectativa uma aparência de neutralidade. Se Khabalov não contava mais com ela, a revolução temia-a ainda.

Sobrava assim o enigma da fortaleza Pedro e Paulo, situada na ilha que banha o Neva, em frente ao palácio de Inverno e das residências dos grandes duques. Por detrás das muralhas, a guarnição estava ou parecia ser um pequeno mundo muito protegido contra as influências exteriores. Não há artilharia permanente no lugar, com a excepção de um antigo canhão que anuncia diariamente o meio-dia. Mas, hoje, as peças de campanha foram içadas sobre as muralhas, e apontadas sobre a ponte. Que se prepara por lá ? O estado-maior do palácio de Tauride, à noite, quebra a cabeça a questionar-se sobre o que fazer em relação à “Pedro-Paulina”, e na fortaleza das pessoas se atormentam a perguntar o que a revolução fará deles. Na manhã, o enigma terá solução: “Sob condição de salvo-conduto para o corpo de oficiais”, a praça se renderá à discrição do palácio Tauride. Tendo em fim visto claro na situação, o que não era muito difícil, os oficiais da guarnição adiantaram-se aos acontecimentos inevitáveis.

Pela noite do dia 27 avançaram em direcção do palácio de Tauride, soldados, operários, estudantes, gente comum. Aí, eles esperaram encontrar os que sabem tudo, obter informações ou directivas. É aos molhos que se introduziram armas no palácio juntas em diversos lados, e foram depositadas na sala transformada em arsenal. Entretanto, à noite, nesses lugares, o estado-maior meteu-se ao trabalho. Expediu destacamentos para vigiar as gares, e patrulhas em todas as direcções donde se pode esperar uma ameaça. Os soldados cumprem de boa vontade, sem discutir, ainda que na maior desordem, as instruções do novo poder. Eles exigem somente, de cada vez, uma ordem escrita: esta iniciativa provém, provavelmente, dos restos do comando que ficaram ligados aos regimentos, ou aos escribas militares. Mas eles têm razão: é necessário sem falta meter ordem no caos. O estado-maior revolucionário, assim como o soviete que acabou de serem criado, ainda não tem selos. A revolução deve ainda procura no seu material burocrático. Infelizmente, dentro de algum tempo, ela fará esta aquisição para além do necessário.

A revolução mete-se à procura dos seus inimigos. Na cidade dão-se prisões - “arbitrárias”, dirão, num tom de censura, os liberais. Mas toda a revolução é arbitrária. Não param de levar suspeitos ao palácio de Tauride: o presidente do Conselho de Estado, ministros, polícias, agentes da Okhrana, uma condessa “germanofila”, agentes da guarda, em grandes quantidades. Certos dignitários, como Protopopov, vêm por própria iniciativa constituir-se prisioneiros: é mais seguro, “Os murros desta sala que, outrora, tinham ressoado os hinos em honra do absolutismo, não ouviram mais nesse dia senão os suspiros e os soluços, contou mais tarde a condessa devolvida à liberdade. Um general preso sentou-se, esgotado, sobre a cadeira mais próxima. Vários membros da Duma ofereceram-me amavelmente uma chávena de chá. Abalado até ao fundo da alma, o general dizia-me:

“ Condessa, nós assistimos à ruína de um grande país.”

No entanto, esse grande país, que não estava de forma nenhuma disposto a morrer, passava diante dos demitidos, batendo as botas, e o chão com a coronha das espingardas, tremendo o ar com as suas chamadas e pisando as pessoas. As revoluções sempre se distinguiram pela falta de urbanidade: provavelmente porque as classes dirigentes não tinham tomado o cuidado, no devido tempo, de inculcar ao povo boas maneiras.

O palácio de Tauride torna-se provisoriamente um Quartel-General, um centro governamental, um arsenal, um centro de reclusão da revolução que ainda não absorveu a sua face coberta de sangue e de suor. Nesse lugar, nesse remoinho, infiltram-se os inimigos empreendedores. Por acaso, desmascarou-se um coronel da guarda que, disfarçado, toma notas a um canto, não para servir a história, mas para informar as tribunais marciais. Soldados e operários querem executá-lo mesmo ali. Mas pessoas do “estado-maior” interpõem-se e raptam à multidão sem dificuldade o guarda. Nesta data, a revolução ainda está indolente, confiante, mansa. Ela tornar-se-à implacável somente após uma serie de traições, de logros e experiências sangrentas.

A primeira noite da revolução triunfante foi cheia de alarmes. Comissários improvisados, para a vigilância das gares e outros pontos, na sua maior parte intelectuais que as suas relações pessoais levaram por acaso, aventureiros, os que tiraram o chapéu à revolução (oficiais subalternos, sobretudo de origem operária tivessem sido mais úteis !) começam a enervar-se, vêm perigos em todo o lado, enervam os soldados e, por telefone, pedem constantemente reforços ao palácio de Tauride. Aí também amotinam-se, telefonam, enviam reforços que, muitas vezes, não chegam ao destino. Um daqueles que, nessa noite, fizeram parte do “estado-maior” de Tauride exprimem-se assim:

“Os que recebem ordens não as executam; os que agem fazem sem receber ordem...”

É sem ordens que agem os bairros operários. Os dirigentes da revolução, tendo iniciado os efectivos nas suas fábricas, aparando-se de comissariados, tendo seguidamente sublevado os regimentos e demolido os refúgios da contra-revolução, não se apressam em alcançar o palácio de Tauride, os estados-maiores, os centros directores; pelo contrário; pelo contrário, acenam a cabeça com ironia e desconfiança desse lado: já a rapaziada ocorre para partilhar a pele do urso que eles não mataram e que ainda não foi acabado. Os operários bolcheviques, assim como os operários dos outros partidos de esquerda, passam os seus dias na rua e as noites nos “estados-maiores” de distrito, mantêm-se em contacto com os quartéis, preparam o dia seguinte. No decurso da primeira vigia da vitória, eles continuam e desenvolvem o trabalho que realizaram nos cinco primeiros dias. Eles constituem o esqueleto embrionário da revolução, ainda demasiada fraco, como toda revolução no seu ínicio.

Nabokov, que o leitor já conhece na sua qualidade de membro do centro constitucional democrata (cadetes), então desertor legal, emboscado no grande estado-maior das forças armadas czaristas, rendeu-se como habitualmente, no dia 27, ao seu serviço e aí ficou, ignorando tudo dos acontecimentos, até às três da tarde. À noite, na rua Morskaia, ouvi-se tiros – Nabokov, no seu apartamento, afinou a orelha – autos blindados passaram a toda a velocidade, soldados, marinheiros também corria, demolindo paredes... O prezado liberal observa-os pela vidraça lateral de uma janela em tambor.

“O telefone funcionava ainda e as informações sobre o que se passara no dia eram-me transmitidas, como me lembro, por amigos. Deitámo-nos à hora habitual.”

Esse homem devia tornar-se em breve um dos inspiradores do governo provisório revolucionário (!), na qualidade de secretário geral. Na rua, no dia seguinte, uma velha criatura desconhecida, um empregado de escritório ou um mestre escola, aproximou-se, tirou o boné e dira:

“Obrigado por tudo o que você fez pelo povo.”

Contou próprio Nabokov com um modesto orgulho.


Inclusão 16/05/2010