Teses Sobre o Bolchevismo

Helmut Wagner

Abril de 1934


Escrito em: 1933
Primeira Edição:
Persdienst van de groep van Internationale Communisten Nº 7, abril 1934.
Fonte:
Biblioteca Comunista A Velha Toupeira
Enviado por: Antonio Oliveira

HTML: Fernando A. S. Araújo.


Índice

I - O Significado do Bolchevismo

II - As Premissas da Revolução Russa

III - Classes na Revolução

IV - A Essência do Bolchevismo

V - As Directivas da Política Bolchevique

VI - O Bolchevismo e a Classe Operária

VII - A Revolução Bolchevique

VIII - Internacionalismo Bolchevique e Questão Nacional

IX - O Bolchevismo de Estado e o Komintern

X - O Bolchevismo e a Classe Operária Internacional


I - O Significado do Bolchevismo

1. O bolchevismo criou um campo fechado de práxis social na economia e no Estado soviético. Fez da III Internacional um instrumento capaz de dirigir e influenciar o movimento dos trabalhadores à escala internacional. Com o “leninismo” elaborou as suas directivas em matéria de princípios e de estratégia. Resta-nos saber se a teoria bolchevique exprime, como o disse Staline, o marxismo na fase do imperialismo e se, nesse caso, representa o eixo do movimento revolucionário proletário internacional.

2. O bolchevismo adquiriu uma reputação internacional no seio do movimento operário, tanto pela sua oposição revolucionária sistemática à Guerra Mundial de 1914-18 como pela Revolução Russa de 1917. A sua importância histórica mundial provém da maneira como, sob a direcção consequente de Lenine, ter reconhecido os problemas da revolução russa e ao mesmo tempo ter sabido forjar no interior do partido bolchevique, o instrumento com o qual estes problemas poderiam ser resolvidos na prática. Esta adaptação do bolchevismo aos problemas postos pela revolução russa foi o resultado de 20 anos de um desenvolvimento contínuo e paciente, assim como de um profundo conhecimento das relações entre as classes.

3. Para saber se este perfeito controlo, de que o bolchevismo deu provas, lhe dá o direito à direcção teórica, táctica e organizativas da revolução proletária mundial, é necessário examinar, por um lado, as bases e as premissas sociais da revolução russa, e por outro, os problemas da revolução proletária nos grandes países capitalistas.

II - As Premissas da Revolução Russa

4. A sociedade russa foi fortemente condicionada pela sua situação entre a Europa e a Ásia. Enquanto que a força económica mais progressiva da Europa Ocidental e a sua posição internacional mais poderosa destruíam na Rússia, antes do fim da Idade Média, os primeiros germens de um desenvolvimento comercial de tipo capitalista, a superioridade política do despotismo oriental ia lançar as bases da organização estatal absolutista do Império Russo. Deste modo, a Rússia ocupava, não só pela sua posição geográfica, mas também do ponto de vista económico e político, uma posição intermédia entre os dois continentes, combinando os seus diferentes sistemas sociais e políticos de maneira peculiar.

5. Esta posição ambígua que a Rússia ocupava no mundo, influenciou de maneira decisiva não somente o seu longínquo passado, mas também os problemas da sua revolução nas primeiras décadas do século XX. Na época da escalada crescente do imperialismo, o sistema capitalista criou dois centros que se opunham mutuamente e ao mesmo tempo se entrelaçavam estreitamente: o centro capitalista altamente desenvolvido do avanço imperialista activo, nas regiões fortemente industrializadas da Europa Ocidental e da América do Norte, e o centro colonial de pilhagem imperialista passivo nas regiões agrícolas da Ásia Oriental. A partir destes dois centros criou-se simultaneamente uma oposição de classe ao sistema imperialista: a revolução proletária internacional, por um lado, que se organizava em volta dos países capitalistas mais desenvolvidos da Europa e da América do Norte, e por outro, a revolução agrária nacional originária dos países agrícolas da Ásia Oriental. A Rússia que se encontrava na linha de demarcação das esferas de influência destes dois centros imperialistas, viu combinarem-se estas duas tendências revolucionárias no seu território.

6. A economia russa era uma mistura de produção agrícola de tipo arcaico, característica dos países asiáticos, e de economia industrial moderna característica da Europa. A servidão, sob diversas formas, sobrevivia na prática, para a imensa maioria do campesinato russo, e entravava o desenvolvimento de uma agricultura de tipo capitalista que começava apenas a despontar. Estes novos métodos iriam simplesmente conduzir ao desmembramento da aldeia camponesa(1) e dar origem a uma situação de indigência indescritível, enquanto que o camponês permanecia preso a uma terra que já não o podia alimentar. A agricultura russa que ocupava 4/5 da sua população e representava mais de metade da produção total do país, era até 1917 uma economia feudal entremeada de elementos de capitalismo. A indústria foi enxertada no país pelo regime czarista, desejoso de se tornar independente da tutela do estrangeiro, em particular em relação ao equipamento militar. Todavia, como a Rússia não possuía nem as bases de um sistema artesanal muito desenvolvido, nem os rudimentos necessários à criação de uma classe de “trabalhadores livres”, este capitalismo de Estado, ainda que baseado na produção em série, não deu origem ao desenvolvimento de uma classe operária assalariada. Este sistema de servidão capitalista iria deixar, até 1917, traços indeléveis da sua especificidade, por exemplo, no modo de pagamento de salários, no alojamento dos operários, na legislação social, etc. Os trabalhadores russos estavam, por consequência, não somente em atraso nas suas técnicas, mas eram também, em grande parte, analfabetos, e estavam ligados directa ou indirectamente ao campo. Em muitos ramos da indústria, a mão-de-obra compunha-se essencialmente de “operários sazonais” (camponeses) que não estavam em contacto permanente com a cidade. Até 1917, a indústria era um sistema de produção capitalista misturada com elementos feudais. A agricultura de tipo feudal e a indústria capitalista impregnavam-se assim mutuamente nos seus elementos essenciais e combinavam-se num sistema que não podia ser governado nem segundo os princípios da economia feudal nem desenvolver-se na via do capitalismo moderno.

7. A tarefa económica da revolução russa era, antes de tudo, a de desmascarar o feudalismo agrário e de pôr fim à exploração dos camponeses pelo sistema servil, industrializando a agricultura, elevando-a ao nível da produção moderna de mercadorias, e em segundo lugar tornar possível a criação autónoma de uma classe de verdadeiros “trabalhadores livres”, desembaraçando-se o desenvolvimento industrial de todo o vestígio feudal – por outras palavras, tratava-se para o bolchevismo, de realizar as tarefas da revolução burguesa.

8. Era sobre estas bases que se apoiava o absolutismo do Estado czarista. A existência de um tal Estado dependia do equilíbrio entre as duas classes proprietárias, não conseguindo nenhuma delas chegar a dominar a outra. Se o capitalismo representava o sustentáculo económico do Estado czarista, a nobreza feudal constituía a sua base política: “constituição”, “direito de voto”, “sistema de autonomia estatal”, um conjunto de chavões que não conseguia esconder a impotência política das classes do Estado czarista. O atraso económico do país, deu origem a um método de governo a meio caminho entre o absolutismo ocidental e o despotismo oriental.

9. No plano político, a Revolução Russa enfrentava as seguintes tarefas: destruição do absolutismo e abolição da nobreza feudal como primeiro estado e a criação de uma constituição política e de um aparelho administrativo, garantes políticos da execução da obra económica da revolução. Assim, os objectivos políticos da revolução russa concordavam com as suas premissas económicas…os objectivos da revolução burguesa.

III - Classes na Revolução

10. Em virtude desta peculiar mistura social de elementos feudais e capitalistas, a revolução russa enfrentava igualmente outros problemas árduos. No essencial, ela diferia tão fundamentalmente da revolução burguesa de tipo clássico como a estrutura social do absolutismo russo do início do século XX diferia do absolutismo francês do século XVII.

11. Esta diferença, que correspondia à dualidade da estrutura económica teve a sua expressão política mais clara, na atitude das diversas classes da sociedade russa face ao czarismo e à revolução. Se, em princípio, todas estas classes estavam unidas em virtude dos seus interesses económicos na oposição ao czarismo, na prática não lutavam nem com a mesma intensidade nem para os mesmos fins.

12. A nobreza feudal lutava, antes de mais, para estender a sua influência no Estado absolutista, que desejava manter intacto a fim de conservar os seus privilégios.

13. A burguesia, pouco numerosa, dependente politicamente e directamente ligada ao czarismo através de subvenções do Estado viria a conhecer diferentes mudanças de orientação política. O movimento dos “Dezembristas” em 1825 foi a sua única acção revolucionária contra o Estado Absolutista. Durante os anos 70 e 80, ela apoiou passivamente o movimento revolucionário dos “Narodniks” (populistas) esperando assim aumentar as pressões contra o czarismo. Com o mesmo fim tentou utilizar os movimentos grevistas revolucionários até às lutas de Outubro de 1905: para a burguesia russa já não se tratava, desde então de derrubar o czarismo mas simplesmente de o reformar. Durante o período parlamentar de 1906 até à Primavera de 1917, ela entrou na sua fase de cooperação com o czarismo. E finalmente fugindo às consequências das lutas revolucionárias das massas proletárias e camponesas, rendeu-se sem condições à reacção czarista, aquando do putsch de Kornilov que tinha como fim o restabelecimento do czar nos seus antigos poderes. A burguesia russa tinha-se tornado contra-revolucionária muito antes de ter realizado a sua própria revolução. Revolução burguesa, a revolução russa fez-se não só sem a burguesia, mas directamente contra ela, o que teve repercussões fundamentais sobre o conjunto da sua política.

14. Quanto ao campesinato, que constituia a esmagadora maioria da população russa, iria desempenhar um papel determinante ainda que passivo na revolução. Enquanto que o campesinato possuidor – os médios e os grandes agrários – de efectivos limitados, situava-se politicamente ao lado do liberalismo pequeno-burguês, a grande massa dos pequenos camponeses famintos e escravizados viu-se constrangida, para sobreviver, a proceder a violentas expropriações dos grandes domínios. Incapazes de prosseguir uma política de classe própria, os camponeses russos foram forçados a aceitar a direcção de outras classes. À excepção de algumas revoltas isoladas, eles representavam até Fevereiro de 1917 o pilar do czarismo. Estas massas inertes e atrasadas foram responsáveis pela derrota de 1905. Contudo em 1917, os camponeses desempenharam um papel decisivo na derrocada do czarismo: organizados por este em grandes unidades no exército russo, paralisaram, pela sua passividade, a marcha da guerra. Enfim, durante o período revolucionário, puderam pelas suas revoltas primitivas mas eficazes, pôr fim à grande propriedade agrária e criaram as condições necessárias à vitória da revolução bolchevique: durante os anos de guerra civil, esta não poderia ter sobrevivido sem as acções de solidariedade dos camponeses.

15. O proletariado russo, igualmente atrasado, tinha apesar de tudo acumulado sob a autoridade feroz da opressão czarista e capitalista, uma grande reserva de combatividade. Participou tenazmente em todas as acções da revolução burguesa russa, da qual se tornou o instrumento mais acerado e seguro. Fez de cada um dos seus confrontos com o czarismo um acto revolucionário, desenvolvendo deste modo uma consciência de classe primitiva que, durante as lutas de 1917 (aquando da tomada espontânea de assalto das principais empresas) atingiram o ponto culminante da vontade subjectiva do comunismo.

16. A “intelligentsia” pequeno-burguesa russa desempenhou um papel bem preciso na revolução russa. Limitados ao extremo no plano cultural e material, travados nos seus progressos profissionais, permanecendo em contacto com as ideias mais avançadas da Europa Ocidental, os elementos mais combativos da “intelligentsia” constituíam a vanguarda do movimento revolucionário que iriam marcar com o selo jacobino e pequeno-burguês. O movimento da social-democracia russa, dirigido por revolucionários profissionais, representava essencialmente um partido da pequena-burguesia revolucionária.

17. A Revolução Russa apresentava certos problemas cuja solução social dependia de uma curiosa correlação de forças: as massas camponesas constituíam, na sua passividade, os pilares da revolução, as massas proletárias, mais fracas numericamente mas poderosas na acção revolucionária, eram a arma de combate e a pequena fracção de intelectuais revolucionários, era o cérebro.

18. Esta estrutura triangular era um produto inevitável da sociedade czarista dominada por um Estado absolutista autónomo, apoiando-se sobre as classes proprietárias, privados do direito eleitoral: a nobreza feudal e a burguesia. Os problemas específicos que punha a realização de uma revolução burguesa sem a burguesia e contra ela, provinham de que, para derrubar o czarismo, era necessário mobilizar o campesinato e o proletariado numa luta pelos seus próprios interesses, o que implicava não só a destruição do czarismo mas também das formas existentes de exploração feudal e capitalista. Pelo seu número, os camponeses poderiam ter enfrentado a situação; politicamente eram incapazes, não podendo concretizar os seus interesses de classe sem se submeterem à autoridade de outra classe, que por sua vez, determinava em que medida esses interesses podiam ser satisfeitos. Em 1917, os trabalhadores russos esboçaram uma política de classe comunista e autónoma. Faltavam-lhes contudo as bases sociais para triunfar, na medida em que a vitória da revolução proletária devia ser também uma vitória sobre o campesinato. Ora o proletariado russo, cujos efectivos, repartidos em diferentes sectores, não ultrapassavam dez milhões, não podia triunfar sobre a classe camponesa. Por consequência, foi obrigado da mesma forma que o campesinato, a submeter-se à autoridade de um grupo de intelectuais que não estavam intrinsecamente ligados aos seus interesses.

19. A obra dos bolcheviques consistiu em criar a direcção da revolução russa e desenvolver uma táctica apropriada. Realizaram o que parecia impossível: a criação de uma aliança entre as duas classes antagónicas – as massas camponesas em luta pela propriedade privada e o proletariado em luta pelo comunismo. Nas condições difíceis que então existiam, tornaram possível a revolução e asseguraram o seu sucesso unindo os elementos operários e camponeses sob o jugo da ditadura do partido bolchevique. Eles representavam o partido dirigente da intelectualidade pequeno-burguesa revolucionária da Rússia. Realizaram a tarefa histórica da revolução russa que consistia em aliar a revolução burguesa do campesinato à revolução proletária da classe operária.

IV - A Essência do Bolchevismo

20. O bolchevismo apresenta todas as características da revolução burguesa, mas intensificadas por um conhecimento profundo, baseado no marxismo, das leis da luta de classes. Quando Lenine diz:

“O social-democrata revolucionário é um jacobino unido às massas”,

ele não faz senão uma comparação superficial. Para ele existia uma profunda afinidade de métodos e objectivos entre a social-democracia russa e a pequena-burguesia revolucionária da Revolução Francesa.

21. O princípio de base da política bolchevique (conquista e exercício do poder político pela organização) é jacobino; a grandiosa perspectiva política bolchevique é jacobina; a sua realização prática ao longo da luta da organização bolchevique pelo poder é jacobina; a mobilização de todos os meios, de todas as forças da sociedade capazes de derrubar o czarismo, assim como a utilização de qualquer método susceptível de levar a bem este projecto; as manobras e os compromissos do partido bolchevique com toda a força social que pudesse ser utilizada, nem que fosse por um curto instante, e no sector menos importante… eis, o espírito jacobino. Enfim a concepção essencial da própria organização bolchevique: a criação de uma organização rígida de revolucionários profissionais que permanecerá um instrumento obediente de uma direcção omnipotente, em si é jacobina.

22. No plano teórico, o bolchevismo está longe de ter elaborado um pensamento autónomo que possa ser considerado como um sistema coerente. Pelo contrário, apropriou-se do método marxista de análise das classes, adaptando-se à situação revolucionária russa, isto é, modificou fundamentalmente o seu conteúdo conservando os seus conceitos.

23. A única realização ideológica do bolchevismo foi a de estabelecer um elo de ligação entre o conjunto da sua teoria política e o materialismo filosófico. Protagonista radical, da revolução burguesa, fez sua a ideologia radical da revolução burguesa que erige em dogma da sua própria concepção da sociedade humana. Esta ligação ao materialismo filosófico acompanha-se de um retrocesso contínuo em direcção a um idealismo que pretende que a prática política emana em última análise da direcção dos chefes. (A traição do reformismo, a idolatria de Lenine e Staline)

24. A organização do bolchevismo emergiu dos círculos social-democratas de intelectuais revolucionários e desenvolveu-se através de lutas, cisões e derrotas de facções, como uma organização de dirigentes cujos postos essenciais estão nas mãos dos intelectuais pequeno-burgueses. A situação de ilegalidade em que continuava na Rússia iria favorecer o desenvolvimento do bolchevismo. Este estabeleceu-se como uma organização política de carácter militar apoiando-se sobre revolucionários profissionais. Sem este instrumento rígido de poder, a táctica bolchevique não poderia ter sido levada até ao fim e a obra histórica dos intelectuais revolucionários russos não se poderia ter realizado.

25. Elaborada com vista à conquista do poder, a táctica bolchevique demonstrou, em especial até Outubro de 1917, uma grande uniformidade interna. As suas perpétuas flutuações externas não eram mais do que adaptações temporárias às mudanças de situações e às variações das relações de força entre as classes. Em concordância com o princípio da subordinação absoluta dos meios aos fins e sem nenhuma consideração pelos efeitos ideológicos que podia ter sobre as classes dirigidas pelo partido bolchevique, a táctica foi revista mesmo nos pontos aparentemente fundamentais. A tarefa dos funcionários era tornar estas manobras compreensíveis para as “massas”. Por outro lado, na medida em que o único fim da política do partido era a adesão incondicional das massas (atitude tornada necessária dado que as massas se compunham das classes operária e camponesa cujos interesses e consciência de classe diferiam totalmente), toda a agitação ideológica no seio das massas era utilizada mesmo quando contradizia radicalmente o programa do Partido. É precisamente nisto que o método táctico do bolchevismo se aproxima da política da revolução burguesa e é efectivamente do método desta política que o bolchevismo fez ponto de honra.

V - As Directivas da Política Bolchevique

26. O bolchevismo nasceu da vontade de derrubar o regime czarista. Enquanto ataque ao absolutismo ele apresenta as características da revolução burguesa. O bolchevismo elaborou os seus métodos e os seus slogans de propaganda, no decurso das lutas que se desenvolveram no seio da social-democracia sobre as tácticas a adoptar para atingir esse objectivo.

27. A tarefa histórica do bolchevismo foi de unificar duas revoltas opostas, a do proletariado e a do campesinato, tomando-as sob a sua direcção e orientando-as para um objectivo comum: a abolição do Estado feudal. Foi-lhe necessário aliar a revolta camponesa (fase da revolução burguesa no início do desenvolvimento da sociedade burguesa) à do proletariado (fase da revolução proletária no fim do desenvolvimento da sociedade burguesa) numa acção comum. Isto só foi possível graças a uma ampla estratégia que utilizou as agitações e tendências de classe mais variadas.

28. Esta estratégia (que consistia em utilizar o descontentamento das massas) vinha do desejo de explorar mesmo as menores divergências, e as mais ínfimas falhas do campo inimigo. Foi assim que Lenine pôde dizer um dia, a propósito dos proprietários liberais, que eles eram “os nossos aliados de amanhã”; e apoiar, de uma outra vez, os sacerdotes porque eles se oponham a um regime que os não satisfazia materialmente e declarar-se pronto a apoiar as seitas religiosas perseguidas pelo czarismo.

29. Contudo, Lenine precisou a sua táctica pondo correctamente a questão dos “aliados da revolução”; em particular, servindo-se das experiências de 1905, opôs-se decididamente a todos os compromissos com os grupos capitalistas dominantes e limitou a política dos “aliados” e dos compromissos unicamente aos elementos da pequena-burguesia e do pequeno campesinato, quer dizer, aos únicos elementos que poderiam ser mobilizados para uma revolução burguesa na Rússia.

30. O slogan táctico: “Ditadura democrática dos operários e dos camponeses”, indicava em 1905 a linha geral directriz dos bolcheviques e exprimia ainda a ideia ilusória de um parlamentarismo sem a burguesia. Seria mais tarde substituído pelo slogan “Aliança de classe entre operários e camponeses”. Esta fórmula escondia na altura, nem mais nem menos do que a necessidade de pôr cada uma destas classes em movimento para permitir a tomada do poder pelos bolcheviques.

31. Estes slogans temporários que mobilizavam na base de interesses contraditórios as duas classes determinantes da revolução russa, provinham da vontade implacável de utilizar as forças dessas classes. Para mobilizar o campesinato, os bolcheviques forjaram desde 1905, ou por essa altura, o slogan “expropriação radical dos proprietários agrários pelos camponeses”. Slogan que, do ponto de vista dos camponeses, podia passar por um convite a partilhar entre eles os grandes domínios. Quando os mencheviques puseram em evidência o carácter reaccionário dos slogans agrários dos bolcheviques, Lenine respondeu-lhes que os bolcheviques estavam longe de ter decidido o que iriam fazer desses grandes domínios expropriados; a resolução desta questão seria obra da social-democracia uma vez conquistado o poder. No entanto, a palavra de ordem de expropriação dos grandes domínios pelos camponeses, se bem que essencialmente demagógica, tocava directamente os interesses do campesinato. Foi de forma semelhante que os bolcheviques difundiram os seus slogans entre os operários; o dos sovietes em particular. Que o slogan determinasse a táctica dos operários não era em si senão um sucesso momentâneo; o Partido estava longe de considerar que o slogan o ligava às massas por uma obrigação de princípio, pelo contrário via nisso o instrumento de propaganda duma política que visava em última análise a tomada do poder pela organização.

32. No decurso do período de 1906-14, o bolchevismo desenvolveu a táctica do “parlamentarismo revolucionário”, através duma combinação de actos legais e ilegais. Esta táctica estava de acordo com a situação da revolução burguesa na Rússia. Foi graças a esta táctica que o partido bolchevique conseguiu unificar a guerra de guerrilha contra o absolutismo que os operários, de um lado, e os camponeses por outro, conduziam em duas frentes simultâneas, e fazer disso o elemento essencial da preparação da revolução burguesa no contexto russo. Em particular, em virtude da política ditatorial czarista, cada progresso da social-democracia russa na actividade parlamentar continha a marca da revolução burguesa. Esta táctica de mobilização do campesinato e do proletariado (as classes decisivas para a revolução russa) iria continuar mais adiante ao longo do período que vai da revolução de 1905 à I guerra mundial, e a Duma iria servir de tribuna de propaganda para os operários e os camponeses.

VI - O Bolchevismo e a Classe Operária

33. O bolchevismo resolveu o problema histórico da revolução burguesa na Rússia feudal e capitalista com a ajuda do proletariado, instrumento activo e combativo. Apropriou-se igualmente da teoria revolucionária da classe operária transformando-a em função das suas necessidades. O “marxismo-leninismo” não é o marxismo, mas um amontoado da terminologia marxista adaptada às necessidades da revolução burguesa na Rússia com o conteúdo social da revolução russa. Se esta teoria permitia compreender a estrutura social russa, tornou-se igualmente, nas mãos dos bolchevistas, um meio de mascarar o conteúdo de classe da revolução bolchevique. Por detrás dos conceitos e slogans marxistas, esconde-se uma revolução burguesa, que foi conduzida, sob a direcção de uma “intelligentsia” pequeno-burguesa, pelas forças conjuntas de um proletariado socialista e de um campesinato ligado à propriedade privada, contra o absolutismo, a nobreza agrária e a burguesia.

34. A reivindicação absoluta da direcção pela intelectualidade pequeno-burguesa e jacobina esconde-se por detrás da concepção bolchevique do papel do Partido em relação à classe operária. A intelectualidade pequeno-burguesa só podia alargar a sua organização e transformá-la numa arma revolucionária activa, com a condição de atrair e utilizar as forças proletárias. Por conseguinte ela chamou ao seu partido jacobino um partido proletário. A subordinação de uma classe operária combatente a uma direcção pequeno-burguesa encontrava a sua justificação na teoria bolchevique da “vanguarda” do proletariado – uma teoria que na prática se confina ao princípio segundo o qual o partido encarna a classe. Por outras palavras, na óptica bolchevique, o Partido não é um instrumento da classe operária, mas ao contrário, é a classe operária que é um instrumento do Partido.

35. A necessidade de basear a política bolchevique nas duas classes inferiores da sociedade russa, traduziu-se na fórmula de uma “aliança de classe entre o proletariado e o campesinato”, uma aliança na qual, logicamente, os interesses de classe antagónicos estão voluntariamente reunidos.

36. A utilização pelos bolcheviques da fórmula “supremacia do proletariado na revolução”, não é mais do que uma tentativa de mascarar a sua vontade de dirigir incondicionalmente o campesinato. Ora, como o proletariado é, por sua vez, dirigido pelo partido bolchevique, a “supremacia do proletariado” não é mais do que a supremacia do partido bolchevique e a sua vontade de governar as duas classes.

37. Esta pretensão dos bolcheviques em querer tomar o poder com a ajuda das duas classes, encontrou a sua mais alta expressão no conceito bolchevique de “ditadura do proletariado”. Esta fórmula, ligada à concepção do Partido como organização dirigente da classe, significa, como é evidente a omnipotência da organização jacobina bolchevique. O seu conteúdo de classe é, para além do mais, totalmente aniquilado pela definição bolchevique de ditadura do proletariado como sendo “uma aliança de classe entre o proletariado e o campesinato sob a direcção do proletariado” (Staline e o programa do Komintern). O princípio marxista da ditadura da classe operária é assim deformado pelo bolchevismo, que o transforma em ditadura de facto de um partido caracteristicamente jacobino sobre duas classes opostas.

38. Os próprios bolcheviques sublinharam o carácter burguês da sua revolução com a fórmula revista da “revolução popular”, quer dizer, luta comum das diferentes classes de um povo numa revolução. É o slogan tipo de toda a revolução burguesa que mobiliza sob a direcção da burguesia as massas camponesas, pequeno-burguesas e proletárias para servir os interesses da classe burguesa.

39. No que se refere à luta da organização para assegurar o seu poder sobre as classes revolucionárias, toda a atitude democrática do bolchevismo não é mais do que um simples jogo táctico numa partida de xadrez. Isso apareceu claramente quando se pôs a questão da democracia dos trabalhadores nos sovietes. O slogan leninista de Março de 1917 “todo o poder aos sovietes” permanecia fiel à característica fundamental da revolução russa (o sistema de duas classes) na medida em que os sovietes eram “conselhos de operários, camponeses e soldados” (sendo os soldados camponeses). Além disso, o slogan tinha sido lançado por Lenine no decurso da revolução burguesa de Fevereiro de 1917 com um fim táctico. Parecia susceptível de assegurar a transição “pacífica”, do domínio da coligação menchevique—socialistas-revolucionários para o domínio dos bolcheviques, graças à influência crescente deste último partido nos sovietes. Depois da manifestação de Julho, os bolcheviques perderiam a sua influência nos sovietes e Lenine abandonando temporariamente o slogan dos sovietes, pediu ao partido bolchevique que elaborasse outros slogans insurreccionais. Foi necessário esperar pelo putsch de Kornilov para que a influência bolchevique crescesse enormemente nos sovietes e para que o partido de Lenine se decidisse a retomar o slogan. A partir do momento em que os bolcheviques consideraram os sovietes já não como órgãos do governo autónomo da classe operária mas como órgãos da insurreição, tornou-se mais do que evidente que, para eles, os sovietes eram simplesmente um instrumento que permitia ao partido chegar ao poder. Isto foi demonstrado na prática, não só pela sua organização do Estado Soviético após a conquista do poder, mas também no caso particular da repressão sangrenta da insurreição de Kronstadt. No final desta insurreição, as reivindicações de carácter capitalista feitas pelos camponeses acabariam por ser satisfeitas pela NEP, enquanto que as reivindicações democráticas do proletariado foram afogadas no sangue da classe operária.

40. As divergências de opinião sobre a forma e composição dos sovietes russos conduziram a partir de 1920 à formação, no seio do Partido, de uma corrente comunista autêntica, embora fraca no seu conjunto. A Oposição Operária, apoiava-se na vontade de exercer a democracia soviética no interesse da classe operária. Como toda a oposição séria contra o regime, esta acabaria por ser, ulteriormente, dominada pela prisão, o exílio e a execução militar, mas o seu programa permanece o ponto de partida histórico de um movimento independente proletário comunista contra o regime bolchevique.

41. A questão dos sindicatos foi, da mesma forma, determinada pelo desejo do partido bolchevique de dominar e dirigir os operários. Na Rússia, os bolcheviques eliminaram dos sindicatos tudo o que se relacionava com a organização do trabalho, impondo-lhes, depois da conquista do poder, uma estrutura disciplinar e militar. Nos outros países, o resultado último da política bolchevique foi o de proteger as organizações sindicais reformistas e burocráticas; longe de desmantelar essas organizações, os bolcheviques preconizaram a “conquista” dos seus dispositivos. Mostraram-se adversários ferozes da ideia de organizações de fábrica revolucionárias, porque encarnavam a democracia proletária. Os bolcheviques bateram-se pela conquista ou pela renovação de organizações controladas por uma burocracia centralizada, que pensavam poder dirigir do cimo dos seus postos de comando.

42. Enquanto dirigentes de uma ditadura de tipo jacobino, os bolcheviques combateram sem cessar, em todas as fases, a ideia de autodeterminação da classe operária e reclamaram a subordinação do proletariado à organização burocrática. Antes da I Guerra Mundial, aquando das discussões que se desenrolaram no seio da III Internacional sobre a organização, Lenine revelou-se um adversário violento e vingativo de Rosa Luxemburgo, e apoiou-se descaradamente no centrista Kautsky que iria, durante e após a guerra, evidenciar-se como inimigo de classe. Já nessa época o bolchevismo tinha demonstrado (e nunca mais se desmentiria) que não só não compreendia o desenvolvimento da consciência de classe do proletariado e das suas organizações, mas também combatia por todos os meios qualquer tentativa teórica e prática de desenvolver uma verdadeira organização de classe e uma verdadeira política de classe.

VII - A Revolução Bolchevique

43. O bolchevismo chamou à revolução russa de Fevereiro a revolução burguesa e à de Outubro a revolução proletária, fazendo assim passar o seu próprio regime pelo reino da classe proletária e a sua política económica pelo socialismo. Esta visão da revolução de 1917 é um absurdo pelo simples facto de que ela supõe que um desenvolvimento de sete meses seria suficiente para criar as bases económicas e sociais de uma revolução proletária, num país que acabara apenas de entrar na fase da sua revolução burguesa – por outras palavras, saltar de uma só vez por cima de todo um processo de desenvolvimento social e económico que necessitava num mínimo de vários decénios. Na realidade, a revolução de 1917 foi um processo de transformação unitária, que começou com a queda do czarismo e atingiu o seu apogeu com a vitória da insurreição armada dos bolcheviques em 7 de Novembro. E este processo violento de transformação não pode ser outro senão o da revolução burguesa russa, nas condições históricas e particulares da Rússia.

44. No decurso deste processo, o partido dos intelectuais revolucionários jacobinos tomou o poder apoiando-se nos dois movimentos sociais que tinham desencadeado a insurreição de massas, o dos proletários e o dos camponeses. Para substituir o governo triangular desacreditado (czarismo, nobreza e burguesia), o partido da “intelligentsia” criou o triângulo bolchevismo, campesinato e classe operária. E da mesma forma que o aparelho estatal do czarismo reinava de maneira autónoma sobre as duas classes proprietárias, assim o aparelho estatal bolchevique começou por se tornar independente das duas classes que o tinham levado ao poder. A Rússia saiu das condições do absolutismo czarista para cair nas do absolutismo bolchevique.

45. Durante o período revolucionário, a política bolchevique atingiu o seu ponto culminante com a mobilização e o controle das forças sociais da revolução. A táctica revolucionária bolchevique conheceu o seu apogeu no momento da preparação e da execução da insurreição armada. A questão da sublevação violenta tornou-se, para os bolcheviques, numa questão de acção militar concertada e minuciosamente organizada, até na data, tendo como motor e como força dirigente o partido bolchevique e as suas tropas de combate. A concepção, a preparação e a execução da revolução armada pelos bolcheviques traz a marca da conspiração jacobina (o que na Rússia era, a única política possível): uma insurreição no contexto particular duma revolução burguesa contra a burguesia.

46. Os slogans económicos da revolução bolchevique deixam transparecer o seu carácter de revolução burguesa. Para as massas os bolcheviques representavam a expropriação violenta dos grandes domínios pela acção espontânea do pequeno campesinato ávido de terra. Os bolcheviques exprimiram perfeitamente, na sua prática e nos seus slogans (Paz e Terra), os interesses dos camponeses em luta pela salvaguarda da pequena propriedade privada (interesses capitalistas). Longe de exprimir os interesses do proletariado socialista contra a propriedade agrária, feudal e capitalista, eles mostraram-se, no que se refere à questão agrária como defensores descarados dos interesses do pequeno capitalista.

47. No que se refere aos operários, as reivindicações económicas da revolução bolchevique não tinham, igualmente, qualquer conteúdo socialista. Em várias ocasiões, Lenine foi obrigado a repelir severamente a crítica menchevique segundo o qual, o bolchevismo propunha uma política utópica de socialização da produção num país que ainda não estava maduro para tal situação. Os bolcheviques eram forçados a retorquir que não se tratava de forma alguma de socializar a produção, mas de entregar o seu controlo nas mãos dos operários. O slogan do controlo da produção foi utilizado para tentar conservar a eficácia dos métodos capitalistas na organização técnica e económica da produção, mas retirando-lhe o seu carácter de exploração. O aspecto burguês da revolução bolchevique, assim como o facto de os bolcheviques se limitarem eles próprios a uma economia de tipo burguês (em vez de consolidar os resultados da vitória de 1917), é esclarecido de maneira exemplar pelo slogan do controlo da produção.

48. A violência elementar do ataque dos trabalhadores, por um lado, e a sabotagem dos patrões por outro, incitaram os bolcheviques a apoderarem-se das empresas industriais e a confiar a direcção à burocracia governamental. A economia estatal que durante todo o período do comunismo de guerra, estava quase abafada pela sua sobre-organização (Glavkismo), foi qualificada por Lenine de capitalismo de Estado. Só a partir da era de Estaline se deveria falar da economia do Estado como de uma economia socialista.

49. No entanto, a concepção de base da socialização da produção não passava para Lenine, de uma economia estatal dirigida pelo aparelho burocrático. Para ele, a economia de guerra alemã e os correios eram um exemplo típico da organização socialista: uma organização económica de carácter abertamente burocrático, dirigida por uma entidade central superior. Do problema da socialização, ele só viu os aspectos técnicos e não os aspectos proletários e sociais. De igual modo, Lenine baseou-se, e com ele o bolchevismo em geral, nos conceitos de socialização propostos pelo centrista Hilferding, que no seu “Capital financeiro” traçou um quadro ideal de um capitalismo totalmente organizado. O verdadeiro problema respeitante à socialização da produção – a apropriação das empresas e da organização do sistema económico pela classe operária e pelas suas organizações de classe: os conselhos operários – foi completamente ignorado pelo bolchevismo. E devia ser ignorado porque a ideia marxista de uma associação de produtores livres e iguais é totalmente oposta à concepção jacobina da organização, e porque a Rússia não possuía as condições sociais e económicas necessárias à instauração do socialismo. O conceito de socialização dos bolcheviques não é, por conseguinte, outro que uma economia capitalista gerida pelo Estado e dirigida do exterior e do cimo pela burocracia. O socialismo bolchevique é um capitalismo organizado pelo Estado.

VIII - Internacionalismo Bolchevique e Questão Nacional

50. Durante a I Guerra Mundial, os bolcheviques representaram, de maneira contínua, a posição internacionalista com o slogan “transformar a guerra imperialista em guerra civil” e comportaram-se, aparentemente, como marxistas consequentes. Mas o internacionalismo revolucionário fazia parte da sua táctica, da mesma forma que mais tarde, a sua reviravolta através da NEP. O apelo ao proletariado internacional não era senão um dos aspectos de uma vasta política que procurava atrair o apoio internacional a favor da revolução russa. O outro aspecto era a política e a propaganda de uma “auto-determinação nacional”, na qual os horizontes de classe eram sacrificados mais radicalmente ainda que no conceito de “revolução popular”, e que fazia um apelo geral a todas as classes de certos povos.

51. Este internacionalismo de dupla face correspondia à situação internacional da Rússia e da revolução russa. Geográfica e sociologicamente a Rússia encontrava-se situada entre os dois pólos do sistema imperialista mundial. O choque da tendência imperialista activa e da tendência colonial passiva provocou a derrocada deste sistema. As classes reaccionárias mostraram-se incapazes de o restabelecer, como o iria provar a sua derrota decisiva aquando do putsch de Kornilov e, mais tarde, na guerra civil. O verdadeiro perigo que ameaçava a revolução russa era o de uma intervenção imperialista. Só uma invasão militar lançada pelo capital imperialista podia abater o bolchevismo e restaurar o czarismo – esse antigo regime, construído no seio do sistema mundial imperialista de exploração, ao mesmo tempo como instrumento e material. Para se defender contra o imperialismo mundial, o bolchevismo foi obrigado a organizar um contra-ataque aos centros imperialistas dominantes. Foi o que fez a política internacional de face dupla do bolchevismo.

52. Em nome da revolução proletária internacional o bolchevismo lançou o proletariado internacional ao assalto do imperialismo mundial nos países capitalistas mais desenvolvidos. Em nome do “direito à auto-determinação nacional”, lançou os povos camponeses oprimidos do Extremo Oriente contra o centro colonial do imperialismo mundial. Com esta política internacional em dois tempos, que abria imensas perspectivas, o bolchevismo procurou prolongar o ramo proletário e o ramo camponês da sua revolução no espaço do capitalismo mundial.

53. Para o bolchevismo, a “questão nacional” era uma questão prática e não apenas um expediente da revolução burguesa russa – uma revolução que se serviu dos instintos nacionais dos camponeses e das minorias nacionais oprimidas do império russo para abater o czarismo. Esta posição, reflecte também o internacionalismo camponês de uma revolução burguesa que se realizou na era do imperialismo mundial e que não podia sobreviver na rede do imperialismo senão com a ajuda de uma contra-política internacional activa.

54. Para dirigir em território russo esta política de apoio internacional à revolução burguesa, o bolchevismo procurou criar duas organizações internacionais: a III Internacional, que devia mobilizar os trabalhadores dos países capitalistas fortemente desenvolvidos, e a Internacional Camponesa que reunia sob a sua bandeira os povos camponeses orientais. O fim último desta política internacional que se apoiava sobre as classes operárias e camponesas era a revolução mundial, incluindo a revolução proletária internacional (europeia e americana) e a revolução camponesa nacional (essencialmente oriental) no quadro de uma política mundial bolchevique sob as ordens de Moscovo. Assim, o conceito de “revolução mundial” tinha, para os bolcheviques, um conteúdo de classe completamente diferente que não tinha nada de semelhante com a revolução proletária internacional.

55. A política internacional do bolchevismo não era mais do que uma repetição à escala mundial da revolução russa (combinando a revolução proletária e a revolução burguesa camponesa), e colocava o partido bolchevique russo à cabeça de um sistema bolchevique mundial onde os interesses comunistas do proletariado se combinavam com os interesses capitalistas do campesinato. Esta política teve como resultado positivo o de proteger o Estado bolchevique da invasão imperialista, ao manter a apreensão dos Estados capitalistas. O Estado bolchevique pôde assim tomar o seu lugar no sistema imperialista mundial, servindo-se dos métodos capitalistas das relações comerciais, de acordos económicos e de pactos de não-agressão. Permitiu à Rússia consolidar-se no plano nacional e alargar a sua própria posição interna. Mas falhou na sua tentativa de realizar à escala mundial a política activa do bolchevismo. A experiência da Internacional Camponesa acabou com a derrota da política bolchevique na China. A III Internacional, depois da derrocada lamentável do Partido Comunista Alemão, deixou de representar um factor importante da política bolchevique mundial. O esforço gigantesco empreendido para alargar a política bolchevique russa à cena mundial foi uma derrota histórica que provou as limitações nacionais do bolchevismo russo. Seja como for a experiência bolchevique na Machtpolitik (política de força) internacional deu tempo ao bolchevismo de recuar para as suas posições nacionais russas e de se converter aos métodos capitalistas imperialistas em matéria de política internacional. Teoricamente este recuo foi justificado pela fórmula “socialismo num só país”, eliminando assim a ligação internacional do conceito de “socialismo” que já tinha sido amputado do conteúdo proletário pela prática económica russa, que o tinha convertido num disfarce de tendências capitalistas de Estado, que também estão presentes no reformismo e no fascismo pequeno-burguês.

56. De facto, não é essencial saber, agora que podemos ver os resultados dos primeiros anos do bolchevismo, tanto no plano nacional como internacional, se Lenine esperava ou não, na época da fundação do Komintern – ou antes – um resultado diferente desta Internacional bolchevique. Na prática, o bolchevismo, com o seu conceito do “direito à auto-determinação nacional”, desenvolveu as tendências de uma Machtpolitik mundial bolchevique. É igualmente responsável, através do Komintern, da incapacidade do proletariado europeu se elevar ao nível de um comunismo revolucionário e do seu afundamento na lama do reformismo, ressuscitado pelo bolchevismo e ornamentado de frases revolucionárias. No fim de contas o conceito de “pátria russa” tornou-se a pedra de toque da política dos partidos bolcheviques, enquanto que para o comunismo proletário a classe operária internacional deve encontrar-se no centro de toda a orientação internacional.

IX - O Bolchevismo de Estado e o Komintern

57. O estabelecimento do Estado soviético foi o estabelecimento da dominação do partido do maquiavelismo bolchevique. A base sociológica deste poder estatal que se tornou independente das classes que o apoiaram e que criou este novo elemento social que foi a burocracia bolchevique, era composta pelo proletariado e o campesinato russos. O proletariado, acorrentado pelos sindicatos (adesão obrigatória) e pelo terrorismo da “Tcheka”, representava a base da economia nacional bolchevique sob o controle da burocracia. O campesinato escondia e esconde ainda nas suas fileiras as tendências para o capitalismo privado dessa economia. O Estado soviético, na sua política interna oscilava entre as suas duas tendências. Procurou controlá-las por métodos violentos de organização, tais como o Plano Quinquenal e a colectivização forçada. Na prática, contudo, aumentou somente as dificuldades económicas, exacerbando as contradições económicas até ao ponto de ruptura, e levando ao seu paroxismo as tensões entre operários e camponeses. A experiência de uma economia nacional planificada burocraticamente está longe de poder ser considerada um sucesso. Os grandes cataclismos internacionais que ameaçam a Rússia não poderão senão aumentar as contradições do seu sistema económico até que se tornem intoleráveis, apressando assim provavelmente a queda desta experiência económica gigantesca.

58. A economia russa é essencialmente determinada pelas seguintes características: apoia-se na base de uma produção de mercadorias; está centrada na rentabilidade; revela um sistema abertamente capitalista de remuneração e emulação; enfim, levou os refinamentos da racionalização capitalista até aos seus limites extremos. A economia bolchevique é uma produção estatal que emprega métodos capitalistas.

59. Esta forma de produção estatal é igualmente acompanhada de mais-valia, portanto de uma exploração máxima dos trabalhadores. Bem entendido, esta mais-valia não revela directamente e abertamente alguma classe particular da sociedade russa como beneficiária desta mais valia, mas embolsa-a através do aparelho parasitário da burocracia no seu conjunto. Para além da sua custosa manutenção, a mais-valia assim produzida serve ao Estado como meio de pagamento das suas dívidas ao estrangeiro, contribui para a expansão da produção e para sustentar a classe camponesa. Assim, a mais-valia produzida pelos operários russos privilegia não somente o elemento económico parasitário da burocracia no poder, mas ainda o campesinato russo, enquanto sector à parte do capital internacional. A economia russa é portanto uma economia de lucro e exploração. Ela representa um capitalismo de Estado nas condições históricas particulares do regime bolchevique, ou seja, uma produção de tipo capitalista diferente e mais avançado como os países maiores e mais avançados deverão mostrar.

60. Este facto do capitalismo de Estado bolchevique coloca o problema da libertação do proletariado russo novamente na agenda. A nova revolução proletária na Rússia contra a burocracia bolchevique e o seu Estado, assim como contra o campesinato capitalista que foi fortalecido politicamente nas colectividades, apenas pode ter lugar em ligação com uma nova revolução proletária nos grandes Estados capitalistas. Esta é tão inevitável como aquela, especialmente dado que o período de capitalismo de Estado bolchevique e a sua forte política de industrialização melhoraram muito as perspectivas para isso.

61. A política internacional da União Soviética está estritamente determinada pela necessidade de reforçar a posição do partido bolchevique e do aparelho estatal que ele dirige. No plano económico o governo russo empregou todos os seus esforços para estabelecer e manter uma base industrial forte. O isolamento da economia soviética necessitou de uma política enérgica para pôr fim à autarquia forçada, embora mantendo o controlo do monopólio comercial com o estrangeiro. Os tratados comerciais, as concessões, assim como as transacções para obtenção de vastos créditos restabeleceram os laços entre a economia soviética e a produção capitalista mundial e o seu mercado, no qual a Rússia entrou quer como cliente solicitado quer como concorrente encarniçado. Por outro lado, esta política económica, ligada ao capitalismo mundial, forçou o governo soviético a estabelecer relações amigáveis e pacíficas com as potências capitalistas. Os princípios de uma política mundial bolchevique, quando ainda existiam, subordinavam-se de uma maneira oportunista a puros tratados comerciais. Toda a política estrangeira do governo russo levava o selo da diplomacia capitalista, e por consequência, na esfera internacional, separou definitivamente a teoria bolchevique da sua práxis.

62. O bolchevismo introduziu no centro da propaganda externa do Komintern a tese do “cerco imperialista da União Soviética”, embora esta definição não concorde de modo algum com a confusão dos conflitos de interesses capitalistas e das suas combinações incessantemente renovadas. Procurou mobilizar o proletariado internacional para servir a sua política externa e, através de uma política semi-parlamentar, semi-putschista, emanada dos partidos comunistas, para criar uma situação de mal-estar no interior países capitalistas, reforçando assim a posição diplomática e económica da URSS.

63. A oposição entre a União Soviética e as potências imperialistas, desencadeou a contra-propaganda do Komintern com os slogans: “ameaça de guerra contra a União Soviética” e “proteger a URSS”. Sendo estas oposições apresentadas aos operários como as únicas determinantes da política mundial, estes não podiam ver as realidades efectivas da política internacional. Os membros dos partidos comunistas estrangeiros tornaram-se, antes de mais, defensores cegos e oportunistas da União Soviética e foram mantidos na ignorância quanto à posição de destaque que, desde há muito tempo, a União Soviética ocupava na política mundial imperialista.

64. O perpétuo grito de alarme sobre a iminência de uma guerra das potências imperialistas aliadas contra a URSS foi utilizado em política interna para justificar a militarização intensiva do trabalho e o aumento das pressões sobre o proletariado russo. Ao mesmo tempo, contudo, a União Soviética tinha e continua a ter, o maior interesse em evitar um conflito militar com os outros Estados. A sobrevivência do governo bolchevique depende em grande parte da sua capacidade em evitar toda e qualquer convulsão, tanto militar como revolucionária na política externa. Por conseguinte, o Komintern começou, na prática, e em contradição flagrante com a sua teoria e a sua propaganda interna, a sabotar qualquer desenvolvimento proletário verdadeiramente revolucionário. Propagou mais ou menos abertamente nos partidos comunistas, a concepção segundo a qual era necessário antes de tudo consolidar a URSS nos seus fundamentos económicos e militares antes de alargar e desenvolver a revolução proletária na Europa. Por outro lado, se o governo soviético, para salvaguardar o seu prestígio, prodigalizou gestos de hostilidade contra as potências imperialistas, acabou sempre nos casos concretos, por se inclinar, de facto, diante destas potências. A “venda” da linha dos caminhos-de-ferro manchuriana é um exemplo da capitulação sem resistência da URSS diante do adversário imperialista. O reconhecimento mais que apressado da URSS pelos EUA que ocorreu no mesmo momento, é, reciprocamente, uma prova de que as potências imperialistas, nos limites da sua política de interesses antagónicos, souberam igualmente reconhecer na União Soviética um factor importante. Mas sobretudo, a URSS ilustrou os seus laços com o capitalismo ao estabelecer estreitas relações económicas com a Itália fascista e a Alemanha nazi. A URSS aparece como o sólido apoio económico, e portanto político, da maior parte das ditaduras fascistas mais reaccionárias da Europa.

65. Esta política de entendimento absoluto entre a URSS e os países capitalistas e imperialistas não tem unicamente bases económicas. Também não é unicamente a expressão de uma inferioridade militar. De facto a “política de paz” da União Soviética dependia de maneira decisiva da situação do bolchevismo no interior do país. A sua continuação como potência estatal autónoma depende do seu sucesso na conservação do equilíbrio entre a classe operária dominada e o campesinato. Apesar dos progressos da industrialização do país, o campesinato russo conserva ainda uma posição de força. Em primeiro lugar, o campesinato detém em larga medida e apesar de uma política repressiva vinda de cima, as fontes alimentares do país. Em segundo lugar, a colectivização reforçou o poderio não só económico, mas também político do campesinato, que como outrora, continua a lutar por interesses capitalistas privados. (Porque a “colectivização” na Rússia significa uma união colectiva dos camponeses proprietários que continuam agarrados aos métodos capitalistas de contabilidade e distribuição). Em terceiro lugar, em caso de guerra, o armamento em massa do campesinato poderia desencadear um sobressalto de violentas revoltas camponesas contra o sistema bolchevique, da mesma forma que uma revolução feita pelo proletariado europeu poderia servir de detonador para a rebelião aberta dos operários russos contra a burocracia e o partido bolchevique. Em tais condições, a política de entendimento entre o governo soviético e as potências imperialistas aparece como uma necessidade vital para o absolutismo bolchevique.

66. Até o Komintern, foi utilizado abusivamente para manipular a classe operária internacional a fim de servir os fins oportunistas de glorificação nacional e da política de segurança internacional da URSS. Constitui-se fora da Rússia a partir da combinação dos quadros revolucionários do proletariado europeu. Utilizando a autoridade da revolução bolchevique, o princípio organizativo e táctico do bolchevismo impôs-se ao Komintern de maneira extremamente brutal e sem nenhuma consideração pelas cisões imediatas. O Comité Executivo do Komintern (IKKI) – outro instrumento da burocracia russa no poder – viu ser-lhe confiado o comando absoluto de todos os partidos comunistas, e a política dos partidos perdeu completamente de vista os verdadeiros interesses revolucionários da classe operária internacional. Os slogans e as resoluções revolucionárias serviram de cobertura à política contra-revolucionária do Komintern e dos seus partidos, que com as suas maneiras bolcheviques tornaram-se especialistas na traição da classe operária e na demagogia desenfreada, como o eram os partidos sociais-democratas. Ao mesmo tempo que o reformismo ao fundir-se com o capitalismo, declinava no sentido histórico, o Komintern afundava-se unindo-se cegamente à política capitalista da União Soviética.

X - O Bolchevismo e a Classe Operária Internacional

67. O bolchevismo, nos seus princípios, na sua táctica e na sua organização, é um movimento e um método da revolução burguesa num país essencialmente camponês. Sob a autoridade ditatorial da “intelligentsia” jacobina, conduziu o proletariado (orientado para o socialismo) e o campesinato (orientado para o pequeno capitalismo), a um levantamento revolucionário contra o Estado absolutista, o feudalismo e a burguesia, com o fim de abater o absolutismo feudal-capitalista. Hábil em transformar tudo em seu proveito, reuniu os interesses de classe antagónicos dos proletários e dos camponeses, graças à sua compreensão profunda do carácter de classe das leis do desenvolvimento social.

68. Por conseguinte o bolchevismo é não só incapaz de dirigir a política revolucionária do proletariado internacional, mas é também para esta um dos mais intransponíveis e um dos mais perigosos obstáculos. A luta contra a ideologia bolchevique, contra a prática bolchevique, e da mesma forma contra todos os grupos que procuram fazer ressurgir esta ideologia e esta prática no seio do proletariado, é uma das primeiras tarefas da luta para uma reorientação revolucionária da classe operária. Uma política proletária não pode desenvolver-se senão no interior da classe operária com os métodos e as formas de organização que lhe são próprias.


Notas:

(1) Trata-se da comuna rural, a obchtchina. [Nota de Velha Toupeira]. (retornar ao texto)

Inclusão 07/04/2011
Última alteração 30/04/2014