A Tendência Ideológica Da Música Soviética

Andrei Zhdanov


Primeira Edição: Discurso pronunciado em nome do Comitê Central do Partido Comunista (b) da URSS, durante a discussão sobre a música soviética.
Fonte: Problemas - Revista Mensal de Cultura Política nº 21 - Outubro de 1949.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo
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Camaradas!

Antes de tudo seja-me permitido fazer algumas observações sobre o caráter da discussão que foi aqui aberta. A apreciação geral da posição no terreno da criação musical não é suficientemente boa. Alguns disseram que as coisas andavam particularmente mal no que tange à organização e chamaram a atenção para o nível pouco satisfatório da crítica e da auto-crítica e da orientação incorreta dos assuntos musicais, especialmente na União de Compositores. Outros, embora de acordo com a crítica dos métodos e da forma de organização, sublinharam a posição pouco satisfatória quanto à tendência ideológica da música soviética. Outros ainda procuraram diminuir a urgência do assunto ou passar por alto estas questões desagradáveis. Não obstante todas estas diferenças de matiz na apreciação da situação atual, o centro da discussão está em que as coisas não marcham muito bem.

Não é minha intenção introduzir dissonância ou atonalidade nesta apreciação, se bem que a «atonalidade» esteja agora em moda. . . As coisas realmente marcham mal. . . em minha opinião, pior do que foi dito aqui. Não é minha intenção negar os êxitos da música soviética. Sem dúvida, tivemos êxitos. Mas se nos detivemos a pensar nos êxitos que podíamos e devíamos ter alcançado na música soviética, se também compararmos nossos êxitos na música com nossos êxitos no terreno ideológico em geral, devemos admitir que os primeiros são bastante insignificantes. No caso da literatura, por exemplo, alguns dos grandes periódicos atualmente se vêem em dificuldades para conseguir espaço disponível em seus próximos números, tão grande é a quantidade de material perfeitamente apropriado à publicação que se acumulou em suas páginas editoriais. Penso que nenhum dos oradores pode jactar-se de uma tal superprodução em música. Foram obtidos progressos na arte cinematográfica e no teatro, mas em música não houve avanço notório.

A música ficou para trás. Tal é a questão desenvolvida em todas as intervenções. A situação da União dos Compositores e do Comitê de Artes é decididamente anormal. Pouco se disse a respeito do Comitê de Artes: não se o criticou suficientemente. De qualquer modo, foi aqui acusada, em muito maior grau e mais severamente, a União dos Compositores. E, no entanto, o Comitê de Artes teve um papel muito menos acertado. Pretendendo permanecer fiel à tendência realista em música, o Comitê de Artes fez tudo quanto pôde para alentar a tendência formalista, protegendo seus cultores e ajudando assim a desorganizar os compositores e a introduzir a confusão ideológica em suas fileiras. Ignorante e incompetente no que concerne aos problemas da música, o Comitê de Artes se deixou arrastar pela corrente, a reboque dos compositores de inclinação formalista.

Quando Faltam a Crítica e a Autocrítica, as Fontes de Produção Secam

O Comitê de Organização da União dos Compositores foi aqui comparado a um mosteiro ou a um corpo de generais sem exército. Estas duas apreciações não se excluem. Se o destino da música soviética se transforma no privilégio de um círculo extremamente estreito de compositores e críticos proeminentes — estes últimos eleitos na base do fervor com que defendem seus mestres, criando assim uma atmosfera sufocante de adulação em torno de tais compositores — se falta a discussão construtiva, se a prática corrupta e decadente de classificar os compositores em compositores de primeira e de segunda categoria foi firmemente estabelecida na União de Compositores, se o estilo dominante em suas reuniões construtivas é o do silêncio diplomático ou o do elogio referente a uns poucos eleitos, se a direção do Comitê de Organização se mantém afastada da massa de compositores, então não se pode negar que a situação em nosso «Monte Olímpo» musical tornou-se realmente alarmante.

Devemos fazer menção especial às perversas tendências da crítica e à ausência da discussão construtiva na União dos Compositores. Desde que não há discussão construtiva, nem crítica, nem autocrítica, não pode haver também progresso. A discussão construtiva e objetiva, independentemente da crítica — isto já é axiomático — são os mais importantes pré-requisitos da produção criadora. Quando faltam a critica e a discussão construtiva, as fontes de produção secam e se cria uma atmosfera de decadência e estancamento. Nossos compositores, no entanto, precisam antes de tudo e fundamentalmente disto. Não é de estranhar portanto que as pessoas que participam pela primeira vez numa discussão sobre problemas musicais, se surpreendam e achem estranho que existam aqui tantas, contradições irreconciliáveis, como sejam o regime conservador de organização da União dos Compositores e os pontos de vista pretensamente ultra-progressistas — na esfera da criação ideológica — de seus dirigentes atuais. Sabemos que a direção da União dos Compositores subscreveu palavras de ordem tão comprometedoras como um chamado às inovações, o repúdio à tradição, a luta contra o «epigonismo»(1*), etc. Mas é estranho que essa mesma gente que deseja parecer extremamente radical e mesmo arqui-revolucionária no terreno da criação artística, que se mostra iconoclasta. . . que essa mesma gente se mostre extremamente reacionária frente a qualquer inovação ou modificação no que se refere à sua participação nas atividades da União dos Compositores, que seja conservadora em seus métodos de trabalho e de direção e que, nos problemas de organização, freqüentemente se subordine a más tradições e ao desprezado «epigonismo», cultivando os métodos mais velhos e decadentes na orientação da vida e da atividade de sua organização. Não é difícil explicar porque isto se dá. Se a parolagem bombástica sobre pretensas novas tendências da música soviética é acompanhada de fatos que de nenhum modo podem ser chamados de progressistas, isto por si só confirma as legitimas dúvidas existentes sobre a natureza pretensamente progressista dos princípios ideológicos criadores que se implantaram com tais métodos reacionários.

Como todos bem sabeis, o aspecto organizativo de qualquer assunto é muito importante. As organizações criadoras de nossos compositores e músicos evidentemente precisam de um bom arejamento. É necessária uma brisa fresca para clarear a atmosfera dessas organizações, a fim de que possam estabelecer as condições normais para o desenvolvimento do trabalho criador.

No entanto, a questão organizativa, com a importância que tem, não é o ponto básico. O problema central está na tendência da música soviética. A julgar pelo caminho que nossa discussão tomou aqui, esta questão foi subestimada, e isto não está certo. Assim como na música se procura a frase musical lúcida, da mesma maneira no problema do desenvolvimento da tendência musical, devemos conseguir clareza. A pergunta — «Há duas tendências em música?», a discussão de uma resposta perfeitamente definida: — «Sim; precisamente esta é a questão.» Se bem que alguns camaradas tenham evitado chamar as coisas pelo seu nome — e houve algo de vago na discussão — está claro que se está levando a cabo uma luta entre duas tendências e que se estão realizando esforços para substituir uma tendência por outra.

Alguns camaradas sustentaram que não existe razão para trazer a debate a questão da luta entre tendências, que não ocorreram modificações de natureza qualitativa, e que o que se está passando é o desenvolvimento avançado da herança da escola clássica nas condições soviéticas. Disseram que não se está fazendo a revisão dos princípios da música clássica e que, por conseguinte, não havia nada a dizer nem por que alarmar-se. Quiseram demonstrar que era questão simplesmente de corrigir algo aqui ou ali, em casos isolados de inclinação pela técnica antes de tudo, de erros naturalistas isolados, etc. Já que houve essa espécie de camuflagem, o problema da luta entre as duas tendências exige ser tratado de maneira mais ampla. Naturalmente não se trata apenas de fazer algumas correções, não se trata apenas de que haja uma goteira no teto do Conservatório e que se torne necessário repará-la, necessidade sobre a qual não podemos deixar de estar todos de acordo com o camarada Shebalin. Não é somente no teto do Conservatório que existe uma falha — isto pode consertar-se rapidamente. Há falha muito maior nos alicerces da música soviética. Não podem existir duas opiniões sobre este ponto. Todos os oradores destacaram aqui que um determinado grupo de compositores está exercendo um papel dirigente na atividade criadora da União dos Compositores. Os compositores em questão são os camaradas Chostakovitch, Prokofieff, Miaskovski, Khatchaturian, Popov, Kavalevski, Chebalin. Há alguém mais que creia possa agregar-se a este grupo? (Vozes na sala: — Chaporin).

Falando do grupo dirigente que governa todas as cordas e chaves do CE sobre trabalho criador, são estes os nomes que freqüentemente se mencionam. Consideramos estes camaradas como as principais figuras dirigentes da tendência formalista na música. E essa tendência é fundamentalmente errônea.

Os camaradas que mencionei também falaram aqui e declararam que eles igualmente não estão satisfeitos com a falta de crítica na União dos Compositores, reclamaram por serem excessivamente elogiados e disseram reconhecer que existe certa fraqueza em relação ao seu contacto com a massa principal de compositores e com o público, etc. Mas era difícil que saísse de todas estas verdades uma ópera de êxito — completa ou quase completa. Essas confissões já deveriam ter sido feitas há muito tempo. O certo é que para o grupo dirigente de nossos compositores com inclinações formalistas, o regime que existiu até agora em nossas organizações musicais era, para dizê-lo delicadamente, «não de todo desagradável».

Houve necessidade de uma reunião do Comitê Central do Partido para que esses camaradas descobrissem que tal regime tem seus lados negativos. Seja como for, enquanto não se realizou aquela reunião do C. C. do Partido, nenhum deles pensou em modificar o estado de coisas existente na União dos Compositores.

As forças do «tradicionalismo» e do «epigonismo» funcionavam sem qualquer obstáculo. Foi dito aqui que chegou o momento de uma mudança radical. É impossível deixar de estar de acordo com isso. Já que os postos mais importantes da música soviética estão ocupados pelos companheiros citados, desde que ficou demonstrado que as tentativas de crítica tiveram como resultado, conforme mostrou o camarada Zakharov, de maneira explosiva, a imediata mobilização de todas as forças contra essa crítica, devemos chegar à conclusão de que foram precisamente aqueles camaradas os que criaram a referida atmosfera, insuportável e sufocante, de estancamento e de retrocesso, que estão agora inclinados a declará-la indesejável.

Os camaradas dirigentes da União dos Compositores sustentam aqui que não há oligarquia na União dos Compositores. Se assim é, façamos uma pergunta: por que se aferram tanto aos postos principais da União? Será que lhas agrada o poder pelo poder? Em outras palavras: será que tomaram o poder em suas mãos porque lhes agrada o poder pelo poder, por que seu apetite administrativo obtém do poder o melhor proveito, ou por que simplesmente desejam impor-se aos outros, como Wladimir Galitsky em «O Príncipe Igor»? Ou será que esse poder era exercido por uma tendência definida na música?

Creio que podemos eliminar a primeira hipótese; a segunda é mais acertada. Não há razão para dizer-se que a direção da União dos Compositores não esteja vinculada a uma tendência. Tal acusação não pode ser feita a Chostakovitch, por exemplo. Conclui-se então que era o poder em benefício dessa tendência.

E realmente estamos enfrentando, uma luta muito aguda, se bem que aparentemente oculta, entre duas tendências na música soviética: uma representa o princípio são e progressista na música soviética, fundamentado no reconhecimento do enorme papel que exerce a herança clássica e, em particular, que exercem as tradições da escola musical russa, combinadas com o conteúdo de elevadas idéias na música, sua veracidade e realismo, profunda e organicamente vinculados com o povo e sua música e canções — tudo isto entroncado a um alto grau de técnica profissional. A outra tendência é a do formalismo, que é estranha à arte soviética e que se destaca, sob o pretexto de parecer moderna, pelo repúdio da herança clássica, pelo desdém para com a música popular, pela subestimação do povo, preferindo satisfazer emoções terrivelmente individualistas de um grupo reduzido de estetas seletos.

Esta última tendência substitui uma música natural e formosamente humana por uma música falsa, vulgar e com freqüência, simplesmente patológica. Ao mesmo tempo é típico dessa última tendência evitar os ataques de frente, preferindo esconder sua atividade revisionista sob a máscara de aparente acordo com os princípios fundamentais do realismo socialista. Tais métodos de «contrabando», evidentemente, não são novos. Temos na história abundantes exemplos de revisionismo sob o aspecto de aparente acordo com os princípios fundamentais dos ensinamentos que se pretende revisar. O mais necessário então é expor a verdadeira essência dessa outra tendência e o dano que está causando ao desenvolvimento da música soviética.

Perpetuar e Desenvolver as Tradições da Música Clássica

Examinemos, por exemplo, o problema da atitude frente à herança clássica. Embora os compositores anteriormente mencionados jurem que pisam com ambos os pés sobre o terreno da herança clássica, não há nenhuma prova de que os aderentes da escola formalista estejam perpetuando e desenvolvendo as tradições da música clássica. Qualquer ouvinte poderá dizer que o trabalho dos compositores soviéticos de tendência formalista é completamente distinto da música clássica. A música clássica caracteriza-se pela sua veracidade e realismo, pela faculdade de ater-se à unidade de forma artística brilhante e de conteúdo profundo e de combinar a grande técnica com a simplicidade e a compreensibilidade.

A música clássica em geral e a soviética em particular, são estranhas ao formalismo e ao naturalismo cru. Caracterizam-se pelo seu conteúdo de idéias elevadas, baseadas no reconhecimento da arte musical dos povos como fonte de música clássica, e pelo profundo respeito e amor aos povos, à sua música e às suas canções.

Que enorme passo para trás dão os nossos formalistas da música no caminho do desenvolvimento musical, quando, minando o baluarte da música verdadeira, compõem música má e falsa, repleta de emoções idealistas estranhas às grandes massas do povo e capaz de satisfazer não aos milhões de habitantes da União Soviética, mas a uns poucos, a uma vintena ou pouco mais de eleitos: a «elite». Quinto difere isto da posição de Glinka, Tchaikovsky, Rimsky Korsakov, Dargonnyjsky e Mussorgsky, que consideravam a faculdade de exprimir o espírito e o caráter do povo em suas obras como a base fundamental de sua produção artística. Ao não tomar em consideração as exigências do povo, seu espírito e sua arte, a tendência formalista em música revela-se de caráter definidamente anti-popular.

É terrível que a «teoria» de que «seremos compreendidos daqui a 50 ou 100 anos» e de que «nossos contemporâneos não nos compreendem, mas nos compreenderá a posteridade», seja corrente entre alguns setores de compositores soviéticos. Se essa atitude se transformou em hábito, é este um hábito muito perigoso.

Esse tipo de raciocínio significa isolar-se do povo. Se eu — escritor, artista, homem de letras em geral ou operário do Partido — não posso esperar ser compreendido por meus contemporâneos, para quem vivo e trabalho? Isto pode levar somente ao vazio espiritual, a um beco sem saída. Diz-se que certos críticos musicais servis cochicham essa espécie de «consolo» a nossas compositores, especialmente agora. Mas será que podem esses compositores ouvir semelhante conselho, friamente, sem sentir o desejo de acusar a tais conselheiros pelos menos ante um tribunal de honra?

Recorde-se como se sentiam os clássicos quanto às necessidades do povo. Começamos a esquecer com que linguagem inflamada falavam os CINCO GRANDES(2*) e o grande crítico musical Stasov, que se unia a eles, do elemento popular na música. Começamos a esquecer as maravilhosas palavras de Glinka quanto aos vínculos entre o povo e os artistas:

«. . . A música, cria-a o povo, e nós, os artistas, somente arranjamos...»

Estamos esquecendo que o grande mestre não ficava estranho a nenhum gênero de música, se esses gêneros o ajudassem a aproximar ainda mais a música das grandes massas do povo. Permaneceis, no entanto, todos vós, afastados até mesmo de um gênero como a ópera; considerais a ópera como secundária, a ela opondo a música sinfônica instrumental, isto para não mencionar o fato de que menosprezais a canção, os corais e a música para concerto, considerando vergonhoso rebaixar-se até elas e satisfazer as exigências do povo. No entanto, Mussorgsky adaptava a música de «O Hopac», enquanto Glinka utilizava o «Kamorinsky» para uma de suas melhores composições. Evidentemente, teremos que admitir que o grande proprietário Glinka, que o oficial Serov e que o aristocrata Stasov eram mais democratas que vós. É isto paradoxal, mas é um fato. Juramentos solenes de que todos vós estais a favor da música popular não são suficientes. Se assim é, por que utilizais tão pouco as melodias do povo em vossas obras musicais? Por que se repetem os mesmos defeitos que foram criticados, há muito tempo já, por Serov quando disse que a música «culta», isto é, a profissional, se desenvolvia paralela e independentemente da música do povo? Podemos realmente dizer que nossa música sinfônica instrumental se está desenvolvendo em estreita interação com a música do povo, isto é, com a música coral, para concertos ou de canções? Não, não podemos dizer isto. Pelo contrário, incontestavelmente foi aberto aqui um abismo, em conseqüência da subestimação da música popular de parte de nossos compositores sinfônicos.

Seja-me permitido recordar-vos como definia Serov sua atitude frente à música do povo. Refiro-me ao seu artigo sobre «A música das canções do sul da Rússia», em que dizia:

«As canções do povo, como organismos musicais, não são, de forma alguma, obras de talentos musicais individuais, mas produções da nação inteira; toda a sua estrutura as distingue da música artificial escrita em consciente imitação de exemplos anteriores, nascida como resultado de certas escolas, ciência, rotina e reflexos. São flores que crescem naturalmente em um terreno dado, que apareceram no mundo por si mesmas e surgiram em todo o seu esplendor, sem a menor preocupação quanto a autor ou no que se refere à composição e, por conseguinte, com pouca semelhança com as produções asfixiantes da atividade musical culta. Daí a ingenuidade da criação e (como dizia com tanta exatidão Gogol, em «Almas mortas») aquela sabedoria elevada da simplicidade que é o maior encanto e o principal segredo de todo o trabalho artístico, nelas se manifestam com mais força.

«Tal como lírio, em sua gloriosa e casta beleza, sobrepassa o brilho de brocados e pedras preciosas, assim a música popular, graças à sua simplicidade infantil, é mil vezes mais rica e mais forte que todos os artifícios da técnica empregados pelos pedantes nos conservatórios e academias de música.»(3*)

Que bem escrita, com quanta verdade e com quanta força! Com que exatidão definiu o princípio fundamental de que o desenvolvimento da música deve ser realizado na base da interação, do enriquecimento da música «culta» pela música do povo! Este tema desapareceu quase por completo de nossos atuais artigos teóricos e críticos. Isto confirma novamente o perigo do isolamento do povo de nossos mais notáveis compositores modernos, que menosprezam fontes de arte tão maravilhosas como as canções e as melodias do povo. Tal abismo não deve existir na música soviética.

Seja-me permitido passar ao problema das relações entre a música nacional e a música estrangeira. Os camaradas observaram corretamente que há predileção até mesmo por uma orientação no sentido da música burguesa, no sentido da música decadente, e que isto também é uma das características mais acentuadas da tendência formalista na música soviética.

As relações da música russa com a música da Europa Ocidental foram bem definidas por Stasov quando escreveu, em seu artigo «Alguns obstáculos para a nova arte russa»:

«Seria ridículo negar a ciência ou o conhecimento em qualquer terreno, inclusive no musical, mas somente os novos músicos russos, que não têm atrás de si uma tradição histórica herdada de séculos anteriores, herdada de uma longa cadeia de períodos escolásticos na Europa, podem enfrentar a ciência
valentemente, cara a cara; respeitam-na e desfrutam das vantagens que ela confere, mas sem exagerá-los, sem ser a ela submissos. Negam a necessidade de seus excessos secos e pedantes, negam seus divertimentos ginásticos, aos quais milhares de pessoas na Europa atribuem importância, e não crêem que seja necessário passar-se anos intermináveis sem fazer outra cousa senão adorar humildemente seus sagrados mistérios.»(4*)

Assim falou Stasov da música clássica da Europa Ocidental. Quanto à música moderna burguesa, que chegou a um estado de completa decadência e degenerescência, nada se pode dela extrair. Nada, por isso, mais absurdo e ridículo do que essa manifestação de servilismo à música burguesa moderna em seu atual estado de decadência.

Se examinamos a história de nossa música russa e em seguida da soviética, devemos chegar à conclusão de que se desenvolveu e se transformou em força poderosa precisamente porque soube encontrar os caminhos de seu próprio desenvolvimento, sendo-lhe assim possível revelar o inesgotável conteúdo espiritual de nosso povo. Aqueles que crêem que o florescimento da música nacional, seja russa ou de outros povos que constituem a União Soviética, significa diminuir o sentido do internacionalismo em arte estão profundamente enganados. O internacionalismo em arte não aparece como o resultado da diminuição ou do empobrecimento da arte nacional. Pelo contrário, o internacionalismo surge do próprio florescimento da arte nacional. Esquecer esta verdade é perder de vista o rumo certo, perder nossa própria face, tornarmo-nos cosmopolitas sem pátria. Só a nação que possui sua própria cultura musical amplamente desenvolvida pode apreciar a música de outros povos. Não se pode ser internacionalista em música, ou em qualquer outro terreno, sem se ser ao mesmo tempo um genuíno patriota.

Se o internacionalismo se baseia no respeito a outros povos, não se pode ser internacionalista sem começar pelo respeito a seu próprio povo.

Toda a experiência da URSS confirma este ponto de vista. Quer dizer então que o internacionalismo em música, o respeito pela arte de outros povos, se está desenvolvendo em nosso país na base do enriquecimento e do desenvolvimento da arte musical nacional, na base do florescimento dessa arte que tenha algo que compartir com outros povos e não na base do empobrecimento da arte nacional, da cega imitação de modelos estrangeiros e da extirpação dos traços distintivos do caráter nacional em música. Nada disto deve ser esquecido quando se fala das relações entre a música soviética e a música estrangeira.

O Novo Deve Ser Melhor Que o Velho

Mas, além disso, ao falar do afastamento da tendência formalista dos princípios da herança clássica, não devemos deixar de mencionar a diminuirão do papel da música descritiva. Sobre este assunto já se falou aqui, mas a essência do problema não foi convenientemente revelada. É óbvio que diminui entre nós a quantidade de música descritiva, ou mesmo que quase não existe. As coisas chegaram a um tal ponto que o conteúdo da composição musical que surge nos dias de hoje deve ser interpretado ao aparecer. Surgiu uma nova profissão — a dos críticos que interpretam as obras musicais de compositores amigos, que procuram na base de sua intuição pessoal decifrar post factum o conteúdo das obras musicais que foram postas em conhecimento do público, e cuja idéia confusa, diz-se, não é perfeitamente clara nem mesmo para seus autores. O abandono da música descritiva é também um distanciamento das tradições progressistas. Como sabeis, a música clássica russa era em geral música descritiva.

Também surgiu aqui o problema da novidade. Afirmou-se que a inovação era, praticamente, o traço característico da tendência formalista. Mas a inovação não constitui um fim em si mesma; o novo deve ser melhor que o velho, de outra maneira não tem sentido. Parece-me a mim que os cultores da escola formalista usam essa palavra principalmente para popularizar a música de má qualidade. Não se pode chamar de inovação qualquer intento de originalidade, ou qualquer distorção ou truque na música. A menos que se queira simplesmente agrupar palavras, é necessário ter uma idéia clara a respeito do que se deve abandonar no velho, e qual é a meta exata e nova que se pretende alcançar. Sem isto a palavra inovação só pode significar uma coisa, isto é, a inovação dos fundamentos da música.

Só pode significar romper com as leis e normas da música, leis e normas que não se podem abandonar. Que não se deve abandoná-las, não implica em ser-se conservador, como não implica que o abandoná-las signifique inovação. A inovação está muito longe de coincidir sempre com o progresso. Muitos músicos jovens são desorientados pelo fantasma da inovação. Diz-se-lhes que a menos que sejam originais, novos, serão, escravos das tradições conservadoras. Mas, já que novidade não é sinônimo de progresso, proclamar tais ideais equivale a semear uma confusão abismal, para não dizermos, lisa e plenamente, enganar.

Mas, além disso, a «inovação» dos formalistas não é de modo algum nova, já que essa «inovação pouco difere da moderna música burguesa decadente da Europa e da América. É aqui que se encontram os verdadeiros «epigonistas».

Houve tempo, como deveis recordar, em que nas escolas -primárias e secundárias seguíamos o método de «brigadas de laboratório» e o «Plano Dalton», que reduziam ao mínimo o papel do professor nas escolas e davam a cada aluno o direito de escolher o tema para a classe, no começo da lição. Ao chegar à aula, o professar perguntava: «Que estudaremos hoje?» Os alunos respondiam:. «Fale-nos do Ártico»; «Fale-nos do Antártico»; «Fale-nos de «Chapaiev»; «Fale-nos de Dnieprostroi»,

O professor tinha que atender a essas exigências. A isto se chamava «o método da brigada de laboratório»; na realidade, porém, equivalia a transtornar completamente a organização docente. Os alunos transformavam-se em força diretriz, e o professar obedecia. Chegamos a ter «loose-leaf textbooks» e abandonou-se o sistema de cinco pontos para a classificação. Todas estas coisas foram inovações, mas pergunto: tais inovações favoreciam o progresso?

O Partido suprimiu todas essas «novidades». Por que? Porque essas «novidades» aparentemente muito «esquerdistas» eram na realidade extremamente reacionárias e contribuíam para a anulação da escola.

Tomemos este outro exemplo. Não há muito organizou-se uma Academia de Belas Artes. A pintura é vossa irmã, é uma das musas. Em certa época, como se sabe, a influência burguesa foi muito forte em pintura. Cobria-se freqüentemente sob as bandeiras mais esquerdistas, dando-se a si mesma rótulos, como os de futurismo, cubismo, modernismo; «destruía-se» o «academicismo estagnado» e proclamava-se a inovação.

Esta novidade exprimia-se em realizações como, por exemplo, quando se pintava a uma jovem com uma cabeça sobre quarenta pernas, com um olho que olhava para nós e o outro para Arzamas.

Como terminou tudo isso? No completo fracasso da «nova tendência». O Partido reabilitou o significado da herança clássica de Repin, Briníov, Vereshchaguin, Vasnetsov e Surikov. Fizemos bem em restabelecer os tesouros da pintura clássica e em derrotar os liquidadores da pintura?

O prolongamento da existência de tais escolas não terá significado a anulação da pintura? Atuou o Comitê Central de forma «conservadora»? Colocou-se sob a influência do «tradicionalismo», do «epigonismo», ao defender a herança clássica em pintura? Afirmar isso seria pura bobagem.

O mesmo pode aplicar-se à música. Não afirmamos que a herança clássica seja a culminação absoluta da cultura musical. Dizer isto, significaria admitir que o progresso termina com os clássicos. Mas os moldes clássicos permanecem não superados até hoje. Isto significa que devemos aprender e aprender, que devemos extrair o melhor da herança clássica musical, o essencial para o melhor desenvolvimento da música soviética.

Há muita conversa vazia acerca do «epigonismo» e de coisas semelhantes; são palavras que se utilizam para intimidar a juventude e afastá-la da aprendizagem dos clássicos. Corre a palavra de ordem de que os clássicos devem ser deixados de lado. Isto seria, sem dúvida, formidável. Mas para desterrar os clássicos, é necessário que antes se os haja alcançado, e vós não tomais isto em consideração, como se já houvésseis passado por esta etapa.

Mas, para falar com franqueza e exprimir o pensamento que está na mente do espectador e do ouvinte soviético, não seria de todo mal se tivéssemos agora mais obras semelhantes às clássicas em conteúdo e forma, em graça, em beleza e musicalidade. Se isto é «epigonismo» não há então nenhum opróbrio em pertencer a esse tipo de «epigonismo»!

Contra o Naturalismo Vulgar — Música Para o Povo

Agora tratemos das distorções naturalistas. Ficou aqui bem claro que as normas naturais e sadias da música foram sendo progressivamente descartadas. Usa-se cada vez mais em nossa música elementos de cru naturalismo. Eis o que escreveu Serov, há 90 anos, como advertência contra a preocupação pelo naturalismo grosseiro:

«Na natureza há uma infinidade de sons das mais diversas espécies e qualidades; mas todos esses sons que se conhecem sob o nome de ruído, trovão, rugido, explosão, estrondo, zumbido, repiques, uivo, assobio, chiado, murmúrio, sussurro, cicio, etc. e outros que carecem de nome. . . todos estes sons tão pouco formam o material da linguagem musical; ou, se se os incorpora a ela, é somente de maneira excepcional (o toque de sinos, de pratos, de triângulos, o som de tambores, de pandeiros, etc.).. O material próprio da música é o som de uma qualidade especial. . .»(5*).

Não é certo, não é justo que o som dos pratos e tambores deveria constituir a exceção e não a regra na composição musical? Não está claro que nem todos os sons naturais devem ser incorporados às composições musicais? E, sem embargo, quanta indulgência inescusável há entre nós para com o naturalismo vulgar, significando, sem nenhuma dúvida, retrocesso!

Devemos afirmar francamente que umas quantas obras de compositores modernos se acham de tal maneira saturadas de sons naturais que fazem pensar numa perfuradora, se me desculpais a comparação anti-estética, ou num carroção de crimes musicais. Deveis compreender que é simplesmente impossível escutá-las!

Com tal música começamos a traspassar os limites do racional, a passar para lá do limite não só das emoções humanas, como também da razão humana normal. É certo que há teorias em voga atualmente que afirmam que o estado patológico do homem é algo assim como um estado superior, e que os esquizofrênicos e paranóicos podem alcançar em suas alucinações níveis espirituais tão elevados que não podem ser atingidos jamais pelo homem comum em estado normal. Estas «teorias» não são acidentais, sem dúvida; são muito características de época de decadência e de decomposição da cultura burguesa. Mas deixemos todos esses «refinamentos» para os loucos. Exijamos que nossos compositores nos dêem música humana normal.

Qual foi o resultado desse esquecimento das leis e normas em que se baseia a criação musical? A música vingou-se ela mesma daqueles que procuraram tergiversar sua natureza. Quando a música deixa de ter conteúdo, de ser elevadamente artística, quando perde graça, quando se faz feia, vulgar, deixa de satisfazer as necessidades para as quais existe, deixa de ser música.

Talvez vos cause surpresa que o C. C. do Partido Bolchevique exija que a música seja formosa e graciosa? Não, isto não é um lapsus linguae. Afirmamos que somos partidários da música formosa e graciosa, da música capaz de satisfazer as exigências estéticas e o gosto artístico do povo soviético. Estas exigências e gosto surgiram e se desenvolveram incomensuravelmente. O povo aprecia o valor de uma composição musical na medida em que reflete o espírito de nosso tempo, o espírito de nosso povo, e no que tem de acessível às grandes massas. Quem é gênio em música? De modo algum aquele que só pode ser entendido por determinada pessoa ou por um grupo de «gourmands» da estética. A composição musical é tanto mais o trabalho de um gênio, quanto mais intenso e profundo seja seu conteúdo, quanto maior domínio técnico denote, e maior número de pessoas atinja, e um maior número de pessoas seja capaz de inspirá-la. Nem tudo que é acessível é trabalho de gênios, mas todo o trabalho realmente de gênio é acessível, e é tanta mais um trabalho de gênio quanto mais acessível é às massas do povo.

A. N. Serov tinha absoluta razão ao dizer:

«O tempo é impotente contra o que seja realmente formoso em arte. De outro modo não admiraríamos ainda hoje a Homero, a Dante e Shakespeare, ou a Rafael, Ticiano e Poussin, ou a Palestrina, Haendel e Glück.»(6*)

Quanto maior o numera de cordas da alma humana que consegue fazer vibrar, maior é a composição musical. Do ponto de vista da percepção musical, o homem é uma membrana muito rica e maravilhosa, ou um receptor que funciona em milhares de comprimentos de onda. Sem dúvida não conseguimos achar uma comparação melhor, porque para ele o som de uma simples nota, uma simples corda, uma simples emoção, é insuficiente.

Se o compositor pode despertar a vibração de uma só ou de poucas, cordas humanas não é suficiente, porque o homem moderno, especialmente o nosso homem soviético, é um ser perceptivo muito complexo. Já Glinka, Tchaikovsky e Serov escreveram sobre o senso musical enormemente desenvolvido do povo russo. Mas no tempo em que eles escreveram isso, o povo russo ainda não havia adquirido um amplo conhecimento da música clássica. Durante os anos de governo soviético a cultura musical do povo aumentou grandemente. Se o nosso povo se distinguia pelo seu grande senso musical já naquelas épocas, seu gosto artístico atual foi enriquecido em conseqüência da popularização da música clássica. Se se aceita que a música tem se tornado mais pobre, se, como no caso da ópera de Muradeli, a potencialidade da orquestra e a habilidade dos cantores não foram utilizadas em todas as suas possibilidades, é evidente que haveis deixado da satisfazer as exigências de vossos ouvintes. Semeai ventos e colhereis tempestade. Deixemos que esses criadores de música inacessível fiquem isolados das grandes massas do povo. Ninguém necessita da música incompreensível. E, se assim é, disto devem culpar-se a si mesmo, e não ao povo. Devem revalorizar sua obra de forma crítica e procurar descobrir por que ela não coincidiu com as exigências populares, por que não conseguiu o aplauso popular, e que se torna necessário fazer para, que o povo possa compreender e aplaudir suas composições.

Esta é a linha que deveis tomar em vossas obras. Não é assim? (Vozes na sala: muito bem!)

Revalorização da Herança Clássica

Agora passarei ao problema do perigo da perda do domínio profissional. Se os desvios formalistas tornam a música cada vez mais pobre, determinam também o perigo da perda do domínio profissional. Relativamente a isto, seria bom considerar outro conceito errôneo, amplamente difundido: aquele que proclama que a música clássica é supostamente mais simples e a música moderna mais complexa, e que a complicação da técnica da música moderna significa um passo adiante, posto que o desenvolvimento sempre significa passagem progressiva do simples ao complexo, do particular ao geral. Não é exato que todo exemplo de complexidade constitua um sinal de superação. Nem todos.

Todo aquele que acredite que qualquer complexidade significa progresso, está tremendamente equivocado. Eis aqui um exemplo. Usam-se muitas palavras estrangeiras na literatura russa. Sabeis também quanto Lênin ridicularizou o abuso do hábito de usar palavras estrangeiras e como mostrou a necessidade de que nossa língua fosse depurada dessa importação de vocábulos. A complexidade da linguagem através da introdução de palavras de outros idiomas em lugar de palavras russas, quando há à mão uma palavra russa perfeitamente justa, jamais se (considerou um sinal de progresso lingüístico. O vocábulo estrangeiro «lozung» (slong), por exemplo, foi substituído agora pela palavra, «prizyv». Não é isto um progresso? O mesmo pode dizer-se da música. Sob a máscara da complicação superficial dos métodos de composição, esconde-se uma tendência a empobrecer a música. A linguagem musical se está tornando inexpressiva, tanto de grosseiro, vulgar e falso está sendo incorporado à música, que esta deixa de exercer sua função intrínseca: a de proporcionar prazer. Será que se vai eliminar o papel estético da música? Será este o propósito de tais inovações? Ou se pretende transformar a música num solilóquio do compositor? Se assim é, para que então pretender impô-la ao público? Essa música se está tornando anti-popular e excessivamente individualista; o povo realmente tem todo o direito de permanecer indiferente quanto ao destino de uma tal música, e já começa a fazê-lo. Se se pretende que o ouvinte aplauda essa música grosseira, sem graça, vulgar, baseada em atonalidades em dissonâncias do princípio ao fim, musica na qual a consonância constitui uma exceção, e as notas falsas e sua combinação a regra, isto representa um afastamento direto das normas básicas musicais. Tudo isso combinado ameaça arrasar totalmente com a música, da mesma maneira que o cubismo e o futurismo em pintura não representam nem mais nem menos do que o propósito de acabar com a pintura. A música que deliberadamente deixa de lado as emoções humanas normais, que perturba a mente e o sistema nervoso do homem, não pode ser popular, nem pode ser útil à sociedade.

Fez-se menção aqui do interesse unilateral pela música instrumental sinfônica, sem tema. É um mal relegar os diferentes gêneros musicais ao esquecimento.

A ópera de Muradeli é um exemplo dos excessos a que pode levar essa atitude. Lembrai-vos o quanto eram benevolentes e generosos a respeito da variedade de gêneros musicais os grandes mestres da arte? Eles compreendiam que o povo exigia a variedade de gêneros musicais. Por que sois vós tão diferentes de vossos grandes predecessores? Sois muito menos agradáveis do que aqueles que, conquanto houvessem chegado ao auge de sua arte, escreviam árias, e canções corais, e música orquestral para o povo.

Agora, tratemos da perda da melodia na música. A música moderna caracteriza-se pelo interesse unilateral dedicado ao ritmo, em detrimento da melodia. Sabemos, no entanto, que só se pode ter prazer musical, quando todos os seus elementos (melodia e ritmo) estejam presentes em combinações harmônicas. O interesse unilateral por um elemento da música com prejuízo de outro, tem como resultado a violação da correta interrelação dos diferentes elementos e não pode, naturalmente, ser agradável ao ouvido normal.

Outras vezes, permite-se também o desvirtuamento do uso dos instrumentos, utilizando-os para fins diferentes daqueles a que se destilam, como, por exemplo, quando se converte o piano em instrumento de percussão.

O papel do canto é diminuído em benefício do desenvolvimento unilateral da música instrumental. E o próprio canto conforma-se cada vez menos com as normas da arte vocal. Os comentários críticos dos vocalistas, aqui expressados pelas camaradas Derzhinskaya e Katulskaysj, devem ser tomados em conta muito seriamente.

Todos estes e outros desvios das normas da arte musical constituem uma violação não somente das bases do funcionamento normal do som musical, mas também das bases da fisiologia do ouvido normal. Infelizmente, a teoria que estuda o efeito fisiológico da música no organismo humano, ainda não foi por nós suficientemente elaborada. Devemos, no entanto, ter em consideração que a música de má qualidade inarmônica, incontestavelmente prejudica o bom funcionamento psico-fisiológico do homem.

Em conclusão. O papel da herança clássica deve ser totalmente restaurado, a música humana normal deve ser amplamente restabelecida. Deve ser acentuado o perigo que significa a tendência formalista para o futuro da música. Esta tendência deve ser censurada como uma tentativa, ao estilo de Eróstrato(7*), de destruir o templo da arte construído pelos grandes mestres da cultura musical. Todos os nossos compositores devem mudar de posição e voltar-se para o povo. Devem compreender que o nosso Partido, que exprime os interesses do Estado e do Povo Soviético, apoiará somente uma tendência sadia e progressista em música: a tendência do realismo socialista soviético.

Se apreciais o título honroso de compositor soviético, deveis demonstrar que sois capazes de servir ao povo melhor do que haveis feito até agora.

Um severo exame vos aguarda. A tendência formalista em música foi censurada pelo Partido há já 12 anos. Desde aquela época o governo outorgou, a muitos de vós, inclusive àqueles que participavam das fileiras do formalismo, prêmios Stálin. Era isso feito como grande demonstração de confiança. Não julgávamos, ao assim fazê-lo, que vossa obra estivesse isenta de defeitos, mas éramos pacientes e confiávamos que nossos compositores encontrassem por si mesmo a força necessária para escolher um caminho acertado. Para todos vós, no entanto, já está claro que a intervenção do Partido tornou-se imperativo. O Comitê Central vos diz neste momento simplesmente que se continuais pelo caminho que haveis escolhido para a criação musical, nossa música jamais poderá creditar-se em nosso haver.

Neste momento, os compositores soviéticos encontram-se diante de duas tarefas extremamente importantes. A principal consiste em desenvolver e aperfeiçoar a música soviética. A outra é a de proteger a música soviética contra a infiltração de elementos da decadência burguesa. Não esqueçamos que a URSS é neste instante a guardiã da cultura musical universal, da mesma maneira que noutros aspectos é o sustentáculo da civilização humana e da cultura contra a decadência burguesa e a decomposição da cultura. Recordemos que as influências burguesas estranhas procurarão alcançar reações favoráveis nas mentes de determinados representantes da intelectualidade soviética que ainda conservam restos do capitalismo e que se manifestam a si mesmos com o desejo irrefletido e ridículo de substituir os tesouros da cultura musical soviética pelos tristes despojos da arte burguesa moderna. Portanto, não é somente o ouvido musical, mas também o político, dos compositores soviéticos que deve estar atento. O contacto entre vós e o povo deve ser mais estreito do que nunca. Devereis desenvolver amplamente o «ouvido» para a crítica musical. Será necessário que acompanheis atentamente o curso dos processos que se estão desenvolvendo na arte ocidental. Mas a vossa tarefa não consiste somente em impedir a infiltração de influências burguesas na música soviética. Vossa tarefa consiste em demonstrar a superioridade da música soviética, em criar grande música soviética, que seja capaz de elevar ainda mais a cultura de nosso povo e sua consciência comunista.

Os bolcheviques não repudiam a herança cultural. Pelo contrário, estamos assimilando de forma crítica a herança cultural de todas as nações e de todos os tempos, para podermos selecionar dessa herança tudo quanto possa inspirar a massa trabalhadora da sociedade soviética para as grandes realizações no trabalho, na ciência e na cultura. Devemos ajudar o povo para isso. Se não vos dedicais a essa tarefa, se não vos entregais a ela de corpo e alma, a fim de que seja realizada, oferecendo-lhe todo vosso ardor e entusiasmo criadores, não estareis cumprindo o papel histórico que vos cabe.

Camaradas: queremos, desejamos ardentemente possuir nossos próprios CINCO GRANDES e, para isso, queremos ser mais numerosos e mais fortes, do que aquele grupo que uma vez assombrou o mundo pelo seu talento e cobriu de glória nossa nação.

Para podermos ser fortes, será necessário pôr valentemente de lado tudo quanto passa enfraquecer-nos, e escolher aquelas armas somente que nos possam ajudar a fazer-nos sólidos e poderosos.

Se vos aproximais decididamente da melhor herança clássica musical e ao mesmo tempo a desenvolveis, segundo o espírito das novas exigências de nossa grande era, transformar-vos-eis no grande núcleo dos CINCO GRANDES SOVIÉTICOS. Nós vos queremos vencedores, que domineis o retrocesso que vos desviou, e isto com a maior rapidez possível, que mudeis de posição o quanto antes, e que vos transformeis numa gloriosa coorte de compositores soviéticos que constituirão o orgulho de todo o povo da União Soviética.


Notas:

(1*) Do grego epígonos, que significa descendente, aquele que pertence a uma segunda geração. (Nota do tradutor). (retornar ao texto)

(2*) CINCO GRANDES — Grupo de compositores russos que surgiram em 1860: Balaklrev, Mussorgsky, Borcdjn, Rimsky-Korsakov, Cui. (retornar ao texto)

(3) A. N. SEROV — Artigos críticos, volume III, 1931. (retornar ao texto)

(4) V. V. Stasov — «Obras Escolhidas», edição em dois volumes, volume II, pág. 233. (retornar ao texto)

(5) A. N. SEROV — Artigos críticos, volume I, pág. 504. (retornar ao texto)

(6) A. N. SEROV — Artigos críticos, volume II, pág. 1036. (retornar ao texto)

(7) Pastor do Efeso que incendiou o Templo de Diana com o propósito de fazer-se famoso. Este templo era considerado uma das sete maravilhas do mundo (Nota do Tradutor). (retornar ao texto)

* * *

«A luta de nosso povo contra a miséria, o atraso e a ignorância, a luta contra a exploração e a opressão crescentes, pelo progresso e a democracia é, antes de tudo, a luta pela independência nacional, contra o jugo, colonizador do imperialismo norte-americano».
Prestes

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Inclusão 12/02/2008
Última alteração 22/11/2011