1917-1987 Socialismo em Debate

Fúlvio Abramo

20/24 de Novembro de 1987


Primeira Edição: Depoimento realizado no "Seminário Internacional 70 Anos de Experiências de Construção do Socialismo" realizados no Instituto Cajamar entre os dias 20 a 24 de novembro de 1987. Publicado pelo Instituto Cajamar - Coleção Universidade Livre dos Trabalhadores em agosto de 1988.

Transcrição: Alexandre Linares

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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O ano de 1917 marcou uma das grandes voltas da história, mas o mundo não começou ali. A civilização grega, a Renascença, a Revolução Francesa e a Revolução Russa são provavelmente os quatro momentos em que a história encontra seu pináculo. Bem, mas não começou em 1917 a história do mundo, como também a luta pelo socialismo no Brasil não começou apenas em 1917. Começou muito antes, é erro fazer a história do movimento pelo socialismo no Brasil como algo que tenha sido iniciado com a presença de um partido, o Partido Comunista do Brasil. Ela começou muito antes. Desde o fim do século passado até os anos de 1917 e 1918, encontramos dezenas de jornais, publicações e livros de dezenas de grupos políticos que se autodenominam socialistas. Há dezenas de trabalhos, artigos, estudos, de brasileiros e estrangeiros radicados no Brasil, sobre as tentativas de construção de um partido socialista, ou que realmente não chegaram a ser partidos, mas apenas agrupamentos iniciais. A experiência de luta dessas gerações, que vem do fim do século passado e que se espraia até o período da Revolução Russa, essa experiência foi acumulada e foi transmitida aos trabalhadores brasileiros que começaram a construção de um partido de bases internacionais, um partido filiado à III Internacional.

Essa experiência acumulada por uma porção de militantes operários e por um grande número de intelectuais procedia em grande parte do movimento anarquista, e em parte menor, mas significativa do ponto de vista cultural, de elementos socialistas. É preciso não esquecer que quando o Brasil abandona a sua característica essencialmente rural e agrícola e começa a construir a sua indústria, reúne-se aqui, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, grande número de imigrantes europeus. Grande parte deles abandonou a Europa por problemas de subsistência, que lá se tornara difícil devido às grandes crises que se seguiram aos movimentos de 1870. Mas muitos foram de fato expulsos, especialmente da Itália, da Alemanha e da Espanha, quando esses países depois de terem conseguido a sua unificação nacional, passaram a ser dominados pela burguesia, que expulsou os autores dessa revolução.

Na Itália e na Alemanha, os verdadeiros autores da unidade nacional desses países foram os movimentos de massa dos povos, e não as elites. Na Alemanha, o movimento de Lassalle, e na Itália, um movimento dirigido por Garibaldi, expressavam a vontade do povo, com uma tendência à formulação de um regime socialista. É evidente que naquele tempo o esquema que hoje nós consideramos socialismo não era exatamente o mesmo, mas eram umas sementes de onde surgiu e se formou o grande movimento socialista mundial. Não foi só para o Brasil que todos esses elementos socialistas e anarquistas vieram, expulsos da Europa. Foram também para a Argentina, foram também para o Uruguai, foram também para Nova York. Foi uma verdadeira disseminação das idéias socialistas que tinham sido formuladas na Europa.

Logo no começo do século já havia no Brasil gente que conhecia Marx. Quando se formou o Partido Comunista, se confundiam ainda muito os programas anarquistas com os programas comunistas, uma confusão em que estavam misturados elementos como Edgar Leuenroth e Astrogildo Pereira, ambos saídos do anarquismo e que se mantiveram mais ou menos unidos até 1921, 1922, quando Astrogildo Pereira já se dirigiu para uma orientação socialista mais caracterizada e Edgar Leuenroth permaneceu anarquista.

Fomos convidados aqui para falar alguma coisa também da experiência própria também, pois fomos testemunhas e nós falamos como testemunhas do tempo. Desde cedo, desde quando tinha oito anos de idade eu ouvia falar em anarquismo e socialismo. Meu avô era anarquista e em 1917 abraçou as idéias do Partido Bolchevista, aceitou a conquista do poder pelo proletariado e aceitou a organização de um Estado baseado na força do proletariado. Portanto, ele se afastou daquela ideologia anarquista que negava toda a possibilidade de organizar a sociedade em bases burocráticas, em bases estabelecidas em planos de organização e a de formação de aparelhos de Estado. Para mim e para muita gente da minha geração a luta de idéias em torno do socialismo era uma coisa corriqueira.

O que se faz hoje no Brasil é a continuidade de uma luta que não parou, que vem do começo do século e que atravessa todos esses acontecimentos. Ela não é conseqüência da existência do Partido Comunista, ela começou antes e começa com características diferentes.

Vocês ouviram a exposição de Luís Carlos Prestes, companheiro que eu respeito absolutamente, que eu respeito como um exemplo de fidelidade, um exemplo de combatividade, uni exemplo de coerência consigo mesmo, embora não aceite nem a metade das idéias que ele expressa. Mas eu o respeito muito, tenho por ele um verdadeiro afeto, sentimento de afeição. Um homem que foi capaz de suportar a tremenda fase de prisões, de isolamentos, de pressões que ele sofreu, e manteve acesos aqueles ideais que ele aprendeu já depois de adulto, que não foram fáceis de se aprender na época e na geração dele, nem na situação social dele. Ele era um militar, e sabemos nós que os militares são criados para não ter cabeça, sabemos nós que a experiência da educação militar no Brasil é dolorosa (aliás, não é só no Brasil), é formar gente que saiba apenas obedecer. Também por isso Luís Carlos Prestes é uma figura notável, porque de todos os militares daquele tempo, que tomaram consciência do problema social, que procuraram aprender como resolver os problemas da sociedade, que procuraram examinar quais eram os valores fundamentais da sociedade, e se colocaram a serviço deles, ele foi até certo ponto, não digo o único, mas um dos pouquíssimos que resistiu a tudo isso. Por isso ele se torna merecedor do mais cálido sentimento de respeito.

Ele está certo quando diz que o Partido Comunista tem hoje, com relação à caracterização do Estado brasileiro, a mesma concepção que tinha em 1930, ou seja, que nós somos um país semi-colonial. Bem, por que que eu cito este fato? Porque a história do movimento operário ou a história da evolução do socialismo não se faz na realidade somente na base de uma explosão espontânea da vontade de luta da massa. Existe até uma frase, usada abusivamente durante algum tempo, de que a massa não deve ser deixada ao espontaneísmo, porque isso não leva a nada. É preciso que haja uma concepção do que fazer, com base em uma análise da história da humanidade e da história do movimento operário, uma análise da estrutura das diversas camadas da sociedade.

Equívocos da Internacional Comunista e do PCB sobre o Brasil

O pensamento marxista não poderia levar de jeito nenhum a conceber o Estado brasileiro como um Estado semicolonial. Como diz o companheiro Prestes, não foi o Comitê Central que criou essa concepção retrógrada, errada, antimarxista do Estado brasileiro. Foi imposição da III Internacional, organização a que estava filiado o Partido Comunista Brasileiro. Essa concepção foi formada na União Soviética não a partir da aplicação das posições marxistas e da interpretação marxista da sociedade, mas a partir da justificação da ideologia criada pela burocracia de Estado formada na Rússia como conseqüência das dificuldades surgidas na edificação do Estado soviético. Essas dificuldades incluíram a luta para superar os efeitos da guerra e a destruição da estrutura industrial e econômica em geral dada pela revolução, além das dificuldades da criação de um Estado a partir da inexistência de camadas treinadas para a condução da sociedade.

Tudo isso obrigou Lênin, de certo modo, a apertar as "cravelhas" do regime, a impor uma fase de autoritarismo necessária, mas não para que durasse permanentemente. Essa frase era concebida como provisória, mas com a morte de Lênin, e com o aparecimento das exigências criadas pelos burocratas, pela facção que tinha se encastelado no poder e que dominava o partido, foi imposta então uma justificação teórica à existência dessa burocracia. Essa modificação do pensamento fundamental de Lênin e de Marx, e também de Trótski, começa no V Congresso da Internacional Comunista, que se realizou em 1928. Foi quando os stalinistas, já predominando no poder, obrigaram o Partido Comunista da China a abandonar o seu programa socialista e apoiar o general nacionalista Chiang Kaishek, dissolver o partido e entrar na organização nacionalista de Chiang Kaishek. Para a III Internacional, a revolução num país como a China não poderia ser uma revolução socialista, era uma revolução popular, uma revolução que só poderia ser feita na base de uma aliança com a burguesia nacional, porque era uma revolução popular antiimperialista, mas nacionalista, ou seja, uma revolução em que o partido do proletariado e o próprio proletariado perdiam a sua independência, deixando a condução do movimento nas mãos da burguesia nacional. Isso foi feito na China e foi onde se verificou a primeira grande derrota da revolução. Foi quando, logo depois de todo o Partido Comunista Chinês ter entregue suas armas, Chiang Kaishek mandou fuzilar milhares de comunistas e acabou com o partido, extinguiu o Partido Comunista. Ele sobreviveu em pequenas frações que, guiadas pela genialidade daqueles que tinham escapado e pela impotência do novo regime em resolver os problemas reais da China, a incapacidade da burguesia chinesa em resolver os problemas da China, foi se firmando novamente para chegar até à conquista do poder mais tarde.

Foi nessa época que se introduziu a noção de que a revolução é um processo que se faz por etapas, em que primeiro é preciso conquistar as posições burguesas e, na base da conquista dessas posições burguesas, dessa fase, se acumula força para fazer a segunda fase. Essa concepção foi imposta a todos os partidos da III Internacional e o partido brasileiro também recebeu essa orientação.

Depois passou-se para uma posição inteiramente ao contrário, o extremo do outro lado, o esquerdismo irracional e absoluto, o chamado terceiro período. Aí todos que não eram membros do partido comunista eram classificados como inimigos de classe. Qualquer divergência interna, qualquer ponto de vista diferente numa questão secundária era considerado crime contra o proletariado e os que defendiam essas posições eram isolados, perseguidos e considerados contra-revolucionários. Na União Soviética chegaram até ao fuzilamento de todas essas pessoas. Essa política aplicada em bases internacionais acabou resultando não apenas no isolamento dos partidos comunistas do resto da massa, mas também na destruição do movimento sindical mundial. O movimento sindical, onde os comunistas estavam militando junto com outros elementos de outros partidos, começou a receber a ordem de que não era possível trabalhar comunista junto com socialista ou com anarquista e que na realidade o sindicato devia ser inteiramente comunista. O terceiro período liquidou, portanto, com os sindicatos, porque não era possível formar sindicatos só com comunistas, não havia comunistas o suficiente em nenhuma parte do mundo para fazer grandes sindicatos. Sindicatos são organizações de massa e a concepção do terceiro período liquidava completamente a posição marxista com relação ao movimento de massa.

Depois veio o VII Congresso da Internacional, em 1935, quando se estabeleceu a teoria da frente popular. Diante do fascismo, que naquela época estava se implantando e destruindo as organizações operárias, os partidos operários, as conquistas do socialismo, as conquistas do reformismo, em face disso o Krêmlin apelou para uma política de frente popular, ou seja não uma frente entre todos os movimentos operários, mas uma frente dos partidos comunistas com os partidos da pequena burguesia e da burguesia, com os partidos que se autodenominavam antifascistas.

Os Trotskistas e a Luta Antifascista

Isso no Brasil foi dramático, está representado por duas fases, dois momentos da história que muita gente se lembra ainda, O Partido Comunista na década de 30 já tinha sofrido um fracionamento, pela criação de um grupo trotskista. O que significou esse grupo trotskista? Significou que existia no Brasil gente que já lia Marx, que compreendia Marx, que lia e compreendia Lênin, que lia todos os grandes teóricos da revolução de 1917. Sabiam que era falsa a caracterização que a III Internacional e o Partido Comunista faziam do Brasil como um Estado semicolonial. O primeiro trabalho fundamental desse grupo de comunistas, antes de sair do partido, ainda como oposição de esquerda dentro do partido, foi uma tese sobre a situação do Brasil, uma tese sobre a caracterização do Brasil como um país em movimento combinado e desigual, ou seja, onde existiam já caracterizadas as condições para a criação de um Estado burguês, que estava sendo construído, mas coexistiam com ele ainda fases da economia que estavam situadas em épocas mais atrasadas. Contra eles foi imposta a mentalidade do Comitê Central, emanação das ordens da III Internacional, de que o Brasil era um país semicolonial. Portanto, aqui a revolução não era uma revolução operária, proletária, era uma revolução nacionalista, uma revolução de frente nacionalista, de frente popular. Pois bem, de 1931 até 1934 o Partido Comunista não conseguiu dominar os sindicatos, porque a política extremada do terceiro período ainda colocava os comunistas quase à margem da vida sindical.

Foi nesse período que a influência dos trotskistas no movimento sindical foi muito grande. Isso não é nunca escrito, não é dito em parte nenhuma, mas nós estamos começando a publicar toda a documentação que mostra que nessa fase quem estava muito mais avançado nas bases do movimento operário eram trotskistas e socialistas, e não os comunistas. Trotskistas, socialistas e anarquistas conseguiram fazer uma frente única e com essa frente única levar à Praça da Sé os militantes dessas três correntes para destruir os integralistas que representavam a ameaça fascista no Brasil. É verdade que o Partido Comunista também foi à Praça da Sé no dia 7 de outubro de 1934 para lutar junto, mas essa foi uma decisão que a juventude comunista de São Paulo impôs à direção do Partido Comunista e que foi adotada na noite do dia 6 de outubro, ou seja, na noite anterior ao acontecimento. Até então o PC lutava firmemente contra a formação da frente única, dizendo que era uma aventura ultra-esquerdista e que levaria ao massacre dos operários e nada conseguiria. Ao contrário, essa frente única destruiu a primeira investida do integralismo no Brasil.

Afirmações de que foi a Aliança Nacional Libertadora que liquidou com o integralismo no Brasil é uma alegação falsa. Quando a ANL se formou, aparentemente para lutar contra o integralismo, o integralismo já não tinha força nenhuma, o integralismo era apenas um grupo de militantes e de ultradireitistas que só confiavam num golpe contra o presidente da República, esse golpe que foi uma brincadeira. Os integrantes não tinham força nenhuma. Em compensação, a Aliança Nacional Libertadora fazia muito barulho, fazia muitos comícios, mas não levou a nenhuma batalha real contra os integralistas, e foi ela quem lançou infelizmente todo o movimento operário na ilegalidade com o "putsch" de 35. A Aliança Nacional Libertadora não é isso que está sendo apresentado pelos que dirigiram essa organização, ela foi antes de mais nada uma aliança de classes. O Partido Comunista achava que só a pequena burguesia progressista e os nacionalistas antiimperialistas, inclusive os empresários nacionalistas, poderiam fazer uma frente contra o integralismo, uma frente contra o fascismo. Isso é uma utopia, porque o fascismo foi, na história deste século, o elemento mais decisivo para a manutenção do domínio da burguesia, do domínio do capitalismo, de maneira que unir-se a classes burguesas e semiburguesas para lutar contra aquilo que era a expressão mais sólida da resistência fascista era uma utopia. Essa utopia levou ao movimento de 1935, que lançou o país num golpe que serviu perfeitamente para que Getúlio Vargas tivesse a oportunidade de liquidar com todas as possibilidades do restabelecimento inclusive da democracia burguesa no Brasil.

Qual foi fundamentalmente o papel do Partido Comunista do Brasil? Foi esse que se diz, o que impulsionou mais as idéias socialistas? Não é verdade. O que ele conseguiu foi ter uma influência muito grande em certa parte da intelectualidade brasileira. A intelectualidade brasileira, talvez eu exagere, metade dela é stalinóide, ainda acredita em Stálin, ainda tem em Stálin uma figura, mas na base operária o Partido Comunista realmente não fez nada.

O Partido Socialista Brasileiro foi um partido que, como Prestes acabou dizendo, tinha um dirigente honesto, Mangabeira. Na realidade Mangabeira era um homem honesto, era um dirigente que pretendia ser honesto também, mas ele era um dirigente que entendia o socialismo como uma força auxiliar da burguesia nacionalista. Não era ele que dava orientação ao Partido Socialista, eram grupos ativistas, grupos socialistas formados na luta e os grupos trotskistas infiltrados no Partido Socialista, vamos dizer a verdade. Eu mesmo fui um dos fundadores do Partido Socialista. Discutimos o problema, verificamos que nós não estávamos ligados à massa como era necessário estar e que talvez tivéssemos que incentivar a organização de um partido de massa e esse partido seria um partido socialista. Então fizemos todos os esforços possíveis para ajudar a criação desse partido, e criamos esse partido junto com elementos de outros movimentos, junto com certos socialistas humanitários como Cid Franco, como Freitas Nobre, pessoas que mantiveram os seus ideais até o fim.

Esse caminho para o socialismo felizmente desemboca na criação do PT, que é realmente a síntese de evolução de todo o movimento anterior. Ele representa a continuidade real daquilo que começou praticamente no fim do século passado, na luta das organizações anarquistas e socialistas que vieram organizando os trabalhadores e que tiveram enorme impulso até 1917, quando foram capazes de organizar uma grande greve como jamais outra vez se repetiu no Brasil, pelo efeitos econômicos e sociais que teve. Esse movimento poderoso, depois do aparecimento do Partido Comunista só tendeu a diminuir e só voltou o movimento operário a se fortalecer quando abandonado, como disse hoje aqui com toda a força da sua oratória o nosso amigo, nosso companheiro e nosso dirigente Lula, quando os operários mandaram o Partido Comunista às favas e resolveram fazer o PT. Aí recomeçou o surto do movimento. Essa orientação que veio da Rússia stalinizada só serviu para impedir o desenvolvimento das idéias socialistas no Brasil. Como é possível que, depois de 70 anos, um operário metalúrgico exponha a um dirigente sua dúvida sobre se Quércia é igual a Lula? Onde está a educação? Como gastou esse partido 70 anos de atividade, para deixar a opinião dos trabalhadores tão errada, tão distante de seus objetivos necessários?


Inclusão 09/05/2018