República Democrática Alemã - Sociedade Socialista Avançada

Alexandre Babo


A Herança de um Passado Heróico - A Posição da União Soviética no Termo da Guerra em 1945


capa

Sachsenhausen, assim como as centenas e centenas de campos de concentração e extermínio que cobriam o tal grande Reich alemão de um extremo ao outro e os países que os Panzers da Wehrmacht iam ocupando. São as duas faces do mundo. A face negra da autocracia, da exploração do homem pelo homem, da sua expressão mais torpe e cruel — o fascismo; e é também a dos explorados, das vítimas e dos heróicos lutadores e defensores dos oprimidos contra os opressores.

No Ocidente esquece-se (no Ocidente esquece-se muita, muita coisa) e, sabemos que há uma grande e poderosa facção interessada nisso, que as classes trabalhadoras alemãs, o operariado alemão e os seus dirigentes socialistas e, sobretudo, do Partido Comunista Alemão, têm um largo e extraordinário historial na luta pela emancipação e libertação das classes dominadas, das classes trabalhadoras, das classes produtoras.

Não interessa aqui fazer a sua história, embora me pareça que ela deve ser publicada, divulgada entre nós. No entanto essa recordação é essencial à compreensão da nova história de uma nova Alemanha — a RDA.

Lembrar a Revolução de 1918 — a contra-revolução pouco depois. Karl Liebknecht assassinado em 1919, no mesmo dia que Rosa Luxemburgo, «Um corpo flutua no canal»... título de uma canção. Prenderam-na e mataram-na no meio de um bosque. A tiro. Depois, lançaram o corpo no Landwehrkanal. Só duas semanas depois foi encontrado. Isto foi a 15 de Janeiro, quando a neve cobria as folhas daí árvores. Não eram hitlerianos os que a mataram, apenas os seus ascendentes — uma família terrivelmente unida.

E ela, Rosa Luxemburgo, vem também de uma família antiga que continuou, que se fez avir nas últimas eleições antes da subida ao poder do mais negro personagem de toda a história — nessa floresta de Cruze;Gamadas — pela voz de Thàlmann quando avisou os seus compatriotas e o mundo; «votar em Hitler é votar na guerra»

Foram essas as primeiras vítimas dos campos de extermínio — esses que sofreram a clandestinidade, a tortura, a morte. Milhares, milhares por toda a tarte onde um nazi usava faca ou pistola. Ou o exílio e a luta armada, a guerrilha. Luta terrível e infatigável. Thàlmann foi assassinado em 18 de Agosto de 1944. Certos da derrota, Kler e Himmler assinaram a ordem do assassinato. Levado da cadeia de Bautzen para o campo de concentração de Buchenwald, numa colina dos arredores da cidade de Weimar, ali o executaram.

Bom, é preciso lembrar que foram esses — os sobreviventes dos campos de concentração, da mais dura clandestinidade, do exílio por todas as terras do mundo, dos combates da guerrilha de todo o mundo livre — que construíram e dirigiram a construção do novo país, a República Democrática Alemã. Companheiros de Thàlmann e de todos os seus companheiros. Honecker não veio da tranquilidade calma de uma emigração folgada em hotel médio e de luxo. Dez anos de prisão contam no seu activo.

Esses foram os construtores, os pioneiros. Os que souberam eliminar o veneno — arrancando para sempre os dentes aos criminosos de guerra, aos junkers, aos monopolistas, aos que haviam engordado com a miséria o sofrimento e a morte dos seus concidadãos e dos cidadãos de todas as pátrias.

Esses foram os que souberam distinguir os responsáveis dos inconscientes ou dos colaboradores inactivos e recuperá-los para uma nova consciência social.

Isto não se pode nunca esquecer— deixar de ter sempre presente — quando se quiser analisar e entender a República Democrática Alemã.

Certa manhã, vindo de Frankfurtobre-o-Oder, na fronteira da Polónia, parei em Seelow — num pequeno monte a 80 km de Berlim, mas que ficou na história. Hoje, no alto desse pequeno monte que domina a imensa planície a toda a volta, está um cemitério, um memorial ao soldado soviético, um museu — com a reconstituição da casa de campanha do general Zhukov. No cemitério, os restos mortais de 30 000 soldados soviéticos caídos na luta final contra o nazismo.

Comigo vão homens com um passado entranhado na carne e nos nervos. Um norueguês, cliente durante muito tempo de um campo de concentração na sua terra, um suíço que esteve em Buchenwald até aos últimos momentos, até à libertação pelas suas próprias forças, com as armas construídas por eles próprios. Tem um ar muito sereno e, vá lá, estranhamente feliz. Disse-me que resistiu à fome por sofrer do estômago. — A úlcera salvou-me. Estava habituado a comer pouco e nunca tinha fome. Do isolamento salvou-me o Partido. Realmente nunca estive só.

Estas frases às vezes são vazias de sentido — apenas palavras, construção exterior. Mas esta não era — saía espontânea e simples, exacta, verdadeira.

Mas... tratava-se da batalha decisiva de Berlim. Seelow era o último reduto entre a fronteira e a cidade onde Hitler ainda escondia entre as paredes altas da chancelaria os sinais mais evidentes da sua megalomania homicida e com eles os derradeiros defensores do outrora invencível Reich alemão.

A batalha pela conquista de Seelow durou oitenta dias. Depois, a Berlim apenas três.

O monte dominava com as suas baterias toda a planície.

As últimas forças hitlerianas estavam concentradas na defesa da cidade. Por seu lado, o comando soviético tinha decidido acabar o mais rapidamente possível, com a derradeira defesa do Reich, acabar de vez com a guerra.

A proporção de forças de um lado e outro chegou a uma média de 10 homens por metro quadrado.

Há fotografias de combates, imagens conhecidas, ordens de comando, citações — episódios simples, gestos e horrores. Uma fotografia mostra, enforcados numa pequena praça da vila, corpos caídos no chão, assassinados a tiro — civis, crianças ainda. O homem que ordenou a chacina, diz-se ali, foi secretário de Sylt e vive ainda na RFA.

Outra é um rosto jovem de mulher. Enfermeira apenas do exército. Quando, durante um combate, o oficial comandante caiu, a enfermeira tomou o comando e venceu. Venceu e morreu.

Mostram-nos um filme — documentário extraordinário da grande batalha de Berlim, desde o Oder até Berlim. Berlim conquistada casa a casa. Berlim, onde, entre os destroços, as ruínas fumegantes, os lixos, a porcaria que os esgotos já não levam, mulheres velhas, homens velhos, crianças, esfomeados, buscam entre a porcaria qualquer coisa que se coma.

Escombros, ruínas, uma economia completamente destruída, uma situação caótica tanto no plano material como moral, foi em 1945 a herança da ditadura fascista
Escombros, ruínas, uma economia completamente destruída, uma situação caótica
tanto no plano material como moral, foi em 1945 a herança da ditadura fascista

Conquistado um bairro, uma rua, uma casa, o exército soviético começa a limpar e a dar de comer àqueles resíduos do orgulhoso Reich alemão que, apesar de tudo, comendo sofregamente a sopa quente e o pão que lhe é oferecido pelo vencedor, ainda o olha com a raiva do orgulho caído na lama.

Berlim caiu finalmente. Toda a resistência terminou. A Alemanha está arrasada. Nenhuma cidade escapou. Berlim parece não ter um prédio inteiramente de pé. E assim Frankfurt, Leipzig, Dresden que os ocidentais dias antes do fim da guerra arrasaram, já como medida de segurança contra o seu aliado — a União Soviética. De resto, já em 1942, com o bombardeamento de Hamburgo pelos ingleses, se iniciara a «bomberkrieg» contra objectivos não militares.

É nesta Alemanha em escombros, onde grassa a fome, a fadiga da guerra, o travo amargo de derrota, onde o nazismo tinha deixado raízes muito fundas em grande parte da população, numa Alemanha onde se unem agora os que restaram da matança de mais de uma década, os que vêm da luta subterrânea, dos campos de concentração, do exílio, com a indústria destruída, os campos por cultivar sulcados pelas crateras das bombas, é nesta Alemanha que, a partir do dia seguinte à queda de Hitler e do seu nazismo, se começa a construir o que virá a ser, o que é hoje a República Democrática Alemã.

Sim, a terra queimada e os combatentes que se agrupam e a vão limpar, que vão também limpar as consciências e edificar a nova cidade. Trazem consigo uma experiência doutros companheiros, noutras terras, trazem uma força que remove montanhas e derruba mundos — uma ideologia, uma ciência. Mas têm mais — têm a ajuda extraordinária, concreta dessa ideologia, traduzida na atitude de um vencedor de um novo tipo.

Sabemos que, de acordo com a sua ideologia, a União Soviética devia agir como agiu.

Mas sabemos também que o exército alemão, com a cumplicidade e até o acordo de uma grande parte da população, invadiu o solo soviético, destruiu a sua indústria, queimou as suas casas e as searas que lhe davam o pão, fez de museus cavalariças, roubou, devastou, matou, matou cruelmente as suas populações. A União Soviética sofreu horrores inenarráveis às mãos dos carrascos nazis. Vinte milhões de homens — grande parte da sua juventude — jaz sob searas de cruzes espalhadas pela vastidão do seu território de terras estrangeiras.

Em 1945, nos difíceis dias iniciais, soldados soviéticos distribuíram comida quente e viveres à população esfomeada e deprimida. Para muitos foi o primeiro contacto com cidadãos soviéticos e a primeira pedra para uma firme amizade com a União Soviética
Em 1945, nos difíceis dias iniciais, soldados soviéticos distribuíram
comida quente e viveres à população esfomeada e deprimida.
Para muitos foi o primeiro contacto com cidadãos soviéticos
e a primeira pedra para uma firme amizade com a União Soviética

Não seria humana a raiva imediata da vitória? Seria até humana a compreensão nesse momento? Qualquer outro povo seria capaz de uma solidariedade imediata?

O maire de Frankfurt-sobre-o-Oder, homem de pouco mais de quarenta anos, dinâmico, forte como quase todos os construtores deste país, antigo carpinteiro de profissão, contou-me e a outros companheiros a história da sua cidade: — Os últimos dias da ocupação nazi, a transformação da cidade, depois de «limpa» (isto significa: depois da chacina de milhares de cidadãos), em casa-mata e reduto defensivo e depois a fuga, precedida de 300 fuzilamentos, e a entrada das tropas de Zhukov.

Primeiro decreto do Exército Vermelho: abastecimento da sua população, de leite para as crianças, de abertura de escolas, de ajuda, de solidariedade para com o povo que vencia.

A cidade sofreu um novo e duro golpe. Mais terrível talvez, pois a guerra passara e a esperança renascia: uma epidemia que dizimou milhares e milhares de pessoas. Era com uma comoção, dificilmente controlada, que ele rememorava os dias em que, por não haver caixões, as pessoas deixavam às portas de casa os cadáveres para a carroça passar e os queimar longe da cidade.

E foram ainda os vencedores que trouxeram remédios e médicos para salvar a cidade vencida. E não posso deixar de transcrever aqui alguns passos das «Memórias e Meditações» do Marechal Zhukov, a este respeito:

«...Acabou, pois, a guerra sangrenta e devastadora. A Alemanha fascista e os seus aliados foram derrotados por completo.

O caminho da vitória foi indizivelmente duro para o povo soviético. Custou milhões de vidas. No entanto hoje, ao volver os olhos para os terríveis dias da segunda conflagração mundial, os homens honestos de todo o globo recordam com profundo respeito os que combateram o fascismo e imolaram as suas vidas para libertar a humanidade da escravidão fascista.

A nova Alexanderplatz de Berlim — um exemplo impressonante do êxito da construção e da moderna arquitectura urbana. Modernas vivendas e edifícios sociais constituem uma unidade harmónica
A nova Alexanderplatz de Berlim — um exemplo impressonante do êxito da
construção e da moderna arquitectura urbana.
Modernas vivendas e edifícios sociais constituem uma unidade harmónica

«O Partido Comunista e o Governo Soviético, fiéis ao intemacionalismo e às suas convicções humanitárias, explicaram aos combatentes soviéticos quem eram os verdadeiros culpados da guerra e das atrocidades. Não se admitia nem sequer a ideia de castigar o povo trabalhador alemão pelos crimes praticados pelos fascistas no nosso país. Em relação aos trabalhadores alemães, os soviéticos tinham uma atitude clara: ajudá-los a compreender os seus erros, a extirpar quanto antes os vestígios do nazismo e a integrar-se na família dos povos amigos da liberdade, sob o lema da paz e da democracia.»

«Em Berlim, não funcionavam os transportes urbanos. Mais de um terço das estações de metro estavam arrasadas; duzentas e vinte e cinco pontes foram destruídas pelas tropas germanofascistas. O depósito de vagões e a rede energética do serviço urbano de eléctricos tinha sofrido perdas colossais. As ruas, sobretudo as do centro, estavam repletas de escombros e paralisado todo o sistema de serviços públicos (centrais eléctricas, aquedutos, estações de bombagem, fábricas de gás, etc.).

«A primeira coisa que as tropas soviéticas fizeram em Berlim foi dominar os incêndios, recolher e enterrar os cadáveres, desminar os edifícios e as ruas. Havia, que salvar os berlinenses da morte por inanição, organizar o abastecimento, suspenso desde a entrada das forças soviéticas. Eram frequentes os casos em que grandes contingentes populacionais estavam sem comtda há várias semanas.» «Os conselhos militares, comandantes militares e funcionários dos organismos políticos, atraíam em primeiro lugar para trabalhar nas magistraturas distritais os comunistas, os anti-fascistas e outros democratas alemães libertados dos campos de concentração, com os quais estabelecemos imediatamente as melhores relações.»

«Assim nasceram as instituições alemãs de autoadministração: os organismos de coligação democrática anti-fascista, um terço de cujos colaboradores eram comunistas, actuando de comum acordo com os sociais-democra- tas e os funcionários leais.»

Segue o relato que o Conselho Militar em 11, 12 e 31 de Maio tomou providências a fim de obter o abastecimento da população, fixando regras e ordem de entrega dos comestíveis, a restauração e o regular funcionamento dos serviços públicos municipais e a administração de produtos lácteos às crianças.

«Como primeira ajuda, o governo soviético enviou para Berlim noventa e seis mil toneladas de cereais, sessenta mil toneladas de batata, cerca de cinquenta mil cabeças de gado, açúcar, manteiga e outros víveres.»

Assim começou, pelas tropas soviéticas, a execução da sua «vingança»... as mãos estendidas aos anti-fascistas e ao verdadeiro povo alemão, um gesto de fraternidade que, para sempre, se manteria.

Numa noite de Novembro, em Berlim, passeávamos a pé no Alexanderplatz, eu, o Manneberg e o Karlheinz. Tínhamos jantado juntos num daqueles belos restaurantes berlinenses. (Eu insistia para que me levassem a um restaurante popular. Eles pensavam e lá íamos. Mas, para mim, era um fracasso. Popular o quê... Bom, eu estava à espera do que já lá não há, esperando no mal vestido, descuidado e ar sofredor o «popular», nas gentes, e o género taberna ou mais ou menos no estabelecimento). Eu falava-lhes do Minho, da vida das aldeias, de histórias da minha infância, sei lá!

Vínhamos a admirar a cidade e eles a discutirem os planos futuros, um prédio mais, o palácio dos congressos, qualquer coisa que podia ter sido melhor, com o carinho, o interesse, a obcessão com que um proprietário vai vendo edificar a «sua» obra.

E, eu dizia-lhes: — Vocês sabem? Já antes de Abril tinha visto noutras terras como as vossas, as pessoas pensarem nas obras da sua cidade como se elas fossem «suas», sentindo que eram «suas». E eu não entendia. Desde que comecei a pensar que, para mim, na minha terra, tudo o que fizessem me era indiferente. Não era meu. Era «deles» — os outros, os estrangeiros.

Só agora, depois do 25 de Abril, vos compreendo.

Lembro-me de o Manneberg parar e, com os seus olhos sempre vivos e risonhos, agora turvados por uma certa comoção, me dizer: — Alexandre, vi crescer tudo isto. Pedra por pedra, prédio por prédio. Desde quando tudo eram escombros. No fim do trabalho, vínhamos todos para aqui ajudar a desobstruir. Era duro. Mas era maravilhoso.

Foi assim. Julgo que só agora poderei tentar, com a maior isenção, sem me deixar perturbar pela funda admiração que tenho por esta terra, relatar o que vi na República Democrática Alemã. Ficará sempre aquém da sua verdadeira dimensão e o engenho decerto me não ajudará. Mas a obra ajuda. Portanto, talvez valha a pena.


Inclusão 16/02/2015