História do Socialismo e das Lutas Sociais
Primeira Parte: As Lutas Sociais na Antiguidade

Max Beer


Capítulo V - Roma


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1. — Caráter da História Romana

Toda a cidade de Roma, até o século III, A. C., é lendária. Baseia-se unicamente em tradições orais, porque os arquivos de Roma foram destruídos pelos gauleses no ano 300, A. C.

Sob a influência helênica, até o século II, em Roma não surge nenhum analista. Só mais tarde aparecem os primeiros historiadores, que escrevem a História de seu país, primeiro em grego, depois em latim, mas sempre dentro de um espírito conservador, patriótico, contrarrevolucionário. O mesmo acontece com os próprios escritores helênicos — Políbio, Plutarco e Apiano — que escreveram, em grego, a História de Roma. Os escritores romanos como Salústio, Tito Lívio e Tácito, quase sempre injustos para com os reformadores, e sempre hostis a todos os movimentos revolucionários, cujos chefes são por eles apresentados como bandidos. Os romanos, tanto nos assuntos nacionais, na luta contra os elementos revolucionários do interior, como no combate aos inimigos exteriores, foram sempre de um egoismo sem limites. Na sua opinião, todos os inimigos de Roma eram facínoras, homens sem fé nem lei. Os historiadores latinos, que são para nós as únicas fontes históricas onde se pode colher materiais para o conhecimento dos reformadores e dos revolucionários, que se levantavam contra a ordem existente, também pensam desta maneira. Para bem da verdade, é preciso dizer que os escritores gregos já citados não condenam de maneira tão sistemática e injusta todos os adversários de Roma. Mas é preciso não esquecer que eles também escreviam para os romanos. Embora nem sempre desejassem louvar os novos amos, frequentemente deixavam influenciar-se pelas suas ideias. Catilina e Espártaco, dirigentes de sublevações que puseram em risco a própria existência de Roma, são as duas maiores vitimas das injúrias dos historiadores. É preciso não esquecer que os romanos possuíam um desenvolvimento intelectual bem medíocre. Não podiam, por isso, compreender nem interessar-se pelos movimentos ou ideias que ameaçavam a ordem existente. Não há entre os romanos um Platão, nem um Aristófanes, nem um Sófocles. Demais, naquele ambiente não podiam surgir homens como os profetas judeus. Assim, pois, não é fácil escrever uma História revolucionária de Roma.

2. — Patrícios e Plebeus

Inicialmente, os romanos agrupavam-se em famílias e tribos. Não conheciam a propriedade privada.

À frente da comunidade, que se estendia apenas pelos limites da urbe, estavam os “reis”, isto é, chefes que eram ao mesmo tempo capitães, sacerdotes e juízes supremos.

As lendas atribuem a fundação de Roma a Rômulo.

Logo depois, há em Roma duas camadas sociais diferentes em luta: os patrícios e os plebeus. Os patrícios eram camponeses mais ou menos abastados. Ocupavam todas as funções públicas e, pouco a pouco, tornaram-se uma classe dominante. Os plebeus eram aldeões humildes que, apesar de livres, não podiam ocupar os cargos públicos. Esta diferenciação social não era propriamente uma diferença de classes, porque os plebeus não desejavam instaurar uma nova ordem econômica e social, nem possuíam uma concepção do mundo diferente da dos patrícios. Uns e outros estavam igualmente interessados na escravização e na exploração dos povos estrangeiros. Os plebeus reclamavam apenas uma nova legislação econômica e política para a urbe.

Graças ao poder político, os patrícios conseguiram apoderar-se de enormes extensões de terras públicas. Sua superioridade econômica tornou-se tão grande que os plebeus lhes caíram completamente sob o domínio. As leis sobre os empréstimos eram excessivamente rigorosas, e os juros cobrados demasiado altos. Os plebeus, então, reivindicavam o direito de participar do poder e, principalmente, a posse das terras públicas. Estas reclamações foram, possivelmente, a princípio, uma revivescência das ideias do tempo em que a propriedade da terra era coletiva.

No começo do século VI, a velha Constituição gentílica havia chegado a tal extremo de decomposição, que os patrícios derrubaram a “realeza” e fundaram uma República nobiliária. Todo o poder ficou assim concentrado nas mãos das grandes famílias patrícias. Dois cônsules dirigiam a República e nomeavam os funcionários, os censores, encarregados de administrar a fazenda e os arquivos públicos.

Nas épocas de crise, um dos dois cônsules se transformava em ditador, com poderes ilimitados, por um período de seis meses ou mais.

O antagonismo entre patrícios e plebeus, que se havia conservado em determinados limites durante o tempo dos “reis”, agrava-se quando Roma entra em guerra com seus vizinhos e conquista novos territórios, porque os patrícios se apoderam de quase todas as terras conquistadas. No ano de 494, a plebe já estava tão descontente, que resolveu sair da cidade e instalar-se no Monte Sagrado, para ali fundar uma comunidade independente. Os patrícios, como necessitavam de soldados para a sua política belicosa, viram-se obrigados a fazer concessões. Deram à plebe o direito de nomear dois tribunos do povo, encarregados da defesa dos aldeãos humildes contra a arbitrariedade dos funcionários patrícios. Esses tribunos podiam, também, convocar Assembleias da plebe para que nelas se votassem resoluções (plebiscitos). Mas estes plebiscitos não tinham nenhum valor legal. Assim continuou a luta cada vez mais encarniçada de parte a parte.

Entretanto, à medida que punham em prática sua política de guerra e conquistavam grandes riquezas, os patrícios começaram a compreender que lucrariam atendendo a algumas das reivindicações dos plebeus, visto que não poderiam continuar a sua política exterior sem o concurso deles. No século 367, foram adotadas as famosas leis licíneas, reduzindo consideravelmente as dívidas que pesavam sobre os plebeus e fixando em quinhentas jugas o limite máximo de terras comunais, que podiam ser transformadas em propriedade de cada indivíduo. Deste modo, doravante, a plebe começa a participar da divisão das terras conquistadas. Logo depois, obtêm o direito de nomear um dos dois cônsules.

Através de novas concessões, em 278, a plebe conseguiu a igualdade política completa. Os patrícios continuaram submetendo progressivamente todos os povoados da Itália. Estenderam, deste modo, o Império romano por toda a península.

Esta obra política, sem dúvida, foi realizada principalmente pelos patrícios romanos, que eram apenas aldeões abastados, supersticiosos, astutos e excelentes soldados, mas que, no entanto, na Itália, fizeram coisas que a nobreza ateniense, muito mais culta, não conseguiu.

Pouco tempo depois da fusão política das duas, classes da sociedade romana, os ricos patrícios e os plebeus engendram uma nova nobreza, que se apodera de todos os cargos do Estado. A política exterior de Roma transpõe, então, os limites das fronteiras nacionais e torna-se uma política imperialista, o que significava, na época, o domínio do mar Mediterrâneo e de suas costas.

3. — O Imperialismo Romano

No período que se estende do ano 264 até o ano 133, A. C., Roma eleva-se ao nível de uma grande potência mundial. No mesmo período, opera-se uma transformação progressiva das bases econômicas da sociedade. A economia camponesa é substituída pela economia monetária e pela especulação. Cinco anos mais tarde, estala a primeira guerra púnica, a guerra contra Cartago, então a maior potência comercial do Mediterrâneo.

Cartago dominava as costas do norte da África, o sul da Espanha, a Sardenha e a Sicília ocidental. Por esta guerra, que se dilata entre 264 e 241, Roma conquista a Sicília e a Sardenha. Foi a guerra que fez os romanos compreenderam a importância do domínio marítimo. Daí por diante, constroem uma grande frota com objetivos militares e mercantes. Surgem os armadores e as companhias comerciais. A segunda guerra púnica, na qual o capitão israelita Aníbal, um maiores gênios militares de todos os tempos, aterrorizou Roma, teria podido destroçar completamente o poderio romano se a plutocracia de Cartago tivesse agido com mais finura diplomática e o Senado romano com menos perseverança, ou se o povo romano tivesse sido menos patriota. Em virtude dessas circunstâncias, a expedição militar de Aníbal fracassou. No fim da terceira guerra púnica, que vai de 149 a 136, Cartago foi completamente destruída, com uma crueldade e selvageria bem própria dos romanos.

Após submeter a Grécia, a Ásia Menor e a Espanha, Roma é invadida por uma torrente de metais preciosos e de escravos, que sepulta sob suas vagas o antigo Estado agrícola. Esta obra de destruição foi facilitada pelas guerras, que haviam feito desaparecer a maior parte das antigas famílias patrícias e plebeias. Roma não pôde nunca restabelecer-se de tão grave sangria. Quando atingiu o apogeu da potência material já se encontrava em decadência. Esta decadência, doravante, caminha lenta mas implacavelmente. E nunca mais se detém...

Esses sintomas manifestam-se já claramente no século I., A. C. Na História da Conjuração de Catilina, o historiador romano Salústio diz o seguinte:

“Os vencedores praticam toda sorte de excessos... A riqueza, a glória, o poderio e a autoridade que adquiriram, eclipsaram-lhes todas as virtudes. A pobreza tornou-se um vício... E a ociosidade e os excessos se lastram. Os homens começam a portar-se como mulheres... E as mulheres oferecem a sua honra sem o menor pudor”.

Roma, neste momento, já não é mais uma sociedade produtiva. Tornara-se um Estado militarista e perdulário.

“A tarefa do momento — declara o Senado romano, quando resolve continuar a guerra contra Cartago — é vencer os povos industriais e torná-los nossos tributários. Por isso precisamos continuar lutando até submetê-los”.

Este princípio foi aplicado com uma perseverança inquebrantável. Juvenal, poeta satírico de Roma, resume o resultado de semelhante política na seguinte frase:

“Devoramos os povos e só deixamos os ossos”.

Os povos que combatiam contra Roma eram apresentados, habitualmente, como criminosos e inimigos da Humanidade. Roma nunca assinou um tratado de paz honesto. Todos os seus tratados atribuíam os erros e causas da guerra ao adversário vencido. Deste modo, era fácil encontrar, em qualquer momento, nos próprios tratados de paz, motivos para novas guerras. Os vencidos eram obrigados a pagar tão formidáveis tributos, que ficavam completamente aniquilados financeiramente. Além disso, os romanos obrigavam os governos dos países derrotados a oprimir os seus súditos com pesados impostos. Assim, tornavam-se esses governos impopulares, e enfraqueciam-se as disposições bélicas dos povos submetidos.

As guerras favoreciam principalmente aos negociantes e às companhias mercantis capitalistas, que, por meio de empréstimos ao Estado ou de fornecimentos de navios, víveres e armas, por altos preços, acumulavam fabulosos lucros. Eram os negociantes e companhias que se apropriavam de quase todos os domínios conquistados e das minas; que recebiam os impostos e forneciam os escravos para trabalhar nas grandes fazendas.

O capital romano não estava invertido em empresas industriais, como o capital europeu moderno. Hiena dos campos de batalha, fartava-se com o fruto das pilhagens das legiões e com as riquezas das nações vencidas. As famílias dos senadores e os funcionários foram interessados nos negócios. Os altos dignatários da República deixaram-se corromper. O Senado, a partir do ano 160, adquire a reputação de venal. As constantes guerras eliminaram a população rural. Os campos e as aldeias ficaram despovoados. Influiu, também, nesse sentido, a concorrência dos cereais estrangeiros, importados a baixo preço. As antigas fazendas agrícolas desapareceram. Em seu lugar, surgiram grandes empresas rurais (os latifúndios), que se dedicavam principalmente à criação do gado e ao cultivo da vinha. O trabalho produtivo foi, pouco a pouco, substituído pelo trabalho escravo. Os operários livres, desocupados, concentraram-se em Roma. Aí formaram rapidamente uma classe parasita, que vivia unicamente das rações de trigo distribuídas pelo Estado e das refeições públicas.

Eram também utilizados como rebanho eleitoral. A riqueza concentrou-se num reduzido número de mãos. No ano 104, A. C., um tribuno do povo dizia que, em todo o Estado, o número de ricos não ia além de dois mil.

Existiam, assim, nesse momento, todos os fatores necessários à explosão de violentos conflitos sociais.

Esses conflitos manifestaram-se: 1º pelas tentativas de reformas com o objetivo de fazer ressurgir o contingente camponês da população (Gracos), ou visando uma nova divisão dos bens (Catilina); 2º, pelas sublevações de escravos, dentre as quais se tornou célebre a sublevação de Espártaco.

4. — Tentativas de Reformas: Os Gracos, Catilina

Os irmãos Tibério e Caio Graco, originários da velha nobreza romana, resolveram fazer ressurgir O contingente camponês da população. Tibério Graco foi eleito tribuno do povo no ano 134. Atendendo aos. desejos da população pobre, bateu-se para que lhes entregassem as terras a que tinham direito. No mio seguinte, propôs se limitasse a quantidade de terras que cada cidadão poderia possuir. Pretendia criar, nos territórios que deste modo ficassem livres, lares inalienáveis ou fazendas hereditárias, de 30 jugos. Parece que Tibério desejava indenizar os antigos proprietários das terras confiscadas. Mas os pequenos camponeses seriam também auxiliados pelo Estado, para que pudessem adquirir pequenas propriedades. Como a nobreza se lhe mostrasse hostil à proposta, Tibério provocou uma enorme agitação popular. Descrevendo a miséria do povo, exclamava:

“Os animais ferozes que vivem em terras da Itália têm, pelo menos, as suas tocas. No entanto, os homens que combatem e morrem pela Itália possuem unicamente o ar que respiram e a luz do sol. Sem teto, sem roupas, vagam através do país com as mulheres e filhos. Nossos generais mentem quando, para estimular as tropas, dizem que os soldados combatem para defender os próprios lares e os túmulos dos antepassados da pilhagem do inimigo. Nenhum soldado tem lar! Nenhum deles poderá dizer onde estão os restos de seus antepassados! Os soldados derramam o seu sangue e morrem unicamente para defender a riqueza dos poderosos! Dizem que os soldados romanos são os senhores do mundo. Mas nenhum deles possui sequer uma nesga de terra para repousar a cabeça”.

Quando a Assembleia do povo ia votar esse projeto de lei, Tibério pronunciou longo discurso, no qual perguntou:

“Não é justo dividir os bens comuns? O cidadão não é melhor que o escravo? Os guerreiros não são mais úteis ao país que os incapazes para a guerra?”

Depois de haverem conquistado pela força das armas grande parte do mundo, quando esperavam submeter ao seu domínio os demais territórios povoados da Terra, os romanos viram-se colocados ante um dilema: ou conquistar os demais países, ou renunciar a todas as conquistas anteriores. Eis porque Tibério aconselhava aos ricos, que, para garantir os dias vindouros, repartissem naquele momento as terras com aqueles que sacrificavam os próprios filhos em benefício da pátria.

‘'Em lugar de perderem tempo com discussões sobre questões secundárias — declarou Tibério — os ricos precisam resolver este problema fundamental”.

Na opinião de certos historiadores, como Ápio, Tibério Graco desejava, principalmente, criar, no seio do Estado romano, uma classe de cidadãos, numerosa e forte, capaz de manter e de ampliar as conquistas de Roma.

De qualquer modo, porém, o projeto de reforma de Tibério Graco visava conservar a ordem social existente.

Assim, pois, no ano 132, convocou novamente o tribunal para debater a questão. Numa reunião eleitoral, quando Tibério expunha ao povo o seu programa, os partidários do Senado surgiram inesperadamente, armados de paus e matracas, e o abateram, assim como a grande número de seus amigos. Não obstante, a lei agrária surtiu efeito. Foram criadas oitenta mil pequenas fazendas camponesas.

Caio Graco, irmão de Tibério, continuou-lhe a obra. Eleito tribuno do povo em 123, conseguiu que cada cidadão recebesse do Estado, mensalmente, certa quantidade de trigo. Reformou a justiça, construiu estradas através da Itália, para ocupar os sem-trabalho e esforçou-se para democratizar o direito eleitoral e organizar uma vasta colonização interior. Caio teve o mesmo fim trágico do irmão: foi assassinado no ano 121.

Os romanos, como sempre hipócritas, edificaram um templo justamente no local em que os Gracos e seus partidários foram massacrados: o templo da Concórdia.

Mas isto não impediu que, logo após, insurreições de escravos e sangrentas guerras civis agitassem toda a Itália.

No ano 100, o “democrata” Mario mandou assassinar cinquenta senadores e mil cavaleiros; seu adversário Sila fez outro tanto: mandou matar quarenta senadores e mil e seiscentos cavaleiros. Seus bens foram confiscados. O produto do espólio realizado por Sila elevou-se a 500 mil contos, aproximadamente. Os capitalistas e os usurários compraram os bens confiscados por uma soma que correspondia apenas a um quarto do valor real. No ano 73, estalou a insurreição de Espártaco, de que mais adiante falaremos. Esta situação serviu de base à conjuração de Catilina, no ano 63, A. C. O historiador romano Salústio, que a descreve do seu ponto de vista conservador, diz que o povo romano se encontrava, então, num estado moral deplorável.

"Embora o mundo inteiro, de leste a oeste, lhe prestasse obediência, embora no interior reinasse a tranquilidade e a prosperidade, cidadãos suficientemente estúpidos e criminosos tentaram destruir o Estado para precipitarem-se eles próprios na ruína”.

Porque, apesar dos decretos do Senado contra os conjurados e das grandes somas oferecidas aos que os delatassem, nenhum só, dentre eles, foi capaz de trair os correligionários ou de abandonar o campo de Catilina. O mal havia atingido profundamente o espírito da maior parte dos cidadãos. Este espírito de rebeldia não existia apenas entre os conjurados. A plebe inteira, que era partidária de uma transformação radical, simpatizava com os planos de Catilina. Nem por isso os historiadores deixaram de representar Catilina como o mais horroroso monstro de todos os tempos. Na “Vida de Teseu”, Plutarco emite este sábio juízo:

— “É perigoso ser odiado num Estado onde florescem a poesia e a eloquência”.

Catilina estava nesse caso. Por desgraça, Cícero colocou-se ao lado dos seus adversários. E Cícero foi um dos maiores oradores de todos os tempos. O caráter de Cícero era a antítese do de Catilina. Este descendia da alta nobreza de Roma. Cícero nascera na província. O primeiro era um soldado, sempre disposto a lutar, com risco da própria vida, pela causa dos oprimidos. Cícero era um advogado, um magnífico tipo de burguês medroso, um moralista, que tremia constantemente com receio de perder as suas propriedades. Ambos se defrontaram, como candidatos ao consulado, no ano 62; Cícero, representante da classe possuidora, Catilina defensor dos interesses das camadas mais pobres da população. Catilina propunha que se dessem terras aos cidadãos pobres. Batia-se ainda pela supressão das dívidas e pela instauração uma fiscalização severa das finanças públicas. De um modo geral, combatia pelos interesses das massas populares. Parece, também, que desejava melhorar a sorte dos povos submetidos ao domínio de Roma.

Cícero escreveu a este respeito, em Os Deveres:

“Os que querem ser amigos do povo, suprimir as dívidas, despojar os ricos, etc... abalam os fundamentos do Estado... A tarefa do Estado é defender a propriedade... Como se pode tirar um bem de seu legítimo proprietário, para dá-lo a um outro? O rei Agis foi executado pelos lacedemônios porque fez uma proposta deste gênero, proposta sem precedentes nos anais da História. E, desde então, inumeráveis perturbações intestinas irromperam na Lacedemônia. Em consequência, o Estado acabou dissolvendo-se, apesar de sua excelente Constituição. Com ele, toda a Grécia se desmoronou, infeccionada pela moléstia oriunda de Esparta, que logo se propagou por todo o país. Entre nós, os Gracos também não foram mortos em virtude desses conflitos e dessas partilhas de terras?”

Vê-se, pois, que Cícero considerava todas as reformas agrárias, inclusive a dos Gracos, como criminosas. Condenava, igualmente, quaisquer reformas radicais sobre o sistema de habitação:

“Poder-se-á morar numa casa que não nos pertence? Como? Eu a comprei, construí, com o meu dinheiro. E agora querem utilizar-se desta casa contra minha vontade? Não é isto tirar de cada um aquilo que lhe pertence, em benefício de outrem? Suprimir as dívidas? Mas não é o mesmo que um indivíduo, a quem eu tenha dado dinheiro de empréstimo, querer comprar minhas terras com o meu dinheiro?”

Num tal estado de espírito, é evidente que Cícero, depois de vencer Catilina, tornando-se cônsul, iniciou uma luta enérgica para a defesa da ordem e da propriedade. E pôs a serviço desta luta suas melhores armas: a eloquência e a demagogia de advogado. Chegou mesmo a dizer que o seu adversário era um homem sem a menor parcela de moralidade. Catilina passou à posteridade com o aspecto deformado que Cícero lhe emprestou. Salústio, que escreveu, vinte anos mais tarde, a História da Conjuração de Catilina, reproduziu apenas o retrato de Catilina traçado por Cícero. O mesmo acontece com escritores como Plutarco e Ápio, que escreveram a História de Roma em grego. Plutarco reproduz servilmente as narrativas mais terrificantes, feitas por Cícero sobre Catilina e seus partidários. De qualquer modo, o certo é que Catilina defendeu os deserdados e os oprimidos. Foi por isso venerado pelas massas populares. Os princípios que orientavam ação de seus correligionários podem ser julgados pela carta que Manlio dirigiu ao general romano Márcio:

“Nós não reclamamos poder nem riqueza, porque o poder e a riqueza são as causas de todas as guerras e todos os conflitos. Nós queremos simplesmente a liberdade”.

Catilina lutou duas vezes para conquistar o consulado. Desejava servir-se do poder legal contra o punhado de oligarcas que consideravam o Estado como sua propriedade exclusiva. Desejava utilizá-lo em beneficio do povo, da sua liberdade e do seu direito. Mas, por duas vezes, o partido da ordem venceu e Catilina foi derrotado. Nada conseguindo no terreno legal, Catilina começou a preparar a insurreição e a organizar as massas descontentes. Cícero, depois de vencer Catilina nas eleições consulares, criou um serviço de espionagem que trabalhou intensamente, sobretudo no momento em que Catilina partiu para a província afim de entrar em ligações com o exército romano. Os preparativos da insurreição foram descobertos em Roma no dia 5 de Dezembro de 63. Os cabeças, logo depois, foram executados. Catilina e seus partidários travaram uma encarniçada batalha com as forças de Cícero, numericamente bem superiores. Cícero venceu. Catilina e Manlio tombaram no campo de batalha. Mas a valentia e o denodo com que se bateram são atestados por Salústio:

"Só depois da batalha se verificou com que ardor se combatia do lado de Catilina. Cada homem defendia com o próprio corpo o lugar que havia ocupado durante o combate. Catilina estava entre os mortos. Sua fisionomia conservava ainda, depois da morte, a expressão de audácia, de coragem e de altivo desprezo, que o caracterizou sempre em vida”.

A República oligárquica e corrupta marchava rapidamente para a bancarrota. Dois anos após a morte de Catilina, Roma assistiu à formação do triunvirato militar de Pompeu, Crasso e Júlio César.

A monarquia militar batia às portas de Roma.

5. — Revolta de Escravos

A partir do fim da segunda guerra púnica, (201, A. C.) e da guerra contra a Macedônia e a Síria, o emprego de mão de obra escrava nas grandes propriedades desenvolveu-se rapidamente. A exploração do trabalho era realizada de forma capitalista. Além disso, os romanos desprezavam o trabalho e os trabalhadores. A situação dos escravos era, portanto, intolerável. Quase todos os trabalhos, tanto industriais como domésticos, eram feitos por escravos. Nas construções de vilas e palácios, utilizava-se grande quantidade de mão de obra escrava. Transportavam-se montanhas, abriam-se lagos ou alterava-se o curso dos rios, de acordo com os caprichos dos plutocratas.

As contínuas guerras, em todas as partes do mundo, forneciam centenas de milhares de prisioneiros, que eram submetidos ao jugo da escravidão. Contudo, as necessidades dos grandes proprietários romanos não estavam satisfeitas. Por esse motivo, caçavam-se homens para abastecer os mercados de escravos. Roma tiranizava três continentes. E a situação dos escravos tornava-se cada vez pior. Catão, o Antigo, vendia os seus escravos quando eles, já velhos, depois de esgotarem todas as forças a seu serviço, não podiam mais trabalhar. É de admirar que, nessas condições, os escravos resmungassem e estivessem sempre dispostos à revolta? É de estranhar que se aproveitassem de todas as oportunidades que se apresentavam para fugir? Os escravos eram marcados com ferro em brasa, como o gado, para poderem ser facilmente capturados e devolvidos aos donos, em caso de fuga. Nos trabalhos agrícolas, passavam o dia inteiro acorrentados. A fuga era castigada com a pena de morte por crucificação. Mas a pior degradação era a dos escravos que possuíam grande força física. Transformados em gladiadores, viam-se obrigados a fornecer à população o sangrento espetáculo das matanças humanas nas arenas de Roma. Os prisioneiros ou reféns cultos, como os gregos, ou hábeis em negócios, como os sírios, eram aproveitados nas funções de preceptores ou de administradores, e, muitas vezes, graças aos seus trabalhos, conquistavam a liberdade. Um desses escravos libertos foi o historiador grego Políbio, que escreveu a História de Roma, uma das melhores obras sobre o assunto. A nobreza e a plutocracia desprezavam os gregos e lamentavam a sua influência na cultura romana. Desta concentração de escravos, isto é, desta concentração de massas consideráveis de homens, que odiavam ferozmente os opressores, devia surgir logicamente, mais cedo ou mais tarde, conspirações e revoltas. Faltava apenas um chefe enérgico, capaz de desencadeá-las e dirigi-las. A primeira revolta de escravos estalou na Apúlia, no ano 187, A. C. Foi rapidamente esmagada. Os sete mil escravos que dela participaram morreram na cruz.

Incomparavelmente mais dolorosas e sangrentas foram as duas insurreições de escravos que irromperam na Sicília, a primeira de 134 a 132, a segunda de 104 a 101. A Sicília era uma ilha fértil que, por isso, se tornava um dos principais centros da exploração do trabalho escravo. As terras do Estado eram os lafifundia: imensos campos de trigo, plantações de oliveiras. prados sem fim, onde se criavam carneiros. Enormes massas de escravos cultivavam o solo, plantavam árvores frutíferas ou guardavam os rebanhos de carneiros. A Sicília era o celeiro de Roma. A insurreição que ai estalou no ano 134 teve o caráter de uma longa e terrível guerra. Os insurretos, chefiados pelo sírio Enus e pelo macedônio Cleon, formaram um exército de setenta mil homens armados. Quase toda a ilha caiu em seu poder. Durante vários anos repeliram com vantagem os ataques dos exércitos que Roma lhes enviou, sucessivamente, ao encontro. Afinal, foram vencidos pela fome e pela força das armas. Mais de vinte mil insurretos morreram na cruz. Isto acontece justamente quando Roma está agitada interiormente pelos Gracos. A segunda insurreição siciliana foi igualmente dirigida por um sírio, chamado Salvius, e por um macedônio, de nome Artenion. Os romanos, só depois que estes dois chefes morreram na luta, conseguiram dominar a insurreição.

O período da agitação dos Gracos foi, aliás, período de insurreições gerais.

Na Ásia Menor, os proprietários de escravos também se sublevaram contra o domínio de Roma. Em 133, morreu, em Pérgamo, o rei Atalos III, monarca fraco de espírito, que se havia deixado submeter ao jugo romano. Os romanos, ou pela violência, ou pela falsificação, conseguiram um testamento, no qual Atalos III declarava entregar toda a sua fortuna e o seu país a Roma. Logo depois, em Pérgamo, foi instaurada uma democracia política completa: todos os habitantes, nacionais e estrangeiros, ricos e pobres, tinham o direito de votar e de governar-se a si mesmos. Quando os romanos quiseram cumprir o testamento do rei de Pérgamo, isto é, quando tentaram apoderar-se do país, o povo sublevou-se, dirigido por Aristônico, irmão unilateral de Atalos, que habitava Leuca, pequeno porto situado entre Smirna e Pdoceu.

Várias cidades colocaram-se do lado de Aristônico. Mas outras, como Éfeso, aliaram se aos romanos. Nesta guerra, Aristônico, a princípio, sofreu algumas derrotas. Em seguida, porém, apresentando-se como libertador dos escravos, dirigiu-lhes um apelo chamando-os à luta contra os romanos. Os escravos atenderam e ingressaram em massa nas fileiras. Aristônico fundou, com eles, um Estado do Sol. Não se conhece ao certo a organização desse Estado, por falta absoluta de documentação histórica. Entretanto, é lícito supôr que se tratava de uma sociedade comunista, porque, na antiguidade, um Estado do Sol, significava um Estado Comunista. Os cidadãos do Estado do Sol, isto é, os escravos libertos, dirigidos por Aristônico, organizaram-se rapidamente e percorreram o país como vencedores. Receando perder sua fabulosa "herança", os romanos enviaram tropas para combatê-los. Como essa expedição militar era dirigida por um cônsul, tudo leva a crer que Aristônico teve de lutar contra um poderoso exército. Mas esta expedição romana foi parcialmente vencida. A guerra prolongou-se até o ano de 129, e terminou, afinal, pela derrota dos rebeldes de Pérgamo. Aristônico foi capturado, conduzido à Roma e executado.

Este número prodigioso de vítimas da insaciável cobiça dos romanos fez surgir um vingador terrível, Roma não conhecia até então um chefe de rebeldes da sua envergadura. A revolta de escravos dirigida por Espártaco, que se prolonga do ano 73 ao ano 71, A. C., foi a única diante da qual os senhores do mundo tremeram. Infligiu-lhes as maiores humilhações e as mais vergonhosas derrotas.

Os escravos da mais baixa categoria, os gladiadores, bateram-se contra os exércitos dos cônsules romanos, esmagando-os, depois de encarniçados combates.

A seguinte observação do historiador romano Florus, mostra como Roma foi humilhada, pela insurreição dos gladiadores:

"Seria, talvez, possível suportar a vergonha de combater escravos. Os escravos são homens impiedosamente expostos pelo destino a toda sorte de ultrajes. Mas são, em última análise, homens de uma segunda categoria, a quem poderíamos até conceder as vantagens da nossa liberdade. Mas, que nome poderei dar a essa guerra chefiada por Espártaco contra nós? Confesso que não sei. Porque, do lado dele, vemos escravos combatendo e gladiadores comandando. Os primeiros são de origem bem humilde. Os segundos estão condenados à pior de todas as condições sociais. Estes estranhos inimigos juntarão o ridículo ao desastre”.

Espártaco era um chefe e um organizador da envergadura de um Aníbal. Com tropas mais numerosas e mais bem armadas, teria certamente abalado o poderio de Roma. Plutarco afirma que Espártaco era

"extremamente forte e sério, de uma inteligência e clarividência bem raras, em indivíduos da sua condição, mais helênico do que bárbaro”.

Um tal juízo, na boca de um grego, é um grande elogio. Espártaco foi também admirado por homens como Lessing e Marx.

Pouco se sabe da sua juventude, e, em geral, da sua vida, até o ano 73, A. C. Era trácio, descendente de uma horda nômade. Foi trazido à Roma como prisioneiro de guerra e vendido como escravo. Conseguiu fugir. Tornou-se mercenário. Finalmente, foi vendido ao proprietário de uma escola de gladiadores de Cápua. Com ele, encontravam-se cerca de duzentos escravos, trácios e gauleses, na maioria, que conspiravam. Preparavam uma fuga para recuperar a liberdade na primeira ocasião. A conspiração foi descoberta. Mas Espártaco, com setenta companheiros, assim mesmo conseguiu fugir. No caminho, assaltaram um transporte carregado de armas. Com elas combateram os soldados enviados para os capturar. E venceram. A noticia desta primeira vitória de Espártaco espalhou-se por todo o continente. Grande número de novos combatentes incorporaram-se-lhe às fileiras. Dentro em pouco, Espártaco tinha a seu lado mais de duzentos homens, que praticaram enérgicas represálias contra os proprietários. Foram, a princípio, considerados apenas uma quadrilha de bandidos. Roma enviou contra eles o pretor Cláudio Pulcro à frente de um pequeno exército de três mil homens. Espártaco fortificou-se nas fraldas do Vesúvio, que nessa época se achava tranquilo, e destroçou completamente o inimigo. O acampamento, as bagagens e as armas do pretor Cláudio caíram-lhe nas mãos.

Daí por diante, Espártaco torna-se célebre. Sua reputação estende-se por toda a Itália. Declara-se abertamente inimigo de Roma. Dirige-se a todos os escravos e a todos os oprimidos, convidando-os a ingressar nas suas fileiras para participar da guerra da libertação. Os escravos e os indivíduos sem propriedades, os estrangeiros e os italianos despojados das terras, atenderam em massa ao apelo de Espártaco. Os agricultores deixaram os campos, os pastores os rebanhos, os escravos os senhores. Os prisioneiros fugiram calabouços. Os escravos romperam as cadeias. Todos se uniram a Espártaco, que transformou essa multidão heterogênea de homens que chegavam de todos os lados num exército capaz de portar-se convenientemente nos combates. Mas não conseguiu que os soldados respeitassem os não combatentes. Nas correrias através do país, as tropas de Espártaco saqueavam e incendiavam as casas, devastando os férteis campos. Por onda passavam, semeavam o terror.

Espártaco só conseguiu estabelecer uma certa unidade duradoura entre os diferentes elementos de seu exército — os trácios, os sírios, os gauleses, os germanos, os italianos, etc., depois de grandes esforços.

A notícia da derrota do pretor Cláudio Pulcro foi recebida em Roma com surpresa e cólera. Rapidamente, equipou-se um novo exército de oito a dez mil homens. Em tais expedições só se empregavam, habitualmente, as legiões romanas, que, aliás, nessa época, estavam muito ocupadas, combatendo na Espanha e no Baixo Danúbio, sob o comando de Pompeu e Luculo. O novo exército marchou contra os insurretos, comandado por dois pretores.

Espártaco foi prudente. Não atirou suas tropas numa batalha franca.

Mas seus lugares-tenentes, e, em particular, os gauleses, tomando-lhe a prudência por medo, atacaram os romanos com três mil homens e foram vencidos. Depois disto, todos os soldados reconheceram a sabedoria do chefe. Submeteram-se, então, às suas ordens e aprovaram a retirada, que se realizou sem uma só perda.

Espártaco, um pouco mais tarde, compensou esta derrota. Após algumas sortidas e escaramuças felizes, atacou o inimigo com o grosso das tropas, desbaratando-o. Toda a Baixa-Itália caiu nas mãos dos gladiadores. Agora, Espártaco desejava marchar rapidamente para o norte, atravessando a Itália e esmagando tudo o que se levantasse diante dos seus passos para impedir a obra libertadora, antes que os romanos tivessem tempo de refazer-se da surpresa e do susto e chamassem em seu auxílio os grandes capitães Pompeu e Luculo, com suas legiões. Este plano de Espártaco demonstra sua larga visão política.

Mas os lugares-tenentes e as tropas que já haviam provado o sangue romano, opuseram-se tenazmente ao plano do chefe. Em vão Espártaco procurou mostrar-lhes a formidável potência do Império, que fora surpreendido num determinado momento, mas que não poderia ser facilmente vencido desde que conseguisse reunir todas as suas forças. No exército de Espártaco, porém, as opiniões estavam divididas: os gauleses e os germanos, sob a direção de Crixio, não eram partidários da marcha sobre Roma; os trácios e os italianos adotavam o ponto de vista de Espártaco. Enquanto isso, em Roma faziam-se grandes preparativos e reuniam-se importantes forças para combater o exército dos gladiadores.

O desprezo inicial já se havia transformado pavor. Três exércitos partiram para combatê-los, dois sob o comando de dois cônsules, isto é, sob o comando dos mais altos funcionários do Estado, e o terceiro comandado por um pretor. Quando souberam desses preparativos, Espártaco e Crixio se reconciliaram. Não foi porém, uma verdadeira união. Continuaram a operar separadamente. Espártaco, à frente de quarenta mil homens e Crixio de trinta mil, invadiram a Apúlia. Rapidamente, Crixio caiu sobre o exército do pretor, que, diante do ataque dos gauleses e dos germanos, dispersou-se e fugiu. Mas, como Crixio não o perseguiu com energia suficiente, o exército pretoriano reagrupou-se no dia seguinte e atacou os gauleses que, colhidos de surpresa, foram vencidos.

O próprio Crixio morreu durante a luta. Cerca de dez mil homens conseguiram refugiar-se ao lado de Espártaco. O exército pretoriano vitorioso uniu-se, então, a um dos dois exércitos consulares, que, dividido em duas colunas, marchou ao encontro de Espártaco. Este não se fez esperar muito tempo. Uma parte de suas forças foi encarregada de impedir a aproximação do outro exército consular. Com as tropas restantes, Espártaco atacou o primeiro exército consular, obtendo estrondosa vitória. Sem perda de tempo, reuniu as suas forças e o exército que ficara em observação e atacou no mesmo dia o segundo exército consular, obtendo nova e fulminante vitória. Todas as bagagens do exército e grande número de prisioneiros lhe caíram nas mãos.

Imediatamente, Espártaco marchou para o norte, esmagando de passagem as tropas reorganizadas a toda pressa e enviadas ao seu encontro pelos pretores e pro-cônsules romanos. Atingiu, assim, Modena. Parecia invencível. Foi, então, que infligiu a Roma profunda humilhação. Organizou uma festa funerária em honra de Crixio e, nessa ocasião, fez com que trezentos prisioneiros romanos combatessem entre si até a morte, como gladiadores, diante de todo o seu exército reunido. Os escravos desprezados eram agora os espectadores. E os orgulhosos romanos estavam na arena, como gladiadores. Nenhuma das muitas humilhações que Roma sofreu na guerra dos gladiadores foi tão profundamente sentida como esta. A morte, como gladiadores, de trezentos guerreiros romanos foi considerada a mais ignominiosa ofensa sofrida pela majestade romana, o mais intolerável insulto a sua honra. Meissner diz a esse respeito:

"Os romanos achavam que julgar com a maior crueldade os príncipes e reis aprisionados, infligir-lhes a tortura da fome nos calabouços, esquartejá-los, fazê-los morrer no meio dos mais atrozes sofrimentos, tratar como gado vil a populações inteiras arrancadas de suas casas, tudo isto os romanos consideravam um direito imprescritível. Mas obrigar cidadãos romanos, prisioneiros, a se massacrarem mutuamente, era um crime até então desconhecido, um crime que nunca poderia passar pela cabeça de nenhum cidadão de Roma. E quem lhes fazia sofrer tamanha humilhação? Um homem cuja vida, meses antes, dependia do polegar dobrado ou distendido de alguns plebeus. Um homem que, ao lado de cinquenta ou sessenta de seus iguais, poderia ter sido estrangulado, se qualquer jovem patrício romano tivesse o capricho de realizar sacrifícios em honra da morte de qualquer das tias!”

Neste momento, o poder de Espártaco atinge o apogeu. Já pode, agora, pôr em prática o plano primitivo: libertar uma massa considerável de escravos, dissolver seu exército e viver, daí por diante, saboreando o prazer de ter humilhado Roma, a rainha do mundo. Mas Espártaco modificou bruscamente os seus planos. Não atravessou o Pó: voltando por onde viera, marchou para o sul. Na Itália, julgaram que ele se preparava para marchar sobre Roma. Para impedir-lhe o avanço, um novo exército pretoriano ofereceu-lhe combate. Depois de grande batalha, que teve por teatro a região do Piceno, Espártaco, por mais uma vez, saiu vitorioso. Roma estava apavorada. Mas Espártaco passou diante dela e seguiu com seus exércitos para a Baixa-Itália. Ocupou Túrio, que proclamou porto livre. Aí, elaborou leis humanas. Vários fatos indicam que Espártaco tencionava fundar na Baixa-Itália um Estado organizado de acordo com o modelo da Esparta de Licurgo. Espártaco suprimiu o uso do ouro e da prata. Reduziu o preço de todos os artigos de consumo. Introduziu os hábitos vida simples dos espartanos. Agrupou numa vasta associação os fugitivos dos diferentes países, que passaram a viver sob a sua proteção, educando-se na arte militar.

Ocupado com tantas tarefas de homem de Estado, Espártaco esqueceu-se de que o inimigo, com o tempo, se refazia do terror e preparava-se energicamente para a luta. Os romanos, agindo com muito mais prudência que dantes, organizaram um numeroso exército, disciplinado, e entregaram o comando da nova expedição ao pretor Crasso, homem hábil na arte militar. Pondo em prática todos os conhecimentos técnicos, táticos e estratégicos, nos quais eram em muito superiores aos adversários, os romanos atacaram Espártaco. Assim mesmo no início, foram várias vezes derrotados. A situação tornara-se completamente desfavorável para Crasso que já perdera qualquer probabilidade de vitória, quando, no campo de Espártaco, surgiram discórdias e lutas. Os gauleses, ardentes e indisciplinados, novamente se precipitaram, agindo independentemente, sob a direção de seus próprios chefes. Sofreram por isso sérias derrotas.

Espártaco venceu Crasso em vários combates. Mas acabou sendo vencido, no ano 71, diante da superioridade das forças de Roma. O próprio Espártaco tombou mortalmente ferido durante a batalha. Seis mil homens de seus exércitos foram aprisionados e crucificados por Crasso. Entretanto, no campo de Espártaco, havia três mil prisioneiros romanos com vida.

Esta guerra de gladiadores aterrorizou os romanos ainda durante várias décadas. As matronas romanos muitos anos depois, ainda intimidavam as crianças travessas com esta ameaça:

"Cuidado! Espártaco vem aí!”


Inclusão 17/05/2015