História do Socialismo e das Lutas Sociais
Segunda Parte: As Lutas Sociais na Idade Média

Max Beer


Capítulo IV - O Movimento Herético


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1. — Principais Tendências Intelectuais

Do século XI até meados do século XIV, a Europa ocidental e central sofre profunda transformação econômica. Multiplicam-se-lhe, então, extraordinariamente, as riquezas. Como ilhas que inopinadamente emergissem de imenso oceano, de todos os lados surgem as cidades. O comércio e a indústria entram num período de grande prosperidade. O mundo inteiro acompanhava com atenção apaixonada a luta entre o Império e o Papado. As cruzadas arremessavam ao Oriente consideráveis massas humanas. As grandes escolas teológicas, nas suas disputas religiosas, utilizam-se de toda a ciência do tempo. A escolástica entrega-se então a verdadeiras orgias. As artes plásticas expressam em monumentos imortais toda a angústia e agitação da época. Na poesia, surge A Divina Comédia, formidável epopeia dos esforços, das aspirações, dos erros e das promessas de todas as gerações desse período.

Nas cidades, a burguesia nascente institui novas bases sociais, e inicia a luta contra o domínio da Igreja, dos reis e dos senhores feudais. Em Paris, Abelardo submete os ensinamentos da fé ao exame da razão. Em Oxford, o franciscano Roger Bacon, uma das maiores capacidades da época, analisa os problemas das ciências naturais, liberta a razão de seu papel subalterno serva da fé — e a eleva à categoria de soberana no domínio das pesquisas científicas. Em Colônia, o monge dominicano Eckhart, o pai da mística alemã, prega falando da essência da divindade, sobre os problemas do Universo, sobre a fusão da alma com o seu princípio que penetra todas as coisas, sobre a pobreza apostólica, etc...

Em todos os centros da cultura europeia, congregam-se forças que abalam os alicerces do edifício dogmático construído por Paulo, Agostinho e Tomaz de Aquino. Os artesãos pobres (tecelões, sapateiros, pedreiros, carpinteiros, etc.), organizados em inumeráveis confrarias, ghildes, corporações, associações, desejam uma vida evangélica e uma religião mais interior. Todo o poder da fé que vibrava em cada um desses homens polarizava-se num só sentido: a conquista da liberdade social e a instauração do reinado de Deus. E foram queimados, aos milhares, nas fogueiras da Inquisição. Sobreviveram, porém, suas aspirações, elevando-se, com uma força tremenda, através do tempo e do espaço. Nenhuma forma de repressão conseguiu dominá-las.

Enfeixam-se neste período três séculos de beleza, três séculos de uma grandiosidade indiscutível, de esforços titânicos e de brilhantes manifestações do espírito humano, mas, também, três séculos de erros, de trágicos insucessos e de fraquezas lamentáveis. Enfeixam-se neste período três séculos que representam, apesar de tudo, uma etapa considerável no desenvolvimento histórico da Humanidade.

2. — Os Cátaros.

Pelos fins do século XII e no começo do século XIII, as cidades da Europa ocidental e central achavam- se fendidas por inúmeras seitas heréticas. A península balcânica, o norte e o centro da Itália, a França, a Espanha, toda a bacia do Reno, da Alsácia aos Países Baixos, grande parte da Alemanha central, de Colônia a Goslar, dividiam-se nos mais vários sentidos por movimentos heréticos em oposição à Igreja, os quais se esforçavam para construir uma nova vida religiosa baseada no Cristianismo primitivo. Os diferentes movimentos heréticos eram denominados "cátaros” (da palavra grega kataras, que significa "puro”.) Já nos princípios do século XI, muitas resoluções de sínodos eclesiásticos condenaram as ideias e as atividades das diversas seitas cataras: pífilos, tecelões, patarenos, pobres da Lombardia, paulinos, pobres de Lyon, valdeses, albigenses, bogomilos, búlgaros, arnoldistas, etc., etc. Mais tarde, surgiram ainda os beguardos e as beguinas, assim como os loardos, que, inicialmente, não foram hereges. Os distintos movimentos heréticos eram designados pela localidade em que surgiam ou onde estava a sede principal do movimento e consoante o seu caráter. Mas, de um modo geral, todos os movimentos eram chamados "cátaros”.

O começo do movimento cátaro remonta à segunda metade do século X. Surge pela primeira vez na Bulgária, onde se desenvolve como um movimento de oposição de camponeses, dirigido contra o feudalismo nascente. Daí propaga-se à Europa ocidental, onde adquire um caráter urbano, artesão. A partir do sínodo de Orleans (1022), no qual treze cátaros foram acusados de praticar o "amor livre”, e, dentre eles, onze condenados a morrer na fogueira, as acusações prosseguem até o fim da Idade Média. Em 1025, vários hereges foram submetidos ao julgamento do sínodo de Arras porque haviam declarado que a finalidade da religião é a prática de boas ações, o exercício do trabalho manual, o amor a seus correligionários. Na opinião desses hereges, os que viviam em harmonia com esses princípios não precisavam de Igrejas ou de sacramentos. O movimento ampliou-se logo, invadindo as regiões vizinhas, conquistando grande número de adeptos na Lombardia, no Languedoc, na Alsácia, em todo o vale do Reno, na Alemanha central. Em Goslar, em 1052, alguns hereges foram queimados por afirmar que ninguém tem o direito de matar um ser vivo. Estes hereges condenavam, portanto, as guerras e as matanças, bem como o sacrifício de qualquer animal. Em 1030, hereges de Montfort, localidade próxima de Turim, foram acusados por manifestarem-se contra os ritos religiosos, o casamento, o sacrifício de animais e a favor da comunidade de bens.

Como vimos, o movimento herético caracterizava-se como verdadeiramente internacional. E, entretanto, não possuía doutrina nem tática. No seio deste movimento distinguem-se duas tendências principais: 1ª a do dualismo gnóstico-maniqueista; 2.ª a do panteísmo amalriciano. A primeira, focaliza o completo antagonismo entre as potências soberanas: o Bem e o Mal, o Espírito e a Matéria. Seita severa, ascética, porque seus adeptos procuravam sobretudo vencer a Matéria. Os partidários da tendência panteísta, pelo contrário, consideravam-se parte integrante do Espírito Santo e eram contrários não só a todas as formas de ascetismo, como a qualquer modalidade de sujeição moral. Parece- mesmo que muitos adeptos do panteísmo se julgavam acima do Bem e do Mal. Mas a sua influência foi de caráter transitório. A maioria dos cátaros vivia simples e modestamente, e era adepta da concepção do mundo dos gnósticos e dos maniqueístas.

Mas a pobreza apostólica, a luta contra a degenerescência da Igreja e das ordens monásticas, a aspiração de uma vida em comum baseada na virtude, o repúdio dos sacramentos, dos dogmas e das cerimônias da Igreja oficial, são característicos que se encontram em todas as seitas cataras. Em algumas delas, os adeptos dividiam-se em duas categorias: a classe dos "perfeitos” e a classe dos "crentes”. Os primeiros obedeciam rigorosamente à ética social catara. Viviam na pobreza, no ascetismo ou em comunidade. Os "crentes”, embora separados da Igreja oficial, continuavam exercendo na vida civil as ocupações habituais, à espera do advento do grande dia, a partir do qual todos os cátaros poderiam começar a viver de acordo com os seus ideais.

A tática dos cátaros era, em geral, uma tática pacifista, porque não admitiam nenhuma forma de violência nem de opressão exterior. Para eles, as cruzadas eram pavorosas carnificinas. Por isso, só em recurso extremo, quando se viam ameaçados de extermínio, é que pegavam em armas para combater. Foi o que aconteceu com os valdenses, a mais forte seita catara. Todos os cátaros acreditavam na vitória final do Bem. E esperavam garantir a vitória do Bem, não pelas armas, mas pela força do Espírito, pelo amor aos homens e pela verdade.

3. — Os Cátaros e o Comunismo.

Os cátaros não deixaram documentos pelos quais possamos hoje estudar-lhes a doutrina e, sobretudo, as concepções sociais. Todos os documentos diretos, escritos pelos próprios cátaros, foram confiscados e destruídos pelas autoridades eclesiásticas e civis. Deste modo, só conhecemos as aspirações e a doutrina dos cátaros pelo que delas disseram os adversários, os padres, os dominicanos e os papas. E estes adversários, bem entendido, interessavam-se mais pela doutrina religiosa do que pelas concepções sociais. Realmente, na Idade Média, a religião era o principal, pelo menos nos lugares sob a jurisdição da Igreja. Aliás, os monges, na qualidade de partidários teóricos da pobreza apostólica, não consideravam os cátaros como hereges pelo fato de alguns deles viverem em comunidades. Eis porque as atas de acusação contra os cátaros, que dão informações tão pormenorizadas sobre as suas concepções e costumes religiosos, quase não falam nas suas concepções sociais.

De qualquer modo, o que hoje sabemos de verdadeiro, é que os cátaros consideravam a pobreza evangélica como o ideal da vida cristã, e a propriedade e o casamento como instituições nocivas, como um mal. Esta doutrina era, ao mesmo tempo, o resultado de suas concepções gnóstico-maniqueístas e de sua fidelidade ás tradições do Cristianismo primitivo.

Do ponto de vista social, o Sermão da Montanha era a fonte na qual os hereges adquiriam todos os ensinamentos sobre a vida cristã ideal. Tomavam a sério os mandamentos que recomendam amar aos inimigos, os que proíbem prestar juramentos, os que preceituam deverem os fiéis auxiliar os pobres e os doentes e os que recomendam a doçura, a humildade e a castidade. Eram, também, adversários de quaisquer formas de opressão e de regulamentação exterior. Para eles, os sacramentos, como aliás todos os dogmas e prescrições da Igreja, não eram meios de salvação, mas obstáculos. Em face das autoridades eclesiásticas ou leigas, os cátaros adotavam sempre uma atitude de oposição. Na copiosa literatura de combate às doutrinas heréticas há indicações que nos permitem fixar a posição dos cátaros frente ao comunismo. Tais indicações mostram que as ideias comunistas e as ideias derivadas da teoria do direito natural arraigavam-se profundamente entre eles. Um teólogo francês, Alanus, que viveu no século XII escreveu um livro contra os cátaros, em que diz:

"Os cátaros afirmam que o casamento é contrário às leis da natureza, as quais estabelecem que todas as coisas devem ser comuns”.

Everhard de Bethune, outro adversário dos cátaros, escreve:

"Vosso comunismo é puramente exterior. É um comunismo de palavras. Porque, na realidade, não há nenhuma igualdade entre vós: uns são ricos, outros pobres”.

Joaquim de Flora, também adversário dos cátaros, censurou-os porque prometiam aos povos todas as riquezas e todos os prazeres possíveis e imagináveis.

Convém lembrar que é igualmente por isso que os escritores burgueses contemporâneos censuram os socialistas e comunistas. Em Estrasburgo, no ano 1210, oitenta hereges da seita dos valdenses foram condenados pelo mesmo motivo. O artigo 15 da ata de acusação redigida contra eles reza:

"Afim de incentivar a adesão de novos partidários à sua seita, os hereges instituíram entre si a comunidade de bens”.

O processo a junta ainda que os hereges enviavam a Milão dinheiro destinado ao chefe supremo do movimento herético, Pickard, para reforçar o movimento e "matar todos os padres”. Finalmente, o artigo 16 acusa-os de praticar a união livre. Respondendo a essas acusações, Johanes afirmou que a sua seita só angariava dinheiro para auxiliar os membros necessitados. Ao mesmo tempo repeliu, como inteiramente infundada, a acusação de má vida que o tribunal lhe assacava.

Como se vê, os cátaros não eram acusados pelo fato de viverem em comunidade de bens. Aos olhos dos perseguidores, este fato, em si, não era um mal.

O mal estava no objetivo que desejavam atingir.

Finalmente, no processo instaurado contra os hereges de Montfort, a que acima nos referimos, os acusados reconheceram que praticavam a comunidade de bens. Vem a propósito lembrar que o dominicano Étienne de Bourbon censurava os hereges, e dizia:

"condenam todos que possuem bens terrestres”; "querem que tudo seja comum”.

Étienne, em tom zombeteiro, assinala que entre os hereges há embates e rivalidades, mas que se dão as mãos para lutar contra a Igreja e as ordens monásticas. Outro teólogo, que viveu em meados do século XIII, depõe a favor dos valdenses, e declara:

"Eles não praticam o comércio porque desejam evitar a mentira e a mistificação”.

E, mais adiante:

"Não querem acumular riquezas, e contentam-se apenas com o estritamente necessário”.

Bernardo de Clairvaux, um dos mais encarniçados adversários dos hereges, um santo do Catolicismo, contemporâneo e adversário de Abelardo e de Arnoldo de Bréscia, escreveu a respeito dos cátaros:

"Se interrogarmos um cátaro sobre a sua maneira de viver, verificaremos que ninguém é mais cristão que ele verdade, as palavras harmonizam-se com os seus atos Os cátaros não enganam nem oprimem a ninguém. São pálidos porque frequentemente jejuam por vontade própria. Vivem unicamente do trabalho de suas mãos. Os cátaros não comem o pão da ociosidade”.

O terceiro concilio de Latrão (1179) resolveu convidar alguns hereges valdenses para expor a sua doutrina. O prelado inglês Walter Map, depois de interrogá-los, escreveu no relatório:

"Eles não vivem em lugares fixos. Perambulam, descalços, ou calçando apenas sandálias de lã. Nada possuem de seu. Tudo o que conseguem, colocam à disposição da comunidade em que vivem”.

Estes relatórios — aliás o mesmo se depreende da posição intelectual dos cátaros — demonstram que o ideal desses hereges era a prática da vida existente nas comunidades cristãs primitivas. Repudiavam, por isso, a propriedade privada e a ordem social, que nela se baseava. Desejavam viver coletivamente, de modo que cada indivíduo tivesse possibilidade de vencer o espirito materialista e de desenvolver todas as virtudes cristãs. Não se pode afirmar que os cátaros instituíram grandes organizações comunistas. Não tiveram a possibilidade de fazê-lo, porque, quando começaram a tornar-se bastante fortes, quando surgiram condições que permitiam a realização prática das suas ideias, a Igreja e as autoridades civis iniciaram contra eles uma terrível campanha de extermínio. Milhares e milhares de cátaros morreram nas fogueiras ou foram passados a fio de espada. Milhares mais sucumbiram após lenta agonia, nas prisões da Inquisição. É comovente a maneira por que os cátaros de Colônia descrevem a própria situação perante o tribunal eclesiástico dessa cidade:

"Nós, pobres cristãos, não temos onde viver. Somos obrigados a fugir, de cidade em cidade, como ovelhas entre lobos. Somos perseguidos, tal como os apóstolos foram perseguidos em outros tempos”.

É evidente que nessas condições, os cátaros não podiam realizar praticamente o ideal de vida comunista. O célebre historiador da Igreja, Doellinger, que durante muitos anos estudou as seitas religiosas da Idade Média, escreve:

"Todas as doutrinas heréticas que surgiram na Idade Média possuíam um caráter revolucionário mais ou menos pronunciado. Se essas seitas houvessem conquistado o poder, teriam certamente provocado uma transformação total, na ordem existente. Teriam realizado uma modificação política e social completa. Estas seitas gnósticas: os cátaros e os albigenses, que deram causa à implacável legislação medieval contra a heresia e que só foram vencidos depois de sangrentas guerras, eram, na realidade, os socialistas e os comunistas dessa época. Atacavam o casamento, a família e a propriedade. Se tivessem vencido, certamente a sociedade sofreria uma transformação profunda, e voltaria inteiramente à barbárie e à indisciplina pagãs”.

É claro que Doellinger com essas palavras procura defender a autoridade da Igreja. Eis porque ataca as tendências heréticas da Idade Média. Mas ele, lamentavelmente, não compreendeu que, se as ideias contidas no Sermão da Montanha e no Evangelho, ideias que foram postas em prática pelas primeiras comunidades cristãs, tivessem sido publicadas ao pé da letra, o mundo feudal e o mundo burguês nunca teriam existido. No fundo, não é o monasterismo a confissão de que o mundo feudal ou burguês era incompatível com o ideal do Evangelho? Não é o que se verifica principalmente nos primeiros séculos do Cristianismo, quando aparecem as cenóbias? Mais tarde, é verdade, as cenóbias foram progressivamente adaptando-se ao espírito do século e tornando-se infiéis ao espírito do Evangelho. E justamente por isso é que, então, aparecem os cátaros, a ala esquerda franciscana, os valdenses, os albigenses e um grande número de outras seitas heréticas, defendendo os ideais traídos pela Igreja oficial. A opinião de Doellinger a esse respeito não vem senão confirmar o caráter comunista do movimento herético.

O monasterismo e o cenobismo foram uma reação contra a falência da Igreja oficial. O movimento herético, foi, por sua vez. uma reação contra a falência do monasterismo. O aparecimento das cenóbias é uma consequência da destruição do espírito do Cristianismo primitivo. Enquanto as cenóbias se conservaram fiéis ao espírito do Evangelho não houve movimento herético. Todos esses fenômenos não se sucederam simplesmente no tempo. Foram, reciprocamente, causa e efeito. É necessário, entretanto, não esquecer a poderosíssima influência que as forças econômicas exerceram em todo esse processo.

4. — Inquisição

A tolerância pode ser explicada por três diferentes motivos. Nasce, em primeiro lugar, da convicção de que a violência e a opressão nunca podem resolver os problemas de ordem intelectual e moral. Em segundo lugar, é a expressão do respeito pela personalidade humana. Finalmente, a tolerância é motivada ainda pela dúvida da possibilidade da existência de verdades eternas e cientificamente definitivas. Esta última causa só pode influir nos momentos em que os homens gozam da mais ampla liberdade intelectual. A segunda pressupõe a existência de um regime social individualista. Ora, um tal regime nunca existiu na Idade Média. Resta, portanto, a primeira causa, que realmente existia nos primeiros séculos do Cristianismo tomo uma das mais nobres conquistas da sociedade antiga, isto é, de uma sociedade em vias de desaparecimento.

As perturbações que surgem com a dissolução do mundo antigo, com as migrações, com o aparecimento tios germanos e do seu primitivo sentimento de solidariedade, assim como a necessidade geral do restabelecimento da civilização, esses fatores, ao lado do ínfimo nível intelectual dos generais e dos homens de Estado intrigantes que reorganizaram o Império romano, explicam o desaparecimento progressivo de toda e qualquer espécie de tolerância na Idade Média. Obediência e submissão, eis a exigência que desde então o Estado, a Igreja e as ordens monásticas impuseram a todos os seus membros. É isto, aliás, o que se observa em todos os períodos de transformação social. Quanto mais primitiva é uma organização, tanto mais forte é o espírito de solidariedade entre os seus membros. O sentimento de que todos são responsáveis pelas ações de cada um e de que cada um é responsável pelas ações de todos, leva os homens a vigiar cuidadosamente os pensamentos e os atos de seus companheiros e a imiscuir-se na sua vida privada. Como são partes integrantes do mesmo corpo, o Bem e o Mal do conjunto dependem, necessariamente, dos atos de cada um.

E, quando as questões terrenas estão intimamente unidas às questões divinas, como acontece na teocracia, a vida intelectual fica igualmente submetida ao controle da coletividade. O poder central sente-se na obrigação de defender o seu Deus contra todo insulto e de conseguir, pela violência, a salvação dos membros da coletividade. Deste modo, a única fonte de tolerância existente nos primeiros tempos do Cristianismo, também desaparece durante a Idade Média.

Já falamos atrás, da primeira execução de hereges, em Treves, no ano 385. Todo o mundo cristão da época protestou indignado contra a primeira matança. Então, o espírito do evangelismo ainda vivia. Tanto assim que, nessa época e até o princípio do século XI, a heresia só se manifestava de maneira excepcional. Realmente, nesse período, os claustros e os mosteiros absorviam todos os elementos descontentes com a Igreja oficial, isolando-os completamente do mundo exterior. Mas, quando a religião, por sua vez, começou a degenerar, transformando-se em simples instrumento da Igreja, quando a vida cultural se intensificou, o movimento herético tornou-se um movimento de massa, que ameaçava demolir a estrutura social e eclesiástica da Idade Média. Em 1048, o bispo Vazo, de Liége, ainda protestava contra as execuções de hereges e escrevia a seu colega, o bispo de Chalons:

"Deus não quer a morte do pecador!... Basta de fogueiras! Não façamos morrer por nenhum meio material aqueles que o Criador e Redentor conserva vivos... Os bispos foram ungidos pelo Senhor para serem portadores da vida e não emissários da morte”.

Igualmente, o biógrafo de Vazo, Anselmo de Liége, condenava a execução dos hereges de Goslar, em 1052, por ordem do imperador Henrique III:

"Como se pode justificar o enforcamento dos hereges de Goslar, que, depois de excomungados, foram mortos unicamente porque pensavam que é um crime sacrificar aves inocentes?”

Mas, à medida que a Igreja se adaptou ao espírito do século, à medida que se enriqueceu e que, paralelamente, o movimento herético se foi desenvolvendo, os papas começaram a fazer cada vez mais pressão sobre os imperadores, os reis, os príncipes, reclamando o extermínio dos hereges a ferro e fogo. No século XIII, a Inquisição já estava armada, dos pés à cabeça.

Os Dominicanos, sinceros mas fanáticos, os grandes príncipes da Igreja, os papas corrompidos até à medula dos ossos, os nobres que desejavam obter remissão de pecados, bandos de aventureiros ávidos de riquezas atiraram-se, com sanha selvagem, com ferocidade incrível, contra as seitas heréticas. Os hereges, que não morreram nas chamas ou nas prisões, foram exterminados depois de verdadeiras batalhas.

Cabe a Tomaz de Aquino a glória de anunciar a doutrina oficial da Igreja sobre a heresia:

"A heresia — diz ele — é um pecado tão grande que só poderá ser castigado com a exclusão da Igreja e do mundo. Um herege que persiste no erro não poderá mais ser salvo pela Igreja. A Igreja deve desprezá-lo e proteger os seus fiéis, excluindo-o de seu seio. A tarefa de eliminá-lo deste mundo e de castigá-lo com a pena de morte cabe à justiça secular”.

O "doutor angélico”, como chamavam a Tomaz de Aquino, apoiava com a sua autoridade a política que a Inquisição vinha aplicando desde tempos atrás.

Os bens de um herege condenado eram confiscados pelas autoridades civis e eclesiásticas em proveito próprio. Uma acusação de heresia significava sentença de morte. Os tribunais eclesiásticos não davam aos acusados a menor possibilidade de defesa.

Mas os autos de fé, por si mesmos, não eram arma capaz de eliminar a heresia. Para liquidá-la, organizaram-se grandes expedições armadas contra as regiões dominadas pelos hereges: as cruzadas. Os cruzados prendiam populações inteiras, e submetiam os prisioneiros às mais terríveis torturas, afim de aniquilá-los física e moralmente.

Os hereges eram perseguidos até depois de mortos. A Inquisição arrancava-lhes os restos mortais das sepulturas para queimá-los em praça pública. Os bens dos herdeiros eram também confiscados.

Em represália, os hereges de vez em quando assassinavam os mais ferozes inquisidores, que se celebrizavam pelas requintadas crueldades. A Igreja imediatamente santificava os inquisidores assassinados e prosseguia, com redobrada violência, na sua campanha de extermínio. As mais rigorosas leis contra a heresia foram decretadas pelo imperador Frederico II.

Frederico II dizia-se admirador da filosofia árabe, que negava a criação do mundo e a imortalidade da alma. Considerava, porém, a heresia como um perigoso movimento subversivo. Por isso, combateu-a encarniçadamente, apesar de utilizá-la, por vezes, em proveito de sua luta contra o papa.

No dia em que foi coroado em Roma, no ano 1220, o imperador Frederico assinou um edito. Nesse edito declarava que todos os hereges eram infames e estavam fora da lei. Dizia ainda que os bens dos hereges deviam ser confiscados.

Mais tarde (1231), ele reconheceu oficialmente a Inquisição, e autorizou os Dominicanos como inquisidores oficiais em todo o território do Império, colocando-os sob sua proteção. Frederico fazia assim uma valiosa concessão à Igreja. Os hereges eram geralmente condenados a morrer nas chamas da fogueira. No melhor dos casos, sofriam apenas a amputação da língua. Os que na hora da morte renegavam suas convicções eram perdoados: sua pena transformava-se em prisão perpétua a pão e água.

Em 1232, Frederico fez novas concessões ao Papa Proclamou que todos os hereges deviam ser tratados como rebeldes. Declarou ainda que estava disposto a defender a Igreja e o Império da heresia. Mas Frederico nada lucrou com tantas concessões, porque foi, afinal, vencido pelo papa.

A França e a Espanha foram os dois países em que a Inquisição desenvolveu melhor a sua terrível atividade. Na Alemanha, sua ação foi efêmera. A oposição refreou-a. Na Boêmia e na Inglaterra, não conseguiu sequer erguer a cabeça.

Mas em todos os países o movimento herético sofreu enormes prejuízos com a repressão da Igreja. Estudaremos mais detalhadamente a repressão do movimento herético no capítulo seguinte.

Vamos pisar agora um terreno sagrado. Vamos palmilhar o solo ensaguentado pelo martírio de milhares de hereges. Nenhuma Igreja pode exibir um martirológio tão grande e tão comovente. O martírio dos hereges foi maior que o de qualquer religião, ou de qualquer Igreja.

Condenados pelos papas, pelos imperadores e reis como inimigos da Igreja e do Estado, perseguidos como incrédulos pelos bispos e monges, os hereges foram desprezados e odiados por todas as autoridades eclesiásticas e leigas.

Eu não digo a ninguém, a não ser aos sábios
Porque a turba rirá:

Admiro os homens
Que aspiram à fogueira.
Enquanto não disseres
As palavras: Abjuro e Renego!
Serás neste mundo,
Um hóspede indesejável.

Goethe.


Inclusão 25/08/2015