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Na Inglaterra, na Boêmia e na Alemanha, a transição da Idade Média aos Tempos Modernos fez-se por uma longa série de lutas religiosas, sociais e nacionais. As lutas religiosas conduziram à Reforma. As lutas sociais manifestaram-se sob a forma de revoltas camponesas. Finalmente, as lutas nacionais determinaram as guerras exteriores, como as que surgiram entre a Inglaterra e a França, ou entre a Boêmia e a Alemanha.
Os principais chefes desses movimentos foram João Wiclef, na Inglaterra, João Huss, na Boêmia, e Martin Lutero, na Alemanha. Wiclef foi o único comunista e o mais sábio dos três. Conhecia a fundo a ciência da sua época: a escolástica e a teologia.
Huss era um homem enérgico, mas de pequeno valor intelectual. Suas ações foram inspiradas por Wiclef. Na verdade, preocupava-se mais com a realização de reformas religiosas e politicas do que com a instauração do comunismo. Finalmente, Lutero foi um homem de uma força de vontade extraordinária, um lutador nato e, acima de tudo, um homem de erande integridade moral. Era o tipo do nacionalista alemão: uma curiosa mistura de sensualismo e de puritanismo, uma energia fogosa, temperada pelo freio com o conservadorismo, um espírito extremamente consciencioso e ao mesmo tempo cerceado por fases de impotência intelectual, que o levavam a aferrar-se desesperadamente a qualquer forma de autoridade. Em Lutero já não se encontra o menor vestígio do pensamento social da Idade Média.
Todos esses três chefes foram, a contragosto, obrigados a participar das lutas sociais da época: Wiclef, da insurreição camponesa de 1831, na Inglaterra; Huss, das guerras “hussitas” (1419-1436); e Lutero, da guerra dos camponeses alemães (1524-1525).
As notáveis semelhanças que existem entre estes diferentes movimentos, a fusão íntima das lutas religiosas nacionais e sociais nesses três países, demonstram, de forma brilhante, que o desenvolvimento histórico está sujeito a leis rigorosas. Do ponto de vista cronológico, coube à Inglaterra encabeçar o movimento. Pode dizer-se que Wiclef foi o verdadeiro pioneiro dos Tempos Modernos, nos domínios religioso e nacional. Mas, do ponto de vista da violência, da amplidão e da intensidade de luta, a Boêmia e a Alemanha superaram de muito a Inglaterra.
No início do século XIII, novos fatores econômicos e sociais começaram a manifestar-se na Inglaterra. Grande número de cidades, nessa época haviam-se celebrizado pela atividade industrial e comercial. Eram mercados que absorviam os produtos alimentícios dos campos, e, ao mesmo tempo, forneciam a lá consumida pela indústria têxtil de Flandres. As atividades têxteis faziam grandes progressos. Esse desenvolvimento industrial não podia deixar de repercutir na estrutura da sociedade. À medida que os produtos agrícolas se valorizavam, os senhores feudais, leigos e eclesiásticos foram dilatando os seus domínios mediante a absorção das terras comunais, que eles reivindicavam, na sua quase totalidade, como propriedade exclusiva. Desse modo, as comunidades rurais perderam, progressivamente, a antiga situação. Os camponeses, que dantes possuíam terras, foram também, pouco a pouco, reduzidos à situação de servos. Tais atentados contra os direitos dos camponeses verificaram-se precisamente numa época em que a sua situação econômica começava a melhorar. Na qualidade de membros da comunidade rural, os camponeses podiam permutar seus cereais e legumes por dinheiro ou produtos industriais. Como, além disso, eram trabalhadores agrícolas, percebiam salários elevados. Esse antagonismo agravou-se por ocasião da peste negra, epidemia surgida no ano de 1319 e que dizimou grande parte da população laboriosa, determinando grande procura de mão de obra. Para impedir que os operários se aproveitassem da situação para reclamar maiores salários, o governo, isto é, o Parlamento, dominado pela nobreza, criou, em 1350, uma lei de exceção, que reduzia os salários ao nível dos que eram pagos no ano de 1348. Esta ofensiva contra os salários provocou enorme descontentamento na população laboriosa, descontentamento esse que logo adquiriu feição revolucionária. A esquerda franciscana e os lolardos, que haviam emigrado de Flandres para a Inglaterra, fugindo às perseguições da Igreja, juntamente com alguns padres hereges, tomaram o partido dos camponeses e começaram a difundir, entre eles, os ensinamentos do cristianismo primitivo e do direito natural.
Havia no século XIV, entre a população camponesa e, em geral, entre a população laboriosa da Inglaterra, grande número de oradores e agitadores. Foi nessa época que surgiram as primeiras traduções da Bíblia em inglês. Os escritores já não escreviam em normando nem em latim. Preferiam o idioma do povo. Os mais notáveis escritores desse período foram o poeta Geoffroy Chaucer e William Langland, autor da obra Pedro, o camponês. O primeiro era poeta das classes dominantes, o segundo foi o poeta dos camponeses livres. Anticomunistas ambos, escreviam, apesar de suas ideias, na língua do povo. Os discursos e os escritos dos agitadores hereges chegaram até os nossos dias de forma bastante fragmentária, com exceção apenas das obras latinas de Wiclef. A Universidade de Oxford era o centro da agitação e irradiava as doutrinas hereges para o campo. Tudo indica que a base de toda a agitação era a ética social do cristianismo primitivo e dos doutores da Igreja. Confirmam esta hipótese as seguintes palavras de Langland: “Eles pregam as ideias de Platão, e, citando Sêneca, dizem que tudo o que existe sob o céu deve ser comum”. E então Langland pergunta: “Se, de acordo com as Santas Escrituras, tudo deve ser comum, como Deus poderia nos seus Dez Mandamentos condenar o roubo? Para que exista roubo é indispensável a existência da propriedade privada”. A propriedade privada demonstra que a agitação comunista era feita com grande intensidade.
Mas incontestavelmente, foram as obras de João Wiclef, que exerceram a mais forte influência, não só na Inglaterra, como em outros países.
João Wiclef ocupa posição de destaque entre os homens que prepararam intelectualmente a transição da Idade Media para os Tempos Modernos. Foi o verdadeiro pioneiro da Reforma e da resistência nacional contra a dominação da Igreja. Não obstante, no terreno econômico, as concepções de Wiclef estavam ainda saturadas de ideias medievais. Além disso, era partidário da economia coletiva e combatia a economia privada. Wiclef estudou teologia em Oxford e assimilou toda a ciência escolástica e teológica de seu tempo. Foi grandemente influenciado pelas obras de Ocam. O que Ocam havia feito na cena histórica da Europa, Wiclef tentou fazer, na Inglaterra, durante o período que vai de 1360 a 1380, isto é, procurou libertar a Inglaterra do domínio papal, justificar a existência do reinado inglês e pugnar pela economia coletiva, destruindo a economia privada. Propunha-se, portanto, resolver um duplo problema: 1.° libertar o Estado inglês do domínio papal e trabalhar para a independência do poder central na Inglaterra; 2.° defender as comunidades rurais das ambições da nobreza e da Igreja.
Se ele não tivesse ao mesmo tempo defendido os direitos das comunidades rurais, isto é, se não tivesse feito uma defesa teórica do comunismo, a propaganda em favor da pobreza evangélica (ou seja, em favor da pobreza da Igreja), seria verdadeiramente, uma propaganda pela confiscação dos bens do clero pelo poder temporal (reis, nobreza, cidades). É claro, pois, que sem defender as comunidades rurais, Wiclef poderia conquistar as simpatias dessas forças. Realmente, o poder temporal adotou a tese segundo a qual a Igreja não devia possuir nenhum bem material, num outro sentido, isto é, que a Igreja devia abrir mão de todos os seus domínios em favor da Corôa e da nobreza. Foi lambem nesse sentido que muitos reformadores, como João Huss, agitaram esta reivindicação, sem defender, nem o comunismo, nem os direitos dos camponeses. Outros, como Lutero, manifestaram-se abertamente contra o comunismo e os direitos da população rural – e por isso contaram com o apoio da nobreza, evidentemente interessada na confiscação dos bens do clero, em proveito próprio. Mas Wiclef portou-se de maneira diferente. Justamente por isso, logo que os nobres lhe perceberam as intenções, retiraram o apoio que, inicialmente, lhe haviam dado. A reforma religiosa e econômica preconizada por Wiclef levou-o a lutar, a princípio, unicamente contra a Igreja; em seguida teve de lutar também contra a nobreza. Durante a luta contra a Igreja, Wiclef tornou-se herege, e começou a atacar os sacramentos, a confissão, as indulgências e o culto dos santos. Algumas de suas teses foram condenadas pelo papa Gregório XI (1377) e declaradas heréticas pelo sínodo de Lião (1382). Mas a defesa que fez do comunismo não saiu do campo teórico, e sua luta em favor dos direitos comunais, em última análise, não foi mais que a defesa do reinado social. Depois da insurreição camponesa de 1381, Wiclef tornou-se mais prudente. Já não afirmava, como dantes, de maneira categórica, suas convicções comunistas. Seus discípulos seguiram o exemplo do mestre e procuraram, dai por diante, não mais atacar a propriedade privada dos leigos. Sua propaganda limitava-se a pedir ao papa e à Igreja que renunciassem a todos os bens materiais e a afirmar que os padres e os monges deviam obter seus meios de subsistência organizando atividades econômicas coletivas.
Wiclef lutou com grandes dificuldades quando procurou a solução teórica das tarefas que se propunha realizar. A teologia da Idade Média estava sob a influência das tradições do direito natural e das concepções de Gregório de Naziancio, segundo as quais o reinado se originava do pecado. Os teólogos do fim da Idade Média trabalharam para libertar o reinado e o Estado deste estigma infamante. Já vimos como Tomaz de Aquino, assim como Marcílio de Pádua e Guilherme de Ocam, se esforçaram nesse sentido.(1) A explicação de Tomaz de Aquino tem caráter conservador. A de Marcílio de Pádua e de Guilherme de Ocam têm feição mais democrática. Na opinião do primeiro, o Estado adapta-se ao caráter atual do homem e ao desenvolvimento geral da sociedade. Segundo os dois outros, o reinado só é legítimo quando tem como erigem a vontade do povo. Wiclef não adotava nenhuma dessas duas teses. Para ele, o reinado era sempre o pecado; e só deixaria de ser pecado depois que realizasse uma grande atividade reformadora e comunista, depois que protegesse as comunidades rurais de qualquer ataque estranho. Em outras palavras: Wiclef admitia que o reinado só poderia ser legítimo quando se aliasse ao comunismo. Para Wiclef, o comunismo era a melhor base para a edificação da potência nacional. Por esse motivo, ele defendia as ideias comunistas de Platão dos ataques de Aristóteles: “O comunismo — dizia ele — não se opõe ao cristianismo. Os apóstolos possuíam tudo em comum. O comunismo é superior à economia privada, do mesmo modo que as verdades gerais são superiores às particulares. Aristóteles, indiscutivelmente, combateu a doutrina comunista de Platão. Mas as suas objeções não são justas, a não ser no que se refere à comunidade das mulheres. Em vez de enfraquecer o Estado, o comunismo, pelo contrário, o reforça, porque, quanto mais os cidadãos estiverem interessados na propriedade, tanto mais poderão interessar-se pelo bem-estar geral. A comunidade de interesses cria a união; e a união faz a força”.
Mas, segundo Wiclef, o comunismo só poderia ser instaurado por medidas de ordem moral, através da educação do povo, e nunca pela revolta ou pela violência.
A existência da propriedade privada, na opinião de Wiclef, seria justificável unicamente pela virtude, pelo estado de graça. Ele pretendia que, enquanto se encontrasse em estado de pecado, nenhum mortal poderia ter direito à propriedade.
Esta doutrina, que se harmoniza com a de Santo Agostinho, é muito mais revolucionária do que pode parecer, à primeira vista. Os agitadores camponeses podiam facilmente concluir que os nobres, injustos e pecadores, não tinham direito de possuir bens. Consequentemente, a expropriação violenta dos bens da nobreza podia ser considerada uma prática virtuosa.
Aliás, esta foi a tese sustentada por João Bali, o tribuno da insurreição camponesa da Inglaterra.
Segundo uma tradição, que tem apenas vislumbres de verdade, João Bali foi discípulo de Wiclef. Os escritores e historiadores contemporâneos limitam-se a dizer que Bali foi um pregador célebre, que misturou alhos com bugalhos. Os temas de que habitualmente se servia nos discursos eram a liberdade, a igualdade a democracia e o comunismo.
Voltando-se para o passado, para o estado primitivo da Humanidade, Bali indagava:
Se lavrava Adão e Eva fiava,
Onde, pois, o gentil-homem?
Bali preconizava também o estado de natureza, em harmonia com os ensinamentos do direito natural. “A princípio — dizia ele — todos Os homens eram iguais. As relações entre senhores e servos foram criadas pela vontade de opressão de homens imorais, que assim contrariaram a vontade de Deus. Já é tempo de libertar a Humanidade do jugo da escravidão. Se as massas populares o desejassem, poderiam libertar-se imediatamente. A vida social pode ser comparada a um campo. O agricultor inteligente arranca as ervas daninhas para que as boas sementes possam germinar. Ora, os senhores, os advogados, os juízes são precisamente as ervas daninhas que sugam a seiva de todas as forças sociais. Eis porque é necessário limpar o solo social. Só assim os agricultores poderão colher os frutos de seus campos e conquistar a felicidade. Nesse dia, todos os homens serão livres”.
Um cronista francês da época, Froissart, cortesão e adversário dos camponeses que, ao descrever a História da “Jacquerie” a caluniou e a deturpou, fornece-nos num dos seus escritos algumas passagens de um discurso de João Bali. Eis o que nos diz Froissart a esse respeito (é preciso não esquecer que Froissart viveu muito tempo na Inglaterra e que, portanto, pôde observar a vontade as condições de vida dos ingleses).
Meus caros amigos! As coisas na Inglaterra vão de mal a pior! E nada poderá melhorar enquanto não se instituir a comunidade dos bens, enquanto não abolirmos todas as diferenças entre amos e servos; enquanto não reinar a igualdade entre os homens! Em nome de que direito, aqueles que denominamos senhores nos oprimem? Que fizeram para isso? Por que nos subjugam? Não somos, todos nós, descendentes de um mesmo pai e de uma mesma mãe? Não descendemos, todos nós, de Adão e Eva? Como podem eles dizer ou provar que têm mais direitos do que nós? Não somos nós que produzimos tudo o que eles consomem? Eles se vestem luxuosamente. Usam mantos de seda, de púrpura ou de peles. E nossas roupas são de linho grosseiro! Eles têm vinho, iguarias e pão em abundância. Nós somos obrigados a nos contentar com o pão negro, feito com farinha da pior qualidade, palha e água! Eles vivem em palácios e castelos. Nós vivemos expostos à chuva e ao vento, em nossas miseráveis cabanas! Mas é o nosso trabalho que lhes proporciona todo esse luxo e toda essa fartura! E eles nos consideram servos e nos castigam quando não lhes obedecemos às ordens!”
Sob a influência das condições da época, parece também que Bali sentia a ausência de um forte poder central, capaz de defender os camponeses. Eduardo III, depois de reinar durante cinquenta anos, faleceu em 1377. Sucedeu-o no trono seu neto, Ricardo III, uma criança de 11 anos. E João Bali dizia: “Desgraça do do país cujo rei é um menino!” É preciso, entretanto, lembrar que foi Eduardo III quem aprovou o Statute of Labourers.
Wiclef e Bali procediam diferentemente. O primeiro nunca participou das agitações populares. Bali, pelo contrário, vivia entre o povo. Em virtude de sua qualidade de eclesiástico, Bali estava sujeito à autoridade do arcebispo que, certa vez, o condenou a vários meses de prisão por haver proferido “discursos subversivos”. Froissart, que considerava os lolardos como inspiradores do movimento camponês, julgava que João Bali era também lolardo.
Em Junho de 1381, estalou a primeira insurreição camponesa. Erraríamos se afirmássemos que esta insurreição visava fins puramente comunistas. Os camponeses exigiam apenas que se protegessem as comunidades dos abusos da nobreza e do clero. Reivindicavam ainda o direito de dispor livremente de sua força de trabalho e a supressão dos tributos feudais, que obrigavam os camponeses a trabalhar gratuitamente para os senhores.
Aconteceu o mesmo que nas insurreições camponesas de Flandres e da França: grande parte da população pobre das cidades do sul da Inglaterra simpatizava com os camponeses, ao passo que os patrícios apoiavam a nobreza. Os operários e pequenos artesãos de Londres, além de odiarem os ricos, lutavam também contra os negociantes e banqueiros estrangeiros, cuja concorrência em muito os prejudicava, e contra os proprietários das tecelagens flamengas de Londres, que não aceitavam os operários ingleses nem nas suas oficinas nem nas suas corporações. Entretanto, as crônicas da época afirmam que os tecelões flamengos participaram da insurreição, ao lado dos camponeses.
A insurreição começou na segunda semana do ano de 1381 e logo se estendeu por toda a região oriental do sul da Inglaterra. Inicialmente, os insurretos obtiveram algumas vitórias. A luta parecia possuir elementos de organização. Tanto assim que, quase simultaneamente, os camponeses dos condados do norte e do sul de Londres se sublevaram e marcharam contra a capital, sob o comando de seus chefes Wat Tyler, Jack Straw, João Ball, João Littlewood e Richard Wallingford. No caminho, receberam auxílios das camadas mais pobres da população das cidades. Em Londres, os companheiros chacinaram os mestres, pilharam as casas dos banqueiros e ocuparam as portas da cidade para facilitar a entrada dos camponeses que se aproximavam. No dia 11 de Junho, os insurretos chegaram a Blackheath, a sudeste de Londres, onde João Bali pregou, preparando as massas para a insurreição. Aí foram obrigados a dispensar parte das tropas, porque não possuíam provisões em quantidade suficiente para sustentá-las. No dia seguinte, os insurretos entraram nos subúrbios da capital. Não dispondo de forças para combater os aldeãos, o jovem rei, seus conselheiros, alguns nobres e um arcebispo refugiaram-se na fortaleza. Os insurretos ocuparam a cidade e castigaram cruelmente os seus opressores: cortesãos, ministros, advogados, funcionários, banqueiros, etc.. Penetraram no palácio do arquiduque de Lancaster, onde encontraram uma quantidade considerável de vasos de ouro e de prata, joias e objetos preciosos de toda a espécie. Os cronistas da época afirmam, unanimemente, que todo ato de pilhagem individual era punido com a pena de morte. Um dos insurretos, surpreendido em flagrante, quando roubava, foi queimado vivo. “Somos defensores da verdade e da justiça — diziam os revoltosos — e não ladrões”.
Dirigiram-se em seguida à ghilde dos advogados de Londres e queimaram todos os protocolos, atas, processos e documentos da justiça. Destruíram também o palácio do ministro das Finanças, em Clerkenwell, e as casas de alguns outros altos dignatários. Vários funcionários foram executados. No dia 14 de Junho, uma delegação comunicou ao rei que os rebeldes desejavam avistar-se pessoalmente com ele em Mile End, subúrbio situado no extremo leste de Londres. O rei resolveu comparecer à entrevista. Mas, quando as portas da fortaleza se abriram para lhe dar passagem, os camponeses precipitaram-se no interior, esbordoaram os conselheiros do rei e executaram o arcebispo Sudbury e o chanceler do tesouro.
Trêmulo de medo, o jovem rei dirigiu-se para Mile End. Mas nem todos os chefes camponeses compareceram à reunião. Já vimos que o movimento não obedecia a uma direção única. Na reunião, os delegados apresentaram ao rei uma série de reivindicações do povo. Exigiram a liberdade e a igualdade de direitos para os camponeses, assim como a anistia completa para todos os atos praticados pelos rebeldes, durante a insurreição. O rei consultou os conselheiros e compreendeu que a medida mais inteligente era concordar. Assinou, então, um documento no qual prometia atender a todas as reivindicações dos camponeses. Estabeleceu, apenas, esta condição: que os insurretos abandonassem a cidade e voltassem às suas casas para cuidar da próxima colheita, deixando em Londres somente uma pequena tropa armada, que permaneceria na cidade até o momento da aplicação definitiva do decreto real libertador dos camponeses. A delegação aceitou. E os camponeses da região situada ao norte de Londres, representantes do maior contingente rebelde, acreditaram cegamente no documento assinado pelo rei e voltaram às suas casas.
Esse documento dizia o seguinte:
“Eu, abaixo assinado, Ricardo, rei da Inglaterra e da França, e soberano da Irlanda, pela graça de Deus, saúdo a todos os meus fiéis súditos que tiverem conhecimento deste decreto, e ordeno o seguinte: por iniciativa própria, declaramos livres os servos e outras pessoas independentes. Declaramos que eles ficam libertos de todas as formas de servidão e perdoamos os crimes e delitos que, porventura, tenham cometido. A todos em geral, e a cada um em particular, prometemos conceder nossa real clemência”.
Logo que os camponeses saíram da cidade, os nobres se reanimaram e resolveram solucionar o conflito pela violência. O jovem rei perdeu o medo. Os conselheiros deram-lhe as instruções necessárias para que pudesse satisfatoriamente desempenhar o papel que lhe estava reservado nos próximos acontecimentos. A cena final foi no dia 17 de Junho de 1381, em Smithfield Market. Num dado momento, chegou Wat Tyler à frente de um pequeno grupo de camponeses armados. Chegou depois o rei, com seus cavaleiros e alguns patrícios.
O chefe camponês aproximou-se e pediu ao rei que pusesse em execução o decreto que concedia a liberdade aos camponeses. Nesse momento, um cavaleiro da comitiva real assestou-lhe formidável golpe, derrubando-o da sela. Outros precipitaram-se sobre ele e o mataram. Os camponeses quiseram socorrer o chefe. Mas, novamente, se deixaram iludir. Foram vítimas de sua supersticiosa confiança na palavra real. O rei declarou-lhes que ele próprio era o chefe dos camponeses e confirmou solenemente as liberdades prometidas. Satisfeitos com a declaração, os camponeses resolveram não lutar.
Daí por diante, tudo correu às mil maravilhas.! Aproveitando-se da passividade da massa camponesa iludida com promessas, os senhores suprimiram as liberdades concedidas aos camponeses. Ao mesmo tempo, prenderam e condenaram à morte os dirigentes da rebelião.
Jack Straw, João Bali e os outros chefes foram enforcados, ou decapitados.
Todos os que haviam participado da insurreição sofreram cruéis castigos.
E o rei declarou aos camponeses: “Vocês eram servos e servos continuarão! Não nas mesmas condições anteriores, mas em outras piores!”
Todavia, as necessidades do desenvolvimento econômico impediram que as medidas repressivas fossem aplicadas com a crueza reclamada pelos senhores e nobres. A destruição das comunidades rurais prosseguiu. Mas a servidão pouco a pouco desapareceu, porque, à medida que o comércio e a indústria se desenvolviam, os camponeses afluíam para as cidades.
Nos lugares em que os senhores quiseram aplicar as leis de exceção com maior rigor, ou mais severamente perseguir os camponeses, estes novamente se sublevaram. Foi isto, por exemplo, o que aconteceu em Kent, no sudoeste de Londres. No ano de 1450, os camponeses, chefiados por Jack Cade, marcharam contra a capital e exerceram sangrentas represálias contra os conselheiros do rei. O mesmo aconteceu em Cornwalls, em 1500 e em outras localidades da Inglaterra, no ano de 1519. Mas nenhuma destas revoltas teve a amplidão ou a violência da insurreição de 1381.
William Shakespeare, o maior dramaturgo da Inglaterra e dos Tempos Modernos, era adversário dos democratas e inimigo encarniçado do comunismo. Suas peças refletem o estado de espírito das classes dominantes, para as quais Shakespeare escrevia.
Na trilogia intitulada Henrique VI (segunda parte), ele expõe o ponto de vista das classes dominantes acerca das insurreições camponesas. Esta obra tem para nós grande importância, porque nos apresenta Jack Cade, o chefe da insurreição camponesa de 1450, como comunista e ditador. Quem conhece o caráter de Shakespeare, compreenderá facilmente por que motivo ele procura ridicularizar Jack Cade, ao mesmo tempo que combate “o povo ignorante e grosseiro materialista”. De Aristófanes até os dias presentes, os dramaturgos sempre foram os porta-vozes do modo de ver das classes dominantes, para as quais escreviam. Shakespeare, apesar da sua incontestável genialidade, não fez exceção à regra.
Vimos atrás que ao rei guerreiro, Eduardo III, sucedeu no trono o seu neto Ricardo II, em cujo reinado estalou a primeira insurreição camponesa. Seus sucessores, foram Henrique IV (1399-1413), da casa de Lancastre, e Henrique V (1413-1422), que continuou com êxito a política antifrancesa, marítima e comercial de Eduardo III, venceu os franceses em Azincourt e conquistou a Normandia. Depois de sua morte, subiu ao trono Henrique VI (1422-1461), em cujo reinado rebentou a segunda insurreição camponesa (1450). Foi, também, no reinado de Henrique VI que a Inglaterra perdeu as conquistas francesas de seu predecessor. Henrique VI conservou-se no trono até o começo da guerra das Duas Rosas, que durou de 1459 a 1485 e terminou pela destruição da velha nobreza, dando origem, nos postos dirigentes, a uma nova nobreza aburguesada, que se dedicava ao comércio e à indústria.
A trilogia Henrique VI descreve os principais acontecimentos do reinado deste monarca. Na segunda parte da peça, Shakespeare trata da segunda sublevação camponesa e das primeiras peripécias do conflito entre a casa de York e a casa de Lancastre. Na segunda cena do segundo ato, aparecem as queixas formuladas pelo povo trabalhador, que tudo espera de Jack Cade. Os rebeldes Jorge e João Bewis falam da insurreição que se planeja, e Jorge diz: “Jack Cade, o tecelão, propõe-se instaurar o regime da comunidade dos bens”. João lhe responde: “Isto é necessário porque a sociedade atual já está completamente gasta e imprestável. Não há mais alegria na Inglaterra desde que o povo caiu sob o jugo dos nobres”. Jorge: “De fato, vivemos numa época miserável! Entre os artesãos, a virtude não é mais respeitada”. Em seguida, Shakespeare faz entrar em cena os artesãos dos mais diferentes ofícios. Aparece depois Cade, que rapidamente expõe o seu programa; “Tudo o que existe no reino deve ser posto, à disposição da comunidade!” O autor, depois, ridiculariza as reivindicações materiais dos rebeldes: pão e cerveja a baixos preços, amor livre, etc... — e coloca na boca de Cade a seguinte expressão: “E vós, amigos do povo, segui-me! Iremos agora lutar pela liberdade! Mostraremos que somos homens!
“Não haverá mais nem lordes, nem nobres. Todos serão iguais! Dirigi-vos unicamente àqueles que andam esfarrapados, àqueles cujos calçados estão rotos. Esses formarão no nosso valoroso exército, no exército dos trabalhadores! Esses, se puderem, juntar-se-ão a nós!” Marten, um dos companheiros de Cade, então responde: “Estão já todos em ordem, prontos a formar a nosso lado!” Cade: “Nós só nos poremos em ordem quando tivermos saído de toda a ordem que atualmente existe!” Marten aconselha Cade a abrir as portas das prisões e libertar todos os presos.
Pouco antes do combate, o autor apresenta-nos Cade tomando o poder e tornando-se ditador. Marten dirige-se a Cade e pede-lhe que instaure a ditadura. Cade responde:
“Sim. Já pensei nisso. Vou fazê-lo. Mandai queimar todos os documentos do reinado. No futuro, minha palavra será o Parlamento da Inglaterra.
E tudo será comum”.
A insurreição é esmagada e Jack Cade morre, quando procura fugir. A causa da derrota, mais uma vez, é a infantil confiança que os camponeses voltam a depositar na palavra real. Talvez nesse sentido também influísse o patriotismo.
Shakespeare apresenta lorde Clifford ao dirigir-se aos camponeses. Lorde Clifford procura afastá-los de Cade, apelando para os seus sentimentos patrióticos:
É Cade filho do rei Henrique V,
ao lado de quem prometestes combater?
Poderá ele vos levar à França
e fazer de vós conde ou marquês?
Vergonha sobre nós! Enquanto disputastes,
os franceses, que vós mesmos já vencestes,
atravessam o mar e nos derrotam:
Deixai antes morrerem dez mil Cades
que entregar-nos ao jugo dos franceses.
Para França! Para França! Ganhai o tempo que perdestes.
O patriotismo e a glória militar como armas contra a Revolução! Cade queixa-se amargamente, porque o nome de Henrique V exerce profunda influência sobre os camponeses, os quais, ao ouvi-lo, abandonam a luta revolucionária.
Assim, vê-se que, no começo dos Tempos Modernos, o comunismo e a Revolução já estão em conflito com o patriotismo e a glória militar. Shakespeare, na sua peça intitulada Tempestade, também procura ridicularizar o Estado do futuro. Mas toda a sua sátira, nessa peça, consiste unicamente numa confusão do comunismo com a preguiça. Dá-nos a impressão de ouvir um anticomunista contemporâneo. É nessa peça que Shakespeare faz Gonzalo, o velho conselheiro do rei de Nápoles, pronunciar esta sátira contra o Estado do futuro: “A sociedade que eu desejo criar será precisamente o contrário da sociedade atual. Não permitirei que ninguém pratique nenhuma forma de comércio, que ninguém use qualquer título. Farei desaparecer toda a ciência. Não haverá mais, nem riqueza e pobreza, nem contratos e heranças, nem agricultura; não se cultivará a vinha. Ninguém consumirá trigo, vinho, ou óleo. Nenhum metal será empregado na vida dos homens. Ninguém terá necessidade de trabalhar. Todos serão inocentes e puros. A natureza prodigalizará seus frutos a todos os homens, sem que ninguém trabalhe. Na sociedade, que vou organizar, não haverá nem traição, nem mistificação, nem armas, porque não haverá necessidade delas”. Os senhores, a quem Gonzalo dirigiu este discurso, naturalmente lhe responderam com zombarias.
Tudo isto mostra a que ponto o comunismo preocupa os espíritos nessa época. A Utopia de Tomaz Moreja fora traduzida em inglês, alemão e francês. Era impossível vencer as ideias comunistas pelo ridículo. Examinaremos mais de perto esta questão num dos capítulos seguintes.
Notas de rodapé:
(1) Na 2.a parte desta obra: As lutas sociais na idade Media. (retornar ao texto)