História do Socialismo e das Lutas Sociais
Terceira Parte: As Lutas Sociais nos Tempos Modernos
(Do século XIV ao XVIII e de 1740 a 1850)

Max Beer


Capítulo VI - A Era das Utopias


1. O Renascimento e o Humanismo

capa

As Utopias foram escritas no período compreendido entre o começo do século XVI e os fins do século; XVIII. Esse período histórico notabilizou-se por um considerável desenvolvimento das ciências naturais, pelas grandes descobertas e o desenvolvimento das “luzes” pelo domínio da razão e da moral. O espírito dogmático foi sendo progressivamente substituído pelo livre exame e a teologia e a escolástica cederam lugar às ciências naturais. A mecânica elevou-se ao primeiro plano, passando toda a ciência matemática à categoria de sua auxiliar. Os sábios consideravam o universo um maravilhoso mecanismo, movendo-se de acordo com as leis fixas, como uma máquina universal, um relógio de precisão. Evidentemente, a simples existência desse mecanismo era, para eles, prova indiscutível da existência de um construtor, de um Deus. Diante das suas obras, a razão humana não poderia mais que se inclinar respeitosa e admirada, sem conseguir desvendar seus mistérios... A religião perdeu seu caráter positivo, confessional. Já não era cristã, judaica ou pagã. Tornou-se apenas deísta (da palavra latina deus).

Esta nova concepção do mundo foi condicionada, no final da Idade Média, aproximadamente, pela vitória do nominalismo sobre o realismo. A luta entre essas duas correntes filosóficas era um reflexo da luta entre a economia feudal e a citadina, isto é, entre a antiga e a nova ordem de coisas medieval. Tratava-se, em última análise, de saber que posição deveria adotar a razão. Os realistas, que sustentavam a existência das ideias independentes do mundo material, eram pela subordinação da razão à religião. Segundo eles, a finalidade da razão não deveria ser a possibilidade do livre exame, mas apenas a criação de uma base racional para as revelações da fé. Deus e o mundo, a fé e o pensamento, deviam ser unidos. Os nominalistas, pelo contrário, declaravam que a razão nada tinha que ver com as coisas divinas. Deus, a alma, assim como todas as verdades metafísicas, seriam o objeto da fé. Pertenceriam ao domínio do suprarracional. A razão não poderia, pois, nem as defender, nem as negar.

Seria, portanto, inútil encarregá-la da solução de questões que jamais poderia resolver. A razão seria apenas um instrumento de uso diário, para o mundo temporal. Neste, poderia agir com a maior liberdade, sem ficar subordinada à autoridade da Igreja.

Os realistas só conheciam uma espécie de verdade. O que é verdadeiro na religião, diziam eles, deve ser igualmente verdadeiro na vida temporal. Os nominalistas, pelo contrário, sustentavam a existência de duas diferentes categorias de verdades: as verdades da fé e as da razão. Aparentemente, os primeiros estavam em nível inferior, porque admitiam uma só categoria de verdades; mas é preciso não esquecer que estas se deveriam subordinar à religião. Quando um sábio chegava a conclusões opostas às verdades da fé, tinha de escolher entre abjurar os seus “erros” ou ser submetido ao julgamento de um tribunal da Inquisição. Por isso, muitos sábios preferiam conservar em segredo o resultado de suas pesquisas, para só as divulgar depois da morte. Foi isso que se deu, por exemplo, com Abelardo, Copérnico, Galileu, Giordano Bruno, etc. Os nominalistas, que reconheciam duas espécies de verdades, eram cristãos mais piedosos e mais fiéis às suas ideias religiosas. Não ousavam submetê-las à crítica da razão. No mais, eles deixavam que a razão livremente se movesse no domínio das coisas temporais. A descoberta de Copérnico, provando que a terra se move ao redor do sol, não poderia, de leve sequer, abalar a fé de um nominalista nas Santas Escrituras. Esta corrente escolástica teve importantes consequências. A razão, libertada do papel de serva da fé, pôde trabalhar livremente para o desenvolvimento das ciências naturais e da nova ordem econômica. A pouco e pouco, no entanto, ela saiu do círculo onde a haviam encerrado os nominalistas e, por sua vez, fez a religião comparecer perante seu tribunal. O racionalismo fez progressos. Os milagres que a razão conseguiu realizar no domínio das ciências naturais reforçaram-lhe consideravelmente o prestígio, e os homens se voltaram cada vez mais para ela, a fim de utilizar seus serviços. Chegaram a atribuir-lhe poder criador. A razão, atuando sobre o cérebro dos grandes legisladores e dos grandes filósofos, poderia criar comunidades perfeitas, povos felizes e virtuosos. Não seria, pois, natural prestar-lhe culto, como, aliás, se fez durante a Revolução Francesa?

O nominalismo venceu com o Renascimento, com a ressurreição das artes e da literatura antigas. Entretanto, o Renascimento era muito mais que isso. Fez reaparecer o espírito europeu-ocidental, às expensas do espírito medieval-oriental com seu inteiro desprezo pela razão e pelas belezas materiais da existência. A Europa preparou-se para retomar o fio de seu desenvolvimento no ponto em que o mundo antigo o havia deixado, e, daí por diante, passou a considerar a Idade Média como a época do obscurantismo e da barbaria. O europeu sacudiu violentamente o jugo da consciência medieval. Foi isso que se verificou particularmente com os políticos e artistas italianos. Nos países germânicos, pelo contrário, cujas ligações com o Império romano eram muito debeis, a Reforma entravou, ou mesmo impediu completamente, os progressos do Renascimento. Na Itália, a vida e a economia citadina eram mais antigas e mais intensas, e as suas ligações com o mundo antigo mais estreitas. Por isso, na Itália, a crise moral de que falamos, a propósito da Reforma, foi apenas perceptível. Os papas eram antes soberanos temporais, que pastores espirituais. O papa Alexandre VI (1492-1502), e seus filhos César e Lucrécia Bórgia, viviam de maneira bem material, ou até imoral. César Bórgia, que reinava na Romênia, era o modelo do “Príncipe” tal como o descreveu Maquiável, isto é, como um homem de Estado, absolutamente liberto de todos os preconceitos e escrúpulos morais. Savonarola, o dominicano fanático, que se ergueu contra esse estado de coisas, foi executado em 1498. Alexandre VI e seus sucessores, os papas Júlio II (1503-1513), Leão X, (1513-1521) e Clemente VII (1523-1534), favoreceram o renascimento da arte e da literatura antigas e protegeram os artistas célebres da sua época: Leonardo da Vinci, Raphael, Corregio, Miguel-Angelo.

Os humanistas achavam-se muito mais próximos dos nominalistas que dos chefes do Renascimento. Conhecendo a língua e a literatura da Grécia, conhecendo Platão e a filosofia estoica, eles puderam ter, teoricamente, uma visão mais ampla e mais livre da religião e da moral. Mas, apesar disso, permaneceram, conscientemente ou não, partidários das duas categorias de verdade: as verdades da fé e as da razão. Admiravam Platão, e mais ainda a Jesus Cristo. Rendiam homenagem, simultaneamente, à filosofia e aos dogmas cristãos. Respeitavam simultaneamente a autoridade do papa e a da razão. Eram homens de transição, que pertenciam ao passado e ao futuro. Dentre eles, um dos mais notáveis foi Tomaz More, que escreveu uma Utopia comunista baseada na razão e na moral, e morreu no cadafalso como católico fiel ao papa. O grande utopista italiano, o dominicano Tomaz Campanela, também rendia culto à razão e às ciências naturais, mas nem por isso deixava de respeitar a autoridade do papa e dos santíssimos sacramentos...

2. O materialismo e o direito natural

O desenvolvimento intelectual dos indivíduos — e dos povos — está sujeito a uma lei comum: quando os indivíduos ou os povos se desprendem da religião positiva, adotam uma moral racionalista. Foi o que se deu na Grécia. Quando a mitologia grega perdeu sua força, toda a filosofia se tornou moral e racionalista. A obra de Sócrates (469-399, A. C.) é uma prova desse fato. Entre os romanos, a partir do último século A. C., a filosofia estoica desenvolve-se em virtude de circunstâncias idênticas. O mesmo acontece quando a filosofia escolástica começa a ruir. O prestígio da moral baseada na razão aumentou e essa moral tornou-se, nos séculos XVII e XVIII, o tema principal das especulações filosóficas. Chegou-se a justificar o cristianismo dizendo que sua moral correspondia exatamente à moral ditada pela razão. Pensava-se que as verdades morais eram a tal ponto sólidas, que não necessitavam de nenhum apoio religioso, ou extrarracional. A moral poderia ser ministrada do mesmo modo que se ensina a escrever e a contar...

Seria então possível formar homens morais da mesma forma que se formam médicos, engenheiros, etc... Quando se admite o supremo poder da razão, quando se estabelece, consequentemente, que o pensamento determina a vontade, esta conclusão se impõe. No século XVIII, a tese de que tudo é possível obter pela educação era tida como axioma, como verdade incontestável. Entendia-se por educação não somente o que se aprende na escola, mas também o que o homem pode assimilar na vida quotidiana, na sociedade e no Estado, por meio das boas instituições, das boas leis e dos bons costumes, que devem existir numa sociedade comunista.

Quando a filosofia, sob a influência do desenvolvimento das ciências naturais, se tornou sensual-materialista, isto é, quando a filosofia começou a afirmar que na nossa razão não existem ideias inatas e que a razão humana nada mais é que uma “tábua rasa” que recebe, por intermédio dos sentidos, as impressões exteriores, e as transformam em ideias; quando a filosofia, consequentemente, começou a afirmar que as ideias não são mais que um reflexo do mundo exterior; os homens, naturalmente, chegaram à conclusão de que, se quisermos obter ideias e ações justas, será necessário transformar o mundo exterior, a sociedade, o Estado, numa palavra — toda a ordem humana — de acordo com os ditames da razão. Logicamente, se quiséssemos ter bons cidadãos, isto é, cidadãos capazes de colocar o interesse geral acima dos interesses particulares, teríamos de começar pela transformação comunista da sociedade, a fim de edificá-la sobre a base do interesse geral. Esta transformação do mundo exterior repercutirá inevitavelmente no mundo interior dos indivíduos, no mundo das ideias, isto é, no cérebro humano. Nosso pensamento e nossa ação se tornarão inevitavelmente comunistas, porque a causa determina o efeito correspondente.

A ação dessa nova ordem de ideias veio juntar-se o reforçamento das ideias sobre o direito natural provocado pelas experiências realizadas em países recém-descobertos (América). De fato, ali foram encontrados povos que viviam sem Estado e sem propriedade privada. Fácil foi chegar à conclusão de que, quanto mais os homens estão próximos da natureza, menos conhecem a propriedade privada e a sujeição ao Estado. As “utopias” desde então começaram a ser transportadas para países longínquos, desconhecidos, cuja organização social era descrita como o reinado de todas as virtudes. Este fenômeno foi observado também depois da campanha de Alexandre o Grande, na Ásia. A maior parte dos juristas e filósofos modernos estão absolutamente convencidos de que, primitivamente, no Estado de natureza, os homens viviam em regimes mais ou menos próximos do comunismo. Eis porque concluem que o regime comunista está em concordância com a natureza. Os exemplos em apoio do que afirmamos dariam para encher um livro inteiro. Como não queremos alongar esse assunto vamos citar apenas a opinião do mais notável jurista dos tempos modernos: Hugo Grotius (1538-1645).

No livro intitulado Do Direito de Guerra e de Paz (1625), Grotius escreve o seguinte:

“Logo depois da criação do mundo, Deus submeteu todas as coisas de ordem inferior à vontade humana. Eis porque, primitivamente, cada indivíduo podia apoderar-se daquilo que quisesse, e consumir tudo o que desejasse. Mas tal estado de coisas não podia durar muito tempo. Enquanto os homens viveram com simplicidade, ou estiveram unidos por grande amor recíproco, este estado de coisas existiu. Alguns povos da América viveram desta forma durante muitos séculos, em virtude da simplicidade dos seus costumes. Os eseus, e, mais tarde, os primeiros cristãos de Jerusalém, viveram também num regime semelhante, porque os homens estavam unidos por uma poderosa amizade recíproca”.

Se o comunismo corresponde ao estado de natureza, é por consequência natural, ou seja, está em harmonia com a natureza humana e é racional. O problema então reduz-se à construção de uma sociedade sobre bases naturais e racionais. Os males existentes numa sociedade baseada na propriedade privada são, pois, inevitáveis. É a consequência da ordem econômica anti- natural e irracional vigente.

Se compararmos esse comunismo com o da Idade Média, verificaremos que ele já se apresenta com um ponto de vista novo. Na Idade Média, a luta se travava no domínio moral e religioso: era a luta entre o Bem e o Mal. Agora, ela se trava no terreno intelectual: é a luta entre a verdade e o erro, entre a ciência e a ignorância. O antagonismo moral desempenha aqui papel meramente secundário, porque é a simples consequência do antagonismo intelectual. Porque da verdade decorre o Bem e o Mal do erro.


Inclusão: