História do Socialismo e das Lutas Sociais
Terceira Parte: As Lutas Sociais nos Tempos Modernos
(Do século XIV ao XVIII e de 1740 a 1850)

Max Beer


Capítulo VIII - A utopia italiana


1. Tomaz Campanela

capa

A sorte da Itália, desde a queda do Império romano até ao último terço do século XIV, foi ainda mais triste que a da Alemanha. Os tiranos estrangeiros e nacionais, as ambições do Papado, o particularismo e as querelas das cidades alimentavam no país um grave estado de dispersão política. As obras imorredouras que então surgiram, no domínio da religião ou da literatura, da arte e da ciência, foram vítimas do furor germânico, da política expansionista francesa, da perfídia espanhola e, mais tarde, da estupidez austríaca. Muitas vezes o povo fomentou insurreições locais conspirou – mas tudo em vão.

Foi numa dessas fracassadas conspirações, tendentes a libertar a pátria do jugo espanhol, que esteve implicado o grande utopista italiano, Tomaz Campanela.

Campanela foi um dos mais notáveis homens da sua época. Nasceu em 1568, na Calábria, de uma família pobre. Desde cedo, manifestou extraordinária vocação para a filosofia. Lia assiduamente as obras de Alberto o Grande e de Tomaz de Aquino, mas combatia Aristóteles. Voltou-se, afinal, como todos os humanistas, para Platão. Por mais de uma vez defendeu, a República de Platão dos ataques de Aristóteles. Sua sede de saber era tão grande que chegou a estudar kabbala judaica e as ciências naturais. Mesmo depois de entrar para a ordem dos Dominicanos não perdeu a paixão pela política. Campanela é uma prova viva do duplo caráter do Humanismo: fidelidade aos dogmas religiosos e ao modo de pensar racionalista; respeito pela autoridade papal e espírito de livre exame; vastos conhecimentos científicos a par de superstições astronômicas e mágicas de toda espécie; isolamento monacal e senso político apurado.

A principal questão política debatida na sua pequena pátria era o problema da extinção do domínio espanhol e a da fundação de um Estado independente. Campanela foi a alma da conspiração antiespanhola. A revolta devia rebentar em 1599. Mas a conjuração foi denunciada e Campanela preso, em 1600. Durante os 27 anos de cárcere, Campanela sofreu terríveis torturas. Depois, por intervenção do papa, recebeu melhor tratamento. Pôde então dedicar-se assiduamente ao estudo na sua cela. Foi lá que escreveu sua Utopia intitulada O Estado do Sol. Esta obra, juntamente com outros manuscritos, foi por Campanela confiada a um alemão, que os publicou em Franofort-sobre-o-Meno de 1620 a 1623. Quando recuperou a liberdade, foi para a França. Aí o rei Luís XIII e seus ministros dispensaram-lhe as maiores atenções. Campanela passou os últimos anos de sua vida, calma e tranquilamente, num mosteiro dos Dominicanos de Paris, onde morreu em 1639.

2. O Estado do Sol

Platão, quando escreveu a República e as Leis, portou-se ao mesmo tempo como patriota, aristocrata e filósofo. Sua finalidade principal era formar um excelente grupo de dirigentes, um rei filósofo e bons funcionários. A Utopia de Tomaz More é a obra de um escritor católico e democrata. O Estudo do Sol de Campanela — livro que o próprio autor confessa ser inspirado na Utopia de Tomaz More — é a obra de um pensador abstrato, de um monge e de um racionalista. Campanela chamava seu Estado do Sol “ideia de uma comunidade filosófica”. Severidade monacal no governo do Estado; conselho de filósofos com métodos absolutistas de governo; organização racional da vida social – eis as característicos principais da obra de Campanela. O mal essencial da sociedade foi por More apontado como sendo o regime baseado na propriedade privada. Campanela também frisa vigorosamente as consequências nefastas da propriedade particular e do individualismo. Mas, para ele, na má educação e no mau elemento humano que dela resultam é que está o maior mal. Eis porque Campanela propõe reformar o mundo pela formação de homens bons e virtuosos e através de excelente educação física e intelectual Campanela, além de inspirar-se em Platão e Tomaz More, moldou também suas ideias por Licurgo.

O Estado do Sol é uma conversação entre o grão-mestre da ordem dos Hospitaleiros e um grande viajante genovês que, nas suas excursões ao redor do mundo, teve a oportunidade de visitar o Estado do Sol e de estudar-lhe as instituições.

Numa ilha do Oceano Pacífico, conta o viajante genovês, estão quatro cidades-Estados. A organização de três dessas cidades-Estados é idêntica à de qualquer Estado europeu. A quarta cidade-Estado é o Estado do Sol. Para se defender dos ataques das três primeiras, nessa cidade foram construídas sete fortes muralhas. Os solenses (habitantes do Estado do Sol) vivem em comum. Tudo o que existe pertence à comunidade. As próprias mulheres não são propriedade privada deste ou daquele homem. O casamento é uma questão do Estado e não uma questão privada. Na opinião de Campanela, a propriedade privada é uma consequência da vida familiar individual. Fora do Estado do Sol, quando um homem deseja possuir determinada mulher, faz com que ela venha para a sua companhia e trata com carinho especial os filhos que ela lhe dá, proporcionando-lhes as maiores honras e riquezas. Isto demonstra que foi o amor paterno individual que levou os homens a se apropriarem de certos bens e de estabelecerem o direito de herança, a fim de favorecerem seus filhos. Eis porque desapareceu o comunismo primitivo. Foi deste modo que nasceu o egoismo e todos os males que hoje afligem tão dolorosamente a nossa sociedade.

À frente da comunidade solense está o filósofo-sacerdote que os habitantes do Estado do Sol denominam Sol. É ele o magistrado supremo. Sob seu controle estão todas as questões temporais e espirituais da nação. Este magistrado-sacerdote é assistido por três ministros: o da Força, o da Sabedoria e o do Amor. O primeiro é o ministro da Guerra. O segundo ocupa-se de todos os assuntos que se relacionam com a arte e a ciência, com a instrução pública e a educação. O terceiro cuida da formação de tipos de homens sadios, vigorosos e notáveis, física e intelectualmente. A educação do homem pela escola e o exemplo não dariam os resultados desejados se, previamente, não se procurassem criar aptidões naturais determinadas. Eis porque a seleção, a escolha dos pares para o coito é objeto de uma atenção particular por parte dos dirigentes. Porque, sem se preparar um bom material humano, a educação e a instrução não poderão alcançar os resultados almejados. Até hoje, os homens estiveram completamente cegos pelos preconceitos. Por isso, não podiam compreender tão simples verdade. Embora soubessem que é possível obter belas e fortes espécies de animais e plantas mediante cruzamentos apropriados, não compreendiam a necessidade de sujeitar a espécie humana às mesmas regras biológicas. Essa incompreensão fazia com que a multiplicação da espécie humana se fizesse ao sabor do acaso ou de acordo apenas com inclinações ou interesses egoístas. A seleção e a educação dos homens são consideradas questões de primordial importância no Estado do Sol. A vida sexual não é lá considerada simples prazer voluptuoso, e sim uma nobre missão destinada a produzir indivíduos fisicamente robustos para o benefício da comunidade. Para isso, o ministro do Amor estabelece dispositivos especiais: só os homens física e intelectualmente robustos têm o direito de se multiplicar. Os homens inferiores só podem ter relações sexuais com mulheres estéreis ou já fecundadas. As mulheres só podem copular a partir dos 19 anos, e os homens a partir dos 21. A abstinência sexual até a idade de 27 anos é glorificada com cânticos e premiada com honrarias especiais. Os homens que, antes de chegar a idade legal, sentirem desejo sexual irresistível, devem confessá-lo às matronas, aos funcionários e aos médicos encarregados dessa questão, que julgarão da conveniência de lhe ser proporcionado o coito com uma mulher estéril ou grávida. Os esposos não poderão ter relações sexuais mais de duas vezes por semana. Antes do coito, marido e mulher devem banhar-se e pedir a Deus que lhes dê filhos belos e robustos. As relações sexuais terão lugar em quartos especiais, ornados com belas estátuas de homens célebres, que as mulheres deverão contemplar durante o ato. A hora do coito será previamente fixada pelo médico e o astrólogo. Até esse momento, os esposos deverão ficar deitados em quartos separados. À hora fixada, uma matrona abrirá a porta que separa os dois quartos contíguos e o homem penetrará no quarto da mulher que lhe foi reservada. Os casamentos serão celebrados pelos dirigentes-sacerdotes. Estes procurarão unir os homens e mulheres que têm permissão para casar-se, fazendo com que os homens altos e fortes se casem com mulheres robustas e belas; os homens gordos, com mulheres magras e, reciprocamente, as mulheres gordas com homens magros. Os trabalhadores intelectuais, esgotados por um labor excessivo, e por isso enfraquecidos sexualmente, deverão unir-se a mulheres belas e de temperamento ardoroso. Os homens de temperamento sanguíneo, propensos a cólera, terão por esposas mulheres de temperamento calmo e fleugmático; os homens de imaginação fértil casar-se-ão com mulheres de espírito positivo. Em síntese: a comunidade, por intermédio de seus dirigentes, zelará rigorosamente para efetuar uma combinação de temperamentos e de caracteres, um cruzamento de disposições e de capacidades físicas e intelectuais tendentes a formação de um tipo de homem harmoniosamente perfeito.

Durante todo o período de gravidez, a mulher fica sob vigilância médica. O médico prescreve à mulher grávida a dieta e os medicamentos adequados. Depois do parto, as mães amamentarão seus filhos durante dois anos, ou mais, conforme a prescrição médica. Ao atingirem determinada idade, os jovens são entregues a guardiães, e as jovens a mulheres encarregadas de cuidá-las. Nesse momento começa a educação: ginástica, (exercícios físicos que deverão ser praticados pelos indivíduos completamente nus), para rapazes e moças. Em linhas gerais, os dois sexos recebem educação igual. A instrução não é ministrada em salas fechadas, mas durante os passeios, principalmente durante as excursões ao longo das sete muralhas da cidade, em cujas paredes existem inscrições: cartas geográficas, astronômicas, zoológicas, botânicas, mineralógicas, etc.... Os professores devem observar cuidadosamente as aptidões e vocação de cada discípulo a fim de encaminhar os resultados dessas observações às autoridades, que, assim, destinarão os jovens à profissão que melhor lhes convêm. A educação visa, acima de tudo, formar trabalhadores produtivos. Por esse motivo, a instrução profissional e agronômica é geral. Todos os solenses adultos executam com satisfação as tarefas que lhes são confiadas, porque no corpo sadio, formado para a atividade consciente, só pode haver um espírito igualmente sadio. Como todos trabalham, a jornada de trabalho nunca vai além de quatro horas. Todas as profissões são consideradas dignas. As roupas e a alimentação são sóbrias, simples e saudáveis.

Este regime: propriedade coletiva, seleção e educação racional, deu origem a uma sociedade solidária, animada de ardente espírito coletivista e de grande amor ao trabalho; uma sociedade que ama a ciência, honra a Deus e pratíca a virtude. Os solenses procuram conquistar pelas boas ações a vida eterna. Mas também desejam ter uma vida terrena feliz, por meio da organização social comunista. Não há, no Estado do Sol, nem riqueza nem pobreza, nem ociosos nem escravos.

3. Objeções ao comunismo

Campanela examina as mais correntes objeções ao comunismo, formuladas desde Aristóteles até sua época, por vários adversários da propriedade coletiva.

Primeira objeção: O comunismo é contrário a natureza humana.

Resposta: O comunismo é não só admissível, como possível.

Os cristãos de Jerusalém, no tempo dos apóstolos, eram comunistas. Os de Alexandria, na época de S. Marcos, o eram igualmente. O clero viveu no regime comunista até a época do papa Urbano I. O Estado de Platão é louvado por S. Clemente, Santo Ambrósio e S. Crisóstomo.

Segunda objeção: O comunismo extingue todos os estímulos que obrigam o homem a trabalhar.

Resposta: O interesse privado só é um estímulo para o trabalho nos lugares em que a propriedade privada desenvolveu no homem instintos egoístas. Porque a propriedade privada aniquila o espírito de caridade cristã e o sentimento coletivo. Ela dá lugar a ambição, a usura, ao ódio ao próximo, a inveja e a grande número de outros vícios. Compreende-se facilmente que o egoísta só possa sentir-se estimulado no trabalho sob o império da propriedade privada. Mas, num Estado comunista como o Estado do Sol, os homens são educados conscientemente no sentido do benefício da coletividade, do prazer de trabalhar, da bondade e da virtude, e, além disso, cada trabalhador recebe o salário que realmente merece, sendo todos os trabalhos considerados dignos e igualmente respeitados; num regime, como esse que existe no Estado do Sol, o amor a coletividade é o melhor estímulo para o trabalho.

Terceira objeção: a comunidade de mulheres é imoral e contrária a natureza.

Resposta: Uma instituição só é contrária a natureza quando é nociva ao indivíduo e a espécie. O assassínio, o roubo, o adultério, a sodomia, etc., são contrários a natureza, porque prejudicam o próximo ou impedem a multiplicação da espécie humana. A comunidade de mulheres, pelo contrário, não fere o interesse de ninguém, não prejudica a ninguém, não impede o desenvolvimento da espécie. E não é imoral porque não é a consequência elementar de desejos sexuais.

Não é ditada pelos apetites sexuais, mas pelo interesse coletivo, maduramente calculado. É, pois, moral, em todos os sentidos. Além disso, é praticada em harmonia com as leis da coletividade, com as regras da ciência e da filosofia. No Estado do Sol, não há, portanto, promiscuidade dos sexos. Não há o direito de cada indivíduo se unir quando quiser ou com a mulher que entender. Pelo contrário: a vida sexual está estreitamente subordinada aos interesses da coletividade. Apenas, em lugar de ser regulamentada por dispositivos da Igreja, o é por princípios filosóficos. Um ato que não é contrário a natureza não é mau por si mesmo, mas só quando tem em mira a volúpia, o prazer egoísta, em resumo, quando realizado por motivos de interesse pessoal, Pelo contrário, é moral quando se processa em virtude dos ditames da razão e para o benefício coletivo.


Inclusão: 04/10/2021