História do Socialismo e das Lutas Sociais
Terceira Parte: As Lutas Sociais nos Tempos Modernos
(Do século XIV ao XVIII e de 1740 a 1850)

Max Beer


Capítulo X - A Revolução Industrial na Inglaterra


1. Os resultados da revolução burguesa

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A revolução burguesa, iniciada em 1642, sob formas e com alternativas diversas, continuou a desenvolver-se até 1689, terminando pela vitória da burguesia e pela derrota da monarquia absoluta. A Inglaterra tornou-se uma República, mas conservou a antiga fachada monárquica. O poder do povo era ainda relativamente pequeno. A Inglaterra, nessa época, possuía somente cinco milhões de habitantes. O número de artesãos e de negociantes não ultrapassava ainda um milhão e meio. A indústria encontrava-se na fase da produção a domicílio ou em pequenas oficinas, embora já existissem as grandes manufaturas, que agrupavam um número relativamente elevado de artesãos assalariados, e organizados à maneira de um gigantesco mecanismo dominado pelo capital comercial.

Os interesses do comércio e da indústria adquiriram uma influência preponderante logo no começo da revolução. Seu principal porta voz foi Olivier Cromwell. Essa influência tornou se ainda maior durante o século XVIII. A partir desse momento, toda a política do governo inglês orientou no sentido da conquista de vastos mercados para o comércio e a indústria. Foi justamente essa orientação que levou a nobreza e a finança da Inglaterra a guerra com os Países Baixos e com a França. Foi essa orientação que as levou a aniquilar a concorrência industrial da Irlanda, a esmagar em germe as tentativas de concorrência da América e a fundar o; Império das Índias. Foi também para conquistar mercados que a nobreza e a finança fundaram bancos, companhias de navegação, manufaturas e expropriaram massas consideráveis de pequenos camponeses, transformando-os nos proletários que, dentro em breve, iriam ser utilizados na abertura de canais e de estradas, ou nas atividades das numerosas fábricas, que começavam a surgir por toda parte. A perda dos Estados Unidos da América do Norte, motivada pela limitada visão política do governo inglês, foi o único revés que a nobreza e a finança da Inglaterra sofreram nesse momento.

2. Os progressos da técnica

A extensão dos mercados e o aumento geral da procura de produtos manufaturados fizeram surgir a necessidade de modificar radicalmente os antigos dos de produção e de transporte. Os engenheiros, os inventores, os sábios, atiraram-se ao trabalho para satisfazer às novas exigências do mercado. A Inglaterra cobriu-se rapidamente de uma rede de estradas de ferro e de vias de comunicação navegáveis. A máquina a vapor foi aperfeiçoada. O antracite começou a ser utilizado na metalurgia. A invenção do tear e da máquina de fiar mecânica originou a indústria têxtil moderna. O arfar das máquinas, a atividade febril dos altos-fornos, as colunas de fumaça escapando-se do cimo das chaminés, anunciaram ao mundo inteiro o advento da era do carvão e do ferro.

A Inglaterra, antigamente um país agrário, rapidamente tornou-se um país industrial. As comunidades aldeãs desapareceram e, em seu lugar, surgiram enormes fábricas e centros industriais. A população cresceu vertiginosamente. As cidades estenderam-se em todos os sentidos.

De 1730 a 1821, a população da Inglaterra e do país de Gales elevou-se de 6,5 milhões de habitantes, a mais de 12 milhões. De 1760 a 1816 a população de Manchester passou de 40.000 a 140.000 habitantes; a de Birmingham, de 30.000 a 90.000; a de Liverpool, de 35.000 a 120.000. De 1750 a 1816 o valor global da exportação ascendeu de 20 milhões de libras esterlinas a 92 milhões.

Todos esses fenômenos foram causados pela revolução industrial que, pouco a pouco, iria fazei o mundo inteiro trilhar pela senda de uma nova civilização. Suas consequências foram incomparavelmente mais vastas e mais profundas que as de todas as revoluções anteriores, porque ela lançou as bases de uma nova ordem social e criou os meios para a supressão da miséria, da opressão e das diferenças de classe. Numa palavra, essa revolução foi a origem do proletariado e do socialismo moderno.

Os homens que realizaram esta transformação e que assim, multiplicaram até ao infinito as possibilites de produzir riquezas, eram, na sua maioria, operários ou artesãos. Na sua frente, erguiam-se obstáculos de toda sorte, que foi necessário transpor. Mas, impelidos pelas necessidades sociais, eles trabalharam, sem temer as consequências da obra que realizavam, e sem dela esperar a menor vantagem pessoal. O relojoeiro Kay, o carpinteiro Wyatt, o cabeleireiro Arkwright, o tecelão Hargreaves e o mecânico Crompton foram os que mais contribuíram para o aperfeiçoamento do tear que Kay e o teólogo Cartwright haviam inventado. Brindley e Metcalf, dois operários não qualificados, que, apenas sabiam ler e escrever, foram os construtores das novas estradas e das novas vias de navegação. O negociante de ferro Newcomen, o vidraceiro Crawley e os mecânicos Watt e Stephenson inventaram a locomotiva.

Os abundantes lucros recebidos mediante essa revolução industrial não foram embolsados nem pelos inventores, nem pelos sábios, mas pelos comerciantes e banqueiros que se utilizaram de seus trabalhos.

Apesar de geralmente nada compreenderem das invenções mecânicas que eram postas a sua disposição, os comerciantes e banqueiros possuíam, no mais alto grau, a faculdade de pôr em movimento as forças produtivas que outros homens haviam criado e a falta de escrúpulos indispensável ao êxito material. “Os novos senhores, na sua maioria — diz Robert Owen, que os conheceu de perto — não possuíam a menor instrução; tinham algum tino comercial e mal conheciam os mais rudimentares elementos de cálculo. A acumulação rápida de riqueza, determinada pelo progresso técnico, criou uma classe de capitalistas recrutados entre os elementos mais ignorantes, mais grosseiros e mais vis da população”. Foram semelhantes elementos que, mais tarde, se tornaram grandes industriais e organizadores da economia capitalista. Esses elementos julgavam-se edificadores da sua prosperidade. Atribuíam seu triunfo ao mérito próprio. Pretendiam agir por sua conta e risco, recusando-se a admitir qualquer interferência do Estado em seus negócios e, em geral, qualquer intervenção das autoridades na vida econômica.

3. Smith, Bentham e Ricardo

Esta oposição a intervenção do Estado na vida econômica, que nada mais é senão um reflexo dos interesses e da mentalidade dos meios industriais da época, teve a seu favor o precioso apoio dos economistas partidários do desenvolvimento de novas forças produtivas, que investiram energicamente contra as velhas instituições já senis. Toda a antiga ordem baseada no artesanato, na indústria a domicílio, na aprendizagem corporativa, nas restrições da importação e no regime dos três arrendamentos na agricultura, começou a ser julgada um entrave insuportável, um freio oposto ao desenvolvimento da nova forma de produção baseada na grande empresa e no progresso técnico. Liberdade! — foi então a principal palavra de ordem. Liberdade individual, liberdade para o capital poder agir como bem lhe parecesse, em beneficio de seus interesses. Não é nem o Estado, nem a polícia, mas o interesse pessoal do indivíduo que deve tudo reger e tudo estimular, da forma que se lhe afigurar melhor e de maneira que retire de seu trabalho o maior proveito possível.

O século da revolução industrial criou o liberalismo, expressão dos interesses e da mentalidade da classe capitalista. Seus principais representantes, na Inglaterra, foram Adam Smith (1723-1790), Jeremias Bentham (1748-1832) e David Ricardo (1772-1823). Estes últimos, embora pessoalmente favoráveis aos operários, praticamente desempenharam o papel de teóricos dos interesses do capital, e, em geral, da propriedade privada, que consideravam a mais sólida base para a vida social.

Na opinião de Adam Smith, o trabalho é a fonte principal da riqueza das nações, tanto na produção industrial como na produção agrícola. Se o solo e as matérias primas que nele se encontram fossem, como outrora, propriedade coletiva, os operários, que produzem todos os bens, ainda hoje seriam os proprietários de todas as riquezas. E todo aumento de valor a eles pertenceria, porque o valor de urna coisa está unicamente no trabalho, no esforço necessário a sua fabricação. Mas, como a propriedade coletiva já não mais existe, o operário só recebe um salário. E esse salário é de tal maneira calculado, que o seu valor corresponde ao estritamente necessário para o sustento do operário. O valor, suplementar que cada coisa adquire por meio do trabalho pertence ao capitalista que coloca seus meios de produção a disposição do operário. O Estado, entretanto, não se deve intrometer na vida econômica. Deve, pelo contrário, permitir o livre movimento dos interesses pessoais. O trabalho, o capital e a liberdade são as molas fundamentais da prosperidade econômica. O papel do Estado deve consistir apenas na defesa da propriedade. Nas suas relações com os operários, os capitalistas devem orientar-se pelos sentimentos humanitários, pela ideia de justiça, concedendo aos operários bons salários e boas condições de trabalho. Eis as ideias fundamentais de Adam Smith. Sua obra mais importante, A Riqueza das Nações, foi publicada em 1776.

Bentham combale ao mesmo tempo o Estado e os comunistas. Sua tese principal é que cada instituição política ou social deve ser julgada do seguinte ponto, de vista: é ou não é favorável à felicidade da maioria? Ora, segundo Bentham, o Estado nunca examinou as questões dessa maneira. Pretextando, mentirosamente, servir ao interesse geral, o Estado, pelo contrário, em, verdade, sempre esteve a serviço dos interesses de uma ínfima minoria, de um reduzido grupo de indivíduos privilegiados. Para Bentham, não existem interesses gerais. Só os existem particulares, diz ele, porque a sociedade nada mais é que um agrupamento de indivíduos. Por esse motivo, o comunismo não será capaz de dar a felicidade à maioria dos homens, uma vez que reclama uma divisão igual de todos os bens. E essa divisão faria desaparecer o único estímulo que leva os homens à pratica de trabalhos produtivos. A natureza dividiu os homens entre dois senhores: o sofrimento e o prazer, ou a utilidade e a nocividade. São eles que nos ensinam o que devemos fazer. O que produz prazer ou felicidade é bom; o que produz o contrário é ruim. Ora, como são os indivíduos que constituem a sociedade, cada indivíduo procura obter as maiores vantagens para si mesmo, procura obter a maior soma de prazeres e de felicidade possíveis Todos os indivíduos têm o mesmo direito de participar do governo. O governo, na medida que é necessário, deve ser democrático. Mas o próprio governo democrático deve limitar-se à aplicação de medidas negativas, isto é, medidas destinadas a supressão dos entraves que se opõem ao esforço do indivíduo no sentido da conquista da felicidade.

Esta teoria de Bentham, exposta nos seus Princípios de moral e legislação, publicados em 1789, foi denominada o “utilitarismo”. Exerceu notável influência no movimento da reforma inglesa, de 1825 e 1832.

Ricardo, acima de tudo, foi um economista que procurou explicar ao público inglês as modificações produzidas pela revolução industrial no valor, nos preços, nos salários, no lucro, na renda agrária, e que procurou, ao mesmo tempo, interpretar o antagonismo existente entre a burguesia e a aristocracia rural.

Segundo Ricardo, a sociedade é formada por três classes principais; os capitalistas, os operários e os proprietários rurais. A classe dos capitalistas é, de todas, a mais importante, porque são os capitalistas que dirigem a produção e constituem a força motriz da vida econômica; a fonte de renda desta classe é o lucro. Os operários não são mais que forças de produção, comparáveis às bestas de carga, aos instrumentos e às máquinas; sua fonte de renda é o salário. Os proprietários rurais, finalmente, constituem a classe parasita da sociedade; sua fonte de renda é a renda da terra.

Os interesses do capital e do trabalho, na essência, são idênticos, embora o aumento do salário sempre signifique uma diminuição do lucro. Esta harmonia é destruída pela introdução de novas máquinas, que servem aos interesses dos capitalistas, porque aumentam as capacidades de concorrência, mas prejudicam os operários por isso que determinam uma economia de trabalho vivo e, consequentemente, causam o desemprego. Há, pelo contrário, um violento antagonismo entre a classe dos proprietários rurais, protegida pelos direitos alfandegários sobre os cereais de um lado, e, de outro, o capital e o trabalho. Este antagonismo nasce do seguinte fato: o progresso da indústria e o desenvolvimento das cidades acarretam o aumento da procura de produtos alimentares; esse aumento determina uma crescente alta dos preços e da renda rural, de modo que grande parte do lucro do capital e dos salários dos operários vai para as algibeiras dos grandes senhores de terras. Este antagonismo tem uma causa econômica ainda mais profunda. O valor de uma mercadoria é igual à quantidade de trabalho necessária para fabricá-la para pô-la à disposição do consumidor. Se a quantidade de trabalho necessária à fabricação de uma determinada mercadoria aumenta, seu valor evidentemente cresce. Se esta quantidade diminui, seu valor diminui na mesma proporção. Ora, os progressos técnicos determinam a baixa dos preços porque, em virtude das novas invenções, a quantidade de trabalho necessária à fabricação de um determinado objeto constantemente diminui. Na agricultura, dá-se justamente o oposto. O desenvolvimento da indústria faz crescer a procura de meios de subsistência. A cultura estende-se a terras que fornecem colheitas menos abundantes e que, por consequência, necessitam de maior quantidade de trabalho.

Ora, maior quantidade de trabalho significa maiores valores, preços mais elevados e, como é o rendimento das terras de qualidade inferior que determina a importância do rendimento, a renda dos terrenos de qualidade superior evidentemente aumenta. A alta dos preços dos gêneros alimentícios obriga os operários a reclamar salários mais elevados, porque o salário não é mais do que uma certa quantidade de meios de subsistência de que o operário necessita para viver. Tais reclamações provocam conflitos entre operários e patrões, greves, descontentamento geral das massas, numa palavra, perturbações na produção. O aumento dos salários significa a redução dos lucros porque, quanto maior o salário, menor o lucro. Salário e lucro variam sempre em proporção inversa. Aliás, o operário não tem nenhum interesse em receber salários mais elevados, porque é sempre obrigado a gastar tudo o que recebe na aquisição dos meios necessários a própria subsistência. Em consequência, a única classe que lucra com o desenvolvimento industrial é a classe dos grandes senhores de terras. Eis a razão da luta de classe existente entre a burguesia e a aristocracia rural.

A principal obra de Ricardo, intitulada Princípios de economia política, foi publicada em 1817. A explicação científica, que Ricardo nela fornece das classes, do valor, do salário, da renda rural e do antagonismo de classes, contribuiu consideravelmente para preparar terreno para o socialismo. A partir de 1820, todos os escritores socialistas, inclusive Marx, e todos os teóricos da reforma agrária, foram, de certo modo, auxiliados pelos ensinamentos de Ricardo. Os primeiros apoiaram-se na sua teoria do valor, os segundos na sua teoria da renda. Se o aumento da renda rural não é senão uma consequência do progresso geral da civilização industrial, e não do trabalho pessoal dos grandes senhores de terra, diz Ricardo, este aumento de valor imerecido deve voltar a coletividade. É este seu principal argumento.


Inclusão: 05/10/2021