História do Socialismo e das Lutas Sociais
Terceira Parte: As Lutas Sociais nos Tempos Modernos
(Do século XIV ao XVIII e de 1740 a 1850)

Max Beer


Capítulo XV - As repercussões da Revolução Francesa na Alemanha


1. Renascimento econômico e opressão política

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A devastação causada pela Guerra dos Trinta Anos ainda era dolorosamente sensível na Alemanha, no começo do século XVIII. Regiões inteiras haviam sido transformadas em desertos. O comércio e a indústria arruinados. A atividade comercial mantinha-se ainda somente em Leipzig e em Hamburgo.

Essas cidades eram dois oásis no deserto da desolada vida nacional.

E o povo alemão lutava com grande dificuldade para pensar suas feridas. O esbanjamento dos príncipes, a ambição da nobreza rural, os métodos autoritários e pedantes da burocracia dificultavam a cura.

A situação só começou a melhorar a partir de meados do século XVIII. A revolução industrial na Inglaterra e na Holanda, o movimento enciclopedista em França e os progressos da ciência econômica não podiam deixar de repercutir na Alemanha. A vida econômica reanimou-se. Novos métodos de produção foram introduzidos. A indústria têxtil desenvolveu-se e a agricultura progrediu.

“Em Hamburgo constituiu-se uma sociedade para o desenvolvimento das artes e das indústrias úteis”. O movimento do porto já era, nessa época, relativamente intenso, particularmente depois da declaração da independência dos Estados Unidos da América (1776), porque os navios americanos evitavam os portos ingleses e utilizavam de preferência portos alemães. Foi assim que Hamburgo começou a receber 2.000 navios por ano, entre os quais somente 150 ou 160 arvoravam o pavilhão alemão.

Ao mesmo tempo, fundaram-se em Hamburgo companhias de seguros no valor que variava entre 60 e 120 milhões de talers por ano.

A indústria do linho, a extração da hulha, e a produção metalúrgica realizaram progressos consideráveis. De maneira geral, verifica-se, nos fins do século XVIII, uma reanimação geral na vida econômica da Alemanha.

Paralelamente a essa ressurreição econômica, assiste-se a um novo surto da literatura e da filosofia, em que predominam tendências liberais e progressistas. Os escritores alemães dessa época sentiam dolorosamente o atraso da vida política, a servidão e a opressão em que os príncipes e a nobreza mantinham o povo alemão. Um dos mais eminentes escritores da época — Wieland traça um retrato vigoroso da situação no Espelho de Ouro: “Na opinião dos tiranetes, o povo não tem nenhum direito e os príncipes nenhum dever. Consideram o povo um conjunto de máquinas vivas, cuja única finalidade seria viver trabalhando para eles, sem nenhum direito ao repouso, ao conforto e à felicidade. Embora não seja fácil conceber uma tal maneira de pensar, pode-se, entretanto, chegar a conclusão de que os príncipes se julgam uma classe de entes superiores, que não têm de prestar contas a ninguém. E o povo é tão servil que, quando, excepcionalmente, é beneficiado com os direitos gerais da Humanidade, julga ter recebido uma graça imerecida”.

Nesse quadro sombrio, nenhuma cor, nenhum traço foi exagerado. Wieland referia-se particularmente ao estado de coisas reinante na Alemanha do Sul. Mas, na Prússia, a situação era a mesma. A respeito disso, Lessing escrevia a seu amigo Nicolau: “Uma vez. Em Berlim, experimentai dizer a verdade à canalha mais em evidência da Corte; experimentai elevar a voz para defender os direitos dos homens contra a opressão e o despotismo, como já se faz atualmente em França e na Dinamarca, e podereis verificar qual é, nos nossos dias, o povo mais oprimido da Europa”. Foi justamente nesse antagonismo, entre a prosperidade econômica e a opressão política, que a literatura clássica alemã sorveu grande parte de sua força. Mas conservou um caráter essencialmente burguês.

Schiller é o seu representante mais típico. Foi o porta-voz das aspirações da burguesia alemã, no período de sua formação. A obra genial de Goethe abrangeu séculos inteiros, desde o Renascimento até a metade do século XIX. Outros, como Winckelmann e Heinse, voltaram-se para a estética e não ultrapassaram a etapa correspondente ao Renascimento. Em algumas décadas, apenas, a Alemanha foi obrigada a realizar todo o progresso intelectual que a Europa ocidental realizara a partir do século XV, como se quisesse, de um salto, recuperar o atraso em que permanecera, desde essa época.

2. O comunismo em Wieland e em Heinse

A literatura e o pensamento da Alemanha dessa época sofreram fortemente a influência dos pensadores e dos escritores ingleses e franceses. Em todos os domínios do pensamento: na filosofia, no drama, no romance, no direito, na crítica política e social, os escritores alemães, a partir de meados do século XVIII, sofreram a influência de Locke, Shaftesbury, Richardson, Fielding, Hume, Rousseau. A própria filosofia de Kant nunca teria existido sem Ocam, Locke, Berkeley e Hume Essa simples citação mostra que, no final do século XVIII, a influência francesa perdia terreno e a influência inglesa avançava. Quando a burguesia alemã era ainda fraca, a influência francesa predominava, porque as Cortes dos pequenos principados se julgavam Versalhes em miniatura. E os príncipes imitavam Luís XIV. Tudo o que chegava de Paris lhes parecia sustentar o absolutismo. Mas as coisas mudaram de aspecto a partir de meados do século XVIII. A burguesia alemã principiou a agitar-se. Começou a luta contra a tragédia e, de um modo geral, contra toda a literatura francesa. A literatura inglesa ganhou cada vez mais as preferências, por causa de seu caráter burguês. Rousseau foi o único escritor francês que não perdeu a influência anterior, justamente porque, apesar de toda a audácia de sua crítica social, nada mais era que um escritor burguês.

Esta evolução foi provocada principalmente por G. E. Lessing.

A oposição literária contra o despotismo dos príncipes, contra as arbitrariedades da burocracia e as chicanas policiais, aguçou o pensamento político e despertou o interesse geral pelos problemas políticos e sociais. Cristóvão M. Wieland (1773-1813) foi um dos representantes dessa tendência. No Espelho de Ouro e nas Obras Póstumas de Diógenes de Sínopo, ele examina os problemas políticos e sociais de seu tempo, no mesmo ponto de vista do enciclopedismo francês. Do mesmo modo que os enciclopedistas, o seu ideal é a “vida em harmonia com a natureza”. Ainda como os enciclopedistas, ele descreve uma sociedade de homens que vivem na mais completa liberdade e igualdade. Mas ele afirma que o ideal comunista só seria realizável em sociedades pouco numerosas. Na sua opinião, sociedades de grande população teriam necessidade de um aparelho governamental dirigido por um príncipe culto e por leis humanas.

Wieland, numa das suas obras, põe na boca de um membro de uma sociedade comunista as seguintes palavras: “Nossa pequena nação, que se compõe de cerca de 500 famílias, vive na mais perfeita igualdade. Entre nós não existem senão as diferenças que a própria natureza, sempre inclinada à variedade, estabeleceu entre os homens. O respeito à Constituição é, entre nós, suficiente para a manutenção da ordem e da tranquilidade, que são os frutos do entendimento e da concórdia. Consideramo-nos todos como uma pequena família. E as pequenas disputas que acidentalmente surgem entre nós são semelhantes a rusgas entre amantes ou aos pequenos conflitos que, periodicamente, surgem entre irmãos e irmãs... Dos oito aos doze anos, nossos filhos recebem a instrução necessária para poderem viver felizes no seio da nossa sociedade. Os rapazes e as moças, dos 12 aos 20 anos, guardam os rebanhos. Dos 26 aos 60 anos, os homens consagram-se à agricultura, e, a partir dos 60 anos, à jardinagem. As mulheres dedicam-se à fabricação da lã e da seda, à cultura das flores e aos trabalhos domésticos. Quando a população aumenta excessivamente, criam-se novas colônias. Os jovens que manifestam desejos de glória e sentimentos de ambição têm a possibilidade de correr mundo e de, no estrangeiro, exibir suas aptidões, porque, na sociedade comunista em que vivemos, estas disposições perturbam os nossos hábitos de simplicidade e moderação, de e de fraternidade”.

Nas Obras Póstumas de Diógenes de Sinopo, este procura vencer um rico coríntio chamado Filomedon que a sua vida ociosa é prejudicial ao Estado, e que um pobre aguadeiro é mais útil à sociedade que o mais rico dos ociosos. Filomedon responde, lembrando que dá ocupação e sustenta grande número de escravos e de operários. Mas Diógenes retruca: “Quem te deu o direito de considerar como tua propriedade homens que a natureza fez iguais a ti mesmo? As leis, dirás, porventura? Mas não as leis da natureza e sim as leis feitas pelos homens. Não são essas leis que mantêm os teus escravos submissos? Eles só não se revoltam porque são mantidos na sua triste situação por essa formidável força. Julgas que, entre os homens livres que trabalham para te enriquecer a troco de um salário ridículo, há um só que continuaria nessa situação se a necessidade não mais o reduzisse à condição de escravo voluntário? Acreditas que a maior parte deles, em lugar de trabalhar para te enriquecer a troco de um salário miserável, que representa apenas a décima milésima parte de teus lucros, não preferiria também ficar, como tu, estendido mim leito voluptuoso, entre a sorridente Vênus e Baco, o deus da alegria, observando o trabalho que dez mil outros homens fazem para ele? Não é evidente que eles devem pensar em libertar-se do sofrimento? Não é evidente que devem também pensar em apoderar-se violentamente da tua fortuna? E por que eles não põem essa ideia em prática? Que te protege contra esse perigo? Não é a polícia, não é o aparelho de tuas leis?

“Suponhamos mais um caso, tão plausível que é bem provável que ainda o vejamos realizar-se um dia. Dez mil homens têm, incontestavelmente, mais 19.800 braços que 100 homens. Ora, não resta dúvida que, para cada centena de indivíduos da tua espécie, há, na Grécia, pelos menos 10.000 homens que teriam mais a ganhar do que a perder com uma mudança de regime. Suponhamos, então, que esses 10.000 homens tenham um dia a ideia de unir-se e de aproveitar a sua superioridade numérica para se apoderarem de vossos bens e fazerem uma nova partilha. Ora, com a dissolução do Estado, a sociedade voltará ao estado de natureza, à igualdade primitiva. Numa palavra, a parte que receberas não será maior que a do sapateiro que fabrica os teus calçados. Se isso acontecesse, serias obrigado ou a trabalhar ou a te contentares com o pouco com que Diógenes se contenta. Estou certo de que qualquer dessas alternativas não te seria nada agradável... Não precisamos de outra prova para mostrar que qualquer aguadeiro de Corinto tem cem vezes mais mérito que tu, porque, em troca da magra recompensa que recebe da sociedade, ele realiza um trabalho útil. E tu, a quem ela dá anualmente vinte talentos para esbanjares, que fazes por ela?”

J. J. Wilhelm Heinse (1719-1803) foi o continuador da obra de Wieland. No seu livro intitulado Ardinghello (1787) descreve uma sociedade comunista organizada segundo o modelo de Licurgo ou de Platão. “Nós evitamos cuidadosamente — diz um membro dessa sociedade que se estabeleça a divisão dos cidadãos nas duas categorias que Platão preconizava: uma encarregada das funções dirigentes, outra dos trabalhos agrícolas. Nós, entretanto, estabelecemos a comunidade dos bens, apesar de Aristóteles, e assim conseguimos suprimir grande número de males... Mas não suprimimos integralmente a propriedade. Criamos também um sistema de recompensas públicas. Cada cidadão tem o direito de conservar até o fim da vida o que conseguir acumular”. Há, além disso, a comunidade de homens e mulheres. Qualquer cidadão pode livremente dispor de sua pessoa. Todos os atos de violência são severamente punidos. Procura-se, também, evitar a desordem, tanto assim que os homens e as mulheres residem em habitações separadas”.

Dez por cento das mulheres tinham o direito do voto em assuntos de ordem pública. Mas, nos assuntos de interesse feminino, tudo dependia do voto das mulheres. Nesse Estado comunista, havia ainda escravos e a juventude era educada para a guerra, do mesmo modo que nas Repúblicas comunistas da Antiguidade.

3. Weishaupt e a ordem dos “Iluminados”

A Antiguidade e o Renascimento ocupam o principal lugar nas obras de Wieland e Heinse. Nas obras de Weishaupt e Lessing, o pensamento religioso é que está em primeiro lugar. Entretanto, neles, não se encontra mais a luta entre o Bem e o Mal. Trata-se de elevar a Humanidade a um nível superior, à perfeição espiritual, por via da supressão dos órgãos de sujeição e de toda servidão econômica e intelectual.

Tal era a ideia fundamental da Ordem dos “Iluminados”. Esta Ordem era secreta e bem semelhante aos franco-maçons, com os quais possuía muitos pontos de contacto. A princípio, seus membros intitulavam-se os “perfectibilistas”. Sua atividade prolongou se pelo período que medeou entre 1776 e 1781. A Ordem foi fundada por Adam Weishaupt (1748-1830), professor de direito canônico da Universidade de Ingolstadt. Adam foi membro da Ordem dos Jesuítas. Depois, dela se desligou, resolvendo combater, com os mesmos meios utilizados pelos jesuítas, a Igreja oficial, o despotismo, a ignorância e a opressão, a fim de instaurar o reino da liberdade e da igualdade para todos os homens. A adesão à Ordem era mantida em segredo, e só os sábios, os escritores, os padres, os professores, os altos funcionários, os príncipes e outras personagens influentes podiam nela ingressar. Na Ordem, havia três diferentes categorias de membros e uma série de graus intermediários, de maneira que só os mais capazes conseguiam chegar aos postos mais elevados.

Foram membros dessa seita, entre muitas outras, as seguintes personalidades: Herder, Goethe, o célebre livreiro berlinense, Nicolai, os duques de Gotha, de Weimar, de Brunswick. É provável que estes últimos pertencessem apenas às classes inferiores da Ordem. Um dos melhores propagandistas da Ordem, de 1780 a 1783, foi o barão de Knigge, autor de uma obra que então alcançou êxito: A Arte de viver com os homens. É provável que Lessing conhecesse, por intermédio de seu amigo Nicolai, as ideias defendidas pelos “Iluminados”.

Knigge esboça um quadro característico dos costumes de seu tempo, quando declara que “a mistificação dos padres atirou quase todos os homens contra a religião cristã”. Do mesmo modo, o despotismo dos príncipes suscitou por toda parte o ardente desejo de liberdade. Ele usava o pseudônimo de Espártaco, o que caracteriza nitidamente a finalidade que esperava atingir. Como, na época, não se podia pensar em criar uma organização das massas populares, só os guias intelectuais daquele tempo deviam conhecer suas ideias para poderem realizar uma revolução pacífica.

As ideias de Weishaupt podem ser assim resumidas: A natureza está submetida a um processo de evolução, de contínuo aperfeiçoamento. Ela evolui constantemente de estados inferiores para estados superiores. As diferentes formas e espécies que a natureza encerra não são mais que diferentes variações de um único e mesmo ser. O que nos parece uma forma que já atingiu o ponto culminante do desenvolvimento, não é senão o grau inferior de um novo desenvolvimento para uma etapa mais avançada. A força motriz desse eterno processo de transformação é a necessidade. Cada nova necessidade faz surgir novas fases de desenvolvimento. “Uma necessidade satisfeita faz surgir uma nova necessidade. A História da espécie humana não é mais que a História das suas necessidades; e cada necessidade deriva da precedente. O aumento das necessidades transforma pouco a pouco o gênero de vida, o estado moral e político, a concepção da felicidade, as relações dos homens entre si, numa palavra — toda a situação do mundo da época”.

A vida selvagem foi a mais baixa condição de existência da espécie humana. Nesse período, o círculo de necessidades era ainda muito limitado. Em compensação “todos os homens gozavam abundantemente da liberdade e da igualdade, os dois supremos bens da Humanidade. Mas Deus e a natureza planejaram elevar os homens a um grau de cultura superior. Com o aumento do número de indivíduos, com o crescimento da espécie humana, começaram a faltar os meios de subsistência. Os homens foram, então, obrigados a abandonar a vida nômade. Fixaram-se ao solo. Dedicaram-se à agricultura. Surgiu, assim, a propriedade privada. Os mais fortes e os mais inteligentes dominaram os fracos. E a liberdade e a igualdade desapareceram. Foram, ao mesmo tempo, abolidas as garantias contra as ofensas e as injúrias. Necessitando de garantias, os homens resolveram fundar Estados e entregar todo poder a um limitado número de indivíduos, que foram colocados à frente desses Estados. Surgiu, assim, o despotismo. Em vez de liberdade e segurança, os homens tiveram o despotismo, a opressão e o terror. Divididos em Estados hostis, os indivíduos caíram sob o jugo do nacionalismo. O ódio a seus semelhantes, o desejo de aniquilar o estrangeiro, começaram a ser julgados virtudes cívicas. Até no seio de um mesmo país apareceram particularismos locais de toda sorte.

As massas populares nunca poderão, com suas próprias forças, se libertar dessa miserável situação. Isso só poderá ser feito pela organização secreta dos “Iluminados”, por meio de um perseverante trabalho em prol do aperfeiçoamento da espécie humana. É necessário, pois, restituir aos homens a primitiva liberdade, mas sem fazê-los voltar ao estado de selvageria e de barbarie em que a Humanidade se encontrava, nos tempos primitivos. Será necessário garantir a liberdade e a igualdade, mas no nível de condições de vida superiores, no seio de uma sociedade mais avançada. É este, também, o significado da História e da religião. O Paraíso, o Jardim do Eden, simboliza o estado de natureza caracterizado pela liberdade e pela igualdade. O pecado original significa o começo da servidão e a instituição dos Estados. O aparecimento de Jesus de Nazaré representa o advento da época do restabelecimento do direito, da razão, do amor ao próximo, da liberdade e da igualdade. Porque, só através de uma revolução Espiritual é que os homens poderão chegar à moralidade, à liberdade, e à igualdade.

A Ordem dos “Iluminados” foi denunciada, em 1781, ao governo da Baviera. Este dissolveu-a. Os membros da Ordem, que não conseguiram fugir, foram cruelmente perseguidos.

Weishaupt refugiou-se em Weimar, onde viveu como conselheiro da Corte.

4. Gotthold Ephraim Lessing

Lessing cresceu em meio de uma atmosfera religiosa. A princípio, queria consagrar-se à teologia. Mas foi desviado desse seu primeiro desejo pelos estudos filosóficos e literários e pelo seu contacto com os racionalistas e deístas. Entretanto, por mais de uma vez, voltou estudar a religião e a teologia. Leu os Doutores da Igreja. Provavelmente, também, conheceu as obras dos misticos alemães. Seu cristianismo adquiriu um caráter social-ético. Muito característico, nesse particular, é o seu primeiro estudo teológico, sua defesa dos irmãos morávios (1750), na qual ele coloca a prática das virtudes cristãs acima de toda sabedoria e de toda casuística escolástica.

Nesse mesmo estudo, ele apresenta um cristão dos primeiros tempos do cristianismo, que afirma: “Devemos renunciar às riquezas, ou mesmo delas fugir. O cristão deve ser severo consigo mesmo e indulgente com os seus semelhantes. Deve respeitar o mérito, mesmo na desgraça, e defendê-lo contra a imbecilidade poderosa”.

Já assinalamos anteriormente que Lessing devia conhecer as ideias dos “Iluminados”. Suas ideias social-religiosas estão contidas nas Palestras com os franco-maçons e principalmente no seu livro Educação da Humanidade. O aparecimento desses dois livros coincide com o início da atividade da Ordem dos “Iluminados”. O primeiro é dedicado ao duque Fernando de Brunswick, o qual, como já vimos, pertencia a Ordem. “Eu também — diz Lessing na sua dedicatória — desci às fontes e consultei-as”. Na sua segunda Palestra, o autor explica o caráter nefasto do Estado. Os Estados, diz ele, dividem os homens. Erguem muralhas entre os povos, como até entre homens da mesma nação. Eis porque “é provável que surjam em todos os países homens capazes de se elevar acima dos preconceitos da maioria e de compreender onde o patriotismo deixa de ser virtude”. O que é preciso, diz ainda, não é a caridade, mas um estado de coisas no qual a caridade seja inútil. Em suma, uma situação de liberdade e de igualdade em que cada um tenha tudo quanto necessitar.

Na Educação da Humanidade, Lessing desenvolve ideia da evolução da Humanidade da selvageria primitiva à perfeição. A História é ação metódica de um processo divino, através do qual a Humanidade se prepara para o advento da Terceira Idade.

A Terceira Idade é — nós já o vimos anteriormente – a doutrina de Joaquim de Flora e dos hereges da Idade Média:

“A Era do Novo Evangelho virá fatalmente — diz Lessing. — Alguns sonhadores do século XIII e do século XIV conseguiram, talvez, captar um raio desse Novo Evangelho eterno. Eles só se enganaram quando anunciaram que o advento da Era do Evangelho se aproximava e quando julgaram poder bruscamente transformar seus contemporâneos que não possuíam nenhuma educação, que acabavam de sair da infância, em homens dignos da Terceira Idade. Eis precisamente porque eles foram sonhadores. Mas, muitas vezes, os que sonham conseguem ter a acertada intuição de um futuro que não poderão atingir. O que a natureza levará milênios a realizar, os sonhadores querem fazer em instantes... Marcha com teu passo insensível, Providência eterna! Eu não duvido de ti, mesmo quando o caminho que segues parece levar-nos para trás! Nem sempre a linha reta é o caminho mais curto. Tu tens tantas coisas para alcançar na tua marcha eterna! Tantos desvios, tantas voltas a dar! Tudo se passa como se a grande roda, que conduz a espécie humana para a perfeição, fosse acionada com rodas menores e mais rápidas. É preciso esperar algum tempo, até que todas essas rodas entrem em movimento e — a despeito de todas as resistências — façam por sua vez mover-se a grande roda do progresso”.

5. Fichte e sua economia social

J. G. Fichte (1762-1814) era compatriota de Lessing, um vigoroso democrata-nacional, um dos filósofos alemães de temperamento mais ardente. Como orador e político, foi o verdadeiro precursor dos republicanos alemães de 1848. Seus anos de formação coincidem com um período de fermentação e de descontentamento geral. Não é de admirar, portanto, que Fichte inicialmente tenha sido internacionalista, e adversário da religião e que saudasse com entusiasmo a Revolução Francesa e considerasse a guerra contra a França, não uma guerra nacional entre povos diferentes, mas uma ofensiva dos déspotas contra a liberdade. Fichte denunciou a censura, defendeu a Revolução Francesa e interessou-se vivamente pelo problema de um Estado ideal, ou, como ele dizia, de um Estado racional. Nessa época, foi verdadeiramente jacobino. Não resta dúvida que, mais tarde, Fichte também teve, por mais de uma vez, veleidades revolucionárias. Mas é possível afirmar, de modo geral, que depois de 1794 ele se tornou cada vez mais místico e mais nacionalista. Entretanto, é preciso não esquecer que a sua personalidade foi maior que suas ideias. Apesar do vigor de seu temperamento, o caráter pequeno-burguês da Alemanha esmagava-o com o seu terrível peso.

Em seus Discursos a Nação Alemã, Fichte declara: “Atualmente, ainda se encontram em todos os povos espíritos que não podem admitir que os progressos de uma era de direito, de razão, e de verdade sejam apenas vãs ilusões. Esses espíritos julgam que a atual idade do ferro não é mais que um período de transição para um estado de coisas melhor... O velho mundo, com toda a sua grandeza, toda a sua magnificência e todas as suas fraquezas, tombou sob o peso da própria indignidade. Trava-se, agora, uma outra luta: a batalha das ideias. O povo alemão não poderá reerguer-se e salvar toda a civilização, senão trabalhando em prol da instauração da era da razão e da verdade”.

Mas os Discursos à Nação Alemã estão, de princípio a fim, impregnados de ardente espírito nacionalista, mesmo porque foram feitos com o objetivo de reforçar a consciência nacional do povo alemão e de preparar a guerra decisiva contra todos os tiranos, estrangeiros ou indígenas.

Democrata e republicano nacional do ponto de vista político, Fichte, do ponto de vista de suas ideias sociais, era um reformista pequeno-burguês. Suas ideias sociais encontram-se na obra intitulada O Estado Comercial fechado, que publicou em 1800. Fichte nessa obra, propõe a instituição de uma comunidade fechada, bastando-se a si mesma, na qual cada trabalhador, organizado profissionalmente, receberia uma quantidade modesta, mas certa. Como se vê, há grande distância entre o Estado ideal de Platão e o de Fichte.

Fichte combate a livre concorrência, o livre câmbio e o internacionalismo em matéria econômica. Vê tudo isso a fonte de mistificações, de conflitos econômicos, de hostilidade entre os povos e de guerras, e idealiza uma economia fechada, completamente independente do estrangeiro, dentro de fronteiras intransponíveis, que permitisse produzir e trocar tudo quanto é necessário a satisfação das necessidades mais modestas. O solo pertenceria a Deus, o Criador do mundo. Aquele que o cultiva teria apenas um direito de usufruto. Esta propriedade sobre a utilização das coisas, e não sobre as próprias coisas, segundo Fichte, origina-se de um contrato estabelecido entre os cidadãos. Não é, pois,, o tomar posse, porém o uso produtivo ou somente útil das coisas que cria o direito de posse.

No que concerne a organização social, Fichte divide os cidadãos em três diferentes categorias. Na primeira, coloca os agricultores; na segunda, os artesãos e, na terceira, os comerciantes. Os membros de cada classe não se podem consagrar senão às profissões fixadas por contrato. O agricultor não pode realizar nenhum trabalho industrial nem praticar nenhuma forma de comércio. Em síntese, todas as profissões são nítida e precisamente delimitadas. O Estado impede que esses limites sejam desrespeitados e estabelece o número de pessoas que devem exercer tal ou qual profissão, trabalhe apenas o número de pessoas estritamente necessárias. Desse modo, Fichte afirma que o equilíbrio das classes poderá ser mantido. A agricultura constitui a base da sociedade. Fornecerá certa quantidade de produtos capazes de satisfazer às necessidade sociais. Do rendimento da agricultura dependerá o número de pessoas que se poderão entregar a outras profissões não produtivas. Se a agricultura produzir um excedente de gêneros alimentícios e de matérias primas será possível permitir a atividade de mais negociantes, professores, empregados, etc. A troca de produtos entre os membros das diferentes profissões ficará a cargo de certo número de negociantes, fixados pelo Estado, de acordo com a quantidade de produtos a permutar.

Mas em que base será feita a troca?

Dada quantidade de pão será utilizada como unidade de valor. Se, por exemplo, quatro libras de farinha constituem a ração quotidiana de uma pessoa, esta quantidade de farinha será uma unidade de valor. Por consequência, quanto maior o valor nutritivo de um produto tanto maior seu valor econômico. Assim, por exemplo, uma certa quantidade de carne tem maior valor que a mesma quantidade de pão. Determinada quantidade de um produto qualquer, suficiente para nutrir um homem durante vinte e quatro horas, tem o mesmo valor que a quantidade de farinha necessária para nutrir o mesmo homem durante o mesmo lapso de tempo.

Os produtos manufaturados serão trocados de acordo com a quantidade de trabalho que contenham. Calcular-se-a o seu equivalente em trigo, verificando-se que porção de trigo esta quantidade de trabalho produziria, se fosse aplicada na agricultura.

Mas, se os valores forem sempre trocados por valores iguais, de que viveriam os negociantes? Fichte responde: O Estado consentirá que eles retirem dos produtos que trocam um determinado excedente, que será o seu lucro.

Resulta logicamente que — segundo Fichte — as mercadorias serão vendidas acima de seu valor, o que é evidentemente absurdo.

No que se relaciona com os meios de troca, Fichte não admite no seu Estado comercial senão a moeda fiduciária (de papel ou de qualquer outro material barato). A quantidade de moeda em circulação será fixada pelo Estado.

O comércio exterior, assim como todas as relações exteriores (diplomacia, guerra, paz, etc.) serão monopólio do Estado. Fichte deseja que o mundo inteiro seja dividido em Estados fechados, bastando se a si mesmos. Assim, segundo ele, não haveria mais nem guerras, nem conflitos entre os povos. No interior das suas fronteiras, estes últimos poderiam livremente desenvolver suas particularidades nacionais. Reinará a paz entre esses Estados fechados. Só as artes e as ciências terão caráter internacional. “Os tesouros da literatura estrangeira serão difundidos por meio de academias especiais e permutadas pelos tesouros da literatura indígena… Além disso, nada impedirá que os sábios e os artistas de todos os países entrem livremente em relações uns com os outros. Os jornais não prenderão a atenção dos seus leitores com guerras, tratados e alianças diplomáticas, mas publicarão apenas notícias sobre os progressos da ciência, sobre os novos descobrimentos etc... E cada qual procurará aplicar por si mesmo as invenções alheias”.

É assim que Fichte conclui sua Utopia pequeno-burguesa.


Inclusão: 13/10/2021