A Atualidade do Manifesto Comunista

Daniel Bensaïd

1998


Primeira Edição: Comunicação apresentada no Congresso Internacional dos 150 anos do Manifesto Comunista, em Paris, em 1998. Transcrição de João Machado Borges Neto. Publicado nos Cadernos Em Tempo nº 310, outubro 1999.
Fonte: "Marxismo, Modernidade e Utopia", Editora Xamã, São Paulo, 2000).
Transcrição: Autorizada por José Corrêa Leite, organizador da coletânea.
HTML: Fernando A. S. Araújo


A ronda infernal do capital

1. O Manifesto do Partido Comunista capta na fonte a extraordinária vitalidade do Capital enquanto “potência social” impessoal cujo dinamismo subverte o mundo e constitui o segredo da aceleração da história:

“Tudo o que era sólido desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar friamente sua posição social e suas relações mútuas”.(1)

2. Ele capta a lógica íntima deste movimento de extensão e de aceleração, pelo qual a burguesia tende à “exploração do mercado mundial”, retira da indústria sua base nacional, gera novas necessidades, desenvolve uma “interdependência universal” tanto das “produções materiais” quanto das “produções do espírito”, até gerar uma “literatura universal” a partir das literaturas locais e nacionais.

3. O que o jargão jornalístico designa pela palavra dissimuladamente neutra de “globalização” não é senão, na realidade, a conclusão da generalização planetária das relações mercantis. A mercadoria se apossa de tudo, tudo se torna mercantil, os corpos e os órgãos, as obras e os bens comuns. Esta universalização mercantil mutilada, longe de homogeneizar um mundo em que os últimos alcançariam os primeiros, cristaliza novas desigualdades, novas divisões, novas opressões, novos particularismos: o imperialismo se transforma, não desaparece. Longe de suavizar os costumes, o comércio de todos com todos, entregue à lei impiedosa da concorrência, alimenta a guerra de todos contra todos. O desenvolvimento das ciências e das técnicas revela possibilidades e capacidades até agora desconhecidas, mas as condições de opressão e de exploração metamorfoseiam este potencial de libertação em novas servidões e exclusões, em miséria política e moral.

4. O Manifesto anuncia a “revolta das forças produtivas modernas contra as relações modernas de produção e contra o regime de propriedade que condicionam a existência da burguesia e sua dominação”. Há 150 anos, quaisquer que sejam as saídas provisórias, este conflito nunca cessou. Tomou a forma de crises, guerras, revoluções.

Nas origens destas crises está a existência dupla da mercadoria, o desdobramento do valor em valor de uso e valor de troca, a separação da compra e da venda, da produção e da realização da mais-valia, a autonomização dos momentos da reprodução social uns com relação aos outros, cuja unidade apenas a violência restabelece periodicamente.

A generalização planetária das relações mercantis gera assim uma crise de civilização inédita, que assume a forma combinada de crise social e de crise ecológica. Esta crise se manifesta por uma nova partilha imperialista do planeta, em que desigualdades sociais e ecológicas se aprofundam e se superpõem.

5. Não se trata do “fim do trabalho” no sentido antropológico, mas sim de uma crise específica do trabalho assalariado, da relação entre trabalho assalariado e capital, da lei do valor enquanto lei impessoal de alocação de recursos e de distribuição de riquezas. O processo de troca reduz cada dia o trabalho concreto ao trabalho abstrato, o trabalho complexo ao trabalho simples, uniforme, indiferente, “por assim dizer destituído de toda qualidade”; a “uma abstração social”, cujos seres trabalham realmente, eles mesmos reduzidos a uma simples “carcassa de tempo”, tornam-se “simples órgãos”.

Marx tinha previsto que a tendência histórica à socialização, à complexificação do trabalho, à incorporação do trabalho intelectual e coletivo à produção, tornaria esta medida(2) cada vez mais miserável e irracional. Chegamos a isso.

Quando o nível de desenvolvimento das forças produtivas permitiria limitar voluntariamente sua utilização, quando o produto do trabalho se torna efetivamente social e coletivo, quando o trabalho deixa de ser “sob sua forma imediata” a grande fonte da riqueza, quando o tempo de trabalho necessário à sociedade poderia ser reduzido em proveito do tempo livre ou destinado à satisfação de novas necessidades não compráveis, a lei do valor continua a decidir cegamente a alocação dos recursos, a criação e a distribuição do emprego. Pela primeira vez na história do capitalismo, ela opera mesmo no curto prazo, de maneira quase instantânea em escala planetária, através dos mercados financeiros e dos deslocamentos rápidos de capitais.

Continuar a medir com base no tempo de trabalho “as gigantescas forças sociais acumuladas”, aprisioná-las na golilha da lei do valor, leva assim às injustiças, às crises, à desordem generalizada. A exploração mercantil da força de trabalho e a redução das relações sociais à medida comum do tempo de trabalho social se traduzem assim em um desemprego de massa endêmico, exclusões massivas, crises cíclicas de reprodução, mas também na incomensurabilidade crescente de atividades sociais irredutíveis apenas ao padrão do trabalho abstrato.

6. Do mesmo modo, a lógica mercantil deprecia o futuro e ignora os efeitos de limiar, de amplificação, de irreversibilidade próprios à biosfera. Duas lógicas antagônicas de enfrentam. A da natureza maximiza os estoques a partir do fluxo de raios solares, a do capital maximiza os fluxos em detrimento dos estoques não mercantis e não renováveis, que nenhum balanço puramente contábil pode levar em conta. Enquanto os ritmos naturais se harmonizam no longo prazo, a razão econômica procura ganhos rápidos e lucros imediatos. O Capital vive no dia a dia, na imediatidade do gozo e na despreocupação do amanhã. Só a burocracia, com seu egoísmo estreito, pode rivalizar com ele.

Contra as idéias aceitas do fetichismo mercantil, a ecologia crítica dá seu veredito implacável: o mercado não satisfaz as necessidades, mas a demanda; a moeda não é o real, mas sua representação fantástica; a utilidade coletiva é irredutível a uma soma de utilidades individuais; os lucros do dia não fazem necessariamente os empregos de amanhã;(3) enfim, a economia mercantil não é compatível com as leis da biosfera, e sua pequena bolha funciona em detrimento do conjunto. A crítica ecológica do cálculo econômico revela assim a contradição explosiva entre a racionalidade mercantil, que ignora por princípio o jogo das reservas, e a solidariedade da espécie através da sucessão das gerações. Ela põe a nu a incomensurabilidade entre a temporalidade do mercado e a da biosfera. Exige uma avaliação a longo prazo das necessidades e das riquezas distinta desta, imediata, do jogo da concorrência.

7. Então: Marx, gênio mau produtivista ou anjo da guarda ecologista?

Seria evidentemente absurdo exonerá-lo das ilusões prometeuanas de seu tempo. Mas seria abusivo fazer dele o cantor despreocupado da industrialização a qualquer custo e do progresso numa via de mão única. Sua crítica da economia mercantil enquanto campo da racionalidade parcelaria o conduz, de fato, a constatar que a reprodução sempre ampliada do capital e do consumo implica “a exploração da natureza inteira”, e a “exploração da Terra em todos os sentidos”. A natureza se torna assim “um objeto para o homem”, uma “pura questão de utilidade”, submetida ao imperativo categórico do lucro.

É por isto que Marx não se deixa levar a uma apologia cega do progresso. O desenvolvimento das forças produtivas e das necessidades enriquece certamente o desenvolvimento potencial do indivíduo e da espécie. Mas sua determinação pela coação do capital, pelo caráter alienado do trabalho e pela reificação mercantil, mutila estas necessidades: faz das forças produtivas um fetiche hostil. A universalização engendrada pelo círculo sempre ampliado da produção e da circulação é assim uma universalização truncada, desigualitária, formal.

Não é o progresso que é condenável, mas seu caráter abstrato e unilateral: a maneira pela qual os progressos da técnica “aumentam apenas a potência objetiva que reina sobre o capital” e reduzem a natureza a um objeto de exploração oferecido gratuitamente. Este progresso, socialmente determinado pela relação de produção capitalista consiste em “mudar a forma da servidão”, sem suprimi-la. Conduz ao esgotamento das “condições naturais” da reprodução da espécie. Assim, “todas nossas invenções e nossos progressos parecem dotar de vida intelectual as forças materiais enquanto estas reduzem a vida humana a uma força material bruta”.

Diante de seus desgastes e de suas desilusões, o progresso ainda deve portanto ser inventado, segundo critérios conformes às necessidades humanas e que respeitem sua ligação à natureza: o da redução massiva do tempo de trabalho obrigatório, o que permitiria reencontrar o sentido do jogo e dos prazeres do corpo, hoje submetidos ao princípio do rendimento; o da transformação qualitativa das relações entre os sexos, que constituem a primeira experiência simultânea da diferença irredutível do outro e da universalidade da espécie: o critério enfim de uma universalização efetiva e solidária da humanidade, prefigurada pelo internacionalismo revolucionário.

8. A lei do mercado e a relação de exploração são indissociáveis da propriedade privada.

Esta questão está no coração do Manifesto e do projeto comunista que enuncia: “Neste sentido, os comunistas podem resumir sua teoria nesta fórmula única: abolição da propriedade privada”; “em todos os movimentos, colocam a questão da propriedade, em qualquer grau de evolução que possa ter atingido, como a questão fundamental do movimento”. Não se trata, é claro, de abolir toda forma de propriedade, mas explicitamente “a propriedade privada de hoje, a propriedade burguesa” e o “modo de apropriação” fundado sobre a exploração de uns pelos outros.

A disseminação relativa ou aparente dos proprietários marcha hoje junto com concentração sem precedentes da propriedade privada e de seu poder em detrimento dos espaços e dos poderes públicos. Não se trata apenas da privatização ou da reprivatização da produção, mas também da informação, dos serviços, da água, do ar, da moeda, do direito, da violência.

As negociações sobre o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) ou sobre o Novo Mercado Transatlântico (NTM) ilustram este apetite insaciável da empresa privada, que sonha ditar sua lei aos povos varrendo os obstáculos estatais.

9. O Manifesto se inscreve na iminência do acontecimento anunciado.

Desde junho de 1848 a figura das revoluções futuras se desvela, a luta de classes parte em duas a história do mundo. O Manifesto é o enunciado programático límpido desta ruptura. Do mesmo modo que “a revolução burguesa alemã não poderia ser senão o prelúdio imediato de uma revolução proletária”, a revolução democrática torna-se daí por diante indissociável da revolução social. É esta lição que a idéia de “revolução em permanência” traduz, na Mensagem à Liga dos Comunistas, dois anos depois.

Ela conjuga, em uma só fórmula algébrica, a passagem da revolução democrática à revolução social, a passagem da revolução política à revolução econômica e cultural, a passagem enfim da revolução nacional à revolução mundial.

10. No momento da primavera dos povos, o espaço estratégico da política, onde se entrelaçam as correlações de força, é o do Estado Nacional. Para os autores do Manifesto, “o proletariado de cada país deve, em primeiro lugar, conquistar o poder político, erigir-se em classe dominante da nação, tornar-se ele mesmo a nação; ele é por isso nacional, embora de nenhuma maneira no sentido burguês da palavra”.

Pois “a estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se a cada dia mais impossíveis”. O que já era verdade em 1848, é mais verdade ainda hoje.

A mundialização conduz a uma metamorfose dos espaços e dos ritmos da política, a uma crise das regulações nacionais, sem que uma regulação transnacional coerente se imponha ainda. Nenhuma época orgânica emerge no horizonte de nosso época crítica, em que se defrontam as ordens seculares dos territórios, das nações, dos Estados. É a hora incerta das decomposições sem recomposições, das contradições sem sínteses, dos conflitos sem superação.

11. A crise de representação e o descrédito freqüentemente invocado da política são apenas o efeito visível da grande prostração das fundações modernas.

Ilustram o risco, anunciado por Hannah Arendt, de que “a política desapareça completamente do mundo”, de que a cidadania seja esmagada entre os automatismos do horror econômico e as consolações ilusórias do moralismo humanitário. Logo o mesmo acontece com as condições de possibilidade, presentes e futuras, de uma cidadania realmente democrática.

E contudo lutam…

12. “A história de todas as sociedades até nossos dias não foi senão a história da luta de classes”: o Manifesto desvenda o segredo do espectro e lhe dá carne, decifrando o enigma do movimento histórico.

A Revolução Francesa consumou a transformação das ordens e estados políticos antigos em classes sociais modernas, dissociou a vida política da sociedade civil, separou a profissão da posição social. O velho espírito corporativo sobreviveu, entretanto, no coração da sociedade moderna através da burocracia do Estado, cuja supressão só é possível se o interesse geral se torna efetivo e se o interesse particular se torna geral.

13. O Manifesto não se contenta em pôr a nu a relação de classe dominante, inerente ao reino do capital. Anuncia uma simplificação crescente desta relação, uma polarização cada vez mais despojada que confronta burgueses e proletários. Este prognóstico cumpre uma função política. Contribui para resolver a contradição presente no próprio Manifesto: enquanto o desenvolvimento industrial aumenta a força, a concentração e a consciência do proletariado, a concorrência o “esfarela”.

Como, apesar de tudo, do nada tornar-se tudo?

Como seres privados das finalidades de seu trabalho, mutilados pelo despotismo da fábrica, submetidos ao fetichismo da mercadoria, podem quebrar o círculo de ferro da exploração e da opressão? Por qual prodígio o proletariado realmente existente pode arrancar-se aos sortilégios do mundo encantando?(4)

A resposta do Manifesto se reduz a uma aposta sociológica na “constituição dos proletários em classe dominante”. O prefácio de 1890 de Engels o confirma:

“Para a vitória definitiva das proposições enunciadas no Manifesto, Marx se remetia ao desenvolvimento intelectual da classe operária, que deveria resultar da ação e da discussão comuns”.

Como se o desenvolvimento sociológico do proletariado determinasse mecanicamente sua emancipação política…

A história dolorosa do nosso século arruinou este otimismo, estreitamente associado às ilusões do progresso e às tentações cientistas do século passado.

14. O Manifesto não oferece uma teoria sociológica das classes.

A construção conceptual das relações de classe é elaborada posteriormente, até o último capítulo, inacabado, de O Capital.(5) Seja então O Capital, enquanto exposição não sociológica da questão: a teoria de Marx não é nem uma análise econômica, nem uma sociologia empírica das classes. Contra a racionalidade instrumental, que ordena e classifica, inventaria e registra, acalma e pacifica, ela se liga à lógica interna do conflito social, que permite penetrar nos segredos da fantasmagoria mercantil.(6) Não que os diversos antagonismos sejam reduzidos à relação de classe: a diagonal da frente de classe os liga, os trabalha, e os combina sem confundi-los. Enquanto a sociologia positiva pretende “tratar os fatos sociais como coisas”, Marx trata-os como relações. Não define “uma classe”. Apreende relações de oposição e luta através das quais “as classes” determinam-se reciprocamente.

15. É preciso, portanto, esperar O Capital para ver as classes desdobrarem suas determinações através do próprio movimento do capital, para vê-las aparecer enfim, no seu lugar, não no nível da produção, nem da circulação, mas no nível da reprodução de conjunto.(7)

O processo de produção traz uma primeira determinação através da relação de exploração e da luta pela partilha do tempo de trabalho entre tempo necessário e sobretrabalho; mas, “no curso ordinário das coisas”, o trabalho fica dolorosamente subordinado ao capital que dita sua lei.

O processo de circulação determina a relação de classe sob o ângulo do antagonismo entre compra e venda da força de trabalho, do conflito entre o assalariado detentor da sua força de trabalho e o capitalista detentor do capital monetário; o contexto do conflito não é mais aqui a extensão imediata da mais-valia, mas a negociação conflitiva da força de trabalho enquanto mercadoria.

No processo de reprodução de conjunto enfim, as classes são determinadas pela combinação concreta da extorsão de mais-valia, da divisão e da organização do trabalho, da distribuição da renda, da reprodução da força de trabalho em todas as esferas da vida social.

Só então as classes podem aparecer como uma coisa distinta da soma de indivíduos que cumprem uma função social análoga. Na medida em que “a taxa média de lucro depende do grau de exploração do trabalho total pelo capital total”, a luta de classe não se reduz à soma de interesses convergentes, mas manifesta “a exploração da classe operária pelo conjunto do capital”, “do trabalho total pelo capital total”.(8) As relações de classe são então irredutíveis ao face à face patrão — assalariado na empresa: pressupõem o metabolismo da concorrência, a determinação do tempo de trabalho socialmente necessário à reprodução geral da força de trabalho; dizendo de outra maneira, a própria luta que decide as condições desta reprodução.

16. Se O Capital deixa em suspenso (inacabado e talvez inacabável) o capítulo sobre as classes, por outro lado não impede uma representação simplificada do conflito de classe.

Sublinha, com efeito, que a divisão em classes, mesmo nos países mais desenvolvidos, não aparece jamais em sua forma pura, que aí também “os estados intermediários e transitórios encobrem as linhas de demarcação”.(9) Dizendo de outra maneira, a formação social real não se reduz à armação nua das relações de produção. Integra as dimensões políticas e culturais das relações ao Estado, da memória coletiva, da experiência das lutas.

Se, “à primeira vista”, mas apenas à primeira vista, a propriedade respectiva do capital, da terra e da força de trabalho parecem determinar “as grandes classes”, “entretanto”,(10)à segunda vista, estas grandes divisões se complicam no campo da luta política. É no 18 Brumário e em As lutas de classes na França que é preciso portanto ir buscar a luta de classes em atos, em toda a plenitude complexa de suas determinações.

17. O lugar dos conflitos de classe não decorre em Marx de uma descrição fenomenal dos antagonismos sociais. Está no coração das relações de produção e de troca capitalistas, da acumulação, e das crises.

Não seria possível, portanto, apreender indiferentemente o movimento histórico tanto segundo as relações de classe, quanto segundo as relações de família, de sexo, de geração, de raças, ou de nações. Na época do capital, a relação de classe constitui a chave da inteligibilidade da dinâmica histórica.

Entre as diversas representações simbólicas e políticas possíveis da conflitividade social, as construções em termos de pertencimento fechadas, corporativas ou comunitárias, se reforçam à medida que enfraquecem a construção e a consciência de classe. No encadeamento de contradições múltiplas que trabalham o corpo social, ao contrário do espírito de paróquia e de capela, a frente de classe fornece um fio condutor, portador de universalidade: para o proletário, há sempre do outro lado do muro, da fronteira, ou da fé, um outro si-mesmo.

18. A questão de hoje não é a do desaparecimento das classes (quem duvida seriamente da existência da burguesia, do reforço e da concentração da propriedade privada, da realidade quotidiana da exploração?), mas a das incertezas ligadas ao processo de construção/desconstrução em obra nas metamorfoses do trabalho e do próprio salariado.

Em quais condições as novas formas de organização, a individualização e a privatização do consumo, a atomização social generalizada, podem permitir a reconstrução de práticas e de uma consciência coletivas? Em quais condições a fratura entre o movimento social e a representação política pode ser superada em um mundo em que o espaço público é entregue à privatização e onde o bem comum escapa ao controle político?

As respostas acham-se em primeiro lugar na preparação de um novo ciclo de experiências acumuladas: a prova suficiente das classes, é que elas lutam; a prova suficiente da burguesia, é o barão Seillières.

19. A luta não é um jogo.

Como o jogo infinito, a luta de classes não conhece senão resultados provisórios (vitórias, derrotas, ou compromissos). A convocação fica aberta para sempre. Mas a teoria dos jogos tem por princípio que “ninguém pode jogar se é forçado a jogar” e que “quem é obrigado a jogar não pode jogar”. Nas nossas sociedades modernas, pode-se sempre procurar mudar de jogo e de condições passando de uma classe a outra. A mobilidade social permite estas transferências e estas promoções dentro de certos limites. O indivíduo pode assim ter a ilusão de escolher sua classe e seu lugar em torno do pano verde. Coletivamente, os papéis não deixam de ser menos solidamente distribuídos e perpetuados pela reprodução social. O oprimido é condenado a resistir, sob pena de ser pura e simplesmente esmagado. Esta obrigação de lutar proíbe toda confusão entre a luta das classes e a teoria dos jogos: lutar não é jogar.

20. Se as classes são o resultado de múltiplas determinações, nos níveis da produção, da circulação, da reprodução, e do Estado, a luta de classes concreta não se reduz à relação de exploração na empresa. A estrutura social não determina mecanicamente a representação e o conflito políticos. Estes supõem múltiplas mediações (nações, Estados, partidos, relações internacionais de dependência e de dominação) que fazem da luta uma luta política.

21. As relações de opressão entre sexos são irredutíveis às relações de classe específicas de uma época e de um modo de produção determinados. São entretanto imbricadas e articuladas.

No modo de produção capitalista, a economia doméstica é subordinada à economia mercantil sem se reduzir a ela. O trabalho doméstico diz respeito a uma duração distinta, a uma temporalidade distinta, a um cálculo distinto do referente ao trabalho assalariado, mas a economia de troca capitalista não abole a economia de transferência doméstica. Explora seu papel oculto na acumulação permanente básica, tanto na escala dos mercados nacionais quanto na da troca desigual internacional.

Daí a necessária autonomia estratégica do movimento de emancipação das mulheres.

22. O jargão da pós-modernidade é usado para pluralizar indefinidamente os conflitos, para negar qualquer modo de regulação global e toda coerência da relação social.

Levados no turbilhão de interesses fragmentados e egoístas, os indivíduos estariam condenados à solidão desolada de mônadas sem janelas e o parcelamento identitário generalizado seria o estádio supremo do fetichismo da mercadoria. O discurso pós-moderno dissolve assim o próprio capital em uma rede indiferenciada de relações e instituições.

Ora, se a acumulação do capital se alimenta de diversas opressões, e molda-as, perpetua-as, combina-as e unifica-as sob seu bastão, nem por isso o conflito de classe passa a ser apenas um conflito entre outros: ele estrutura a socialização no seu conjunto e determina os outros modos de conflito.

O movimento real em que se abole a ordem existente

23. O Manifesto Comunista não traça os planos da sociedade futura.

Não propõe um modelo pronto para o uso da sociedade perfeita. Não propõe substituir “a atividade social” pelo “engenho” dos inventores de sistemas, “as condições históricas da emancipação por condições fantasiosas”, a organização paciente do proletariado em classe pelas “experiências em pequena escala”, apenas pela “força do exemplo” destinada ao fracasso.

Procura explicitar o movimento real de abolição da ordem existente para “atacar a sociedade existente em suas próprias bases”: nada de cidade ideal, nada de “melhor dos mundos”, portanto, mas uma lógica da emancipação e do possível, enraizada na realidade do conflito.

24. A derrubada da ordem estabelecida tem por horizonte “uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.

O comunismo aparece assim como o máximo de desenvolvimento individual, que não poderia ser confundido com as miragens de um individualismo sem individualidade: a espécie encontra no desenvolvimento singular de cada um (uma), de suas necessidades e de suas capacidades, a condição de seu próprio desenvolvimento universal.

Reciprocamente, o livre desenvolvimento de cada um não se concebe sem o livre desenvolvimento de todos: a emancipação não é um prazer solitário.

25. Dirigido para este horizonte, o Manifesto não propõe um programa detalhado, mas indicações, às quais, como dirá mais tarde Engels, não se deve dar uma importância exagerada. Nem por isto deixam de ser significativas.

Tocam o essencial, e sob diversos ângulos: a “violação despótica do direito de propriedade e do regime burguês de produção”, quer se trate da “expropriação da propriedade fundiária”, do imposto fortemente progressivo ou da abolição do direito de herança.

Tendem à primazia da política sobre a economia, do bem comum sobre o interesse egoísta, do espaço público sobre o espaço privado, quer se trate da centralização do crédito, de um serviço público de transporte, da criação de empresas públicas, da reorganização do território pelo aproveitamento das terras incultas e melhora das terras cultivadas segundo um plano geral”, ou ainda da “educação pública e gratuita para todos”.

Põem enfim em questão a divisão do trabalho na sua forma mais extrema, a divisão entre cidades e campos, entre o trabalho agrícola e o trabalho industrial.

26. O Manifesto apreende praticamente no seu nascimento as correntes políticas que, sob formas diversas, percorrem duradouramente a história do movimento operário.

O “socialismo feudal”, nostálgico de uma passado mítico, se reencontra sob múltiplas variantes do populismo reacionário. Não encontrando as “condições materiais para a libertação do proletariado”, e procurando “uma ciência social” e “leis sociais” que possam “criar as condições”, os socialistas utópicos caem facilmente na utopia cientista. Outros enfim se contentam de corrigir as “anomalias sociais” da ordem burguesa organizando a beneficência em nome de uma moral humanitária.

Entre estas correntes reacionárias, reformadoras, utopistas, cientistas, há uma que merece uma atenção particular: o estado “embrionário do proletariado” e a “ausência de condições materiais de sua emancipação” alimentam um “igualitarismo grosseiro” ou um “comunismo grosseiro”. Suas características anunciam o fenômeno do despotismo burocrático: longe de realizar o desaparecimento das classes, generaliza o salariado; longe de realizar o desaparecimento do Estado na livre associação, cumpre a estatização integral da sociedade; longe de abolir a exploração capitalista, realiza a acumulação primitiva sob a forma de uma exploração burocrática e parasitária.

27. Sobre a via da emancipação, a conquista do poder político constitui a alavanca da transformação econômica e da libertação cultural: “O proletariado se servirá de sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo o capital à burguesia”.

No Manifesto, esta “primeira etapa da revolução operária”, na qual o proletariado se constitui em classe dominante, é rigorosamente sinônimo de “conquista da democracia” e de estabelecimento do sufrágio universal.

Ao fio e à medida dos progressos da associação e do desaparecimento dos antagonismos de classe, o poder público é chamado a “perder seu caráter propriamente político”. Assim, a Comuna de Paris será percebida como a “retomada do poder de Estado pela sociedade de que ele se torna a força viva, no lugar de ser a força que a domina e subjuga”, como “a forma política da emancipação social” em detrimento do Estado parasita, “aborto sobrenatural da sociedade”.

O problema, é que esta emancipação audaciosa, sua impaciência libertária, oposta a todo fetichismo burocrático do Estado, faz um curto-circuito na elaboração paciente de um pensamento institucional e jurídico da democracia: o desaparecimento anunciado deve resolver as antinomias da representação democrática.

28. Se o comunismo do Manifesto sublinha as questões sempre tão decisivas da propriedade, da conquista do poder e da democracia, da constituição do proletariado em classe, as experiências acumuladas desde então permitem medir suas lacunas e fraquezas:

— a passagem contínua da classe social à “classe política” não permite pensar a especificidade da luta política, e das formas institucionais e jurídicas da democracia.

— a revolução das relações de propriedade e de produção parece determinar mecanicamente a transformação das relações de produção de conjunto, como se sua suposta mudança automática dispensasse de pensar precisamente a transformação dos conteúdos e da divisão do trabalho, das relações de poder, ou das relações de sexo.

Boas vindas ao espectro que volta

29. A questão para nós, já que o projeto comunista foi associado para sempre à promessa revolucionária do Outubro russo, é a de saber o que fica hoje desta imensa esperança.

Se não ficasse mais que apenas o fato de ter ousado, pela primeira vez, desafiar a servidão moderna, o acontecimento, a profecia política de que é portador, seria demasiado importante, como foi a Revolução Francesa, “para não ter de ser posto de lado em memória dos povos”. Tanto quanto a Restauração monárquica não pôde apagar da memória “a hipótese do cidadão e da representação do povo, a restauração presente não poderá afastar a hipótese da partilha” que o estalinismo traiu.

30. Se fomos duplamente vencidos, pelo inimigo declarado burguês e pelo inimigo burocrático do interior, e se algumas vezes também nos enganamos, nosso grande erro consiste nesta superestimação do homem, que compartilharam todos os “príncipes do possível”. Ninguém poderia reprová-los por ter tentado ultrapassar os limites em que se apagam os últimos traços de um Deus de sinistra memória. Seria incomparavelmente mais grave, realmente vergonhoso, e fundamentalmente humilhante, não ter nem mesmo tentado, ter dobrado a espinha diante do sentido da história, ter-se resignado a suas servidões voluntárias.

31. Terá então sido necessário o desaparecimento de suas caricaturas e de suas contrafações para que o espectro do comunismo volte a assombrar o mundo. Pois o de hoje não é menos violento, menos desigual, menos inaceitável que o de ontem.

Trata-se sempre de revolucioná-lo. Os fracassos e as derrotas do século que transcorreu lançam entretanto dúvidas sobre as vias e os meios desta grande transformação.

Ao fio das experiências históricas, a idéia da Revolução foi carregada de um triplo significado. Fórmula algébrica da mudança das sociedades modernas, ela se revestiu em primeiro lugar do sentido mítico (no sentido soreliano do termo) de uma imagem ainda imprecisa do futuro desejado e da humanidade libertada. Através da prova sangrenta das revoluções de 1848 e da Comuna de Paris, ela foi carregada de um conteúdo programático, que ligou indissoluvelmente a revolução democrática à revolução social. Com nosso século atormentado, o “das guerras e das revoluções”, a Revolução se enriqueceu enfim com um conteúdo estratégico, com um sentido da iniciativa e do movimento, da ação desenvolvida em uma temporalidade partida, feita de discordâncias e de contratempos.

A combinação explosiva da crise social e da crise ecológica põe em questão o futuro mesmo da civilização e da espécie humana. Confirma, para conjurar a catástrofe, a urgência e a atualidade de uma palavra revolucionária de alerta e de despertar, “aberta ao que abala”, mesmo se as circunstâncias são inéditas e se é necessário explorar caminhos novos: como os militares, sempre atrasados em uma guerra, porque alimentados pelas batalhas passadas, os revolucionários estão sempre atrasados em uma (ou várias) revoluções.

Mais vale sabê-lo, para libertar o mito mobilizador de sua parte de crença, e para imaginar uma revolução profana sem grande sujeito heróico. Uma revolução permanente, em que se entrelaçam, nas misérias do presente, o ato de enfrentamento político e o processo duradouro das mudanças econômicas e culturais.

32. Começado com a grande promessa dos amanhãs que cantam, o século se encerra com o desencanto de suas esperanças inaugurais. Deixando na sua esteira um amontoamento de ruínas, ele anuncia um futuro mais estreito, obscuro, e cheio de perigo, acuado entre o desgaste dos que não podem mais dominar e a impotência dos que não podem ainda.

Mudar o mundo não se torna menos necessário, mas mais difícil do que tinham imaginado os pioneiros do comunismo. Nenhum grande fetiche com maiúsculas — nem Divina Providência, nem Tribunal da História, nem Verdade Absoluta da Ciência — pode daqui por diante nos aliviar de uma responsabilidade prosaicamente humana nas incertezas da história aberta. Mudar o mundo, é então também, e ainda, interpretá-lo.

Quanto mais nos recusamos a sofrer as vontades imaginárias de uma História fetiche, mais temos a fazer, sem a bela certeza de uma fé passada, sem contarmos histórias a nós mesmos, na temível obrigação, em cada detalhe leiga e profana, de trabalhar para a incerteza. Este compromisso sem garantia de sucesso, no perigo do erro e da derrota, é uma aposta na improvável necessidade de abolir a ordem estabelecida.

33. Mesmo quando, tendo em vista os crimes cometidos em seu nome, as palavras estejam hoje doentes e comprometidas, até o ponto de ser necessário tomar emprestadas ou inventar novas, continuaremos no fundo comunistas (comunistas marranos se preciso), simplesmente porque o comunismo é a expressão histórica e programática mais exata da luta contra a lógica despótica do capital. Expressa

“o movimento emancipador, o levantamento requerido, desde que alguém se declare estar com a paciência esgotada por ter experimentado que os outros nomes, ‘democracia e liberdade’, são dominação, exploração, e consenso em que abole-se a política; houve a haverá comunismo, porque as sociedades modernas são fendidas, disjuntas entre o irreversível princípio igualitário e a obstinação raivosa da dominação, porque o diferente se aloja no próprio oco da palavra liberdade”.(11)

 


Notas:

(1) As citações sem referências são extraídas do Manifesto do Partido Comunista. (retornar ao texto)

(2) Bensaïd se refere à lei do valor: a medida do valor das mercadorias com base no tempo de trabalho (Nota do tradutor). (retornar ao texto)

(3) Referência uma um slogan lançado pela social-democracia alemã, justificando sua defesa dos lucros: “os lucros de hoje são os investimentos de amanhã e os empregos de depois de amanhã” (Nota do tradutor). (retornar ao texto)

(4) Bensaïd faz aqui uma referência a uma passagem de O Capital, na parte final do Capítulo XLVIII do Livro III, “A fórmula trinitária”, em que Marx resume o absurdo da visão ideológica da economia capitalista, propagada pelos economistas que ele chama de “vulgares”: “Em capital-lucro ou, melhor ainda, capital-juros, terra-renda fundiária, trabalho-salário, nessa trindade econômica que faz a conexão entre os componentes em geral do valor e da riqueza em geral com suas fontes, está consumada a mistificação do modo capitalista de produção, a coisificação das relações sociais, o amalgama direto das relações materiais de produção com sua determinação histórico-social: o mundo encantado, invertido e posto de cabeça para baixo em que Monsieur le Capital e Madame la Terre dançam sua ronda fantasmagórica como caracteres sociais e, ao mesmo tempo, como simples coisas”. Para Marx, nem o valor (ou a riqueza em geral) são formados pela soma de lucros (ou juros), renda da terra e salários, e muito menos estas três categorias econômicas correspondem à contribuição ao produto dos três “fatores de produção” (“capital”, “terra” e “trabalho”). Mas é desta maneira que as relações capitalistas são percebidas pelos que ficam presos dentro da ideologia burguesa. (Nota do tradutor). (retornar ao texto)

(5) O Livro III de O Capital termina com o fragmento inacabado de um capítulo (Capítulo LII) chamado As Classes. (retornar ao texto)

(6) Nova referência à passagem de O Capital citada anteriormente. O tema da “fantasmagoria” das relações mercantis começa a ser desenvolvido no primeiro capítulo do Livro I, na famosa passagem sobre o “fetichismo da mercadoria”, atravessa todos os três Livros e é retomado na última seção do Livro III, em que estão o capítulo sobre A fórmula trinitária e o capítulo (fragmento) sobre As classes (Nota do tradutor). (retornar ao texto)

(7) Marx divide O Capital em três livros; o primeiro trata do processo de produção do capital, o segundo do processo de circulação, e o terceiro do processo de conjunto. É ao final deste último, como foi dito, que se inicia o fragmento sobre as classes. (retornar ao texto)

(8) Bensaïd faz aqui referência à formação de uma taxa geral de lucro, determinada  pela razão entre a mais-valia global e o capital adiantado global, estudada por Marx na segunda seção do Livro III de O Capital, especialmente no Capítulo IX, onde aparecem as expressões entre aspas (Nota do tradutor). (retornar ao texto)

(9) Frase do último capítulo (fragmento) de O Capital (Nota do tradutor). (retornar ao texto)

(10) Referências ao fragmento sobre as classes: “(…) o que forma uma classe? (…) À primeira vista, a identidade dos rendimentos e das fontes de rendimento. São três grandes grupos sociais, cujos componentes (…) vivem respectivamente de salário, lucro e renda da terra (…). Entretanto, deste ponto de vista, médicos e funcionários também formariam duas classes (…)” (Nota do tradutor). (retornar ao texto)

(11) Alain Brossat, “Comme en finir avec la politique (à propos d’un Livre noir et d’un énergumène)”, Critique Communiste 151, primavera 1998. (retornar ao texto)

Inclusão 06/02/2011
Última alteração 19/01/2013