Carta a Paul Sweezy

Charles Bettelheim

15 de dezembro de 1968


Primeira Edição: Monthly Review, Vol 20, Nº. 10, Março de 1969

Fonte: Portucalense Editora Porto, setembro 1971

Tradução: Alberto Saraiva

Transcrição: Graham Seaman

HTML: Fernando Araújo.


capa

Caro Paul:

Li com muito interesse o seu artigo intitulado «Checoslováquia, capitalismo e socialismo», no número de Outubro de 1968 da Monthly Review. Nele encontrei numerosas proposições importantes e justas, nomeadamente quando V. diz que as reformas checoslovacas fortificavam o sistema existente, sublinhando que se tratava de um novo passo na via capitalista (V. diz: «em direcção ao capitalismo»); a sua denúncia da confusão entre as categorias jurídicas e as relações de produção reais constitui também uma advertência indispensável, assim como o que diz acerca da propriedade capitalista que não é necessariamente uma propriedade «privada» (pela minha parte, acho que seria talvez melhor falar neste caso de propriedade «individual», porque a propriedade capitalista, enquanto relação social, é sempre uma propriedade «privada» — a de uma classe — mesmo quando reveste uma forma jurídica «social»; creio que, quando Marx fala da «abolição do capital como propriedade privada no interior dos limites da própria produção capitalista», visa precisamente a propriedade «privada» no sentido jurídico); parece-me também muita justa uma parte das conclusões a que V. chega, particularmente quando diz que «em última análise... a invasão da Checoslováquia era um sinal da fraqueza soviética face a uma crise crescente do conjunto do bloco».

Mas este texto encerra também desenvolvimentos que me parecem errados e que eu queria discutir. Limitar-me-ei a dois problemas fundamentais:

  1. o problema da natureza do socialismo e
  2. o problema das raízes das tendências para a restauração do capitalismo (portanto, da origem dessa restauração onde ela já visivelmente se deu, como na Jugoslávia).

Começarei pelo segundo ponto.

A sua tese parece ser essencialmente a seguinte: a tendência para a restauração do capitalismo tem a sua «origem» no papel atribuído ao mercado, no lugar dado aos estímulos materiais e nas «formas de organização» (aquilo a que V. chama o controlo das empresas «dentro das próprias empresas»).

Pela minha parte, penso que esta enumeração não designa mais do que «factos secundários», índices ou resultados e não o factor decisivo.

A meu ver, o factor decisivo, isto é, dominante, não é de natureza económica mas política.

Este factor político decisivo (cuja importância parece infelizmente negar nas últimas páginas do seu artigo) consiste no facto de que o proletariado (soviético ou checoslovaco) perdeu o poder político a favor de uma nova burguesia, de modo que a direcção revisionista do Partido Comunista da União Soviética é hoje o instrumento desta nova burguesia.

Se não se reconhecer que o proletariado perdeu o poder, não se pode explicar nem a invasão da Checoslováquia, nem a política internacional da U.R.S.S. (a natureza das suas relações com os Estados Unidos, por um lado, e com a China, por outro), nem as «reformas» e os resultados para que tendem (o pleno desenvolvimento do «mercado» e a dominação económica, política e ideológica sobre as massas que as formas mercantis permitem).

Colocar como factor primeiro — como V. faz — não as relações de classe (a existência de uma burguesia «colectivamente» proprietária dos meios de produção) mas as relações mercantis parece-me basear-se num erro de princípio e conduzir a uma série de outros erros.

O erro de princípio é exactamente o que V. denuncia no fim da nota 2 do seu artigo, quando diz que, para compreender o que é um modo de produção (ou o que é uma formação social), é preciso cavar profundamente «abaixo da superfície», para pôr a claro as relações e os processos ocultos. Ora, parar na existência de um «mercado» (e, portanto, também da moeda e dos preços) para definir a natureza de uma formação social é precisamente parar à superfície, parar naquilo que é imediatamente aparente; portanto, é não ir às relações profundas. Estas situam-se ao nível da produção, isto é, das relações sociais fundamentais. É o sistema destas relações que produz efeitos determinados (económicos, políticos, ideológicos) sobre os agentes da produção. Um destes efeitos essenciais pode ser o de repartir os agentes em classes, sociais e colocar estas classes em relações objectivas determinadas (de dominação, de exploração, etc.).

A prática (económica, política, ideológica) dos agentes, e nomeadamente dos dirigentes políticos, só pode ser explicada a partir do lugar que eles ocupam no sistema das relações sociais.

O erro de princípio, que consiste em parar nos fenómenos de superfície,(1) na existência de um mercado, da moeda e dos preços (que também existiam antes do XX Congresso e que existem em todos os países socialistas) e na prática dos dirigentes em relação ao «mercado» (prática que, precisamente, seria preciso explicar) conduz inevitavelmente a outros erros.

O mais grave diz respeito ao problema da natureza do socialismo; queria por isso deter-me em algumas das suas formulações.

V. condena muito justamente o termo «socialismo de mercado» (market socialism), mas as razões que invoca para pronunciar essa condenação não me parecem teoricamente fundadas.

Se é justo insurgirmo-nos contra o termo «socialismo de mercado» é, em primeiro lugar, porque este termo põe a tónica, de modo unilateral, na existência de formas mercantis na sociedade socialista. É este o índice do carácter ideológico dessa expressão; e o índice de uma ideologia favorável a um largo desenvolvimento das relações mercantis, desenvolvimento que (só possível sob a dominação de uma burguesia) conduz à plena restauração do capitalismo.

Mas as críticas que V. formula são outras.

Por um lado, o que V. denuncia não é o desenvolvimento, para além de um certo ponto, das relações mercantis, mas a própria existência das formas mercantis; mais, V. isola esta existência e faz portanto abstração das condições sociais e políticas que permitem o pleno desenvolvimento das formas mercantis. Deste modo, «privilegia» inteiramente estas formas, que apresenta sem as referir às condições sem as quais é impossível «descrever» o seu significado. Com isso — e retomo aqui a proposição que já enunciei — V. privilegia um facto secundário, um facto de superfície, e deixa na sombra o que é essencial, primeiro: as relações sociais fundamentais, as relações de classes.

Por outro lado — e isto é uma consequência do ponto anterior — a sua argumentação encerra, a meu ver, uma importante confusão. V. diz que o termo «socialismo de mercado» é «contraditório». Formalmente, é evidente que isto não é um argumento, pois toda a realidade é contraditória. O único problema consiste em saber se a expressão verbal de uma realidade e das contradições que a caracterizam é ou não adequada, quer dizer, se essas contradições são analisadas em termos científicos ou se são somente mostradas em termos ideológicos.

No que diz respeito à contradição que constitui o objecto desta discussão, e que V. designa como a que reveste a forma de uma contradição entre o «plano» e o «mercado», o próprio facto de ela ser uma contradição da prática indica que não é nem uma contradição «verbal» nem uma «contradição ideológica» (no sentido de uma contradição interna a uma certa «concepção» ideológica do socialismo) mas sim que exprime em termos ainda ideológicos uma contradição real, efectiva.

Mais ainda (e creio que é aqui que se encontra a raiz do nosso desacordo), a contradição «plano»-«mercado» designa uma contradição essencial do socialismo enquanto forma de transição ou de passagem, uma contradição que é o efeito de superfície provocado por uma contradição mais profunda, pela contradição fundamental da forma de transição, que, evidentemente, se situa ao nível das relações de produção e das forças produtivas. Em certos casos, esta contradição de superfície toma-se a contradição principal, mas em caso algum se pode tratá-la correctamente sem a relacionar com a estrutura das relações de produção e das forças produtivas.

Tudo isto significa que, ao longo da transição entre o capitalismo e o comunismo, a contradição entre «mercado» e «plano» subsiste.

O que caracteriza o socialismo, por oposição ao capitalismo, não é (como o seu texto sugere) a existência ou a inexistência de relações mercantis, da moeda e dos preços, mas sim a existência da dominação do proletariado, da ditadura do proletariado. É pelo exercício desta ditadura em todos os domínios — económico, político, ideológico — que as relações mercantis podem ser progressivamente eliminadas, por meio de medidas concretas adaptadas a uma situação e a uma conjuntura concretas. Esta eliminação não pode ser «decretada» nem «proclamada»: exige uma estratégia e uma táctica políticas. Na sua falta, as mais belas proclamações podem conduzir ao resultado inverso do que se afirma (e pensa) querer atingir.

A ideia de uma «abolição directa» e «imediata» das relações mercantis é tão utópica e perigosa como a ideia de uma «abolição imediata» do Estado, e é da mesma natureza: abstrai das características específicas (isto é, das contradições específicas) desse período de transição que é o período de edificação do socialismo.

O «sentido» da evolução ao nível das formas (o desenvolvimento ou o recuo das formas mercantis) é um índice da evolução das relações sociais, mas só um índice. Por isso, «limitar-se» a este índice — sem pôr a claro o movimento das contradições que determinam essa evolução — pode ser absolutamente enganador. Em certas circunstâncias, o proletariado no poder pode ser levado, também ele, a recuos estratégicos ou tácticos na frente económica.

Bem entendido, a primeira condição para que estes recuos não se transformem em derrotas é a de serem claramente pensados como tais e não pensados (e «apresentados») como «vitórias», visto que aquilo que, em última análise, se visa é o desaparecimento completo das relações mercantis, desaparecimento que indubitavelmente só é possível com o desaparecimento do Estado, o que só se pode atingir com o estabelecimento do comunismo à escala mundial.

Se, na União Soviética, a restauração de uma dominação burguesa é acompanhada por uma extensão do papel do mercado é, evidentemente, porque esta dominação só é completa («acabada») com a plena restauração das relações mercantis; é aliás por isso mesmo que esta restauração só pode compreender-se como um efeito, como um fenómeno segundo e não como um fenómeno primeiro.

Um outro erro (que é uma «transformação» do anterior) parece-me ser a afirmação de que a existência da «contradição mercado-plano» levaria à restauração do capitalismo (o que se encontra enunciado na sua nota atrás citada).

Na realidade, esta contradição, ao nível das formas, não «leva» a nada. Tudo depende da forma como ela é tratada e esta forma, por sua vez, depende das relações de classes, inclusive ao nível ideológico.

Acrescentarei que, se considero útil apresentar estas críticas, é porque as formulações que V. avança — e não é o único a fazê-lo: encontram-se designadamente nos discursos de Fidel, nos escritos do «Che» — acabam objectivamente por produzir efeitos de obscurecimento ideológico.

Com efeito, estas formulações iludem o problema essencial do socialismo — o problema do poder — cuja defesa, como acima referi, pode mesmo exigir, em certas condições, recuos na frente económica (por exemplo, a N.E.P.). Se tomássemos as suas fórmulas à letra, Lenine, ao pronunciar-se pela N.E.P., ou seja, ao «reforçar o mercado», teria agido «em proveito do capitalismo».

O efeito de obscurecimento ideológico derivado da formulação que critico manifesta-se em particular na análise que V. propõe das «reformas económicas». Ao ler esta análise, tem-se a impressão de que, no momento de decidir essas reformas, os dirigentes soviéticos teriam podido «escolher» entre duas «técnicas»:

«Uma teria sido uma revolução cultural no sentido específico que os chineses deram a este termo... A outra resposta era apoiar-se cada vez mais na disciplina do mercado e no incitamento do lucro.»

Ora, o que está em causa não é uma «escolha» entre duas técnicas que permitiriam o «progresso» da economia mas uma linha de demarcação que separa duas políticas, duas classes.

É certo que o problema que fica por resolver, ao nível histórico, é o do processo concreto que permitiu na União Soviética a reconstituição de uma classe burguesa poderosa e, depois, o seu acesso ao poder. O XX Congresso, com efeito, não poderia ter o conteúdo que teve nem produzir os efeitos que produziu se não existissem relações sociais desfavoráveis à ditadura do proletariado. Aliás, isto mostra bem que o desenvolvimento destas relações sociais não foi «determinado» pelo desenvolvimento do mercado mas que, pelo contrário, lhe era anterior.

Em contrapartida (e aqui estou também em desacordo com o seu artigo), ao nível teórico, os textos do Partido Comunista Chinês acerca da Revolução Cultural, dos seus objectivos e dos seus métodos, mostram claramente as condições ideológicas e políticas que devem ser realizadas para impedir com êxito uma restauração burguesa. É verdade que estes textos não são somente teóricos: contêm numerosas indicações concretas que dizem respeito às condições concretas da China. Estes textos não podem, portanto, ser mecanicamente «aplicados» noutros sítios, mas o seu núcleo teórico tem um valor universal.

Acrescentarei que, em determinadas circunstâncias históricas, o efeito de obscurecimento ideológico de que falei acima encontra-se redobrado por um efeito de deslocamento; isto acontece quando as posições ideológicas que provocam este efeito de obscurecimento «alimentam» uma prática política. É o caso, penso, da prática política da direcção cubana, sobre a qual acho necessário dizer aqui algumas palavras.

Se esta direcção dá uma tal «importância» aos problemas das relações mercantis, ao ponto de fazer delas o «centro» da sua concepção ideológica e da sua prática política, isto não pode ser apenas consequência de um «erro» subjectivo. Eu direi que é o efeito de uma ideologia e de uma política que concentram todo o poder nas mãos de um grupo dirigente e que não criam, portanto, as condições necessárias para o exercício democrático do poder proletário (nem as condições ideológicas, nem as condições de organização, nem as condições políticas).

Por um lado, esta prática política tem um significado de classe, que não pode ser analisado aqui e de que apenas direi que está ligado à dominação política de uma fracção «radicalizada» da pequena burguesia. Por outro lado, acarreta consequências necessárias, isto é, que se impõem necessariamente a um governo que ase reclama» do socialismo.

Uma dessas consequências é precisamente um deslocamento ideológico: a identificação do socialismo não com a ditadura do proletariado (portanto, com o poder das massas trabalhadoras, com a dominação da ideologia marxista-leninista, com a prática de uma linha de massa pela direcção revolucionária, etc.) mas sim com o «desaparecimento» das relações mercantis.

Este «desaparecimento», evidentemente, é puramente mítico, pois não pode ter lugar nas condições concretas dadas, em que que existem necessariamente a moeda e os preços, de modo que o facto de se «negar» essa existência conduz ao inverso do que se deseja, designadamente ao desenvolvimento de um mercado negro! Apesar dos discursos e da repressão, os efeitos das relações reais acabam sempre por se impor.

Ao substituir-se a ditadura necessária do proletariado pelo mito do «desaparecimento» do mercado, da moeda, etc., é evidentemente uma linha política que se põe em prática, uma linha que corresponde a forças sociais e a uma ideologia precisas.

Os discursos da direcção cubana(2), e nomeadamente o discurso de Fidel de 23 de Agosto de 1968, confirmam-no: o que a direcção cubana «critica» no que se desenvolveu na União Soviética e nos países do Pacto de Varsóvia não é a restauração de uma ditadura burguesa, não é sequer a ausência de democracia proletária e de uma linha de massa, mas apenas certos efeitos de uma dominação de classe de que precisamente não se trata.

Se dela não se trata, é porque a própria direcção cubana não a vê. Se não a vê, é porque a sua ideologia faz com que este problema crucial não possa sequer «apresentar-se-lhe». A seus olhos, a «ditadura do proletariado» está «assegurada» pela existência de determinadas «formas» (uma determinada forma jurídica de propriedade, uma determinada forma de organização do Partido, uma determinada forma de expressão, etc.) e não por relações sociais e políticas concretas.

Por isso, se insisti em sublinhar os efeitos ideológicos do papel central que V. confere à contradição «mercado-plano», é porque o facto de se atribuir um tal papel a esta contradição (que não passa de uma contradição ao nível das formas) torna possível que essa mesma contradição ocupe, na representação ideológica, o lugar ocupado na análise marxista pela contradição fundamental burguesia-proletariado. Em determinadas condições políticas, este deslocamento permite iludir os problemas reais da transição do capitalismo para o comunismo, pois estes problemas dizem respeito, em primeiro lugar, ao desenvolvimento da contradição proletariado-burguesia. A partir daí, este «deslocamento» produz, ao mesmo tempo, efeitos ideológicos e efeitos políticos.

(15 de Dezembro de 1968)
Monthly Review, Março de 1969.


Notas de rodapé:

(1) Creio que se pode dizer que, na análise de uma formação social, há dois tipos de «erros» (isto é, de abordagens ideológicas) em que facilmente se incorre. Um consiste em «limitar» a «análise» às formas jurídicas (é este o erro que V. denuncia), o outro consiste em «limitar» a «análise» às formas económicas (este é o que V. comete e que também o discurso da economia política que só se preocupa com as formas— a troca, a moeda, os preços, o mercado, etc. — encerra). Em ambos os casos não se procede a uma verdadeira análise visto que se para precisamente nas formas, isto é, no que é «manifesto», quando a análise deve ir ao que está «oculto» e que o manifesto dissimula (ao mesmo tempo que o «revela»). (retornar ao texto)

(2) A análise política exige evidentemente que nunca nos limitemos a tomar à letra os discursos ideológicos. Também aqui não há análise se não se passa além da superfície do discurso, portanto, do seu «sentido» manifesto, para descobrir o seu sentido latente, aquele sentido que os termos do discurso dissimulam e revelam ao mesmo tempo. Sabe-se que esta clarificação exige, em primeiro lugar, a referenciação dos lugares do discurso em que se produz um «encobrimento», lugares que constituem «pontos críticos». Estes são evidentemente diversos consoante as ideologias em causa, mas apresentam-se frequentemente sob a forma de «mitos» que são os sinais do impensado, de temas obcessionais e passionais que devem ser analisados para libertar um sentido outro que o que eles manifestam — sentido que não está mais «presente» na consciência do autor do discurso do que na do auditor ou do leitor que interpretam ingenuamente o sentido literal.

Nos discursos da direcção cubana, sobretudo a partir de 1964, estes temas obcessionais e míticos são constituídos pelo «mercado», o «dinheiro», os «preços», os «cálculos» dos economistas, etc. Na análise, estes temas aparecem como os «significantes» pelos quais se encontram «recalcados» (e «representados») significados completamente outros: tudo o que «ameaça» um poder político altamente concentrado e que se elevou acima das massas. Estas «ameaças» (pensadas como «ameaças contra o socialismo») apresentam-se sob a forma manifesta do «mercado», do «dinheiro», etc., mas, para lá desta forma, o que é por ela «representado» são as massas, o seu trabalho (cujo cálculo se deve realmente fazer, se não se quer que esse trabalho seja arbitrariamente dissipado), as suas aspirações, os seus movimentos espontâneos sempre possíveis (o discurso de 23 de Agosto de 1968, que precisamente denuncia a «espontaneidade» das relações mercantis, é justamente «significativo»).

É a presença-ausente destes «significados», não pensados, que alimenta a veemência dos discursos contra a moeda e as relações mercantis.

É evidente que, na prática política real, se pode distinguir entre uma prática proletária e uma prática não proletária.

A primeira tem uma preocupação constante com o «rigor financeiro», a estabilidade e a baixa dos preços, a elevação do nível de vida das massas pela redução dos preços dos produtos de grande consumo. Foi esta uma das preocupações da política soviética até ao XX Congresso. É esta a preocupação constante da política chinesa. Esta preocupação não é «fetichismo» mas sim produto do respeito pelo trabalho fornecido pelas massas e pelos seus direitos.

A segunda prática é indiferente à inflação, à penúria, e cobre esta indiferença com o desprezo pelos «problemas económicos, monetários e financeiros». Mas, de facto, tal desprezo é um desprezo pelo trabalho das massas e pelos seus direitos. E, portanto, da mesma natureza que o desprezo pela democracia proletária, pela livre expressão das opiniões das massas. E, se este segundo desprezo não pode ser expresso, se ele é recalcado, o primeiro pode, no entanto, tomar uma forma ideológica que lhe permite afirmar-se abertamente. Esta forma remete assim para um duplo significado, um «pensado» em termos ideológicos (Isto é, na realidade, não pensado), o outro rigorosamente «impensado». (retornar ao texto)

Inclusão: 24/06/2020