A Greve na França segundo a Imprensa

Pierre Broué


Primeira Edição: ....

Fonte: http://www.oolhodahistoria.ufba.br

Tradução do francês: Jorge Nóvoa e Robert Ponge

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


A greve de 1995 não foi como as outras. Para não percebê-lo, era preciso ser membro do neo-gaulista e direitista RPR (Rassemblement pour la République) — o partido majoritário no governo — ou leitor veterano do conservador jornal Le Figaro — enfim, o pequeno número de tolos que acreditaram nos supostos protestos dos Comitês Anti-greve dos Usuários dos Transportes Coletivos. Mas os ‘sabidinhos’ (como o primeiro-ministro Juppé ou o líder ultra-direitista Le Pen) não demoraram para deixar de acreditar nesses pretensos Comitês.

Um dado é muito significativo: a maneira como os grevistas — e os demais — dirigiram-se aos jornalistas, e a maneira como os jornalistas deram a palavra aos grevistas e aos demais.

Há, por exemplo, o caso de uma jornalista norte-americana, em pânico por causa da greve dos transportes e dos correios, enlouquecida pela ideia de que seu elevador e ainda os bancos poderiam parar. Um enérgico pequeno comerciante parisiense, um vendedor de frutas, mas que sabe escutar e falar, explicou-lhe:

Na França, é assim! Nós, somos latinos. Vocês, anglo-saxões. Nós temos ainda a ideia de fraternidade e de igualdade. As pessoas estão cheias dos negócios, do business, cheias de serem manipuladas como peões. As grandes sociedades não tem nenhum sentido do dever cívico. Aqui, na França, temos um sistema de previdência exemplar. Pessoas morreram para que ele existisse. Não queremos perdê-lo. Não queremos viver com uma faca nos dentes, como se a vida fosse uma selva.

A senhora jornalista publicou o depoimento espontâneo no International Herald Tribune, de 5 de dezembro de 1995. O primeiro-ministro Juppé deveria agradecer-lhe por haver mostrado as profundas razões históricas que os franceses tinham para recusar seu ‘plano’.

A política do capital

Quando um repórter, microfone em punho, lança, às pressas, perguntas a grevistas apressados e apaixonados, as trocas são necessariamente curtas. Mais ainda as transcrições. Entretanto, basta dar uma escutada ou lida nesses trechos de conversas — às vezes, meras exclamações — para que evoquem tudo, mesmo para quem estava a centenas de quilômetros, em uma outra manifestação, ao mesmo tempo diferente e semelhante. Neles, não se ouve uma só palavra sobre politicagem, também não falam em esquerda ou direita. Aliás, parecem não fazer distinção alguma entre aqueles que — sejam de um ou do outro lado — estiveram no poder em tal ou qual momento. Já faz muito tempo, pois, que tudo está desse jeito e que nada muda. Dez anos, vinte anos, duas gerações?

Para explicar, um maquinista da RATP (Companhia Parisiense de Transportes Coletivos), uma estatal, desenha um quadro da situação, no qual não faz a mínima referência ao governo ou aos ‘Juppés’ anteriores — todos eles ‘Juppés’ intercambiáveis entre si. Conta ele:

Meu pai esforçou-se. Eu, agora, esforço-me e já fazem duas gerações que os poderosos pedem para apertarmos os cintos. E para que tanto sacrifício? Para ver o desemprego crescer, para um achatamento generalizado dos salários, para que se multipliquem as remunerações a nível do salário mínimo, para que os empregos temporários e sem direitos trabalhistas substituam os verdadeiros, também aqui no metrô. E querem que a gente engula a seco! É esta a sociedade que queremos para nossos filhos?

Um outro maquinista ataca os constantes discursos dos poderosos e dos governos sobre ‘a crise’:

Desde que me conheço, ouço falar da crise. É uma grande piada. A crise serviu para salvar o caixa dos patrões, para deixar-nos com as migalhas, para domesticar-nos. E, veja bem que não sou nem um pouco radical.

A declaração de outro trabalhador da RATP — um ‘com um emprego seguro’ — mostra o interesse comum, a ligação orgânica entre desempregados e trabalhadores, que são pintados como concorrentes uns dos outros:

Optei por ser maquinista porque acreditava na estabilidade do emprego. Mas, pergunto-me se chegarei a alcançá-la, quando vejo desenvolverem-se, nos próprios escritórios da empresa, os empregos temporários e sem direitos trabalhistas, quando vejo a limpeza, a segurança no metrô e a manutenção dos trens serem terceirizadas. Na RATP, eles agem como no setor privado, solapando nosso regime jurídico, nossas conquistas. Se não resistíssemos, eles não teriam nenhum constrangimento em nos fazer trabalhar como nos correios, na Educação Nacional, nas prefeituras, no funcionalismo público, multiplicando o quanto podem os empregos temporários e sem direitos trabalhistas.

Segundo estas declarações, descobre-se — nesta França pretensamente fanática pela privatização, da qual, segundo dizem, se esperaria que brotasse a ‘retomada’ do ‘crescimento’ — que, para a esmagadora maioria da população, representa um verdadeiro pavor a ideia de ser assalariado do setor privado, de ser submetido ao patronato, ao seu arbítrio, ao seu poder discricionário sobre o emprego, à chantagem que mantém permanentemente.

Um ferroviário declara:

Aqui [na França], aumenta cada vez mais a quantidade de empregos temporários, de fiscais sem formação, etc. Se continuar assim, ficaremos como no setor privado, esmagados pelos empregos precários e não conseguiremos mais reagir.

Outros relembram que a situação vem de longe:

Vinte anos atrás, já achavamo-nos em crise. São vinte anos de rigor para nós e vinte anos de lucros e de presentes em bilhões para os patrões, que prometem ampliar o número de empregos, porém sem nunca fazê-lo.

Uma enfermeira descreve o que ela vê todos os dias:

Juppé não tem a menor ideia da miséria deste país! Ele é de um outro planeta ... Reforma da previdência, pobreza, desemprego, AIDS, aumento dos impostos, tudo isso se amalgama numa gigantesca recusa.

Um carteiro resume o sentimento de frustração em que todos se acham mergulhados:

"Fazemos sacrifícios por uma sociedade que não sabe produzir senão desemprego e precariedade".

Um outro acrescenta:

"O dinheiro corre solto e a sociedade é desumana".

Um funcionário graduado da SNCF, a Rede Ferroviária da França, uma estatal, assinala que, entre os assalariados, ninguém é poupado na ‘caça à gordura-pra-queimar’, que priva uns de trabalho e sobrecarrega os outros:

Há dez anos que a produtividade esmaga os empregados da SNCF como numa empresa privada. O trabalho de três é feito por um. Em certos dias, a solução dos engarrafamentos ferroviários repousa nas mãos de alguns gatos pingados.

Entre aqueles que trabalham em empresas privadas, são raros os que ousam expressar-se. Entretanto, em nossos recortes de jornais, aparecem — no meio destes ferroviários — as declarações de dois metalúrgicos. Um deles ironiza, mas não diz mais coisa que os anteriores:

"Os patrões? Quase querem que a gente lhes ofereça caixas de lenços de papel e, ainda por cima, uma parte de nossos salários".

Outro desespera-se com a resposta de seu filho pequeno, que não se interessa por suas atividades na escola:

"Pai, não adianta nada eu me esforçar na escola: amanhã, serei um desempregado".

Uma operária numa fábrica têxtil, no interior, fala de seu patrão que lhe paga meros 4.800 francos:

"Sem nenhum rodeio, ele nos diz: ‘Vocês se queixam! Tenho fábricas na Rússia, na Turquia; lá, pago mil francos por mês’."

Um pedreiro, que ganha sete mil francos por mês, ouve o seu patrão repetir-lhe diariamente:

"Se você não está satisfeito, vá procurar emprego em outro lugar".

Pouco importa a maneira como cada um formula sua apreciação, visto que todos chegam a conclusões teóricas idênticas. Em um francês rebuscado, um funcionário da Receita, no Ministério da Fazenda, assegura:

"Esta situação perdurará enquanto a renda do capital for mais importante do que a do trabalho".

Espirituoso, um trabalhador achou uma fórmula mordaz sobre a ‘fratura social’, cuja redução Chirac escolheu como o lema de sua campanha eleitoral à presidência da República. A respeito da dita fratura, tão evidente nas ruas, aquele trabalhador — sem dúvida, um freguês das viagens do Clube Méditerrannée — fez-se de grafiteiro para inscrever sua análise teórica numa parede:

"A fratura social de Chirac vai tornar-se do tamanho do Grande Cânion".

Resultado: milhões de pessoas, de todas as idades, nas ruas. Assembléias gerais, nas quais sentem e vivem "uma verdadeira democracia operária". Com uma grande capacidade de tudo resumir em fórmulas de poucas palavras, um manifestante que trabalha na Companhia Parisiense de Transportes Coletivos comenta: "Os sindicatos estão a reboque. O povo está na rua. Eles esqueceram demais o trabalhador".

Os ‘privilegiados’

Se existe algo que sempre provoca a ira dos trabalhadores, é justamente o argumento que lhes foi repetido, sem cessar, durante a greve, pela imprensa e pela mídia, ecoando o ponto de vista dos ministros e de alguns seletos sindicalistas: "aqueles que têm um emprego são ‘privilegiados’". Os trabalhadores tomam-no ao mesmo tempo como um insulto, mas também como uma manobra vil para dividir aqueles que pertencem a uma mesma classe. A palavra ‘privilegiados’ não os apavora. Um motorista dos transportes coletivos parisienses explica com vigor:

Privilegiado? Certamente não o é o motorista da RATP que mora a trinta quilômetros de Paris, chega no emprego às cinco da manhã para cumprir uma jornada de, às vezes, treze horas, sofrer o estresse do tráfego e constatar que, em média, faltam dois ônibus por dia no seu trajeto porque a direção da empresa recusa-se a empregar. É nojento querer jogar contra nós aqueles que ganham o salário mínimo ou trabalham em empregos temporários e sem garantias trabalhistas.

Uma laboratorista, agora em greve, resume a situação nos seguintes termos:

Nossos pais lutaram, mas nós temos medo de atacar o empresariado. Há dez anos que as medidas do governo só favorecem o patronato, os interesses financeiros, o capital. Quanto a nós, eles acham que ainda devemos ficar felizes por termos um emprego. Desta maneira, a gente se acha sortudo e, na verdade, se é menos do que nada.

Um ferroviário, sem recear utilizar um linguajar que os grã-finos julgam pertencer à era dos dinossauros, declara, sem papas na língua:

"Pertenço a uma classe social. Não podemos aceitar o papel de eternos perdedores, aceitar sermos sempre os mesmos a sacrificar-se".

Um trabalhador da Companhia Nacional Elétrica da França utiliza algumas expressões da imprensa, porém, para afirmar exatamente o contrário dos refrões com que esta martela, em seus leitores ou ouvintes, a acusação de que os grevistas agarram-se a ‘direitos’ adquiridos, remanescentes de uma época finda, hoje ultrapassada:

Em nome da construção da Comunidade Européia, devemos defender todas as conquistas sociais que fizeram a França. Vive-se uma sociedade que recua. Nem é para ir mais longe que lutamos, mas para conservar o que temos.

Onde estão os inimigos?

Aquele motorista da RATP, que há pouco se defendia de pertencer, ele e seus colegas, à categoria dos ‘privilegiados’, vai além de uma mera rejeição a uma acusação inaceitável. Levanta a questão de saber quem os denuncia como ‘privilegiados’ e o porquê. Sua resposta está desprovida de ambigüidade:

São esses sujeitos que ganham milhões por mês, que fraudam os recibos, as notas fiscais, etc., que desempregam alegremente milhares de trabalhadores em nome da competitividade e colocam seus lucros na Bolsa em vez de investir. São os patrões, responsáveis pelo desemprego, que nos acusam de sermos privilegiados.

Constantemente prontos a evocar o veredito das urnas, o sufrágio universal e as autoridades constituídas, esses sujeitos estão sempre com a palavra democracia na ponta da língua. Democracia que violentam a todo instante. Nosso motorista não tem necessidade alguma dessa democracia. Conhece-a muito bem: "Ela é totalitária. Promove-se um arremedo de entendimento, uma aparência de diálogo. Depois, o patrão impõe o que quiser".

Voltar à época jurássica? Pode ser. No entanto, para defenderem o que lhes resta — aquilo que as gerações anteriores conquistaram a duras penas —, os trabalhadores retornam às velhas receitas, bem como ao linguajar mais jurássico de todos: falam decidida e resolutamente em classes! Num monumento público, uma inscrição em letras garrafais resume esta postura de defesa — sentida como necessária — de uma tradição: "Contra a guerra econômica, a guerra de classes!".

Um ferroviário explica o que está em jogo nesse movimento, inicialmente desencadeado por uma ofensiva governamental:

É uma escolha de sociedade. Ou a lei da selva, com a queima da ‘gordura’. Ou, então, fala-se de uma outra política, que coloca o homem no centro das preocupações.

Ao lado, uma moça protesta porque alguém falou em ‘mudança social’. Segundo ela, a expressão é muito ambígua. É preciso, sim, diz ela, "uma mudança de sociedade". Outros rejeitam até mesmo este pseudônimo, que consideram por demais prudente. O que leva a se perguntar se não viram o filme Terra e liberdade de Ken Loach: será que este belo e esclarecedor filme sobre a Revolução Espanhola de 1936 não os ajudou a expressar aquilo que pensavam, e que o peso da propaganda governamental e patronal, da propaganda dos mídias, os impedia de exprimir? "Serão necessários acordos de conjunto, como aqueles de Grenelle em 1968; senão, a revolução, e esta irá muito longe".

Uma mãe solteira, ferroviária, 28 anos, acrescenta:

É o que eu desejava: uma mini-revolução. Tenho um crediário a pagar, pouco me importa. Meu caso pessoal é secundário; estamos todos unidos, não vamos deixar cair a peteca.

Falam com cautela; percebe-se que levam a revolução a sério.

O passado nos dá um futuro

Numa das grandes estações ferroviárias de Paris, um trabalhador pintou, num muro, uma palavra de ordem mais que centenária:

"Não, a Comuna não está morta".

Vinte e cinco anos antes da Comuna, o povo parisiense já cantarolava:

"Sim, eu a espero, a espero, a espero".

Calmo, um ferroviário esclarece seus companheiros sobre o passado, cujas sombras vivem em torno do fogo que esquenta o piquete de greve na noite fria:

"Nesta estação, eles fuzilaram militantes da Comuna. No que me toca, estou disposto a continuar; não me arrancarão daqui".

Não longe dali, após observar uma assembléia geral de funcionários da Empresa Francesa de Correios (que se reúnem todas manhãs, trocando, depois, informações e avaliações com os ferroviários), um jornalista do diário Libération deixa escapar, impressionado:

"Parecem-se mais com militantes da Comuna do que com grevistas".

E, finalmente, quais as descobertas maiores, capitais, que propicia a leitura — apaixonante e enriquecedora — destes recortes de jornais? Que os homens mudam para mudar a vida e ao querer mudá-la. E ainda que, somente assim, conseguem fazer sua própria história.

Entre os carteiros, um deles, mais idoso — alguém que não tem nenhum receio de declarar que é um ‘militante’ — explica ao jornalista:

Muitos jovens vivenciam agora seu primeiro conflito. E eles se entregam sem reservas. Está acontecendo uma junção entre eles e nós, os militantes mais antigos; eles se liberam, reencontram a capacidade de tomar a palavra — uma forma de dignidade perdida.

Ele aproveita também para falar ao jornalista da fraternidade redescoberta:

Olha lá, é difícil uma greve; mas as pessoas agora se falam como nunca fizeram, ou seja, reencontram-se. Como as pessoas que pedem carona na Paris paralisada pela greve. Essa emoção, ela vale largamente o dinheiro que você perde.

Novamente, é um ferroviário que explica, por meio de sua própria experiência, a profunda transformação vivenciada pelos trabalhadores grevistas:

Lancei-me na greve enquanto maquinista. No dia seguinte, sentia-me antes de mais nada um ferroviário. Depois, vesti a camisa do funcionário. Agora, sinto-me simplesmente um assalariado, nem mais nem menos, como os trabalhadores do setor privado, com os quais eu gostaria de ganhar a luta comum.

Breve balanço

É desta forma que se reconstituiu — em si e para si — uma classe trabalhadora que tem todas as condições de ser vitoriosa amanhã. Mais uma vez, cabe a um ferroviário dizê-lo com suas próprias palavras:

De qualquer forma, nunca mais amanhã será como ontem. Terão que tratar-nos com respeito. E se nos encherem, vamos novamente ocupar as empresas.

A batalha do respeito e do respeito de si próprio foi ganha. Não é impossível que a verdadeira batalha comece mais cedo do que muitos pensam. O ‘desfile dos vencedores’, no encerramento do movimento grevista, foi um sinal emblemático. Desta vez, cabe a um carteiro as palavras de conclusão:

"Agora, temos o sentimento de termos razão, e por muito tempo".

Meus agradecimentos aos jornalistas, em particular aos do Le Monde e aos do Libération, dos quais extraí a maioria destes recortes, que nos permitem, desta forma, refletir sobre estes pensamentos de trabalhadores expressos em voz alta.


Inclusão 30/07/2019