A Teoria do Materialismo Histórico
Manual Popular de Sociologia Marxista

N. Bukharin


Capítulo II - Determinismo e Indeterminismo (Necessidade e Livre Arbítrio)


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§ 12. O problema da liberdade e da não liberdade da vontade individual

Como já vimos, certas leis são observadas na vida social como também na vida da natureza. Entretanto, algumas duvidas sérias podem subsistir a este respeito. São, com efeito, os homens que determinam os fenômenos sociais. A sociedade é composta de homens que pensam, que refletem, que sentem, que se propõem fins, que agem. Um faz uma coisa, um outro ás vezes faz o mesmo, um terceiro age de maneira diferente, etc... O resultado destes atos constitui um fenômeno social. Sem homem, não haveria nem sociedade nem fenômenos sociais. Vejamos o resultado disto. Se os fenômenos sociais obedecem a certas leis, e são o resultado das ações humanas, é evidente que os atos de qualquer homem dependem também de alguma coisa. Assim, o homem e sua vontade não são livres, mas ligados e submetidos por sua vez a certas leis. Se assim não fosse, se cada homem e sua vontade de nada dependessem, qual seria então a origem da regularidade dos fenômenos sociais? Ela não poderia existir. Isto é evidente. Se todos os homens, mancassem a sociedade seria uma sociedade de mancos: não poderia existir sociedade diferente.

Mas por outro lado, como explicar a falta de liberdade da vontade humana? Não decide o homem por si mesmo o que ele quer fazer? Eu quero beber, eu bebo; eu quero ir a uma reunião, eu decido a minha ida. Uma noite os camaradas propõem uns de ir ao teatro, outros a outro lugar; eu resolvi ir ao teatro, eu mesmo faço a minha escolha. Não é o homem livre na escolha? Não é o homem senhor dos seus atos? Não é o homem senhor dos seus desejos e de suas aspirações? Será ele um boneco, um simples joguete de que forças desconhecidas manobram os cordéis? Não sabe cada homem, por sua própria experiência, que ele pode decidir, escolher, agir livremente?

Esta questão é conhecida, em filosofia, como o problema do livre arbítrio, da liberdade ou da falta de liberdade humana. A teoria que afirma que a vontade humana é livre (independente) se chama indeterminismo (teoria do livre arbítrio). A teoria que afirma que a vontade humana não é livre e que está submetida a certas condições, chama-se determinismo (teoria da falta de liberdade da vontade). É preciso, por conseguinte, que decidamos qual das duas é a verdadeira.

Vejamos primeiro aonde nos leva o indeterminismo, se o acompanharmos até as suas ultimas conseqüências. Se a vontade humana é livre e de nada depende, isto significa que ela não é produto de uma causa. Mas se assim for, a que ponto chegaremos? Chegaremos à velha teoria religiosa do Antigo Testamento. Com efeito, vejamos porque: tudo no mundo se passa segundo certas leis determinadas, tudo no mundo, a começar pela multiplicação das pulgas e acabando pelo movimento do sistema solar, tem suas causas; somente, a vontade do homem a elas não está submetida. Ela constitui uma exceção única e estranha. O homem não faz mais parte da natureza, mas é uma espécie de divindade acima do mundo. Por conseguinte, a teoria do livre arbítrio conduz diretamente à religião que nada explica, onde não há mais ciência, mas uma fé cega em feitiçarias, em mistérios, no sobrenatural, no absurdo.

Evidentemente, há aqui alguma coisa que choca. Para explicarmos este fato, consideremos o seguinte: muitas vezes, quase sempre, confunde-se a sensação da independência com a independência objetiva (real, independente da nossa consciência). Tomemos um exemplo. Vamos supor um orador numa reunião pública. Ele toma um copo d’água e bebe avidamente. O que é que ele sente quando segura o copo? Decide por si mesmo beber a água. Ninguém o obriga a isto. Ninguém o força. Ele tem a completa sensação da liberdade; ele resolveu por si mesmo que ele tem necessidade de beber água e não de dançar. Ele tem a sensação da sua liberdade. Mas quererá isto dizer que ele agiu sem causa e que sua vontade é realmente independente? De modo algum. E todo homem inteligente perceberá imediatamente do que se trata. Ele dirá: "O orador esta com a garganta seca". Isto significa que como consequencia do esforço feito pelo orador, certas modificações se produziram na sua garganta, modificações que provocaram o desejo de beber água. Esta é a causa; uma modificação produzida no organismo (causa fisiológica) provocou um certo desejo. Segue-se que é preciso não confundir a sensação do livre arbítrio, a sensação de independência com a ausência de causa, com a independência dos desejos e ações humanas. Essas duas coisas são completamente diferentes. E é sobre a sua confusão que estribam habitualmente todos os raciocínios dos deterministas, que querem a todo custo estabelecer a "origem divina", particular, do "espírito humano". B. Spinoza (morto em 1677), filósofo entre os mais eminentes, disse que a maioria desses filósofos consideram de uma maneira completamente falsa "o homem da natureza, como sendo um Estado dentro do Estado". Pois eles pensam que o homem invés de se submeter à ordem natural a contraria, que ele, o homem, possui um poder ilimitado e não depende senão de si mesmo. (Obras de Spinoza: "Ética", Paris, 1871, Charpentier & Cie. pag. 107). Mas na realidade esta falsa concepção é determinada pelo fato dos homens não conhecerem as causas exteriores de seus próprios atos. (pag. 113 da edição francesa). É assim que uma criança imagina que deseja livremente o leite de que se alimenta; se ela está zangada, pensa que é livremente que quer se vingar; se ela tem medo, que decide livremente a sua fuga (pag. 115 da edição francesa). Leibnitz (morto em 1717) dizia também que muitas vezes as causas dos atos são desconhecidas pelos homens, e que isso provocava a ilusão da liberdade absoluta. Leibnitz citava a esse respeito o exemplo de uma agulha magnética que, se ela pudesse pensar, regozijar-se-ia certamente de se virar constantemente em direção ao pólo norte (G. G. Leibnitz, "Opera Omnia", Tomus I, Genevra, Apud fratres de Tournes, 1768, pag. 155).

O mesmo pensamento foi expresso por D. Merejkofsky, antes dele se ter tornado um louco apocalíptico e antibolchevista:

Se a gota de chuva
Pensasse como você,
Ao cair na hora fatal
Do alto dos céus,
Ela diria:
"Não é uma força inconsciente
Que me dirige
É pela minha própria vontade
Que eu caio em orvalho
Sobre um campo sedento."

Na realidade, os homens desmentem completamente na prática a doutrina do livre arbítrio. Com efeito, se a vontade humana não dependesse de nada, não seria possível agir, pois seria impossível contar com o que quer que seja, ou prever.

Imaginemos por exemplo, um especulador que vai ao mercado.

Ele sabe que lá fará o comercio e negociará, que cada comerciante pedirá os seus preços, que os compradores se esforçarão para comprar o mais barato possível, etc. Mas ele não espera encontrar no mercado homens que andem sobre quatro pés ou que uivem como lobos. Poderão objetar que este exemplo não tem significação. Absolutamente. Analise-mo-lo convenientemente. Porque não andam os homens de quatro pés?

Porque isto não está na sua natureza. E no entanto os palhaços andam sobre quatro pés. Isto é devido ao fato da sua vontade ser determinada por outras condições e quando o mesmo especulador vai ao circo, ele prevê que aí encontrará homens andando sobre quatro pés "contra a natureza". Por que motivo querem os compradores comprar o mais barato possível? Justamente por serem compradores. A sua situação como compradores os "obriga" a procurar as mercadorias a preços baixos e dirigem nesse sentido os seus desejos, a sua vontade, as suas ações. E se os homens fossem vendedores? Eles agiriam em sentido contrario. Procurariam vender o mais caro possível. Resulta portanto daí, que a vontade de nenhum modo é independente, mas é determinada por toda uma série de causas, e que os homens não poderiam agir se o contrario se desse.

Analisemos a questão sob um outro aspecto. Sabe-se geralmente que um homem embriagado tem desejos "absurdos" e que ele pratica atos também "absurdos". Sua vontade funciona muito diferentemente do que a de um homem no estado normal. Por que? A razão disto é o envenenamento pelo álcool. É suficiente introduzir uma certa quantidade dessa substancia no organismo humano, para que a "divina vontade" nos leve ao absurdo. A coisa é clara. Tomemos um outro exemplo: Dá-se de comer a qualquer pessoa alimentos salgados. Infalivelmente, esta quererá "em toda a liberdade" beber mais do que habitualmente. Aqui também, a razão é evidente. Mas se a mesma pessoa se alimenta "normalmente"? Esta beberá então uma quantidade "normal" de água; esta "quererá" beber tanto quanto as outras. Como vemos ainda neste caso, a vontade depende de certas causas, como nos casos extraordinários.

O homem começa a amar quando chega à idade da puberdade. O homem muito esgotado é tomado de um "desespero sombrio". Em resumo, os sentimentos e a vontade do homem dependem do estado do seu organismo e da situação em que ele se achar. Sua vontade, assim como tudo na natureza, é determinada por certas causas e o homem não constitui nenhuma exceção no mundo: o homem quer se cocar atrás da orelha (acha-se ali uma pequena espinha) ou então ele pratica uma ação heróica: pouco importa, tudo tem sua causa. Certamente, às vezes é difícil encontrar essas causas, mas já isto é uma outra questão. Descobriram-se porventura todas as causas no domínio da natureza viva? Absolutamente não. Entretanto, não é pelo fato de tudo não ter sido ainda explicado que se pode concluir que é impossível encontrar-se a explicação.

É preciso observar que não são somente os acontecimentos normais que estão submetidos à lei da causalidade, e sim os fenômenos é que dela dependem.

As doenças psíquicas dão-nos disso um exemplo patente. A que lei, a que "ordem" obedecem em aparência os desejos incoerentes, estranhos e monstruosos das doenças psíquicas e dos loucos? No entanto eles têm suas causas, que determinam tais atos de seus autores. Isto significa que a lei da causalidade mantém-se em vigor mesmo nos casos de loucura.

É nesses fatos que se baseia a classificação das doenças psíquicas. Distinguem-se quatro espécies de causas: 1.º A hereditariedade (a sífilis, a tuberculose, etc...); 2.º as contusões (traumatismos); 3.º os envenenamentos'; 4.º o esgotamento e os choques morais (Serbsky: As doenças mentais). Veja-se, por exemplo, a descrição de um acesso de febre delirante:

"os doentes têm a impressão de que se está tramando alguma coisa contra eles, de que todas as pessoas que o cercam tomam parte na conspiração, à qual se juntam, não somente os visinhos, mas mesmo os animais domésticos e os objetos inanimados, etc.". (A. Bernstein: "A febre delirante").

Este tipo de febre provêm muitas vezes do alcoolismo. Veja-se ainda a descrição de uma crise de paralisia progressiva (conseqüência da sífilis):

primeiro a desordem psíquica, futilidade de espírito, cinismo, falta completa de desconfiança; em segundo lugar, o delírio (mania de grandeza, o doente se crê miliardario, rei); a terceira fase: abatimento geral (P. Rosenbach: "A paralisia progressiva").

Conforme as partes do cérebro que são atingidas, a direção da vontade se modifica. Toda a prática medica, alusiva às doenças nervosas, é baseada nas relações entre a vida psíquica e certas causas determinadas. Foi intencionalmente que tomamos os mais variados exemplos. O seu estudo nos mostra que a vontade, os sentimentos e os atos do homem são sempre determinados por uma certa causa, quaisquer que sejam as condições, ordinárias ou extraordinárias, normais ou anormais; as ações humanas são portanto sempre "determinadas, definidas". A doutrina do livre arbítrio (indeterminismo) é, na realidade, a forma requintada de uma concepção semi-religiosa, forma que nada explica, que é contraria a todos os fatos e que constitui um obstáculo ao desenvolvimento da ciência. O determinismo é a única concepção justa.

§ 13. A resultante das vontades individuais numa sociedade não organizada

Sem duvida alguma a sociedade é formada de indivíduos e todo fenômeno social é composto de um grande numero de vontades, atos, sensações e sentimentos individuais.

Em outros termos, o fenômeno social é o resultado (ou, como se diz às vezes, a "resultante") dos fenômenos individuais. A questão do preço pode-nos fornecer um exemplo claro. Vendedores e compradores encontram-se no mercado. Uns possuem mercadorias, outros dinheiro. Uns e outros têm seus fins definidos: cada um avalia de determinada maneira sua mercadoria e seu dinheiro, faz suas compras e negocia. Como conseqüência dessa confusão estabelece-se o preço no mercado. Não se trata mais dos desejos de um vendedor ou comprador particular; estamos em presença de um fenômeno social, que é o resultado de uma luta entre as "vontades" particulares. O mesmo acontece com os outros fenômenos sociais. Tomemos, por exemplo, a época das revoluções. Os homens agem de uma maneira mais ou menos enérgica e se entrechocam. É como conseqüência dessa luta entre os homens, que depois da "vitória da Revolução" nasce um novo regime.

"Determinadas relações sociais, — escreve Marx, — são produtos humanos, da mesma maneira que os são o pano, o linho, etc......." (Carl Marx. Miséria da filosofia.)

Mas aqui, podemos estar em presença de dois casos diferentes que têm as suas particularidades. Vejamos quais são: No primeiro, estamos em presença duma sociedade desorganizada, isto é, por exemplo, uma sociedade baseada sobre a troca de mercadorias ou capitalista; no outro, estamos em presença de uma sociedade organizada: Comunista. Vamos antes estudar o primeiro caso, vamos tomar para isto um exemplo típico que já foi citado: a fixação do preço. Qual é a relação entre o preço fixado no mercado e o desejo, avaliação e as intenções de cada um dos indivíduos que vai ao mercado? Está claro que este preço não corresponde exatamente aos seus desejos. Para uma grande parte das pessoas que vieram ao mercado ele é simplesmente desastroso: seja para aqueles que, "a esse preço", nada podem comprar, e se vão embora com os seus níqueis e com a barriga vazia, seja para aqueles que se arruínam, por ser o preço muito baixo para eles. Todo o mundo sabe que uma massa de artesãos, de pequenos comerciante e de pequenos proprietários arruinou-se porque os grandes fabricantes inundaram o mercado de mercadorias a preço vil; os pequenos comerciantes se arruinaram porque não podiam sustentar a concorrência com os preços estabelecidos sob a influencia da grande quantidade de mercadorias atiradas ao mercado pelos grandes capitalistas.

Já citamos acima um exemplo característico, o da guerra imperialista, durante a qual muitos capitalistas quiseram-se enriquecer; no entanto, seguiu-se uma ruína geral, e desta ruína, nasceu a Revolução dirigida contra os capitalistas, que, evidentemente, não a tinham desejado.

O que significa tudo isto? que, numa sociedade desorganizada, onde a produção não é regulamentada, onde existem classes em luta, onde nada é feito segundo um plano, mas sob a pressão de forças cegas, o fenômeno social não concorda com o desejo da maioria. Ou então, como disseram muitas vezes Marx e Engels, os fenômenos sociais são independentes da consciência, do sentimento e da vontade dos homens. Esta "independência da vontade dos homens" não significa que os acontecimentos da vida social ocorrem sem a participação dos homens, mas que o produto social desta vontade (destas vontades) numa sociedade desorganizada, e em presença duma evolução inconsciente não concorda com os fins propostos por um grande numero de homens e seguem muitas vezes caminho oposto (o homem quis se enriquecer e, no fim de contas, arruinou-se.) Toda uma série de criticas dirigidas contra o marxismo é baseada sobre a incompreensão desta "independência" da vontade, da qual falam Marx e Engels. Vamos citar a propósito algumas linhas de Engels ("Ludwig Feuerbach"). Engels escreve:

Na historia "nada acontece sem que haja uma intenção consciente para um fim desejado". Entretanto, "muito raramente acontece aquilo que foi proposto; na maior parte dos casos numerosos desejos e fins se entrecruzam e se combatem mutuamente... É assim que os inumeráveis choques das vontades particulares e dos atos individuais criam sobre o cenário da historia uma situação análoga aos fenômenos que dominam na natureza, inconsciente. Os fins dos atos agiram como desejos, ou mesmo, se em aparência eles correspondem aos fins desejados, não deixam de ter no fim de contas, conseqüências muito diferentes das esperadas" (pag. 44 da edição alemã).

"Os homens fazem a sua história, qualquer que ela seja, cada um almeja o seu fim individual proposto conscientemente; é a resultante destas vontades, agindo em diferentes direções, e a sua ação diferente sobre o mundo exterior, que constitui a historia... Mas... as inúmeras vontades particulares que agem na historia provocam na maior parte dos casos resultados muito diferentes, e, ás vezes, completamente opostos aos que se almejam..." Pag. 44 e 45).

Resulta do que precede que, numa sociedade desorganizada, como aliás em toda a sociedade, os acontecimentos se realizam não "apesar", mas pela vontade dos homens. Mas aqui o homem é dominado por uma força inconsciente que é um produto das vontades particulares.

Examinemos o fato seguinte: Uma vez obtido uma certa resultante social das vontades particulares, esta resultante social determina a conduta do indivíduo. É necessário sublinhar esta proposição, pois ela é muito importante.

Comecemos ainda pelo mesmo exemplo de que nos servimos duas vezes, o da fixação dos preços. Vamos supor que uma libra de cenoura no mercado custa um tanto. É evidente que os novos compradores e vendedores encaram de antemão os preços e fazem deles aproximadamente a base dos seus cálculos. Em outros termos, o fenômeno social (preço) determina fenômenos particulares ou individuais (a avaliação). O mesmo acontece em outros casos. Um artista principiante se apóia para realizar sua obra, sobre toda a evolução da arte, assim como sobre os sentimentos e tendências do seu meio. Qual é a fonte de ação de um político? Ela é determinada pelo ambiente em que ele age; ele quer, ou fortificar um determinado regime, ou combatê-lo. Isto depende do lado em que ele se coloca, do meio no qual ele vive, da classe social ou então dos desejos sociais que o inspiram. Assim sua vontade é determinada pelas condições sociais.

Vimos mais acima que, uma sociedade desorganizada, os acontecimentos se passam as vezes de maneira completamente oposta aos desejos dos homens. Pode-se dizer a este respeito, que "o produto social" (o fenômeno social) domina os homens não somente definindo a sua conduta, mas ainda contrariando os seus desejos.

Assim, com respeito a uma sociedade desorganizada, podemos estabelecer as seguintes proposições:

  1. — Os fenômenos sociais são o produto do entrelaçamento das vontades, dos sentimentos, dos atos individuais, etc...
  2. — Os fenômenos sociais determinam a cada momento a vontade individual de cada um.
  3. — Os fenômenos sociais não exprimem a vontade dos indivíduos tomados em particular; habitualmente, eles são contrários a esta vontade, eles forçosamente a dominam, de modo que cada indivíduo sente muitas vezes a pressão do elemento social. (Exemplos: Um comerciante arruinado, um capitalista derrubado pela Revolução e que antes desejava a guerra etc.)
§ 14. A vontade organizada coletivamente (a resultante das vontades individuais numa sociedade organizada, comunista)

Vejamos agora como se passam os acontecimentos numa sociedade comunista. Cessa de existir a anarquia na produção. Não há mais nem classes, nem luta de classes, nem oposição de interesses de classe, etc... Não há mais tampouco contradição entre os interesses pessoais e os interesses da sociedade. Achamo-nos em presença de uma associação fraternal de produtores que trabalham para si mesmos, segundo um plano preestabelecido.

O que acontece com a vontade individual? É evidente que esta sociedade é composta também de homens, e o fenômeno social é a resultante das vontades individuais. Mas o modo pelo qual se forma esta resultante, o meio pelo qual a ela se chega, é muito diferente daquele que vimos numa sociedade desorganizada. Para melhor compreender esta diferença, comecemos por dar ainda um pequeno exemplo: vamos imaginar que estamos em presença de uma sociedade ou de um grupo de pessoas que estão de acordo entre si. Todas elas têm o mesmo fim, é em comum que elas resolvem certas questões, encaram as dificuldades e enfim, tomam uma decisão comum, segundo a qual elas agem. A sua ação comum, assim como a sua decisão já são um "produto" coletivo. Mas este ultimo já não é uma força exterior, grosseira, elementar, que contradiz a vontade de cada um. Ao contrario, a possibilidade de satisfazer cada desejo particular é aqui muito maior. Cinco homens resolvem levantar juntamente uma pedra. Nenhum deles a pode levantar sozinho; os cinco a levantam sem dificuldade. A decisão comum não contradiz o desejo de cada um deles; ao contrario, ela ajuda a realizar este desejo.

É da mesma maneira, bem que numa escala imensamente maior, e de maneira mais complicada, que as coisas se passarão em uma sociedade comunista. (Por esta ultima, compreendemos, não mais a época de uma ditadura do proletariado, nem aquela dos primeiros passos do comunismo, mas uma sociedade desenvolvida, verdadeiramente comunista, onde não há mais classes, onde não há mais Estado nem normas legais exteriores). Em uma tal sociedade, todas as relações entre os homens serão claras para cada um e a vontade social será uma vontade organizada. Não teremos mais aqui uma resultante elementar, "independente" da vontade de cada um, mas uma decisão social tomada com todo conhecimento de causa. É por isto que nela não pode suceder o que sucede em uma sociedade capitalista. "O produto social" já não domina mais os homens, são os homens senhores de suas decisões, pois são eles que decidem e decidem conscientemente. Não se pode dar o fato de um fenômeno social ser prejudicial à maioria da sociedade.

Entretanto não resulta do que precede que a vontade social, tanto quanto a individual, em uma sociedade comunista, de nada dependem, ou que, em um regime comunista, domine o livre arbítrio, e que o homem se torne subitamente um ser sobrenatural ao qual a lei de causalidade não mais se aplica.

Não. No regime comunista, o homem continua sendo uma parcela da natureza, parcela submetida à lei universal da causalidade. Com efeito, todo indivíduo não dependerá do ambiente? Certamente que sim. Ele não agirá como um selvagem da África central, ou então como um banqueiro da Casa Pierpont Morgan &Cia. ou ainda como um hussardo da guerra imperialista. Ele agirá como membro de uma sociedade comunista. Isto é evidente. Mas o que significa isto? Que o ambiente geral determinará a sua vontade. Assim todo o mundo compreenderá que uma sociedade comunista será obrigada também a lutar com a natureza, e, por conseguinte, as condições desta luta determinarão a conduta dos homens, etc... Em uma palavra, a teoria do determinismo guardará inteiramente a sua força, também na sociedade comunista.

Podemos assim estabelecer as seguintes proposições no que se refere à uma sociedade organizada:

  1. — Os fenômenos sociais resultam do entrelaçamento das vontades, dos sentimentos, dos atos, etc..., individuais. Este processo não é o produto de uma força elementar cega, mas de uma força organizada nos domínios de maior importância.
  2. — Os fenômenos sociais determinam a cada momento a vontade dos homens tomados em particular e não a contrariam.
  3. — Os fenômenos exprimem a vontade dos homens e em geral, não a contradizem, os homens são donos de suas decisões e não sentem nenhuma pressão do elemento social, este último sendo substituído por uma organização social racional.

Escreveu Engels que a humanidade, passando ao comunismo, fazia "um salto do reinado da necessidade para o da liberdade". Certos sábios burgueses concluíram daí que segundo Engels, o determinismo cessava de agir em um sociedade comunista. Um tal raciocínio é baseado sobre a incompreensão grosseira e sobre uma deformação do marxismo. Na realidade, Engels quis dizer com isto, muito justamente, que a evolução em uma sociedade comunista tomava um caráter consciente e organizado, não mais inconsciente e cego. Os homens sabem o que preciso fazer e como é preciso agir em determinadas circunstancias.

"A liberdade é uma necessidade da qual se tem consciência".

§ 15. O pretendido acaso, em geral:

— Para compreende ainda melhor a que ponto os fenômenos são determinados, preciso analisar o que significa o pretendido acaso. Com efeito muitas vezes deparamos com o acaso, tanto na vida quotidiana como na vida social. Certos sábios interessaram-se particularmente pelo "papel do acaso" e pela sua significação na historia. Falamos muitas vezes no acaso: Um homem foi esmagado "por acaso" na rua; alguém foi morto "por acaso" por uma telha que caiu dum telhado; comprei "por acaso", um livro muito raro; ou então, encontrei "por acaso" numa cidade desconhecida, um homem que não via há vinte anos, etc... Outros exemplos: O jogo de cara e coroa, ou então os dados. É por acaso que saiu coroa e que eu ganhei; é por acaso que saiu cara e eu perdi. Como acontece isto, e qual é a relação entre o acaso e a lei, ou então, o que vem a dar na mesma, entre o acaso e a necessidade causal?

Examinemos esta questão de perto. Vamos tomar primeiramente o exemplo do jogo de cara e coroa. Por que motivo saiu por exemplo "cara"? Será verdade que isto não foi resultado de nenhuma causa? Isto, certamente não é exato. Saiu cara, porque é dado a uma certa forma da moeda, porque lhe dei um certo movimento, com certa força, dirigida de um certo lado, porque a moeda caiu sobre uma certa superfície, etc... Se todas estas condições se repetissem, sairia sem dúvida novamente cara. A mesma coisa poder-se-ia repetir uma terceira vez. Mas não é possível, quando se atira a moeda, calcular todas estas condições; todo o problema consiste nisto. A menor mudança de posição da mão, do movimento de um dedo, da força com que foi atirada a moeda, produz imediatamente o seu efeito. As causas que provocam aqui o efeito (cara ou coroa) não podem praticamente ser previstas. Elas existem mas não as podemos adivinhar, e por conseguinte, não as conhecemos. É à nossa ignorância que neste caso damos o nome de "acaso".

Vamos tomar outro exemplo: Encontrei na rua, por acaso, um amigo que não via há vinte anos. Haverá causas para este encontro? Certamente que sim: É sob a influencia de causas definidas que saí em um dado momento, que segui um certo caminho com uma determinada velocidade; sob a influencia de outras causas, meu amigo havia começado a sua caminhada seguindo um certo itinerário, com determinada velocidade. Está claro que a ação paralela destas duas causas diferentes deveria infalivelmente produzir o nosso encontro. Por que, chamo eu a este encontro de "acaso"? Por uma razão muito simples: Porque eu não conhecia as causas que haviam feito agir o meu amigo, porque eu não sabia que ele morava na mesma cidade e por conseguinte, eu não pude prever o nosso encontro.

Se de duas ou mais correntes (séries) de causas que se entrecruzam, e nós só conhecemos uma delas, o fenômeno devido a este cruzamento nos parece "acaso", bem que na realidade ele esteja submetido à uma lei. Eu só conheço uma das correntes (uma só série) de causas, daquelas que agem sobre a minha caminhada; a outra série, que influi sobre a ação de meu amigo me é desconhecida. É por essa razão que eu não prevejo cruzamento das duas séries, é por essa razão que o cruzamento (o encontro) me parece devido ao "acaso". Assim, no sentido próprio da palavra, nenhum fenômeno é produto do acaso, isto é, sem causa. Pode-nos tão somente parecer, enquanto ignoramos a sua causa, que ele seja produto do acaso.

Spinoza já o havia visto, quando afirmava

"que um fenômeno é considerado como produto do acaso unicamente por falta de conhecimentos suficientes", "a ordem das causas estando escondida para nós".

Encontramos em Mill (o "Sistema da lógica"), depois de uma analise muito justa, o seguinte pensamento:

"É um erro dizer que um dado fenômeno é devido a um acaso. Temos apenas o direito de dizer: dois ou mais fenômenos se reúnem por acaso; eles existem ou se seguem: um depois do outro somente por acaso. Isto quer dizer que as relações mutuas são independentes de qualquer ligação causal; não existe entre eles nenhuma relação de causa e efeito; eles não são tão pouco as conseqüências de uma mesma causa, nem de causas ligadas entre elas por uma lei qualquer de coexistência, nem mesmo da disposição das causas primarias".

Estas ultimas palavras não são exatas. O fato é, (o exemplo do encontro) que eu não saí, de minha casa, porque meu amigo saiu da sua, nem vice-versa. Mas se nós tivemos uma "disposição de causas" dada, isto é, se nós sabemos que eu saí em um certo momento, por um dado caminho e a velocidade conhecida, e se nós conhecemos os mesmos dados com referencia ao meu amigo, ficaremos de posse das causas do nosso encontro. Tudo isto é tão pouco acidental e independente da "disposição das causas" quanto um eclipse do sol ou da lua, que é determinado pela posição particular dos planetas.

§ 16. O "acaso" histórico: — Visto o que precede, é fácil examinar o problema do pretendido "acaso histórico".

Se tudo se passa essencialmente em conformidade com leis, e se em geral, nada existe de acidental, isto é, independente de qualquer causa, é claro que o acaso histórico não pode tão pouco existir. Todo acontecimento histórico, por mais acidental que nos pareça, é na realidade, perfeitamente submetido a certas condições: Entende-se geralmente por acaso histórico o fenômeno que tem lugar em virtude do entrecruzamento de varias series de causas, das quais somente conhecemos uma.

Entretanto, ás vezes entende-se por acaso histórico um fato diferente. Quando, por exemplo, se diz que a guerra imperialista teve necessariamente a sua origem no desenvolvimento do capitalismo mundial, mas que, ao contrario, o assassínio do arquiduque austríaco foi devido ao acaso; trata-se aqui de duas coisas diferentes. Com efeito, quando se fala da necessidade (necessidade causal, inevitável) da guerra imperialista, encara-se a imensa importância das causas que influíram sobre a evolução social, causas que provocam a guerra. A guerra por si mesma aparece como um fenômeno de uma importância capital, isto é, um fenômeno que influi de uma maneira decisiva sobre a seqüência posterior da historia da sociedade. Compreende-se assim por "acaso histórico", o fenômeno que não representa um papel importante no encadeamento dos acontecimentos sociais. Se este fenômeno não se tivesse dado, o aspeto geral da evolução ulterior teria mudado tão pouco, que ninguém disto se aperceberia. No exemplo que nos interessa, pode-se dizer que a guerra teria arrebentado mesmo sem o assassínio do arquiduque, pois este assassínio não foi o "fato essencial", porém o fato essencial consistiu na concorrência encarniçada das potências imperialistas, concorrência esta que, com a evolução da sociedade capitalista, se tornava cada vez mais aguda.

Pode-se dizer que um tal fenômeno "acidental" não representa nenhum papel na vida social, que não influi de nenhum modo sobre o destino da sociedade, que em outros termos, ele é equivalente a zero? Se quisermos ser precisos, é necessário responder negativamente. Pois qualquer fenômeno, por mais insignificante que seja, influi na realidade sobre toda a evolução ulterior. A questão é de saber qual a importância da modificação por ele provocada. Quando se trata de fenômenos acidentais, no sentido indicado acima, esta influencia, falando praticamente, é insignificante, infinitamente pequena. Mas por menor que seja, nunca será igual a zero. Isto se torna visível no momento em que encaramos a ação de tais "acasos" no seu conjunto. Consideremos o exemplo seguinte: Suponhamos que se trate de estabelecer um preço; o preço do mercado resulta do conflito de numerosas e variadas avaliações, da parte dos vendedores e compradores. Se encararmos um só caso, uma só avaliação, a oposição entre um só vendedor e um só comprador, um tal fenômeno, pode ser considerado como "acidental". O comerciante Fernandes enganou a senhora Junqueira. Do ponto de vista do preço do mercado, isto é do fenômeno social, devido a oposição de varias avaliações, trata-se de um acaso. O que aconteceu isoladamente a Fernandes terá alguma importância? A nós, só interessa o resultado final, o fenômeno social, o que tem um caráter "típico"; é o que se diz freqüentemente e com razão. Um caso isolado desempenha um papel insignificante. Ele não tem importância, mas se experimentarmos agrupar, em conjunto, um grande numero de "casos" semelhantes, veremos imediatamente que o "acaso" começa a desaparecer. O papel e a significação de muitos casos, a sua ação comum, influem imediatamente sobre a evolução posterior. Pois os casos particulares nunca têm um valor nulo.

Vemos assim, examinando as coisas de perto, que não existe nenhum fenômeno acidental na evolução histórica da sociedade: A insônia de Kautsky, que sonhou sobre os horrores da Revolução bolchevique, o assassínio do arquiduque da Áustria, justamente antes da guerra, a política colonial da Inglaterra, a guerra mundial em uma palavra, todos os fenômenos a começar pelos mais insignificantes e terminando pelos mais trágicos da época presente, não têm como origem o acaso: eles são todos provocados por certas causas, isto é, eles são todos igualmente submetidos à necessidade causal.

§ 17. A necessidade histórica

— De acordo com o que precede, a noção do "acaso" deve ser excluída das ciências sociais. Como tudo no mundo, a sociedade se acha submetida na sua evolução, a uma lei.

É característico observar que a noção do acaso, conduz diretamente à crença no sobrenatural, à fé em Deus. É sobre ela que se baseia a pretendida "prova cosmológica" da existência de Deus. Ela diz. Se o mundo (cosmos) não está submetido a uma lei, é evidente que deve existir uma causa primaria de sua existência e de sua evolução. Esta pretendida prova é conhecida como "a da contingência do mundo" (de contingentia mundi). Ela é encontrada, em Aristóteles, Cícero, Leibnitz, Christian Wolff, e outros. A doutrina do acaso começou a se desenvolver com a decadência e a decomposição da burguesia (por exemplo, nos filósofos franceses Boutroux, Bergson, etc). A noção de necessidade (necessidade causal) é contraria à do acaso.

"O que decorre fatalmente de causas determinadas é necessária". Quando se diz que um certo fenômeno foi historicamente necessário isto quer dizer que ele devia suceder fatalmente, independentemente do fato de ser bom ou mau. Quando se fala de necessidade causal, não se trata da apreciação de um fenômeno, nem de saber se ele é desejável ou indesejável; diz-se; simplesmente que ele é inevitável. É preciso não confundir duas noções completamente diferentes: A necessidade, no sentido do preciso, e a necessidade causal. São duas coisas completamente diversas. Quando se fala da necessidade histórica, não se pensa no que é desejável no sentido, por exemplo, do progresso social, mas no que decorre inevitavelmente da marcha da evolução social. É nesse sentido que eram necessárias tanto o desenvolvimento das forças produtivas no século XIX, como a queda do império romano, ou o desaparecimento da cultura cretense. O que é devido a certas causas é necessário. Nem mais nem menos.

Vamos passar agora a outro problema bastante difícil, referente à mesma necessidade.

Vamos admitir que estamos diante de uma sociedade humana, que se duplicou em vinte anos. Poderemos concluir que a produção nesta sociedade aumentou. Se ela não tivesse aumentado, a sociedade não se teria podido duplicar. Se a sociedade cresceu, a produção deve também ter aumentado. Este exemplo não precisa de comentários. Mas o que significa isto? Nós vamos procurar aí a causa do desenvolvimento social de um modo particular, causa que constitui uma condição necessária de desenvolvimento. Se essa condição não for preenchida não temos desenvolvimento. Se estamos na presença de um desenvolvimento, é que esta causa existe.

Este exemplo nos conduz ás seguintes considerações: No principio deste trabalho, expulsamos sem piedade a teleologia. E agora parece que a estamos introduzindo nós mesmos. Com efeito, como se propõe a questão? Para que a sociedade se desenvolva, para que esta sociedade possa se duplicar, é preciso que a produção aumente. O desenvolvimento da sociedade é o fim, "télos". O desenvolvimento da produção é um meio para realizar este fim. A lei da evolução é uma lei teleológica. Parece portanto que pecamos contra a ciência e que caímos nos braços dos padres.

Mas aqui trata-se de coisa muito diferente, que nenhum relação tem com a teleologia. Com efeito, partimos aqui da proposição que a sociedade aumentou (no caso presente, partimos mesmo do fato da sociedade ter aumentado). Mas ela poderia também não ter aumentado. E se ela não se tivesse desenvolvido, se por exemplo, ela tivesse diminuído de metade, poderíamos tirar, seguindo o mesmo método, a seguinte conclusão: A sociedade tendo diminuído de metade, e isto, por efeito de uma sub-alimentação, é evidente que a produção diminuiu. No entanto ninguém se lembrará de ver um "fim" na destruição da sociedade. Ninguém poderá dizer neste caso: o fim é de diminuir a sociedade pela sub-alimentação; o meio que conduz a este fim é a redução da produção. Não temos portanto no caso presente, nada a ver com a finalidade (teleológica). Trata-se simplesmente de um método particular de investigação de condições (causas), de acordo com os resultados.

A condição necessária de evolução é conhecida pelo nome de necessidade histórica. É neste sentido que a Revolução francesa, sem a qual o capitalismo não se teria podido desenvolver, constituía uma necessidade histórica, ou então, da mesma forma a pretendida "libertação dos servos" de 1861, sem a qual o capitalismo russo não teria podido continuar a se desenvolver. É neste sentido que o socialismo é uma necessidade histórica, a evolução social posterior sendo impossível sem ele. Se a sociedade se desenvolve, teremos infalivelmente o socialismo. É neste sentido que Marx e Engels falam da "necessidade social".

O método que consiste em procurar as condições necessárias de conformidade com os fatos reais (ou supostos), foi muitas vezes empregado por Marx e Engels, bem que se tenha prestado pouca atenção a este fato. No entanto o Capital é inteiramente construído desta maneira. Tome-se uma sociedade onde circule a mercadoria, com todos os seus elementos. Ela existe. Como pode ela "existir? Resposta: Se ela existe, só pode ser com a condição de existir uma lei para o valor. Uma grande quantidade de mercadorias é trocada. Como é isto possível? Isto só é possível graças à condição de existir um sistema monetário ("a necessidade social do dinheiro"). O capital "se acumula" de acordo com leis que regulam a circulação das mercadorias. Como é isto possível? Isto só é possível, porque o valor da força de trabalho é menor, do que o do produto, etc. etc.

§ 18. O problema da possibilidade das ciências sociais e das previsões neste domínio

Resulta de tudo que precede que para as ciências sociais, tanto quanto para as ciências naturais, as previsões são possíveis, previsões não charlatanescas, mas cientificas. Sabemos, por exemplo, que os astrônomos podem, com a maior exatidão, predizer os eclipses do sol ou da lua, o aparecimento dos cometas e de um grande numero de estrelas cadentes. Os meteorologistas podem prever o tempo: o sol, o vento, a tempestade, a chuva. Nada há de misterioso nestas previsões. Assim, o astrônomo conhece as leis que determinam o movimento dos planetas. Ele conhece as órbitas do sol, da terra,da lua, etc. Ele sabe também com que velocidade eles se movem e onde se acham em um dado momento. O que há de admirável portanto que se possa, nestas condições calcular o momento em que a lua, colocando-se entre a terra e o sol, produza um eclipse? Será possível a mesma coisa nas ciências sociais? Certamente que sim. Com efeito, se conhecemos as leis de evolução social, isto é, as vias que seguem inevitavelmente as sociedades, a direção da evolução, não teremos dificuldade em definir o futuro social. Varias vezes tais previsões já foram feitas na ciência social, previsões estas que se realizaram inteiramente. Graças ao conhecimento das leis de evolução social, foram previstas as crises econômicas, a desvalorização da moeda, a guerra universal, a Revolução social como resultado da guerra; previmos a conduta de diversos grupos, classes e partidos durante a Revolução; previmos por exemplo, que os socialistas-revolucionários russos, depois da Revolução proletária, se transformariam num partido contra-revolucionário; muito tempo antes da Revolução, mais ou menos em 1890, os marxistas russos previram o desenvolvimento inevitável do capitalismo na Rússia, e, ao mesmo tempo, o aumento do movimento operário. Centenas de exemplos de previsões desta natureza poderiam ser citadas. Não há nada de extraordinário nisto se conhecemos as leis do processo histórico. Não podemos por enquanto prever a data em que um certo acontecimento se realizará. De fato, não conhecemos ainda as leis de evolução social a ponto de as podermos exprimir em algarismos exatos. Ignoramos a velocidade dos processos sociais, mas já podemos indicar a sua direção.

M. Bulgakof, escreve no seu livro intitulado "Capitalismo e Agricultura (1900-vol. 11.°):

"Marx achava possível medir e definir o futuro baseando-se no passado e no presente, e no entanto, cada época traz para a evolução histórica, fatos novos e forças novas; a potência criadora da historia não se esgota. Eis porque toda previsão do futuro baseada sobre dados do presente conduz fatalmente (!!!) a um erro... A cortina que encobre o futuro é impenetrável".

O mesmo autor escreve na "Filosofia da Economia" (1.ª parte: O mundo como economia, 1912-pag. 272):

"previsões muito mais modestas não podem ser feitas pela ciência social senão com grandes restrições; "As tendências da evolução", estabelecidas pela ciência e que favorecem o socialismo têm muito poucas relações com "as leis das ciências naturais", com as quais Marx as confunde. Não são senão "leis empíricas... A sua lógica é de natureza diferente daquela, por exemplo, das leis mecânicas..."

Tomamos estas citações nas obras do professor Bulgakof, como um espécime muito característico do método pelo qual se "refuta" o marxismo. Examinemos estas refutações mais de perto. M. Bulgakof considera que as leis da evolução capitalista, por exemplo, não são senão "leis empíricas". Como se sabe entende-se pelo nome de "leis empíricas" uma sucessão regular de fenômenos no decurso dos quais não se pode dizer que descobrimos as relações de causa e efeito. Assim, por exemplo, observou-se que as crianças do sexo feminino nascem em proporções um pouco maiores que as crianças masculinas. Mas não conhecemos as causas deste fenômeno. As "leis" como esta, têm com efeito, uma outra "natureza lógica", mas as da evolução capitalista não são absolutamente da mesma natureza. Elas exprimem relações de causa e efeito. Assim por exemplo, a lei da concentração dos capitais não é de nenhuma maneira uma "lei empírica", mas realmente cientifica, ao mesmo título que as estabelecidas pelas ciências naturais. Com efeito, quando estamos em presença de empreendimentos industriais, pequenos ou grandes, que rivalizam entre si, a vitória dos grandes é necessária. Aqui, conhecemos a relação de causa e efeito, e é a razão porque podemos prever a vitória infalível da grande produção, tanto no Japão quanto na África central.

A nossa primeira citação de Bulgakof não é senão literatura. A historia traz "fatos novos", a "potência criadora da historia é inesgotável", etc...! Mas a evolução da natureza traz igualmente com ela "fatos novos". Estes fatos novos aparecem nas ciências naturais ou matemáticas com a sua "natureza lógica". Uma só coisa é verdadeira no que diz Bulgakof: não conhecemos tudo. Mas não se pode concluir daí a negação da ciência.

É característico, entre outras coisas, que na sua filosofia da economia, M. Bulgakof fala muito e seriamente dos anjos, do pecado original, de Santa Sofia, etc... Tudo isto tem realmente uma "outra natureza lógica e se parece enormemente com a ciência dos charlatães, contra a qual protesta M. Bulgakof.

A doutrina do determinismo no domínio dos fenômenos sociais e a possibilidade de prever na ciência encontraram um grande numero de contraditores. Vamo-nos deter na critica feita por Stammler. Este pergunta aos marxistas, para os quais o socialismo é tão inevitável quanto um eclipse do sol, por que motivo procuram eles realizar o socialismo.

"De duas uma — diz Stammler — ou bem o socialismo virá como um eclipse de lua, e então é inútil se esforçar, lutar, organizar um partido da classe proletárias etc...; do mesmo modo que ninguém se lembrará de organizar um partido para ajudar a realização de um eclipse de lua; se organizais um partido, lutais etc., isto quer dizer que o socialismo pode não se realizar, mas vos quereis que ele venha, e é por este o motivo porque lutais, e assim sendo ele não pode ser considerado como inevitável".

Não é difícil ver, depois do que ficou dito, no que consiste o erro de Stammler. O eclipse de lua não depende nem direta nem diretamente da vontade humana, ele não depende de nenhum modo dos homens. Todos os homens, sem distinção de classe, de sexo, de idade, ou de nacionalidade, poderiam morrer que isto não impediria a realização de um eclipse de lua. O caso se passa diferentemente nos fenômenos sociais. Estes se realizam pela vontade dos homens. Um fenômeno social sem os homens, sem a sociedade, é a mesma coisa do que um quadrado redondo, ou gelo frito. O socialismo se realizará inevitavelmente, porque os homens, as diversas classes da sociedade humana agirão infalivelmente de maneira a realizá-lo, e em condições que determinarão sua vitória. O marxismo não nega a vontade; ele a explica. Quando os marxistas organizam e conduzem à batalha o partido comunista, isto não é mais do que uma expressão da necessidade histórica, que é determinada pela vontade e pelos atos dos homens.

O determinismo social, isto é, a doutrina pela qual todos os fenômenos sociais são determinados, têm as suas causas, das quais eles são o efeito necessário, que não deve ser confundido com o fatalismo. O fatalismo, é a crença num "destino" cego e inevitável, destino que pesa sobre tudo e ao qual tudo está submetido. A vontade humana nada é. O homem não representa uma grandeza dotada de um certo poder de ação; ele é simplesmente um instrumento passivo. Esta doutrina, ao contrario do determinismo, nega a vontade humana, como fator da evolução.

Acontece freqüentemente que este "destino" seja personificado por seres semelhantes aos deuses. Tais são a "Moira" dos antigos gregos, as "Parcas" dos romanos. Em alguns doutores da igreja (por exemplo, em Santo Agostinho), este papel é representado pela doutrina da predestinação, que é encontrado numa forma mais característica ainda em Calvino (R. Wipper: A Igreja e o Estado em Genebra no XVI.º século). A expressão mais patente do fatalismo é encontrada no Islã. Entretanto, não se pode negar que os social-democratas tenham uma certa inclinação para o fatalismo; é somente entre os social-democratas, aliados à burguesia, que o marxismo degenerou em uma teoria fatalista. O melhor exemplo desta degenerescência fatalista do marxismo é representada por G. Cunow, cuja "filosofia" toda pode ser expressa na seguinte proposição: "A historia sempre tem razão", e eis a razão porque não se pode lutar nem contra a guerra mundial nem contra o imperialismo. Toda insurreição comunista dos operários é considerada por ele, não como a manifestação de uma necessidade histórica, mas como uma tentativa exterior e incompreensível para violentar as leis da evolução histórica.

Bibliografia do Capítulo II


Inclusão 26/05/2011
Última alteração 03/09/2011