A Teoria do Materialismo Histórico
Manual Popular de Sociologia Marxista

N. Bukharin


Capítulo VIII - As Classes e a Luta de Classes


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§ 51. Classe, condição, profissão

É-nos agora indispensável entrar mais a fundo na questão das classes e da luta de classes. Sabemos já pelo que precede o papel relevante que desempenham as classes na evolução da sociedade humana. A própria estrutura social, em uma sociedade fundada sobre as classes, é determinada pela sua divisão em classes, as relações mutuas dessas classes, etc.; toda mudança importante na vida social, é de uma maneira ou de outra ligada à luta de classes; toda passagem da sociedade de uma forma a outra se realiza por uma luta sem tréguas entre as classes. É precisamente por isso que Marx e Engels começaram o Manifesto Comunista por estas palavras:

«Até os nossos dias, a história de toda a sociedade não tem sido senão a história das lutas de classes».

Que é, pois, uma classe?

Pelo que foi exposto mais acima, já demos, em tragos largos, a resposta a esta pergunta. Precisamos agora examinar o assunto mais de perto. Já vimos que por classe social se entende um conjunto de pessoas desempenhando um papel análogo na produção, tendo no processo da produção, relações idênticas com outras pessoas, sendo essas relações expressas também nas coisas (meios de trabalho). Daí decorre que, no processo de repartição dos produtos, cada classe é unida pela identidade de sua fonte de rendimentos, pois as relações de repartição dos produtos são determinadas pela relação de sua produção. Os trabalhadores têxteis e metalúrgicos não constituem duas classes diferentes, porém uma única classe, pois diante de outros homens (engenheiros, capitalistas) eles se encontram em relações idênticas. Do mesmo modo os possuidores de uma mina de carvão, duma usina de ladrilhos e duma fabrica de espartilhos formam uma única categoria de classe: pois, mau grado as diferenças físicas entre as coisas com as quais se ocupam, eles estão perante os homens, no processo da produção, em relações idênticas (de «domínio»), as quais se exprimem também nas coisas (O Capital).

Assim, na base da divisão da sociedade em classes se encontram as relações de produção. Um dos modos de ver mais comuns, é a divisão em classes segundo o índice «ricos» e «pobres». Se um homem tem no bolso dinheiro e um outro tem duas vezes mais, segue-se que eles pertencem a duas classes diferentes. Considera-se aí ou a dimensão das posses, ou o nível de vida. Um sociólogo inglês (D'Ett) elaborou um quadro completo de divisão em classes: a primeira classe, a mais baixa (os pés rapados) tem um orçamento de despesas de 18 «shillings» por semana; a segunda classe, de 25 «shillings»; a terceira, de 45, etc.. (Cf. o trabalho muito minucioso, e além disso marxista, do professor S. I. Solntsev: As classes sociais. Os momentos mais importantes na evolução do problema das classes, e as doutrinas fundamentais (em russo). Tomsk, 1919. p. 268-399). Por simples que seja semelhante maneira de ver, ela é perfeitamente ingênua e absolutamente falsa. Segundo esse ponto de vista, por exemplo, seriamos levados, na sociedade capitalista, a excluir do proletariado um operário metalúrgico ou um linotipista, e em troca, inscrever um camponês pobre ou um artista na classe operária. A «classe» mais revolucionária seria então o «lumpen-proletariat» (o proletariado andrajoso), e seria nele que se deveria fundar as esperanças como força que deveria realizar a passagem a uma forma superior de sociedade. De outro lado, dois banqueiros, dos quais um é três vezes mais rico que o outro, deveriam ser agrupados em classes diferentes. Ora, a experiência quotidiana nos mostra que categorias diferentes de operários se reúnem muito mais rapidamente na ação, o que não acontece com operários e artistas, e operários e camponeses, etc.. O camponês não se sente membro da mesma classe que o operário. Ao contrário, dois banqueiros, quando mesmo um deles seja dez vezes mais rico do que o outro, se sentem membros de uma única família bem amada.

«O conteúdo da bolsa — escrevia Marx na Miséria da Filosofia — é uma diferença puramente quantitativa, com o auxilio da qual dois indivíduos de uma única e mesma classe podem excelentemente ser lançados um contra o outro».

Em outros termos, a diferença de «riqueza» não pode servir de critério suficiente para definir a classe, ainda que tendo uma ação determinada mesmo nos quadros de uma única e mesma classe.

Outra teoria bastante espalhada é a que toma por fundamento da divisão da sociedade em classes o processo da repartição, isto é, a partilha da renda social. Falando-se, por exemplo, da sociedade capitalista, a partilha da renda em três partes principais: lucro, renda e salário, serve de base à delimitação de três classes: capitalistas, proprietários territoriais, proletários (assalariados); a parte de cada um deles, sendo dada uma grandeza determinada da renda social, não pode ser aumentada senão à custa da parte de uma das outras classes. Eis porque os membros de uma classe são ligados entre si pela comunidade e homogeneidade de seus interesses de um lado, e são por outro lado opostos às outras classes pela contradição de seus interesses com os dessas outras classes.

Se esta teoria não nos leva a procurar quem recebe mais ou quem recebe menos, e a raciocinar como acima, então se apresenta inevitavelmente uma questão: por que as pessoas ligadas entre si como classe, se reproduzem como classe? Porque, na sociedade capitalista, existem diferentes espécies de rendimentos? Onde está a causa da estabilidade dessas diferentes espécies de rendimento? É bastante apresentar esta questão para que se veja de um só golpe a realidade. Esta estabilidade repousa sobre as relações entre os homens e os meios de produção, os quais por sua vez exprimem as relações entre os homens no processo da produção. O papel dos homens na produção e a posse dos meios de produção, isto é, a «repartição dos homens» e a «repartição dos meios de produção», são elementos estáveis nos limites de um modo de produção dada. Desde o instante que dizeis capitalismo, tereis de um lado uma categoria de pessoas dirigindo o processo da produção e, ao mesmo tempo, dispondo de todos os meios de produção, e de outro lado uma categoria de pessoas trabalhando sob o comando das primeiras, submetendo-lhes sua força de trabalho e produzindo para elas valores mercantis. É precisamente por esta razão que, no domínio da repartição dos produtos do trabalho (isto é, na partilha da renda) se encontram igualmente leis determinadas. Em outros termos, chegamos à constatação de que os aspectos mais importantes da produção — «repartição dos homens», «repartição das coisas» — constituem igualmente as bases das relações de classes.

Com efeito, nós não poderíamos chegar a outra conclusão. Abordemos, pois, a questão por outro lado; vamos formulá-la de um modo mais geral. É claro que cada classe é um certo «complexo real», isto é, um conjunto de pessoas submetidas sem cessar a ações recíprocas, de «homens viventes» que mergulham por suas raízes na vida da produção e, por seus pensamentos, elevam-se até às nuvens. É um sistema humano, parcial e particular no interior do grande sistema que nós chamamos sociedade humana. Segue-se evidentemente que nós devemos abordar a classe pelo mesmo lado que nós abordamos a sociedade. Em outros termos: a análise das classes deve partir da produção. Naturalmente as classes se diferenciam uma da outra por diferentes aspectos: Sobre o plano da produção, sobre o plano da repartição, sobre o plano político, sobre o plano ideológico, sobre o plano psicológico. Um plano depende do outro, todos esses fenômenos são ligados reciprocamente um ao outro: não se podem ligar rebentos burgueses a raízes econômicas do proletariado, o que seria pôr uma sela em uma vaca. Mas, precisamente este laço está condicionado, no fim de contas, pela situação da classe no processo da produção. Eis porque se deve definir uma classe segundo o seu índice de produção.

Em que se distingue a classe social da condição social? (as «ordens» do antigo regime). Por classe, já o sabemos, entende-se uma categoria de pessoas reunidas por um papel comum no processo da produção, um conjunto de pessoas das quais cada uma se encontra em relações semelhantes em face de outros participantes do processo da produção. Ao passo que por condição entende-se grupos de pessoas unidas por sua situação comum na ordem jurídica da sociedade. Os grandes proprietários territoriais são de uma classe. Os nobres (em russo: «dvorianié») são uma condição. Por que? Porque os grandes proprietários territoriais são assinalados por um índice determinado na economia e produção, ao passo que não é esse o caso dos nobres. O nobre tem direitos jurídicos determinados, fixados pela lei do Estado em que ele vive, e privilégios ligados à sua «nobre condição». Mas, economicamente, este nobre pode estar de tal modo empobrecido que pode acontecer justamente que ele reúna os dois extremos; ele, pode ser mesmo um proletário «pé-rapado», mas como condição ele não cessa de ser nobre (tal o «barão dos Bas-Fonds», de Máximo Gorki). Tomemos outro exemplo. Sob o governo do czar, lia-se sobre o passaporte de muitos operários: «Fulano, camponês de tal governo, tal distrito, tal cantão». Este camponês nunca trabalhou como camponês; ele nasceu na cidade e tinha desde a sua infância trabalhado como operário assalariado. Vê-se aqui claramente a diferença entre a classe e a condição (isto é, no ponto de vista das leis czaristas que dividiam assim os homens segundo as suas condições): este homem, pelo seu índice de classe é um operário, e pelo seu índice de condição, ele é um camponês. Mas aqui apresenta-se desde logo a questão seguinte: nós sabemos que a «política» (nela compreendido o direito) é a «expressão concentrada da economia». Podemos então parar no direito, sem descer mais profundamente?

Certamente que não; não dizíamos nós há pouco, justamente raciocinando sobre as classes, que era importante para nós, do ponto de vista do método, abordar os agrupamentos sociais expressamente pelo lado da produção? Como então pretender resolver a questão pelo lado das «condições»?

Ouçamos antes de tudo o que diz sobre esta questão o professor Solntsev, o autor do trabalho mais solido sobre as classes:

«Os grupos de condições socialmente desiguais aparecem, diz ele, não sobre o terreno das relações do processo do trabalho, nem sobre o terreno das relações econômicas, mas antes de tudo sobre o terreno das relações do Direito e do Estado. A condição é uma categoria jurídica e política, e como tal pode se manifestar sob diferentes formas... Diante da diferença da divisão em condições, a de classes aparece sobre as bases das relações econômicas...» (loc. cit., p. 22).

Todavia, não é a condição unicamente a classe «revestida» de uma categoria «juridico-política»? A isto, Solntsev responde negativamente. Entretanto, ele próprio indica que, por exemplo, no mundo antigo, «a ordem das condições não podia deixar de refletir as diferenças de classes...» (loc. cit., 25), que «a luta de classes reveste a forma particular da luta de condições», (loc. cit, 26). Esta posição extremamente embrulhada da questão obriga-nos a esforçar-nos em procurar uma fórmula mais clara.

Tomemos um exemplo. No tempo da grande revolução francesa, designava-se sob o nome de «terceiro estado» (isto é, «terceira condição») uma mistura de diversas classes, ainda mal diferenciadas então umas das outras: ele compreendia a burguesia, os operários e as classes intermediarias (artífices, pequenos comerciantes, etc.). Todos pertenciam ao terceiro estado. Por que? Porque, juridicamente, eles não eram «nada» em comparação com os proprietários territoriais feudais privilegiados. O «terceiro estado» era a expressão jurídica do bloco das classes levantadas contra os senhores do poder. Logo, classe e condição (ou «estado») podem não coincidir. Mas sob a crosta da condição oculta-se necessariamente a realidade de classe (há aqui uma condição, e não uma, porém várias classes, na verdade classes, e não alguma coisa de incerto como aparecia pouco mais ou menos a Solntsev).

Por outro lado, a não coincidência entre a classe e a condição pode ser de gênero diverso, como já falamos mais atrás: um homem pode pertencer a uma «classe inferior» e a uma «condição superior» (por exemplo, um nobre economicamente arruinado servindo de porteiro ou de chauffeur); e vice-versa, ele pode pertencer a uma condição inferior, e à classe dirigente superior (tal um grande comerciante, saído dos camponeses abastados, dos «kulaks»). Isto, que quer dizer? Onde haverá aqui um «conteúdo de classe sob uma crosta econômica»? É claro que isso não existe. Como pois exprimir teoricamente este «fato irredutível»?

Para encontrar, também aqui, a solução exata da questão, é indispensável estudá-la não do ponto de vista de um caso isolado, mas do ponto de vista das relações típicas nos quadros de uma organização econômica determinada. Fixemos nossa atenção sobre a circunstância fundamental seguinte: as condições foram suprimidas pelas revoluções burguesas, pelo desenvolvimento das relações capitalistas. Se examinarmos por que o capitalismo não pôde tolerar a existência das condições, chegaremos sem dificuldade às deduções seguintes: nas formas pré-capitalistas da sociedade, todas as relações eram muito mais conservadoras, o ritmo da vida muito mais lento, as mudanças muito menos frequentes que no capitalismo. A classe reinante — a aristocracia territorial — era aí, podemos dizer, hereditária. E é essa espantosa imobilidade das relações que tornam possível a firmeza dos privilégios de classe de uma parte, e das obrigações de outra, por uma quantidade de normas jurídicas; essa imobilidade permitia revestir uma classe (ou classes) com a denominação de «condição». Assim, no seu conjunto as «condições» marchavam lado a lado com as classes, ou melhor, grupos de classes, em sua oposição a uma classe qualquer. Mas a penetração das relações capitalistas comerciais, muito mais fluida e móbil, deu um golpe violento nessa correlação: «O homem de baixa condição» furou, os «novos ricos» apareceram; o fenômeno tornou-se vulgar; uma parte dos proprietários territoriais passou a ser constituída pelos capitalistas, uma outra empobreceu-se e caiu na miséria, a terceira se mantém no seu antigo nível, etc.. Deste modo a mobilidade das relações capitalistas tirou toda a base à existência das condições. O período transitório de decomposição das relações feudais tinha tido sua expressão na ausência crescente de correlação entre o conteúdo econômico das classes e o seu invólucro jurídico de condições. Um tal período desenvolveu a falta de correlação, que devia inevitavelmente conduzir à queda de todo o sistema das condições. O invólucro das condições se manifestou incompatível com o desenvolvimento das relações de produção capitalista, do mesmo modo que o invólucro das classes se manifestou por sua vez incompatível com a evolução futura das forças produtivas. Eis por que Marx escrevia na Miséria da Filosofia:

«A condição da libertação da classe operária é a abolição de todas as classes, exatamente como a condição do terceiro estado... era a supressão de todas as «ordens».

E Engels, em seu comentário, anexava a esta página a nota seguinte:

«Trata-se aqui das «condições (ou «ordens») no sentido histórico das «condições» do Estado feudal, das «condições» gozando de privilégios definidos e delimitados. A revolução burguesa aboliu as condições com todos os seus privilégios. A sociedade burguesa conhece somente as classes. Eis por que designar o proletariado com o nome de «quarto estado» está em contradição absoluta com a história».

Assim, para o período dos sistemas pré-capitalistas estáveis, as condições ou «ordens» eram a expressão jurídica das classes; a não coincidência crescente destes elementos (a ruptura de equilíbrio entre o conteúdo de classe e a forma jurídica de condição) foi provocada pelo desenvolvimento das relações capitalistas e pela decomposição das antigas classes feudais, tanto as inferiores como as superiores: no sistema feudal, o camponês como classe coincidia em geral com o camponês como condição; porém, mais tarde, os camponeses formam a burguesia agrícola e o proletariado, duas classes opostas: ora, a forma «condição» fica a mesma: é claro que ela devia desaparecer.

Convém agora definir exatamente uma terceira categoria ligada às questões estudadas. Convém saber o que é profissão. É claro que a profissão está ligada ao processo do trabalho. Ela se diferencia da classe, em primeiro lugar porque a repartição em profissão não segue as relações dos homens entre si, mas suas relações com as coisas; ela considera sobre que coisas e com que coisas eles trabalham, que coisa eles elaboram. O serralheiro se distingue do marceneiro e do pedreiro, não por que eles tenham relações diversas com os capitalistas, mas porque o serralheiro trabalha o metal, ao passo que o marceneiros trabalha a madeira e o pedreiro a pedra.

Entretanto, não se pode dizer que não se trata aqui senão de coisas, pois a profissão é, apesar de tudo, ao mesmo tempo uma relação social; no processo da produção, em que operários de profissões diversas são ligados entre si pelas normas do processo da produção, há evidentemente entre os homens relações determinadas. Porém, por mais diferentes que sejam estas relações, todas elas se apagam diante das diferenças existentes sob o ponto de vista principal e fundamental: as diferenças entre o trabalho dirigente e o trabalho executante, as diferenças expressas pelas relações de propriedade.

A divisão em profissões, repousando sobre as relações entre os homens, as quais decorrem de suas relações técnicas com os instrumentos, os métodos e o objeto do trabalho, não coincidem de nenhum modo nem com a divisão do trabalho em trabalho dirigente e trabalho subordinado, nem com a «repartição dos meios de produção» que lhe correspondem, isto é, com as relações de propriedade sobre estes meios de produção.

Eis porque é falsa a afirmação do professor Solntsev, a saber que a profissão é "uma categoria natural-técnica" (sublinhada pelo autor, N. B.), que ela é inata nas relações humanas mesmo no período pré-histórico, e em todos os estádios viventes, que "é uma categoria não histórica, não de ordem social" (op, cit., p. 21) enfim, que é uma categoria eterna. A profissão torna-se profissão porque uma espécie determinada de trabalho liga-se ordinariamente ao homem durante a vida: o sapateiro está por toda sua vida ligado ao seu banco. Mas nada prova que tivesse sido sempre assim e que será sempre assim. O automatismo crescente da técnica libertará os homens desta necessidade e mostrará quanto esta categoria, como as outras, era simplesmente de ordem histórica.

Agora que já vimos a diferença que separa a classe da condição e da profissão, é-nos preciso parar ainda nesta questão: quais são as classes existentes. Nós julgamos poder dar, pouco mais ou menos, a divisão seguinte:

I — As classes fundamentais de uma determinada forma social (as classes no sentido próprio da palavra). As classes deste gênero são em número de duas: a classe dirigente e detentora dos meios de produção de um lado; a classe executante, privada dos meios de produção e trabalhando para a primeira, do outro lado. A forma especifica, particular desta relação de exploração econômica e de servidão determina também a forma da sociedade de classe que ela caracteriza. Por exemplo: se as relações entre a classe dirigente e a classe executante se reproduzem por meio da compra de força de trabalho no mercado, há capitalismo; se elas se reproduzem por meio da compra de homens ou da pilhagem, ou por outros meios, mas sem compra de nenhuma força de trabalho, e se, além disto, a classe dirigente dispõe não somente da força de trabalho, mas «da alma e do corpo» do explorado, há escravidão, etc..

No que concerne ao capitalismo, considera-se habitualmente que há nele três classes fundamentais. Isto parece confirmado por uma certa passagem do fim do tomo III do Capital, de Marx, onde o "manuscrito é interrompido", e onde está encaixada uma análise das classes da sociedade capitalista. Eis a passagem:

"Os proprietários de uma força de trabalho, os proprietários do capital e os proprietários fundiários, cujas fontes respectivas de rendas são o salário, o lucro e a renda, constituem as três grandes classes da sociedade contemporânea, repousando sobre o modo capitalista de produção."

Mas do fato de que o grupo dos proprietários fundiários forma uma grande "classe", não se segue que ela seja uma das classes fundamentais. Assim, em Marx, nós encontramos a seguinte passagem, à qual se refere também mui judiciosamente o professor Solntsev:

"O trabalho passado e o trabalho vivo são os dois fatores em oposição mutua sobre os quais repousa a produção capitalista, o capitalista e o operário assalariado são os únicos funcionários e fatores da produção, cujas relações mutuas decorrem do caráter da produção capitalista.... A produção, como o nota James Mill, poderia sem inconveniente continuar a sua marcha, mesmo que os proprietários fundiários particulares desaparecessem e que o seu lugar fosse tomado pelo Estado... Este fato, na origem do qual se encontra a essência mesma do modo capitalista de produção em oposição ao modo feudal, ao modo antigo, etc., — este fato de que as classes participando diretamente na produção se resumem a duas, capitalistas e assalariados, excluídos os proprietários fundiários (sublinhado por nós, N. B.), os quais não vêm senão post festum, e graças a relações determinadas de propriedade que não apareceram no terreno do modo capitalista de produção, mas que para aí se transportaram do seio da economia feudal (sublinhado por nós, N. B.)... este fato constitui a diferença especifica da produção capitalista e sua expressão teórica adequada." (Marx: Teoria sobre a mais valia. T. II, pp. 292-299).

E Marx fala do mesmo modo quando se refere à questão da nacionalização da terra.

As classes fundamentais se subdividem por sua vez em sub-classes, em frações diversas: por exemplo, na sociedade capitalista, a burguesia dominante fraciona-se em burguesia indústria!, burguesia comercial, banqueiros, etc.; a classe operária se fraciona em operários qualificados e não qualificados.

II — As classes intermediarias. Podemos aqui enumerar agrupamentos econômico-sociais que, não sendo restos de uma ordem antiga, e aparecendo como indispensáveis ao regime no qual eles se encontram, ocupam um lugar intermediário entre a classe dirigente e a classe explorada. Tal é, por exemplo, na sociedade capitalista, a classe dos técnicos intelectuais.

III — As classes de transição. — Contamos aqui grupos vindos de uma forma precedente da sociedade, e que, na forma atual, se decompõem, dando nascimento a diversas classes com funções opostas na produção. Tais são, por exemplo, na sociedade capitalista, os artífices e os camponeses. É uma herança do regime feudal, que dá nascimento a elementos tanto burgueses como proletários. Tomemos o campesinato. No capitalismo ele se decompõe constantemente em camadas diversas, ou, como diz a ciência econômica, ele se diferencia: do camponês médio sai o pequeno kulak; do grande camponês, um açambarcador qualquer; depois, um degrau mais e vós tereis o mais autentico burguês, e do outro lado, um proletariado se forma igualmente por graus: camponês pobre, camponês sem cavalo, meio-operário ou operário temporário, por fim proletário puro.

IV — Os tipos de classes mistas. Contamos aqui grupos que pertencem, ao mesmo tempo, por um lado a uma classe e por outro a outras classes. Assim um ferroviário que possui um pequeno sitio e toma ao seu serviço um jornaleiro, é, em relação à companhia de caminhos de ferro, um operário, e em relação ao seu empregado, um patrão, etc..

V — Enfim, convém classificar à parte o que se chama os grupos dos «desclassificados», isto é, os grupos de pessoas saídas dos quadros de todo trabalho social: lumpen proletariat, mendigos, «boêmios», vagabundos e outros.

Quando nós analisamos um «tipo abstrato» de sociedade, isto é, uma forma social qualquer pura, nós nos preocupamos somente, ou quase somente, com as classes fundamentais. Ao contrário, quando vamos observar no seu movimento a realidade concreta, então é natural que temos de contar com toda a miscelânea dos tipos das relações sociais e econômicas.

A causa geral da existência das classes é determinada por Engels no Anti-Duhring, da maneira seguinte:

"... Todas as contradições históricas que até o presente têm existido entre exploradores e explorados, governantes e oprimidos, têm as suas raízes na produtividade relativamente não evoluída do trabalho humano. Desde que a população trabalhando efetivamente está de tal modo absorvida pelo seu trabalho indispensável que não lhe sobra tempo para cuidar dos negócios gerais da sociedade inteira — divisão do trabalho, negócios do Estado, arte, ciência, etc. — enquanto isso for assim deve sem dúvida existir uma classe particular, que, livre do verdadeiro trabalho, se ocupe dessas coisas, sem desfalecimentos, graças ao privilegio de que goza de lançar um fardo cada vez mais pesado sobre os ombros das massas trabalhadoras".

Noutra passagem. Engels repete quase a mesma coisa, dizendo que a sociedade se divide em duas classes, e acrescenta, para resumir:

"lei da divisão do trabalho, eis em suma o que está na base da divisão em classes".

O professor Solntsev, criticando G. Schmoller, o qual vê na divisão do trabalho a fonte principal da formação das classes, replica à referencia por ele feita de Engels, da maneira seguinte:

"Engels põe efetivamente o processo da formação das classes em próxima ligação com o processo de divisão do trabalho; mas... para Engels, a divisão do trabalho não é senão uma condição natural e técnica indispensável da formação das classes sociais e não a sua causa; a causa fundamental da formação das classes, Engels a via, não na divisão do trabalho, mas nas relações de produção e de repartição, isto é, no processo de caráter puramente econômico", (op. cit., p. 203, sublinhado por nós, N. B.).

Como já vimos acima, examinando a questão da profissão, não se pode opor a divisão do trabalho às relações de produção, pois que a divisão do trabalho é ela também um dos aspectos das relações de produção. O erro de Schmoller (Cf. G. Schmoller: Die Tatschen der Arbeitsteilung "Os fatos da divisão do trabalho". Jahrbucher, 1890, e do mesmo: Das Wesen der Arbeitsteilung und Klassenbildung "A divisão do trabalho e a formação das classes", Jahrbucher, 1890), consiste em que ele apaga a diferença entre divisão profissional e divisão em classes, esforçando-se por espalmar as contradições de classe segundo o espírito da escola orgânica, A teoria de L. Gumplovitch e de F. Oppenheimer sobre a origem das classes, tirada da "violência extra-econômica"' não compreende a diferença entre uma teoria abstrata da sociedade e a marcha concreta dos acontecimentos históricos. Na realidade histórica, o papel da violência extra-econômica, ou conquista foi muito grande e teve sua influência sobre o processo da formação das classes. Mas em uma pesquisa puramente teórica, é indispensável deixar isto de lado. Suponhamos que analisamos "uma sociedade abstrata" na sua evolução: mesmo aí apareceriam classes, em virtude do que se chamam as "causas internas da evolução", como o demonstra Engels. Em suma, o papel das conquistas etc., não é senão um fator (muito importante) de complicações.

§ 52. O interesse de classe

Vimos pelo que precede, que as classes são grupos particulares de homens, «complexos reais» diferindo uns dos outros pelo seu papel na produção, que encontra sua expressão nas relações de propriedade. Mas sabemos também que com estes dois lados do processo de produção coexiste um terceiro lado — o processo de repartição dos produtos sob tal ou qual forma. A produção corresponde à distribuição.

Às formas de produção correspondem as de repartição. À posição das classes na produção, corresponde sua posição na repartição. O antagonismo entre classe dirigente e classe dirigida, classe detendo em monopólio os meios de produção e classe não possuindo os meios de produção, acha a sua expressão no antagonismo das rendas, na contradição entre as partes de produtos elaborados cabendo a cada classe na partilha da massa total dos produtos. Uma semelhante diferença de condição de existência (maneira de viver) entre classes determina também a sua «consciência». As contradições entre condições de vida (maneira de viver) acham a sua expressão a mais imediata na formação de interesses de classe. A expressão a mais primitiva e ao mesmo tempo a mais comum dos interesses de classe é o desejo das classes de aumentar sua parte na repartição da massa dos produtos.

No sistema da sociedade fundada sobre as classes, o processo da produção é ao mesmo tempo um processo de exploração econômica dos trabalhadores manuais. Eles produzem mais do que recebem. E não somente porque uma parte dos produtos fabricados (na sociedade capitalista, valores) é destinada a ampliar a produção (na sociedade capitalista, à acumulação), mas também porque a classe trabalhadora sustenta os proprietários dos meios de produção, trabalha para eles. Eis porque os interesses mais gerais da minoria no poder podem ser formulados como a aspiração de manter e ampliar as possibilidades da exploração econômica, e os interesses da maioria explorada, como a aspiração de se libertar dessa exploração. Ao passo que a primeira fórmula dada acima fala somente de uma sociedade dada e não sai de seus limites, a segunda implica a questão da própria existência duma determinada sociedade.

Mas a estrutura econômica de uma sociedade é, já o sabemos, fixada na sua organização de Estado e reforçada por uma quantidade infinita de superestruturas. Não há pois motivo para nos admirarmos de que o interesse econômico de classe tome a mascara de interesse político, cientifico, religioso, etc.. Assim os interesses de classe se desenvolvem em todo um sistema abraçando os mais diversos domínios da vida social. Esses interesses sistematizados, reunidos em feixe pelo interesse geral de classe, conduz à construção do que se chama o «ideal social», que aparece sempre como a quinta-essência dos interesses de classe.

Examinando a questão dos interesses de classe, é preciso fixar ainda a nossa atenção sobre alguns pontos.

É indispensável, primeiramente, distinguir os interesses duráveis e gerais e os interesses transitórios, passageiros. Os interesses «passageiros» podem estar em contradição objetiva com os interesses duráveis. Do ponto de vista dos interesses transitórios, por exemplo, os operários ingleses têm agido judiciosamente vivendo em paz com a burguesia inglesa e defendendo-a durante a guerra imperialista; eles têm, com essa atitude, defendido mesmo a alta dos salários de que eles gozam à custa dos trabalhadores coloniais. Mas ao mesmo tempo, rompendo com esse ato a solidariedade dos operários em geral e fazendo frente única com os «seus» patrões, eles prejudicaram os interesses gerais e duráveis de sua própria classe.

Em segundo lugar, é indispensável distinguir, por um lado os interesses corporativos, os interesses de grupo, e por outro os interesses gerais de classe. Por exemplo, quando, na sociedade capitalista, a burguesia no poder suborna uma aristocracia operária (operários qualificados), os interesses particulares deste grupo não coincidem mais com os interesses de todo o conjunto da classe operária: são interesses de grupo e não de classe; ou então, quando, em tempo de guerra, os especuladores da burguesia infringem tanto quanto podem as regras comerciais elaboradas pelo seu próprio estado burguês, o qual faz a guerra no interesse da burguesia como classe. Vêem-se aqui os interesses de grupo da fração comerciante-especuladora (os «tubarões») da burguesia, interesses que em semelhante caso se afastam dos interesses da burguesia como classe.

Terceiro, é indispensável não perder de vista a mudança de princípio da direção dos interesses correntes de uma classe, que se produz ao mesmo tempo que a mudança de princípio de sua situação social. Tomemos um exemplo. Na sociedade capitalista, o proletariado tem por interesse o mais durável e o mais geral a supressão da ordem capitalista. Por conseguinte, é segundo esse plano que se estabelecem seus interesses parciais: estes consistem em conquistar posições estratégicas e em minar a sociedade burguesa. Melhorar sua situação material, aumentar seu poder social, reunir suas forças para atacar o sistema capitalista inteiro, eis ao que conduz a tarefa do proletariado. Mas eis que o proletariado preencheu a sua missão histórica. Ele destruiu a antiga máquina do Estado, construiu uma nova, um novo equilíbrio social se terá constituído; o proletariado passa a ocupar o lugar da classe dirigente provisória. É claro que a direção de seus interesses muda então, radicalmente: todos os seus interesses particulares, examinados do ponto de vista dos interesses gerais, se estabelecem sobre o plano da consolidação e da evolução das novas relações, de sua organização e da resistência a toda tentativa destruidora. Esta transformação dialética é a consequência da evolução dialética do próprio proletariado, o que se «tem constituído como poder político».

Em que consiste, pois, a síntese dessas duas direções de interesses opostos? É sua unidade superior: a edificação de uma nova forma social, trazida pelo proletariado, edificação que pressupõe a destruição do velho invólucro que impedia a evolução das forças produtivas.

Toda classe nova que é capaz não somente de destruir o antigo sistema de relações sociais, mas também de construir novo sistema, que por consequência é capaz de se tornar a organizadora de uma sociedade nova, deve inevitavelmente dar a seus interesses uma cor de produção, isto é, abordar as questões sociais não do ponto de vista da partilha e da simples repartição, mas do ponto de vista da destruição das antigas formas, em nome da construção de formas que implicam uma produção mais perfeita, e forças produtivas mais poderosas.

§ 53. Psicologia de classe e ideologia de classe

A diferença de condições de existência material, base da divisão da sociedade em classes, põe seu estigma sobre toda a consciência das classes, isto é, sobre a psicologia e ideologia de classe. Sabemos já, pelo que precede, que a psicologia de classe, ou mais exatamente a psicologia duma classe, não coincide sempre com o interesse material dessa classe (por exemplo, a psicologia do desespero, da renuncia ao mundo, a tendência para o suicídio, etc..) mas que ela deriva sempre e é sempre determinada pelas condições de vida dessa classe. Vejamos agora alguns exemplos da maneira pela qual se determina realmente uma psicologia e uma ideologia de classe.

Tomemos antes de tudo um exemplo prático, da vida corrente, de fatos comuns. Todos têm conhecimento da discussão havida na Rússia entre marxistas e socialistas-revolucionários, sobre qual a classe que levaria a sociedade ao socialismo; os marxistas afirmavam que seria a classe obreira, o proletariado; os socialistas-revolucionários esforçavam-se por todas as maneiras em demonstrar que a classe campesina suplantaria o proletariado. Os fatos deram toda razão aos marxistas: os camponeses têm sustentado o proletariado na sua luta contra os fidalgos e os capitalistas; eles os sustentam porque o proletariado protege a terra campesina e proporciona à economia campesina a possibilidade de se desenvolver, porém eles discordam completamente da «comuna», eles se apegam com todas as suas forças às antigas formas de propriedade da terra, de cultura da terra, da sua velha economia em geral. Como explicar este fenômeno? E como explicar ao mesmo tempo o heroísmo do proletariado na luta e o incomensurável apoio com que ele acolheu a edificação socialista e a ideologia comunista? Por outro lado, se pretendermos atribuir a solução da questão ao fato do mujik não ser tão pobre, então porque não foi o proletariado andrajoso, porque não foram os miseráveis, os desclassificados, etc., que forneceram os efetivos da luta?

Para respondermos a isto, poderemos formular a questão preliminar, a de saber quais os traços que deve ter a classe que pode executar a metamorfose da sociedade e levá-la da sua estrada capitalista para o caminho socialista.

1.º Deve ser uma classe que no regime capitalista é explorada economicamente e oprimida politicamente. Senão, é evidente que não terá razões suficientes para se revoltar contra a ordem capitalista; ela não poderá então, em caso algum, sublevar-se contra ela.

2.º Segue-se que essa classe deve também, numa expressão simplista, ser uma classe pobre; senão ela não poderá comparar sua pobreza à riqueza das outras classes.

3.º Ela deve ser uma classe produtora. Senão, se ela não tomar parte direta na criação dos valores, ela pode, na hipótese mais favorável, destruir, mas nunca construir, criar, organizar.

4.º Ela não deve estar ligada à propriedade privada. Pois, se tivermos uma classe cuja existência material estiver vinculada à propriedade privada, é facilmente compreensível que ela aspirará ao aumento do que é «seu», sua propriedade, e nunca na abolição da propriedade privada, que é o objetivo do comunismo.

5.º Ela deve enfim ser uma classe unificada pelas condições de sua existência, e habituada ao trabalho em comum, ao trabalho feito ombro a ombro, um ao lado do outro. Pois, doutro modo, ela não será capaz nem de desejar e nem de realizar uma sociedade tal que seja a encarnação do trabalho social, do trabalho de camaradagem. E ainda mais, ela não seria mesmo capaz de levar adiante uma luta organizada, ela não seria capaz de organizar um novo poder político.

Comparemos agora estes diversos índices num quadro, e examinemos qual é a classe que dentre os nossos três grupos satisfaz melhor a estas exigências. Assinalemos com + aquela que satisfizer a cada índice, e com — a que não satisfizer.

 
Campesinato
Proletariado
andrajoso
Proletariado
1. Exploração econômica
+
+
2. Opressão política
+
+
+
3. Pobreza
+
+
+
4. Produtividade
+
+
5. Sem vínculos com a propriedade privada
+
+
6. Unidade na produção, trabalho em comum
+

Vemos aqui claramente como se apresenta a questão. Falta muito à classe campesina, para ser uma classe realmente comunista; ela está ligada à propriedade, por ela está presa e serão precisos ainda muitos anos para processar-se a sua reeducação, fato que não é possível senão quando o poder do Estado está nas mãos do proletariado. O campesinato não é unido na produção, ele não está habituado ao trabalho social e à produtividade unificada; ao contrário, toda a alma do camponês está no seu pedaço de terra: ele está acostumado com a economia individual e não social. Quanto ao proletariado andrajoso, seu principal defeito está na ausência do trabalho produtivo. Ele poderá destruir, porém não está habituado a construir. Sua ideologia é frequentemente representada pelos anarquistas. Um homem de espírito disse que o seu programa se compunha de dois artigos: Art. 1.º: «Não haverá nada». Art. II.º: «Ninguém se encarregará da execução do artigo precedente».

Tocamos assim o laço que une a condição da existência material com a psicologia e a ideologia de classe ou de grupo que daí resultam: no proletariado, ódio ao capital e ao seu Estado, espírito revolucionário, hábito de agir duma maneira organizada, psicologia de camaradagem, atitude criadora, produtiva, desprezo ao passado, atitude negativa em face da «sacrossanta propriedade privada» alicerce da sociedade burguesa, etc.; no campesinato, apego à propriedade privada, que o torna hostil a todas as inovações, individualismo, desconfiança de tudo que ultrapassa ao seu horizonte estreito; no proletariado andrajoso, negligencia e inconsistência, ódio às velharias e ao mesmo tempo impotência e inércia na construção, na organização, individualismo desorganizados caráter fantasista. A uma tal psicologia, uma ideologia correspondente: no proletariado, comunismo revolucionário; no campesinato, ideologia de propriedade; no proletariado andrajoso, anarquismo instável e histérico. É evidente que uma vez que se tenha por base semelhante psicologia e ideologia, é ela que dá o traço característico geral a toda uma psicologia e ideologia duma classe ou dum grupo correspondente.

Nas antigas discussões entre marxistas e socialistas-revolucionários russos, estes últimos apresentavam a questão sob o ponto de vista da filantropia, da "ética", da "piedade" para com os "irmãos inferiores" e outras tolices de fidalgos intelectuais. Para a maioria dos "ideólogos" deste gênero, a questão de classes era uma questão de ética de intelectuais torturados pelos remorsos da consciência, que visavam derrubar a autocracia, que não lhes oferecia muito espaço, ensaiavam apoiar-se sobre o mujik (uma vez que este não lhes tinha incendiado os castelos dos seus tios e tias), e esforçavam-se em conquistar sua confiança, redimindo as faltas cometidas por um nobre "auxilio aos humilhados e aos ofendidos". Enquanto que para os marxistas não era questão nem de lamurias e nem de filantropia, mas da exata avaliação das capacidades das classes, para saber qual seria a atitude que tomaria inevitavelmente cada uma delas na iminência da luta pelo socialismo.

Um bom estudo (se bem que conservador e apologético, destinado a sustentar toda reação) sobre a psicologia do campesino, nos é apresentado no trabalho do pastor evangélico A. l'Houet: Zur Psychologie des Bauerntums ("Da psicologia do campesinato", 2.ª edição, 1920, de Mohr, Tubingen, em alemão). O sábio eclesiástico cristão aprecia a classe camponesa "em primeiro lugar" como... reservatório de saúde corporal, espiritual, moral e religiosa, como tesouro militar para o país (Reichskriegsschatz: o autor quer dizer — "como carne para canhão", N. B.), etc.. (op. cit., IV). O pastor Houet, que, no número dos caracteres do campesinato, conta a sua homogeneidade (massa homogenia), sua separação do resto do mundo, seu tradicionalismo, etc., dá muito justa definição da ideologia da classe camponesa. Apenas entusiasma-se com frequência justamente por aquilo que nós consideramos como a "idiotice da vida camponesa" (Marx). Ele exalta, por exemplo, a inércia do camponês, sua repugnância por tudo que é novo:

"... Em face do amor à novidade, o camponês pertence a um outro mundo, aquele que coloca acima de tudo os tempos antigos, que conserva firmemente os fundamentos vitais do passado, que continua a fiar os antigos fios.... Com o inconveniente dele "atrasar o seu tempo", "não caminhar passo a passo com ele"; em compensação, com a vantagem de que todas as suas manifestações de vida, precisamente em virtude dessa unilateralidade, se distinguirem favoravelmente pela sua segurança, sua seriedade e seu valor durável" (op. cit,. p. 16).

Esta rotina se manifesta por toda parte:

"Conservação dos antigos lugares de estabelecimento, conservação da antiga casa, conservação dos antigos bens, costumes, nomes; conservação do dialeto, da velha poesia popular, da velha estrutura espiritual, do antigo tipo de fisionomia! Por toda parte, o mesmo espírito conservador..." (ibidem).

O sr. Houet regozija-se extremamente pelo fato de serem as habitações dos camponeses, em 1871, pouco diferentes do que eram na idade da pedra (pag. 17). Ele se regozija com o simplismo e pobreza hereditária da alma do camponês, de que o

"número dos seus problemas da vida, como sejam religiosos, morais, de arte e outros quaisquer, serem extremamente restritos" e de que "a mesma concepção destes problemas se transmite de geração em geração" (op. cit., pag. 29);

mas ele não se regozija pelo fato de que esse espírito limitado, esta "idiotice" que não é a falta, mas a desgraça dos camponeses, seja quebrado pelo vapor e pela eletricidade, pois, admirai! este princípio de tradição conduz "à simples, à antiga e grandiosa existência". A gravidade, a desconfiança e a avareza, a cupidez do proprietário, etc., são, bem entendido, louvados por todas as maneiras por este pastor (ex. pag. 63), e isto ocupando páginas e páginas inesgotáveis.

Os exemplos apresentados mostram bem o essencial da psicologia e da ideologia de classe dos proprietários agrários e de seus curas e pastores, que se esforçam em salvaguardar e lisonjear os caracteres do camponês que o impedem de "marchar de acorda com a sua época".

Na nobreza fundiária, (isto é, entre os proprietários feudais) a psicologia de classe se caracteriza também por um inevitável espírito conservador e reacionário, cruamente expresso, de tal forma que não existe nenhum paralelo em nenhuma outra classe, E é bem compreensível: os proprietários feudais são com efeito os representantes supremos da sociedade feudal, a qual "entregou sua alma a Deus", além de tudo. O culto da tradição, das "formas solidas", da família aristocrática e da "ancestralidade" (de seus privilégios, de sua gloria, de seu "valor"), simbolicamente expresso na "arvore genealógica"; os "serviços" e os "méritos", o feudo, a "honra", os costumes convenientes à "nobreza", o desprezo aos "plebeus", o direito às relações sexuais e outras somente com "iguais", são tais os traços característicos desta antiga classe dirigente. (Conforme Simmel: Sociologia, digressão sobre a nobreza — em alemão — pgs. 737 e 399).

A psicologia e a ideologia das classes da sociedade burguesa isto é, das classes urbanas, é muito mais dócil. A burguesia, sobretudo no período de sua evolução, quando ela não estava diretamente ameaçada pela revolução proletária, não se caracteriza absolutamente por um conservadorismo semelhante ao da nobreza. Seu traço predominante é seu individualismo, decorrente da luta pela concorrência, o racionalismo, fruto do ''cálculo econômico", como fundamentos vitais desta classe; a psicologia e a ideologia liberal repousam sobre "a iniciativa", a "liberdade de empreendimento". Especialmente sobre a psicologia econômica da burguesia em diversos estádios de sua evolução, encontraremos bastantes observações interessantes em Sombart (der Bourgeois) e em Max Weber (ob. cit.). Sombart, por exemplo, remonta até a aparição do espírito de empreendimento. Este devia constituir-se pela fusão de três tipos psicológicos: o conquistador, o organizador e o mercador. O "conquistador" dá a possibilidade de projetar um plano e de realizá-lo: ele tem a resistência e a firmeza, a elasticidade, a energia intelectual, a capacidade de intensificar os seus esforços, a força de vontade; o organizador deve saber dispor coisas e gentes de modo a atingir o maximum de resultado útil; o comerciante, o mercador distingue-se pela sua capacidade de discutir com não importa quem e de ganhar o seu negócio (Sombart. ob. cit. cap. V: L'essence de l'esprit d'entreprise, pgs. 69-399). É pela combinação desses traços que se caracteriza a burguesia na época do seu aparecimento.

Quanto à psicologia do proletariado, dela já nos ocupamos anteriormente, e é sobretudo do que mais falamos neste livro.

É claro que a psicologia e a ideologia das classes mudam em correlação com as trocas da «maneira de ser social» dessas classes, como nós já o notamos nos capítulos precedentes, mais de uma vez.

Convém fazer aqui mais uma observação. De tudo que nós dissemos ressalta claramente que a psicologia das classes intermediarias é igualmente intermediaria, a dos grupos mistos, igualmente mista, etc.. É isto que explica que, por exemplo, a pequena-burguesia e o campesinato «hesitem» constantemente entre o proletariado e a burguesia, que «tem nelas duas almas», e assim por diante.

«Sobre as diferentes formas da propriedade, sobre o que se chama as condições de existência, se eleva toda uma superestrutura de sentimentos diversos e originalmente constituídos, de ilusões e modos de pensar e conceber a vida. Toda a classe as cria e as forma sobre a base material e sobre as relações sociais correspondentes». (Marx, Le 18 Brumaire).

§ 54. «Classe em si» e «classe para si»

A psicologia e a ideologia de classe, a consciência que uma classe tem de seus interesses, não somente passageiros, mas duráveis e gerais, decorre da posição dessa classe na produção. Mas isso não significa absolutamente que essa posição dessa classe na produção provoque dum só golpe, nessa classe, a noção de seus interesses gerais e fundamentais. Ao contrário, podemos dizer que isso não acontece quase nunca. Então na vida real, primeiro, o processo de produção percorre diversos estádios de sua evolução e as contradições da estrutura econômica não se descobrem senão no curso da evolução ulterior; segundo, uma classe não cai por acaso do céu, mas ela se constitui, por assim dizer, inconscientemente, a partir de diferentes outros grupos sociais (classes de transição, intermediarias e outras, camadas, agrupamentos sociais em geral); terceiro, passa-se ordinariamente um certo tempo, antes que a experiência da luta dê a uma classe sua consciência de classe, tendo seus interesses particulares, seus desejos, suas aspirações próprias dela e exclusivamente dela, seus «ideais» sociais, que a opõe de modo decisivo a todas as outras classes da sociedade da qual ela faz parte; enfim, quarto, não se deve esquecer o trabalho de nivelamento psicológico e ideológico que pratica constantemente a classe no poder, tendo nas mãos o organismo do Estado, afim de, duma parte, aniquilar os rebentos da consciência de classe, nas classes oprimidas, e de outra, inculcar-lhes por todos os meios possíveis a ideologia da classe dominante, ou então fazer-lhe penetrar numa medida mais ou menos intensa a influência dessa ideologia, ou até, finalmente, implantá-la à força. Todas estas circunstâncias tornam possível uma situação tal, que uma classe já exista, embora como um conjunto de pessoas desempenhando um papel determinado no processo da produção, conquanto não exista ainda como classe consciente de si mesma. A classe então existe, mas ela «não é ainda consciente». Ela existe como fator de produção; ela existe como complexo determinado de relações de produção. Mas não existe ainda como força social independente, que saiba o que quer, ao que aspira, e que tenha consciência de sua personalidade, da oposição dos seus interesses aos das outras classes, etc..

Para designar esses diversos estados no processo da evolução das classes, Marx emprega duas expressões: Ele chama classe «em si» uma classe não tendo ainda consciência de si mesma; e chama classe «para si» aquela que já tenha adquirido consciência do seu papel social. Na Misére de la Philosofie, (Stuttgart, 1920, pags. 161, 162) Marx declara:

"As primeiras tentativas dos trabalhadores se unirem uns aos outros, tomam sempre a forma de coalizões. A indústria pesada une num só e mesmo laço uma massa de gente desconhecida entre si, a concorrência os divide quanto aos seus interesses; mas a manutenção do salário a um nível conveniente, esse interesse comum contra seu patrão, une-os em um só pensamento comum de resistência, em uma coalizão (por "coalizão", entende-se nessa passagem, em todo este trecho, união de trabalhadores, N. B.). Assim a coalizão tem constantemente um fim duplo: pôr fim à concorrência entre trabalhadores, a fim de ficar em estado de fazer concorrência comum ao capitalista. Embora o fim primordial da resistência seja somente a manutenção do salário a um nível conveniente, as coalizões, isoladas ao começo, se formam à medida que os capitalistas por seu lado, sob a pressão, se unem em grupos e, contra o capital em vias de constante unificação, a defesa das associações torna-se ainda mais importante para eles do que a defesa do salário. Nessa luta, verdadeira guerra civil, todos os elementos se unem e se desenvolvem para a próxima batalha. Uma vez atingido esse objetivo, a coalizão toma seu outro caráter: político.

"As relações econômicas transformaram em seguida uma massa da população em trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa uma situação comum, de interesses comuns. Assim essa massa aparece já como uma classe em relação ao capital, mas não ainda como uma classe em si mesma. Na luta da qual nós indicamos algumas fases, a massa acha-se a si própria, constitui-se como classe em si mesma. Os interesses que ela defende tornam-se interesses de classe". (O grifo é nosso, N. B.).

§ 55. As formas da solidariedade relativa dos interesses

Do que acabamos de dizer ressalta já a possibilidade, em condições determinadas, duma solidariedade relativa das classes. É necessário, não obstante, distinguir aqui duas formas principais dessa solidariedade relativa.

Em primeiro lugar, essa solidariedade pode ser tal que ela una o interesse permanente de uma classe com o interesse temporário de outra, esse interesse temporário contradizendo os interesses gerais dessa classe.

Em segundo lugar, essa solidariedade pode ser tal que não exista contradição, como se tratasse da coincidência do interesse durável duma classe com o interesse transitório de uma outra, ou de interesses transitórios das duas partes.

Para explicar o primeiro caso, tomemos como exemplo a guerra imperialista de 1914-18, e ensaiemos a análise da atitude dos trabalhadores no começo dessa guerra. É um fato conhecido que na maior parte dos grandes países, os mais evoluídos sob o ponto de vista capitalista, os trabalhadores, esquecendo os seus interesses internacionais e gerais de classe, atiraram-se em defesa de suas «pátrias». Ora, sob estas «pátrias» se ocultavam, em realidade, as organizações de Estado da burguesia, isto é, as organizações da classe do capital. Por consequência, a classe trabalhadora partiu em defesa das organizações econômicas, marchando umas contra as outras numa guerra de concorrência para a repartição dos mercados de escoamento, de mercados de matérias primas, de esferas de expansão do capital. É claro que houve aqui, da parte dos trabalhadores, traição aos seus interesses de classe. Não obstante, qual era o fundo da questão? Onde residia a causa oculta a mais profunda dessa monstruosa negação, conscientemente sustentada pelos partidos sociais-democratas oportunistas? Essa causa, era a solidariedade relativa entre o proletariado e a burguesia dos países capitalistas financeiros. Eis aí sobre que ela se baseava. Representemo-nos toda economia mundial. Na inumerável rede de fios que se entrecruzam — as relações de produção — existem nós fortes e espessos: os grandes países capitalistas. Lá se encontram os grupos «nacionais» da burguesia, organizados politicamente. Eles se assemelham às gigantescas empresas, aos grandes trustes, que «trabalham» nos limites da economia mundial. Tanto mais um desses Estados é poderoso, mais ele explora sem piedade a sua periferia econômica: colônias, esferas de influência, semi-colônias, etc.. Com a evolução da sociedade capitalista, a situação da classe trabalhadora deveria piorar. Mas os estados rapaces da burguesia, escorchando até arrancar sangue suas enormes possessões coloniais e «esferas de influência», induzem «seus» trabalhadores a interessar-se na exploração das colônias. Assim se cria uma «comunidade de interesses» relativa, entre a burguesia imperialista e o proletariado. Dessas relações de produção germina também a psicologia e ideologia correspondente, que se liga à renascença da idéia de pátria. O raciocínio era dos mais simples: se «nossa» indústria (em realidade, dever-se-ia dizer: «a indústria de nossos patrões») desenvolve-se, o salário de seu lado aumentará; e a indústria se desenvolve quando ela possui mercados e esferas de colocação de capital; então a classe trabalhadora é interessada na política colonial da burguesia; então, é necessário defender «a indústria da pátria», é necessário bater-se pelo seu lugar ao sol. E daí decorre todo o resto: celebração da potencia da pátria, da grande nação, etc., e também aranzeis empolados ao infinito sobre a humanidade, a civilização, a democracia, o desprendimento e outros temas que tiveram curso nos primeiros tempos da guerra. Era com a ideologia de «imperialismo obreiro», que a classe trabalhadora traía seus interesses permanentes gerais pelas migalhas que lhe atirava a burguesia, oprimindo os trabalhadores e semi-trabalhadores das colônias. E, feitas as contas, a marcha da guerra e o período do após-guerra mostraram à classe trabalhadora que ela tinha jogado uma má cartada, que os interesses duráveis de uma classe são mais importantes do que seus interesses passageiros. Então começa um processo de rápida «revolucionarização».

O professor Tugan Baranovski, já falecido, que se considerava como "quase marxista'', mas que encontrou tempo, durante a revolução russa, de ser por um momento ministro branco (isso por excesso de "ética": ele reprovava sem cessar a Marx de não ser bastante "ético" e de se deixar levar demasiado pelo ódio de classe, o que é, certamente, muito pouco filantrópico), esse Tugan Baranovski fazia ainda a Marx a objeção seguinte:

"Marx, dizia ele, não vê a solidariedade de interesses e nega-a na sociedade capitalista. Portanto "na defesa da independência proletária do Estado (do Estado burguês, N. B.) todas as classes estão igualmente interessadas quanto ao ponto de vista ideal. No domínio econômico, o Estado serve não somente de base à dominação de uma classe, mas também de auxilio à evolução econômica e ao aumento da soma total da riqueza nacional, o que corresponde aos interesses de todas as classes sociais como coletividade. A isto acrescenta-se também a missão educadora do Estado, que está diretamente interessado no progresso da cultura e na elevação do nível intelectual da população nacional, quando mais não seja, pela razão do poderio político e econômico estar ligado à "cultura"." (Tugan-Baranovski. Theorische Grundiangen des Marxismus — "Fundamentos teóricos do marxismo" — em russo).

O sr. Cunow (op. cit., vol. IL pag. 78-79) cita esta passagem de Tugan e a aprova, afirmando somente que aí Tugan confunde interesses sociais e interesses do Estado. Mas, realmente, Cunow confunde o ponto de vista revolucionário de Marx com o ponto de vista de traição da social-democracia de Scheidemann. A argumentação de Tugan—Cunow é pueril. Desde o momento em que o Estado não se preocupa somente de opressão, mas também de..., então todas as classes aí estão interessadas. Brava gente! Deste modo, pode-se provar tudo que se deseja. Depois que os trustes não se preocupam somente de exploração, mas também de produção, eles são de utilidade publica. E assim por diante. Aí vê-se com que tolices o sr. Cunow enche dois volumes "de estudos" sobre a sociologia marxista! Cunow, deste modo, bate o record sobre todos os falsificadores do marxismo, por sua cínica insolência.

"De acordo com a doutrina de Marx — escreve ele, às páginas 77 e 399 do segundo volume da sua obra — aquela vontade geral, na qual se baseava a antiga filosofia social, não existe absolutamente, porque a sociedade não é uma coisa concreta com interesses absolutamente idênticos, (Que sociedade!) mas ela é dividida em classes (isto não é mau, mas enfim, que faz Cunow do Estado? De quem este exprime a vontade? N. B.). Mas existem perfeitamente interesses sociais universais, porque (notai bem!) como a vida e a atividade social são impossíveis sem uma certa ordem, todos os membros da sociedade — desde que não neguem pertencer à sociedade — estão interessados na manutenção da uma tal ordem: mas como, em virtude de suas diversas posições dentro dessa ordem social, têm um ideal de ordem diversa, visto não serem identicamente interessados nas regras de ordem particular, eles encaram estas regras sob o ponto de vista de sua classe, isto é, sob prismas diferentes".

Em linguagem vulgar: — há indivíduos que pensam, por exemplo, que no regime capitalista a burguesia se interessa pelo regime, e o proletariado pela queda do mesmo. Absolutamente! No fim Cunow se adianta e explica: visto que a vida é impossível sem ordem, todos estão interessados em manter o capitalismo. Mas considerando que os operários têm "um ideal" diferente, — pois bem, Cunow os autoriza a que critiquem as "regras particulares". Mas se fizerem mais qualquer coisa, então... adeus, — cairão de chofre entre os indivíduos que negam pertencer à sociedade. Eis aí o marxismo corrigido e completado pelo sr. Cunow!

Tomemos ainda o período da evolução da classe operária, quando esta ainda se achava em «relações patriarcais» com seus patrões, em cada empresa tomada à parte; a prosperidade da empresa, dada a fragilidade dos laços sociais em geral, interessa os operários no sucesso do patrão. Os operários e seu «benfeitor», aquele que os «alimentava», aquele que lhes dava trabalho, ilustram também a questão do papel da solidariedade relativa dos interesses em detrimento dos interesses comuns da classe em seu conjunto.

Há aqui alguma analogia com a comunhão dos interesses dos escravos e dos senhores de escravos no mundo antigo, na medida que havia ainda «escravos de escravos» (por exemplo, os «vicarii» romanos); os escravos que possuíam escravos, eram por esse fato considerados possuidores de escravos, e compreende-se bem que nesse terreno eles tinham uma «comunhão de interesses» com os senhores de escravos «do primeiro grau», por assim dizer.

Nas atuais cooperativas agrícolas da Europa ocidental, observa-se frequentemente que os camponeses vão lado a lado com os proprietários de terras e com seus patrões agrícolas e capitalistas: eles se ligam com aqueles no terreno da venda de seus produtos agrícolas; eles se opõem à população urbana, como seus fornecedores, interessados em preços elevados, exatamente como está nisto interessado o grande proprietário agrícola.

Mas as este exemplo nos conduz, desde já, fora dos limites da primeira forma de solidariedade relativa das classes, porquanto na realidade ela constitui pouco a pouco no seio da classe camponesa uma verdadeira burguesia agrícola, que em nada se distingue da burguesia agrícola hereditária.

Como segunda forma de solidariedade relativa entre classes, na qual essa solidariedade relativa se pôs em contradição com os interesses permanentes das classes, pode-se designar antes de tudo os casos onde se formam blocos de classes contra um inimigo comum. Num determinado grau de evolução, esse fato é perfeitamente possível. Por exemplo, durante a revolução francesa, (na sua primeira fase) ela tinha contra o regime feudal, tanto na economia, como na política, diversas classes: burguesia, pequena-burguesia, proletariado. Todos esses agrupamentos tinham um interesse comum na derrubada do feudalismo. Em seguida, naturalmente, o bloco comum se desagregou e a pequena-burguesia, em seu conjunto, em luta contra a grande burguesia, passou à contra-revolução, desembaraçou-se ao mesmo tempo, sem dó nem piedade, de todas as tentativas de movimentos independentes do proletariado, (execução dos «enragés», etc.). Temos aqui um exemplo de solidariedade de classes não contradizendo os interesses gerais e duráveis das mesmas.

§ 56. Luta de classes e paz de classes

Os diferentes graus de interesses originam diferentes aspectos da luta. Sabemos agora que todo o interesse de uma parte de uma determinada classe não representa por si só um interesse de classe. O interesse dos operários de uma usina isolada, se contradiz os interesses das outras partes da classe operária — não é um interesse de classe, mas um interesse de grupo; mas mesmo se tivermos presente o interesse de um grupo de operários não contrariando os interesses de outros grupos, mas, contudo, não unindo ainda esses grupos, não existe ainda aqui, de fato, nem na consciência das massas, o interesse de classe e por conseguinte, rigorosamente falando, a luta de classes ainda não existe: quando muito, o que existe são germens de interesse de classe e germens de luta de classes. O interesse de classe aparece quando ele opõe uma classe ou outra. A luta de classe aparece quando ela opõe uma classe contra outra, na ação. Em outros termos: A luta de classes propriamente dita só se desenvolve num determinado grau de evolução da sociedade de classes; noutras fases desta evolução, ela pode aparecer também como gérmen (quando se assiste a uma luta entre parcelas isoladas de classes, uma luta que não se eleva à altura dos princípios de classes, não envolvendo nem unindo uma classe como tal), ou como forma oculta «latente» (já que não há luta aberta, mas sim «resistência passiva», um descontentamento surdo com o qual, de bom ou mau grado, a classe dominante deve contar).

«Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre-artesão e aprendiz, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que termina sempre, ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição simultânea das duas classes em luta». (Manifesto Comunista, sublinhado por nós, N. B.).

Vamos dar alguns exemplos para ilustrar o que se acaba de dizer.

Suponhamos que na época da escravatura, num latifúndio qualquer, se produza uma revolta com saque de bens, depredações, etc.. isto ainda não é a luta de classes no sentido próprio da palavra: É um assalto isolado de uma pequena parcela da classe dos escravos; todo o resto da classe está calma, um punhado se mete numa luta incruenta; mas esse punhado se acha isolado, ele se compõe de poucos homens: a classe propriamente dita não entra em jogo; aí não há oposição de classe contra classe. É porém diferente quando os escravos sublevados sob a direção dum Spartacus fazem uma verdadeira guerra civil para a libertação dos escravos: neste caso são levantadas massas de escravos, isto é de fato uma luta de classe. Suponhamos ainda que assistimos a uma greve de operários de uma usina visando aumento de salários; todos os outros operários ficam em silencio e sem ação nas suas colocações, isso ainda não significa mais do que o gérmen de luta de classes, pois a classe propriamente dita não entra em ação. Mas tomemos o caso, por exemplo, de uma «onda de greves»: isto já é a luta de classes, porque aí uma classe se opõe a outra classe. Não se trata dum interesse de grupo pondo em movimento um grupo, mas dum interesse de classe, lançando em movimento uma classe: Isso é de fato uma luta de classe, no sentido próprio da palavra. Tomemos ainda um exemplo: Um descontentamento ainda vago, turvo, se expande largamente entre os camponeses servos; ele pode irromper, mas por qualquer motivo ele não se produz; os escravos têm medo, e eles não empreendem a luta, mas eles começam a «resmungar». Aí está uma forma «latente» de luta, aludida no Manifesto Comunista.

Assim, por luta de classe entende-se uma luta em que uma classe se opõe à ação de outra. Daí deduz-se um axioma de grande importância, que «toda luta de classe é uma luta política» (Marx). Com efeito, o que se passa quando a classe oprimida se dirige como força de classe contra a classe opressora? Isto significa que a classe oprimida procura minar as bases da «ordem existente». E como a organização do poder da «ordem existente» é a organização de Estado da classe dirigente, compreende-se perfeitamente que toda ação da classe oprimida é objetivamente dirigida contra a máquina estatal da classe dirigente, mesmo que aqueles que tomam parte na luta da classe oprimida disto não tenham consciência no princípio.

Toda ação deste gênero tem por consequência inevitável um caráter político.

Consideremos por exemplo os sindicalistas revolucionários, ou os «Operários Industriais do Mundo» (Industrial Workers of the World — abreviado I. W. W.) da América. Eles nem querem ouvir falar em luta política.

É que por luta política, como bons oportunistas ingênuos que são, eles só entendem a luta parlamentar. Suponhamos, portanto, que os I. W. W. organizem, não uma greve geral, mas apenas uma greve de foguistas, mineiros e metalúrgicos. Quem não compreenderia toda a enorme importância política que tomaria inevitavelmente esta greve? Por que? Porque neste caso os quadros do proletariado seriam atirados à luta. Porque uma semelhante greve seria perigosa para a burguesia como classe. Porque ela ameaçaria fazer uma brecha na máquina da burguesia organizada. Porque consequentemente ela seria objetivamente dirigida contra o poder de Estado da burguesia.

No Manifesto Comunista, Marx descreve claramente, tomando o exemplo do proletariado, essa transformação de episódios isolados da luta em luta de classes. No começo,

''às vezes os operários triunfam; mas esse triunfo é efêmero. O verdadeiro resultado da suas lutas, não é tanto o sucesso imediato, mas antes a solidariedade crescente dos trabalhadores. Essa solidariedade é facilitada pelo aumento dos meios de comunicação, que permite aos operários de localidades diferentes se porem em contacto. As vezes basta esse contacto para transformar as numerosas lutas locais, que em toda parte revelam o mesmo caráter, numa luta nacional, numa luta de classes. Mas toda luta de classes é uma luta política".

Nas Cartas a Sorge (em alemão, pag. 42) Marx define da seguinte maneira esta transformação dos conflitos separados em luta de classes, isto é, em luta política. (A carta é escrita em alemão misturado com palavras em inglês):

"O movimento político da classe obreira tem, naturalmente, por objetivo a conquista do poder político; e para isso, evidentemente, uma organização preliminar da classe obreira desenvolvida até a um certo ponto e tendo nascido dela própria na luta econômica, é indispensável. Mas do outro lado, todo movimento no qual a classe operária se atira, como classe contra as classes dominantes, e visa constrange-las por uma pressão exterior, é um movimento político".

O sr. Cunow, que fez essa citação (op. cit., t. II, pag. 59), assim o explica:

"'... A um determinado grau de evolução do processo econômico em seu conjunto, surgem classes sociais distintas, que em virtude de sua participação neste processo têm seus interesses econômicos particulares e procuram lhes dar um caráter político".

Este comentário não é absolutamente exato, porque Cunow dissimula o que é fundamental, o que Marx faz sobressair em primeiro plano: a oposição de princípios de classe para classe, onde toda luta é uma parte do processo da luta geral para o poder e para o domínio na sociedade.

O professor Hans Delbruck, no seu artigo excepcionalmente insolente: A concepção da história em Marx (Preussische Jahr-buecher, vol. 182, caderno 2, pp. 157 e 399) "critica" a teoria da luta de classes, e assim fazendo revela uma ignorância verdadeiramente surpreendente dos problemas do marxismo. Na página 165 ele afirma que Marx não distinguia classe de condição; à página 166 ele afirma que em Roma antiga não houve a "desaparição de duas classes em luta" desde que a queda do Império Romano é um fato incontestável: havia no princípio guerras civis e em seguida nem os senhores vencedores, ou os escravos vencidos, se sentem capazes de fazer a sociedade progredir. Na página 167, ele diz que jamais houve feudalismo na Inglaterra! Na página 169 ele "refuta" Marx, mostrando que os camponeses caminham às vezes lado a lado com os junkers (V. sobre este ponto o que dissemos mais atrás) e assim por diante. Mas o cumulo de suas "objeções" é este: Delbruck cita um texto descoberto pelo célebre egiptólogo Ehrmann, que fala duma revolução no Egito antigo, onde os escravos teriam galgado o poder. O texto tem algo de curioso, que parece até ter sido escrito por um Merejkovsky ou outro grande senhor branco enfurecido contra os bolcheviques. Aí se pintam os horrores os mais tremendos. E o sr. Delbruck exclama num tom terrível: Eis aí vossa luta de classes! Mas o respeitável professor alemão não se lembra que ele cai em contradição quando acrescenta (pag. 171) que semelhante estado de coisas durou "trezentos anos". Mesmo um asno compreenderia que viver trezentos anos sem produção e numa anarquia absoluta é impossível. De sorte que a coisa deixa de ser tão terrível, e que a argumentação de Delbruck, apoiando-se no caso sobre o sentimento dum "burguês apavorado", é simplesmente ridícula.

Encontram-se também impagáveis objeções sobre a teoria de Marx em J. Delevsky (Os antagonismos sociais e a luta de classes na história, em russo, São Petersburgo, 1910). Eis sua objeção principal: Ele cita a seguinte passagem de Engels (prefacio do 18 Brumário, de Marx):

"Ninguém descobriu antes de Marx a grande lei do movimento histórico, isto é, que toda luta histórica, quer se realize no domínio político, religioso, filosófico, ou qualquer outro domínio ideológico, não é senão a expressão mais ou menos clara da luta de classes sociais".

Citando este trecho, o sr. Delevsky concorda com Sombart, propondo-se a completar o princípio da luta de classes pelo "princípio da luta das nações". A réplica de Plekanof, mostrando que nada havia a completar aí porque a luta de classes é uma noção do domínio dos processos internos da sociedade e não de vínculos entre sociedades, não parece satisfazer o sr. Delevsky.

"De duas uma — diz ele — ou bem existem na base da história dois princípios ou então não há mais do que um... se há dois princípios, o da luta de classes e o da luta das nações, então qual é a lei que rege o segundo princípio...? E se... não há senão o princípio da luta de classes, então qual é o sentido da distinção entre a luta no interior da sociedade, e a luta entre as sociedades...? Ou serão talvez as sociedades, as nações, os Estados, também classes?" (pag. 92).

Essa saída é "sui generis". Examinemos, portanto, a questão em si. Poderá haver duas causas fundamentais: pode-se tratar ou bem de uma única sociedade (por exemplo, a atual economia mundial); retalhada em organizações de Estado, de frações ''nacionais'' da burguesia mundial; ou então de sociedades inteiramente distintas, quase sem ligações entre si (por exemplo, quando se trava uma luta entre dois povos diferentes, dos quais um, suponhamos, seja de outra parte do mundo, coisa que certamente já se deu mais de uma vez na história: assim por exemplo, a conquista do México pelos espanhóis). No primeiro caso a luta entre burguesias é um modo particular da concorrência capitalista. Mas só o sr. Delevsky pode ter a idéia bizarra, de que a teoria da luta de classes exclui, por exemplo, a concorrência capitalista. Isto é uma forma de antagonismo no interior de classes, que, entretanto, não podem em caso algum mudar os fundamentos de uma estrutura de produção conhecida. Se a teoria de Marx reconhece a possibilidade duma solidariedade relativa entre classes, ela também reconhece a possibilidade dum antagonismo relativo no interior das classes. Mas haverá uma objeção à teoria da luta de classes? Quanto ao segundo caso, temos aí uma questão de método. A teoria da evolução da sociedade é uma teoria da evolução duma sociedade abstrata, e está inteiramente justificado que ela não tenha, rigorosamente falando, relação com as sociedades concretas. Sua análise tem por alvo: Que é a sociedade em geral, e quais são as leis de sua evolução? Se nós passamos destas questões a outras mais concretas, e entre outras, aquela das relações entre as diversas sociedades, encontramos certamente leis particulares, mas que também não estarão em contradição com a teoria marxista; e isso não porque as sociedades sejam diversas classes (esta suposição do sr. Delevsky é simplesmente absurda), mas porque a "expansão" em si tem causas econômicas; porque, por exemplo, a conquista viria inevitavelmente a favor do reagrupamento das forças de classe; porque, em semelhantes casos, é sempre o modo de produção mais levado que obtém a vitória, etc.. Mas tudo isso não abala de forma alguma a teoria da luta de classes.

Portanto, vimos acima que as classes oprimidas não levam sempre a uma luta de classes no sentido próprio da palavra. Mas isso, como vimos mais adiante, não implica absolutamente que em períodos de relativa calma «tudo esteja calmo, apaziguado, sob a vigilância divina». Isso significa apenas que a luta de classes lá está, em seu estado latente, ou no estado embrionário: é daí que se desenvolve a luta de classes no sentido próprio da palavra. Precisamos então nos recordar da dialética que considera tudo em movimento, em vias de acontecer; momentaneamente pode não haver luta de classes, mas «ela se prepara». É assim que as coisas se passam do lado das classes oprimidas. E do lado das classes dominantes? Estas dirigem constantemente a luta de classes. Pois o caráter aparente da organização de Estado mostra que a classe dominante se constituiu como uma classe para si mesma, quanto ao poder político. Isto faz supor uma plena consciência dos interesses fundamentais da classe que guia a luta contra as classes opostas aos seus interesses (contra a sua ameaça direta e contra a sua ameaça possível) e isto por todos os meios que lhe fornece a máquina do Estado.

§ 57. Luta de classes e poder político

A questão do Estado, como superestrutura determinada pela base econômica, já foi estudada mais atrás (V. § 38). É no momento indispensável abordá-lo sob outro prisma, examiná-lo sob um ponto de vista especial, sob o ponto de vista da luta de classes. Antes de tudo, é preciso frisar-se novamente, de modo mais categórico, que o organismo de Estado é um organismo exclusivamente de classe, «uma classe constituída em poder político», «a violência social duma classe concentrada e organizada» (Marx). A classe oprimida, portadora de uma nova forma de produção, se transforma, como já vimos, no desenvolvimento da luta de classe, numa classe de per si; na luta igualmente ela cria suas organizações de combate, que se tornam pouco a pouco organizações que arrastam atrás de si toda a classe em questão. Quando se produz uma revolução, uma guerra civil, etc.., estas organizações se atiram contra o inimigo e aparecem como células embrionárias de um novo aparelho de Estado sob forma direta ou disfarçada. Tomemos por exemplo a grande revolução francesa.

«Os clubes populares, ou jacobinos, foram as antigas sociedades dos Amigos da Constituição, outrora burgueses, depois democráticos, montagnards, sans-culottes, fanáticos, partidários da igualdade e da união... Foram fundados para fins educativos populares, antes para a propaganda do que para a ação; mas as circunstâncias os forçaram a agir no domínio político, e, (quando a pequena-burguesia subiu ao poder, N. B.) eles se imiscuíram diretamente na administração... Pelo decreto de 12 de frimaire, os jacobinos tornaram-se em toda França instrumentos da escolha e da nomeação dos funcionários» (Aulard: História política da Revolução Francesa, pags. 386 e 387).

«Finalmente... foram as sociedades jacobinas que mantiveram... a unidade e salvaram a pátria» (ibidem).

Durante a revolução inglesa o «Conselho do Exercito», corpo revolucionário composto de oficiais, pôs seus homens no «Conselho de Estado». Durante a revolução russa, os órgãos de combate dos obreiros e dos soldados — os soviets — e o partido revolucionário extremista — formaram os organismos de base do novo Estado.

Contra a concepção do Estado como Estado de classe e do seu poder como poder político, opõem-se duas objeções principais:

A primeira diz: O traço predominante dum Estado é ser uma administração centralizada. É por isso — dizem por exemplo, os anarquistas, — que toda administração centralizada significa a existência dum poder de Estado. Por conseguinte, na sociedade comunista avançada, por exemplo, onde a economia estará de acordo com um plano, ainda aí haverá um Estado. Este raciocínio repousa inteiramente sobre um ingênuo erro burguês: a ciência burguesa vê, em lugar de relações sociais, relações materiais ou técnicas. Mas é claro que o «espírito» do Estado não está nas coisas, mas sim nas relações sociais; não na administração centralizada, como tal, mas na periferia das classes da administração centralizada. Exatamente como o capital não é uma coisa (por exemplo, uma máquina), e sim uma relação social entre o empregado e seu patrão, relação expressa nas coisas, da mesma maneira a centralização não é absolutamente na essência uma centralização de Estado, ela se torna «do Estado», desde que ela exprime relações de classes.

Já examinamos, em parte a segunda objeção contra a teoria «de classe» do Estado, que é ainda mais tola e ridícula.Ela parte disso, de que o Estado preenche uma série de funções de utilidade geral (por exemplo, o Estado capitalista contemporâneo constrói suas estações elétricas, hospitais, vias férreas, etc.). Este argumento reúne de uma maneira chocante o social-democrata Cunow, o socialista-revolucionário da direita Delevsky, o conservador Delbruck, e até mesmo.... o imperador babilônico Hamurabi! Mas este respeitável quarteto não se engana menos redondamente, porque a existência de funções de utilidade geral do Estado não modifica em nada o caráter puramente de classe do poder político. A classe dominante, para poder explorar as massas, aumentar o campo desta exploração, favorecer sua marcha «normal», deve recorrer a empresas de «utilidade geral» de diferentes espécies. Por exemplo, sem o desenvolvimento da rede das vias férreas, o capitalismo não pode desenvolver-se; sem escolas profissionais, não terá a força obreira eficiente; sem institutos científicos, não haverá progresso na técnica capitalista, e assim por diante. Mas em todas as medidas semelhantes, o poder político dos capitalistas raciocina e age no interesse de sua classe. Já apresentamos o exemplo do trust. O trust também guia a produção, sem a qual a sociedade não poderia viver. Mas ele a guia partindo de um cálculo de classe. Tomemos qualquer antigo Estado de propriedade fundiária despótica, do gênero do Estado dos faraós do Egito. Enormes trabalhos de regularização do movimento das águas eram socialmente necessários. Mas o Estado faraônico os protegia e os empreendia, não para nutrir os esfomeados ou por se incomodar com o bem de todos, mas porque eles eram o prelúdio indispensável do processo de produção, que era ao mesmo tempo um processo de exploração. O cálculo de classe — tal era, nesse caso, o objetivo do Estado. Por conseguinte, esta ordem de instituições do Estado não é de maneira alguma uma prova da falsidade do ponto de vista de classe.

Uma outra ordem de medidas de utilidade geral é provocada pela ofensiva das «classes inferiores». Tal é, por exemplo, a legislação obreira dos países capitalistas. Partindo desta constatação, numerosos sábios (V. por exemplo Takhtaref) consideram que o Estado não é um organismo puramente de classe, pois ele é fundado sobre um compromisso. Basta refletir sobre isso por um instante, para descobrir-se o fundo da questão. Será, por exemplo, que o capitalista cessa de ser um «capitalista, na acepção da palavra», desde que, sob a ameaça de uma greve, considere mais vantajoso, para si mesmo, ceder? Evidentemente não. O mesmo sucede quanto ao Estado. Bem entendido, o Estado de classe pode fazer concessões às outras classes, do mesmo modo que no nosso exemplo o patrão faz concessões aos operários. Mas não se deduz daí absolutamente que cesse por isso de ser puramente de classe para se tornar um organismo de bloco das classes, isto é, um organismo efetivamente de utilidade geral.

Isso naturalmente não é o sr. Cunow que o compreende. Porém, dá prazer ver como o cínico professor Hans Delbruck, já citado, mete a ridículo esses muito doutos falsificadores do marxismo:

"A diferença entre nós outros, burgueses de espírito social e político, e vós. é apenas de um degrau. Mais alguns passos no caminho que trilhais, amáveis senhores, e a neblina marxista se dissipará" (loc. cit., pag. 172).

§ 58. Classe, partido, chefes

Quando se fala de uma classe, entende-se um grupo de pessoas reunidas por uma circunstância comum na produção, por conseguinte, por uma circunstância comum na repartição e partindo de interesses comuns (interesses de classe). Entretanto, seria uma ingenuidade supor que cada classe constitui um todo perfeitamente homogêneo, onde todos os partidos são iguais, onde João é semelhante a Pedro.

Para esclarecer com um exemplo, tomemos o trabalhador contemporâneo. Não se trata aqui unicamente de desigualdade de espírito ou de capacidade. Mesmo a situação, a «maneira de viver» das diversas partes da classe obreira, não é idêntica. Isto provém: Primeiro, porque não há perfeita homogeneidade das unidades econômicas; segundo, porque a classe trabalhadora não cai do céu já feita, mas forma-se constantemente entre os camponeses, artesãos, pequena-burguesia urbana, etc., isto é, entre os demais grupos da sociedade capitalista.

Não está claro, com efeito, que o operário de uma grande usina magnificamente instalada e o operário de uma pequena oficina sejam duas cousas diferentes? Aqui a causa da heterogeneidade é a heterogeneidade das empresas e de todo o seu regime de trabalho. Uma outra causa é o tempo da permanência na classe proletária: Um camponês que acaba de entrar numa usina é diferente dum operário que ali trabalha desde a sua infância.

A diferença do «modo de vida» se reflete na consciência. O proletariado não é mais homogêneo em sua consciência que na sua posição social. Ele é mais ou menos homogêneo comparado às outras classes. Mas se examinarmos esses diversos partidos, obtêm-se o quadro que acabamos de esboçar.

Assim, quanto à sua consciência de classe, isto é, em relação aos seus interesses mais duráveis, gerais, não comparativos, não de grupos, não grosseiramente materiais, nem pessoais, e sim os seus interesses gerais de classe, a classe operária é dividida numa série de grupos e subgrupos, como se fosse uma única corrente, composta de uma série de elos, cuja solidez seja variável.

É esta heterogeneidade de classe que torna um partido indispensável.

Com efeito, suponhamos por um instante que a classe operária seja perfeita e absolutamente homogênea. Ela poderia então a qualquer tempo agir como massa compacta. Para a direção de todas as suas ações, poder-se-ia escolher os homens ou os grupos por turnos: uma organização continua de direção seria supérflua, essa necessidade não se faria sentir.

A realidade é bem diferente. A luta da classe operária é inevitável. Uma direção é indispensável para esta luta. Ela é tanto mais indispensável, quanto mais o adversário é forte, astuto, e a luta contra o mesmo é uma luta incruenta. Quem deve dirigir toda a classe? Qual de suas partes? Está claro: a mais avançada, a mais educada e a mais unida.

É esta parte que é o partido.

O partido não é uma classe, mas uma parte da classe, talvez uma parte muito restrita, mas o partido é a cabeça da classe. Eis porque é o cumulo do absurdo opor o partido à classe. O partido da classe operária é o que exprime do melhor modo os seus interesses de classe. Pode-se distinguir classe e partido do mesmo modo que se distingue a cabeça do resto do corpo. É impossível opô-los, da mesma forma que é impossível decapitar um homem sob o pretexto de lhe prolongar a vida.

Do que depende, nestas condições, o sucesso da luta? Das relações normais entre as diferentes partes da classe operária, e antes de tudo, das relações normais entre o partido e os sem-partido. É preciso, de um lado, dirigir e comandar; doutro, educar e convencer. Sem educação e sem convicção, não é possível dirigir. De um lado é preciso que o partido seja compacto e organizado à parte, como fazendo parte da classe operária. Doutro, ele deve unir-se mais e mais estreitamente às massas sem partido, atraindo-as cada vez mais para dentro de sua organização. O crescimento moral e intelectual duma classe encontra em suma a sua expressão no crescimento do partido desta classe. E inversamente, o declínio duma classe se exprime no declínio de seu partido ou na diminuição de sua influência sobre os sem partido.

Acabamos de ver que a heterogeneidade duma classe tem por resultado a necessidade dum partido desta classe. Mas as condições de vida capitalista e o baixo nível intelectual não somente da classe operária, mas também de outras classes, criam uma situação tal que à vanguarda do proletariado, isto é, ao seu próprio partido, também falta homogeneidade. Ele é mais ou menos homogêneo se o compararmos às outras partes da classe operária, mas se tomarmos as diferentes partes desta vanguarda, isto é, do partido em si mesmo, põe-se facilmente a descoberto esta heterogeneidade interna.

Retomamos aqui, ponto por ponto, o mesmo raciocínio que há pouco para a classe.

Imaginemos um caso contrário à realidade, a saber, uma homogeneidade perfeita do partido, sob todos os pontos de vista: quanto à consciência de classe, quanto à experiência, quanto à arte de dirigir, etc.. Não haveria então necessidade de chefes. As funções de «chefe» poderiam ser assumidas sucessivamente por cada um, sem mal para a causa.

Mas, de fato, esta plena homogeneidade não existe, mesmo na vanguarda. E aí está a causa fundamental da absoluta necessidade de agrupamentos mais ou menos estáveis de pessoas dirigentes, designadas pelo nome de «chefes», «guias», «dirigentes», etc..

Os bons chefes são chefes porque exprimem da melhor forma as justas tendências do partido. E do mesmo modo que é absurdo opor o partido à classe, será absurdo opor o partido aos seus chefes.

É contudo isto que temos feito, quando opunhamos a classe operária aos partidos social-democratas ou às massas organizadas de operários a seus chefes. Mas nós o fizemos e o fazemos para destruir a social-democracia, para destruir a influência da burguesia, que toma por seus intermediários os chefes social-traidores. Mas seria estranho transportar tais métodos de destruição das organizações inimigas para nós mesmos, e apresentar isto como expressão do nosso espírito revolucionário por excelência.

Descobre-se uma situação análoga nas outras classes. Tomemos por exemplo a Inglaterra contemporânea. A burguesia é aí a classe dominante, mas ela governa pelo partido de Lloyd George ou de Stanley Baldwin, e o partido de Lloyd George ou de Stanley Baldwin governa por intermédio dos seus chefes.

Isto mostra bem, entre outras coisas, a inépcia das lamentações proferidas contra a ditadura do partido bolchevista na Rússia, ditadura que os inimigos da revolução opõem à ditadura da classe operária. Depois do que acabamos de dizer, compreende-se bem que uma classe dirige por intermédio da sua cabeça, isto é, do partido. E é somente desta forma que pode dirigir. Portanto, suprimindo-se a cabeça, isto é, o partido, atinge-se com o mesmo golpe a própria classe, como classe para si, fazendo dela, invés duma força social consciente e independente, um simples fator de produção, nada mais.

Não é este naturalmente o modo de ver do sr. Heinrich Cunow. Ele protesta contra o caráter de classe dos partidos em geral. Eis sua argumentação (op. cit., t. II, p. 68):

"Um partido não pergunta a quem quer que seja que queira aderir a ele: "Pertences a esta ou aquela classe?" O partido social-democrata também não faz esta indagação. Pode aderir quem quer que reconheça os seus princípios fundamentais e suas reivindicações, seu programa. E este programa contém, não só reivindicações econômicas determinadas, provocadas pelo interesse, mas também, na mesma forma que o programa de outros partidos, opiniões determinadas, políticas e filosóficas, exteriores à esfera dos interesses materiais. (A última frase grifada por nós, N. B.). Certamente a base da maior parte dos partidos é um agrupamento determinado de classe; mas pela sua estrutura, todo partido é ao mesmo tempo uma formação ideológica, o representante dum complexo particular de pensamentos políticos. E muitas pessoas entram num partido não devido aos seus interesses particulares nem da classe que representam, mas porque são atraídas por este complexo ideológico".

Estes argumentos do principal teórico social-democrata atual são extremamente instrutivos. O sr. Cunow, sem suspeitar de nada, opõe os pontos de vista políticos e filosóficos do partido às suas reivindicações econômicas. Que é isto, cidadão Cunow? Que resta do vosso marxismo? O programa é o mais alto grau da tomada de consciência de todos os "complexos ideológicos". Os "pontos de vista políticos e filosóficos" não estão suspensos nas nuvens, nascem das contradições da existência destas classes. Não somente não contradizem, mas pelo contrário, exprimem estas condições de existência, e tanto quanto se trata de reivindicações de programa, está claro que as partes filosóficas e políticas servem de invólucro à sua parte econômica.

A mesma coisa pode-se estudar no partido do sr. Cunow, a social-democracia alemã. Como ela incorpora um número crescente de não operários, e se separa da classe operária, apoiando-se, dentro da classe operária, sobretudo na sua aristocracia qualificada, o complexo ideológico e político do seu "programa" também se transforma. Nas suas reivindicações, tornou-se extremamente moderada: e eis a razão por que, ideologicamente, a social-democracia alemã faz um marxismo deslavado, castrado, um "marxismo" do sr. Cunow; eis porque ela escolhe para comentador do seu programa o sr. Bernstein, há longo tempo traidor do marxismo, e para filósofo oficial o sr. Vorlaender, idealista kantiano.

§ 59. As classes como instrumento de transformação social

Se se encara a sociedade como um sistema que evolui objetivamente, vê-se que a passagem dum sistema de classe (duma «formação social» de classe) a outro, se processa através de uma luta violenta de classes. As classes são, na evolução objetiva do processo das transformações sociais, o aparelho vivo e fundamental de transmissão, por meio do qual se produz toda a transformação do conjunto das relações vitais da sociedade. A estrutura da sociedade se transforma pelos homens e não ao lado deles e sem eles; as relações de produção são um produto da atividade e da luta humana, da mesma forma que o fio ou o tecido (Marx). Mas se no meio da infinita quantidade de vontades individuais indo para as direções as mais diversas, e dando afinal uma certa resultante social, tentamos isolar as direções fundamentais, obteremos alguns feixes homogêneos de vontades: estes serão as vontades de classe. A sua oposição é particularmente sensível nas revoluções, isto é, quando a sociedade toda se abala na passagem duma forma de classe para outra.

Mas, doutro lado, sob as leis da evolução da vontade de classe, no emaranhado de idéias diferentes, no choque de vontades de classe opostas e diversas, escondem-se as leis mais profundas da evolução objetiva, que, em cada fase, determina os fenômenos de ordem voluntária.

Doutro lado, sabemos que os efeitos da vontade são definidos pelas condições exteriores, isto é, que as mudanças de condições susceptíveis de serem produzidas pela influência em torno da vontade dos homens, são limitadas pelo estado precedente destas condições. Assim, a luta de classes e a vontade de classe constituem o aparelho de transmissão que funciona na passagem duma estrutura social para outra.

Nesta passagem, a nova classe deve agir como organizadora e portadora duma nova forma de vida social e econômica. Uma classe que não é portadora duma nova forma de produção, não pode «refundir» a sociedade. Pelo contrário, a força de classe que encarna as relações de produção em gestação, e mais progressivas, constitui a alavanca viva da transformação social. Assim a burguesia, portadora de novas relações de produção, duma nova estrutura econômica, transportou, com as suas revoluções, toda a sociedade das antigas vias feudais para as novas vias da evolução burguesa; assim o proletariado, portador e organizador do modo socialista de produção, sob a sua fórmula primitiva de classe, transporta a sociedade, que objetivamente não pode viver sobre sua antiga base, das vias burguesas para as vias proletárias.

§ 60. A sociedade sem classes do futuro

Tocamos aqui numa questão que tem sido pouco esclarecida pela literatura marxista. Eis no que ela consiste. Vimos mais acima que a classe dirige por intermédio do partido, o partido por intermédio dos chefes; que classe e partido têm, por assim dizer, o seu quadro de comando. Este quadro é tecnicamente indispensável, porque, como vimos, ele nasce da heterogeneidade da classe e da não-homogeneidade intelectual dos membros do partido. Noutras palavras, cada classe tem seus organizadores. Se se encara por este lado a evolução da sociedade, chega-se naturalmente a propor esta questão: é possível a sociedade sem classes de que falam os marxistas?

Com efeito, sabemos que as classes, elas mesmas, derivam organicamente, como Engels frisou, da divisão do trabalho, da necessidade de funções organizadoras para a evolução da sociedade. Ora, está claro que a sociedade futura não precisará menos deste trabalho organizador. Pode-se, é verdade, responder a isto que na sociedade futura não haverá propriedade privada nem formação da sociedade privada.

Ora, estas relações de propriedade privada são precisamente o que constitui essencialmente uma classe.

Mas existe contra isto uma contra-argumentação. Assim, por exemplo, o professor Robert Michela, no seu interessantíssimo trabalho Zur Sociologie des Parteiwesen in der modernen Demokratie (Sociologia dos partidos na democracia contemporânea), Leipzig, edição do Dr. Werkner Klinhkardt, 1910 (em alemão) escreve (p. 370):

«Existem ainda sobre este ponto dúvidas muito reais, cujo exame atento leva à integral negação da possibilidade dum Estado (mais exatamente: duma sociedade, N. B.) sem classes. A gestão dum enorme capital (isto é, meios de produção, N. B.)... dá aos administradores um poder pelo menos igual ao que lhes daria a posse dum capital privado, a propriedade privada».

Desta forma, toda evolução social se apresenta no máximo como uma troca, de grupos de chefes (V. Vilfredo Pareto com a sua teoria da Circulação das elites).

Importa examinar esta questão. Pois se esta teoria é certa, a dedução que R. Michels tira, a saber, que os socialistas podem vencer, mas não o socialismo, também o é.

Tornemos antes um exemplo. Quando a burguesia domina, ela domina, sabemo-lo, não simultaneamente por todos os membros de sua classe, mas por seus chefes. No entanto sabe-se e vê-se bem que isto não produz nenhum desmembramento no interior da burguesia. Os senhores nobres reinavam na Rússia por meio de seus funcionários superiores, que representavam todo um quadro, toda uma camada social. E no entanto, esta camada não se opunha, como classe, aos demais senhores. Por que? Por esta razão muito simples: porque a situação vital destes últimos não diferia em nada da dos primeiros; o nível intelectual era também, em linhas gerais, o mesmo, e é sempre na classe dos senhores que se recrutavam aqueles que «dirigiam» o aparelho do Estado.

Aí está porque Engels tinha perfeitamente razão quando escrevia que as classes são, até um certo momento, a consequência do insuficiente desenvolvimento das forças produtivas: é preciso administrar, e «não existem sempre meios suficientes para remunerar convenientemente a administração». Daí, paralelamente ao desenvolvimento das funções organizadoras, socialmente indispensáveis, o crescimento simultâneo da propriedade privada. Mas a sociedade comunista é uma sociedade onde as forças produtivas são muito desenvolvidas e se desenvolvem muito depressa. Por consequência, não existe nela base econômica para a criação duma classe dominante particular. Porquanto — mesmo se supomos um poder estável de administradores, segundo Michels — será um poder de especialistas sobre máquinas, e não sobre homens. Com efeito, como poderiam eles realizar este domínio sobre homens? Não teriam nenhum meio para isto. Michels admite um ponto fundamental e decisivo: toda posição dominante e administrativa tem sido até hoje pretexto para a exploração econômica. Mas um poder fechado, estável, dum grupo de homens, não seria possível nem mesmo sobre as máquinas. Porquanto a base das bases desaparecerá para a formação de grupos monopolizadores deste gênero, ou seja o que Michels classifica na eterna categoria de «incompetência da massa». A «incompetência da massa» não é absolutamente atributo obrigatório de toda vida em comum: ela é precisamente, ela também, um produto de condições econômicas e técnicas, que agem por intermédio da situação intelectual geral e das condições de educação. A sociedade futura verá uma grandiosa superprodução de organizadores, de forma que não haverá mais estabilidade de grupos dirigentes.

A questão é muito mais árdua no período de transição do capitalismo ao socialismo, isto é, para o período da ditadura proletária. A classe operária vence no momento em que não é — e não pode ser — uma massa homogênea. Ela vence em condições de declínio das forças produtivas e de insegurança das massas. Esta é a razão por que uma tendência para a «degenerescência», isto é, para a separação duma camada dirigente, como gérmen de classe, aparecerá fatalmente. Mas doutro lado, ela será paralisada por duas tendências opostas: o crescimento das forças produtivas e a supressão do monopólio de instrução. A reprodução em grande escala de técnicos e de organizadores em geral, saídos do seio da classe operária, cortará pela raiz qualquer nova classe eventual. O resultado da luta dependerá somente de saber quais as tendências que se mostrarão mais fortes.

Assim a classe operária, tendo à sua disposição um instrumento tão belo como a teoria marxista, deve lembrar-se que é por suas mãos que se constitui e que se estabelecerá definitivamente uma ordem de relações sociais tal que se diferenciará em princípio de todas as formações sociais do passado: da horda comunista primitiva, por isto que será uma sociedade de homens de alta cultura, conscientes deles mesmos e dos outros; das formas fundadas sobre classes, por isto que, pela primeira vez, a existência do homem será assegurada não somente para alguns grupos isolados, mas para toda a massa dos homens, massa que cessará de ser massa e se tornará sociedade humana única, harmonicamente construída.

Bibiligrafia do Capítulo VIII

Inclusão 04/08/2011
Última alteração 30/04/2014