A internacionalização do genocídio

Fidel Castro

3 de abril de 2007


Fonte: Cuba Debate - Contra o Terrorismo Midiático

Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo


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A reunião de Camp David acaba de concluir. Todos escutamos com interesse a conferência de imprensa dos presidentes dos Estados Unidos da América e do Brasil, bem como as notícias à volta da reunião e as opiniões expressas.

Encarado Bush às demandas do seu visitante brasileiro relativamente às tarifas alfandegárias e subsídios que protegem e apoiam a produção norte-americana de etanol, não fez em Camp David a mais mínima concessão.

O presidente Lula atribuiu isso ao encarecimento do milho que, de conformidade com as suas palavras, fora elevado em mais de 85 por cento.

Anteriormente, o jornal The Washington Post publicou o artigo da máxima autoridade do Brasil, em que expôs a ideia de tornar os alimentos em combustível.

Não é a minha intenção magoar o Brasil, nem me misturar em assuntos relativos com a política interna desse grande país. Foi precisamente no Rio de Janeiro, sede da Reunião Internacional sobre o Meio Ambiente, há exactamente 15 anos, onde denunciei com veemência, num discurso de 7 minutos, os perigos do meio ambiente que ameaçavam a existência da nossa espécie. Naquela reunião estava presente Bush pai, como presidente dos Estados Unidos da América, quem em gesto de cortesia bateu palmas perante aquelas palavras, como também o fizeram os outros presidentes.

Ninguém em Camp David respondeu à questão fundamental: onde e quem vão fornecer os mais de 500 milhões de toneladas de milhos e doutros cereais que os Estados Unidos, a Europa e os países ricos precisam para produzir a quantidade de galões de etanol que as grandes empresas norte-americanas e doutros países exigem como contraparte dos seus inúmeros investimentos? Onde e quem vão produzir a soja, as sementes de girassol e colza, cujos óleos essenciais esses mesmos países ricos vão converter em combustível?

Um número de países produzem e exportam os seus excedentes de alimentos. O balanço entre exportadores e consumidores era já tenso, disparando os preços desses produtos. Em prol da brevidade, não tenho outra alternativa do que me limitar a apontar o seguinte:

Os cinco produtores principais de milho, cevada, sorgo, centeio, mijo (espécie de milho originário da Índia), e aveia que Bush quer converter em matéria-prima para produzir etanol, fornecem ao mercado mundial, segundo dados recentes, 679 milhões de toneladas. Pela sua vez, os cinco consumidores principais, alguns dos quais também são produtores desses grãos, precisam actualmente de 604 milhões de toneladas por ano. O excedente disponível se reduz a menos de 80 milhões de toneladas.

Esse esbanjamento colossal de cereais para produzir combustível, sem incluir as sementes oleaginosas, apenas serviria para poupar-lhes aos países ricos menos de 15 por cento do consumo anual dos seus automóveis vorazes.

Bush, em Camp David, tem declarado a sua intenção de aplicar essa fórmula a nível mundial, o que não significa outra coisa senão a internacionalização do genocídio.

O presidente do Brasil, na sua mensagem publicada pelo The Washington Post, na véspera do encontro em Camp David, afirmou que menos de um por cento da terra cultivável brasileira é dedicada à cana para a produção de etanol. Essa superfície é quase o triplo daquela que era empregue em Cuba quando se produziam quase 10 milhões de toneladas de açúcar, antes da crise da URSS e a mudança climática.

O nosso país leva mais tempo produzindo e exportando açúcar, em primeiro lugar na base do trabalho dos escravos que chegaram a ser mais de 300 mil nos primeiros anos do século XIX e converteram a colónia espanhola no primeiro exportador do mundo. Quase cem anos depois, a começos do século XX, na pseudo república, cuja plena independência frustrou a intervenção norte-americana, só imigrantes antilhanos e cubanos analfabetos carregavam o peso da cultura e do corte da cana. A tragédia do nosso povo era o chamado tempo morto, pelo carácter cíclico dessa cultura. Os canaviais eram propriedade de empresas norte-americanas ou de grandes fazendeiros de origem cubana. Portanto, temos acumulado mais experiência do que ninguém sobre o efeito social dessa cultura.

No domingo passado, dia 1 de Abril, a CNN informava a opinião de especialistas brasileiros que afirmavam que muitas das terras dedicadas à cultura da cana foram adquiridas por norte-americanos e europeus ricos.

Nas minhas reflexões publicadas em 29 de Março expliquei os efeitos da mudança climática em Cuba, ao qual se acrescentam outras características tradicionais do nosso clima.

Na nossa ilha, pobre e longe do consumismo, não haveria sequer pessoal suficiente para suportar os duros rigores da cultura e do atendimento aos canaviais no meio do calor, as chuvas ou das secas crescentes. Quando açoitam os furacões, nem sequer as maquinarias mais perfeitas podem fazer a colheita das canas deitadas e retorcidas. Durante séculos não existiu o hábito de queimá-las, nem o solo era compactado sob o peso de maquinarias complexas e caminhões enormes; os fertilizantes nitrogenados, potássicos e fosfóricos, hoje custosos demais, nem sequer existiam, e os meses secos e húmidos se alternavam regularmente. Na agricultura moderna não há rendimentos elevados possíveis sem a rotação das culturas.

A Agência Francesa de Imprensa transmitiu no domingo 1 de Abril informações preocupantes a respeito da mudança climática, que peritos reunidos pelas Nações Unidas consideram como uma coisa já inevitável e de graves consequências nas próximas décadas.

“A mudança climática afectará o continente americano de forma importante, ao gerar mais tormentas violentas e ondas de calor, que na América Latina provocarão secas, com a extinção de espécies e inclusive fome, segundo o relatório da ONU que deve ser aprovado na próxima semana, em Bruxelas.

“No fim do presente século, cada hemisfério sofrerá problemas de água e, se os governos não tomarem medidas, o aumento de temperaturas poderia incrementar os riscos de 'mortalidade, poluição, catástrofes naturais e doenças infecciosas’, adverte o Grupo Inter-governamental da Mudança Climática (IPCC).

“Na América Latina, o aquecimento já está a derreter os glaciares dos Andes e ameaça a floresta do Amazonas, cujo perímetro pode ir se tornando numa savana”, continua afirmando o telex.

“Por causa da grande quantidade de pessoas que vivem perto das costas, os estados Unidos também se expõem a fenómenos naturais extremos, como o demonstrara o furacão Katrina no ano 2005."

“Este é o segundo relatório do IPCC duma série de três, que abriu no passado mês de Fevereiro com uma primeira diagnose científica onde se estabelecia a certeza da mudança climática.”

“Nesta segunda entrega de 1400 páginas, na qual é analisada a mudança por sectores e regiões e da qual a AFP obteve uma duplicata, considera-se que, embora sejam tomadas medidas radicais para reduzir as emissões de dióxido de carbono à atmosfera, o aumento das temperaturas em todo o planeta, nas próximas décadas, já é certo”, conclui a informação da agência francesa de notícias.

Como era de esperar, Dan Fisk, assessor de Segurança Nacional para a região, declarou no próprio dia da reunião de Camp David que “na discussão de assuntos regionais, o tema de Cuba seria um deles, e não precisamente para abordar o tema do etanol –a respeito do qual o Presidente convalescente Fidel Castro escreveu um artigo na quinta-feira– mas sobre a fome que tem criado no povo cubano".

Pela necessidade de responder-lhe a este cavalheiro, vejo-me no dever de lembrar-lhe que o índice de mortalidade infantil em Cuba é menor que o dos Estados Unidos. Pode se garantir que não existe nenhum cidadão sem assistência médica gratuita. Toda a gente estuda e ninguém carece de oferta de trabalho útil, apesar de quase meio século de bloqueio económico e a tentativa dos governos dos Estados Unidos da América de render o povo cubano mediante a fome e a asfixia económica.

A China jamais empregaria uma só tonelada de cereais ou de leguminosas para a produção de etanol. Trata-se duma nação de economia próspera, que ultrapassa recordes de crescimento, onde nenhum cidadão deixa de receber as verbas necessárias para bens essenciais de consumo, apesar que 48 por cento da sua população, que ultrapassa os 1300 milhões de habitantes, trabalha na agricultura. Antes pelo contrário, propôs-se fazer poupanças consideráveis de energia, eliminando milhares de fábricas que consomem cifras inaceitáveis de electricidade e hidrocarbonetos. Muitos alimentos mencionados os importam desde qualquer canto do mundo após transportá-los milhares de quilómetros.

Dezenas e dezenas de países não produzem hidrocarbonetos e não podem produzir milho e outros grãos, nem sementes oleaginosas, porque a água lhes não alcança nem para cobrirem as suas necessidades mais elementares.

Numa reunião convocada em Buenos Aires pela Câmara da Indústria de Óleos e o Centro de Exportadores sobre a produção de etanol, o holandês Loek Boonekamp, director de Mercados e Comércio Agrícola da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento (OCDE), declarou à imprensa que:

“Os governos ficaram muito entusiasmados; deveriam ter um olhar frio acerca de se deve existir apoio tão forte ao etanol.

“A produção de etanol apenas é viável nos Estados Unidos; em nenhum outro país, a não ser que sejam aplicados subsídios.

“Isto não é maná do céu e não nos temos que comprometer cegamente”, continua o telex.

“Hoje os países desenvolvidos incentivam para que os combustíveis fósseis sejam misturados com biocombustíveis em cerca de 5 por cento, e isso já faz pressão sobre os preços agrícolas. Se esse corte for elevado a 10 por cento seria necessário 30 por cento da superfície plantada nos Estados Unidos e 50 por cento da de Europa. Por isso pergunto se isso é sustentável. O aumento da demanda por culturas para o etanol produzirá preços mais altos e instáveis.”

As medidas proteccionistas hoje se elevam a 54 cêntimos por galão e os subsídios reais atingem cifras muito mais altas.

Aplicando a aritmética singela que aprendemos no pré-universitário, comprovar-se-ia que a simples mudança das lâmpadas de incandescência por fluorescentes, como expressei na minha reflexão anterior, contribuiria com uma poupança de investimento e de recursos energéticos equivalente a milhões de milhões de dólares, sem utilizar um só hectare de terra agrícola.

Enquanto isso, notícias públicas procedentes de Washington afirmam textualmente através da AP:

“O misterioso desaparecimento de milhões de abelhas em todo o território dos Estados Unidos tem os apicultores no bordo do ataque de nervos e preocupa inclusive o Congresso, que irá debater nesta quinta-feira a crítica situação de um insecto chave para o sector agrícola.

“Os primeiros sinais sérios deste enigma surgiram pouco depois do Natal no estado da Florida, quando os apicultores se encontraram com que as abelhas tinham sumido.

“Desde então, a síndrome que os peritos baptizaram como o Problema do Colapso das Colmeias (CCD, pelas suas siglas em inglês), tem diminuído em 25 por cento os enxames do país.

“Temos perdido mais de meio milhão de colónias de abelhas, com uma população de ao redor de 50 mil abelhas cada, disse Daniel Weaver, presidente da Federação Estadunidense de Apicultores, que sublinhou que o mal afecta aproximadamente 30 dos 50 estados do país. O curioso do fenómeno é que em muitos dos casos não se encontram restos mortais.

“Os laboriosos insectos polinizam culturas avaliadas entre 12 mil e 14 mil milhões de dólares, segundo um estudo da Universidade de Cornell.

“Os cientistas baralham todo o tipo de hipóteses, dentre elas a de que algum pesticida tenha provocado danos neurológicos nas abelhas e alterado o seu sentido da orientação. Outros culpam à seca, e inclusive às ondas dos telemóveis, mas o certo é que ninguém sabe na verdade qual é o verdadeiro desencadeante."

O pior pode estar por vir a acontecer: uma nova guerra para garantir os fornecimentos de gás e petróleo, que coloque à espécie humana no bordo do holocausto total.

Há órgãos de imprensa russos que, invocando fontes de inteligência, têm informado que a guerra contra o Irão está a ser preparada em todos os seus pormenores há mais de três anos, no dia em que o governo dos Estados Unidos da América decidiu ocupar Iraque na sua totalidade, desatando uma guerra civil odiosa e interminável.

Enquanto isso, o governo norte-americano destina centenas de milhares de milhões de dólares ao desenvolvimento de armas de tecnologia altamente sofisticada, como as que utilizam sistemas microelectrónicos, ou novas armas nucleares que poderiam estar sobre os alvos uma hora depois de terem recebido a ordem.

Os Estados Unidos ignoram olimpicamente que a opinião mundial é contra todo o tipo de armas nucleares.

Demolir até a última fábrica iraniana é uma tarefa técnica relativamente fácil para um poder como o dos Estados Unidos. O difícil poderia vir depois se uma nova guerra for desencadeada contra outra crença muçulmana que merece todo o nosso respeito, como as outras religiões dos povos do Oriente Próximo, Médio ou Longínquo, anteriores ou posteriores ao cristianismo.

A captura dos soldados ingleses nas águas jurisdicionais do Irão parece uma provocação exactamente igual à dos chamados “Irmãos ao Resgate”, quando violando as ordens do presidente Clinton avançavam sobre as águas da nossa jurisdição e a acção defensiva de Cuba, absolutamente legítima, serviu de pretexto ao governo dos Estados Unidos da América para promulgar a famosa Lei Helms-Burton, que viola a soberania doutros países. Poderosos meios massivos de publicidade sepultaram no esquecimento aquele episódio. Não são poucos os que atribuem o preço do petróleo de quase 70 dólares por barril, atingido na segunda-feira, aos temores dum ataque ao Irão.

Donde irão tirar os países pobres do Terceiro Mundo os recursos mínimos para sobreviverem?

Não exagero, nem uso palavras desmedidas, atenho-me aos factos.

Como pode ser constatado, são muitas as faces obscuras do poliedro.


Inclusão: 04/09/2021