Lula
(Segunda Parte)

Fidel Castro

23 de janeiro de 2008


Fonte: Cuba Debate - Contra o Terrorismo Midiático

Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo


capa

Leia a primeira parte

Lula me lembrou com calidez a primeira vez que visitou nosso país no ano 1985 para participar de uma reunião convocada por Cuba para analisar o angustiante problema da dívida externa, em que expuseram e debateram os seus critérios os representantes das mais variadas tendências políticas, religiosas, culturais e sociais, preocupados pelo asfixiante drama.

Os encontros se realizaram ao longo do ano. Foram convocadas lideranças de operários, camponeses, estudantes ou outras categorias segundo o tema. Ele era um deles, já conhecido entre nós e no exterior pela sua mensagem direta e vibrante, de jovem dirigente operário.

América Latina naquela altura devia 350 bilhões de dólares. Contei-lhe que naquele ano de intensa luta tinha escrito extensas cartas ao Presidente de Argentina, Raúl Alfonsín n, para persuadi-lo de que não continuasse pagando aquela dívida. Conhecia as posições do México, inamovível no pagamento da sua enorme dívida externa, embora não indiferente ao resultado da batalha, e a especial situação política do Brasil. A dívida argentina era suficientemente grande após os desastres do governo militar. Justificava-se a tentativa de abrir uma fenda nessa direção. Não o consegui. Poucos anos depois a dívida, com seus juros, ascendia a 800 bilhões; multiplicou-se por dois e já tinha sido pagada.

Lula me explica a diferença com aquele ano. Afirma que hoje o Brasil não tem dívida alguma com o Fundo Monetário nem também não com o Clube de Paris, e dispõe de190 bilhões de USD nas suas reservas. Deduzi que seu país tinha pagado enormes somas para cumprir com aquelas instituições. Expliquei-lhe a colossal burla de Nixon à economia mundial, quando unilateralmente suspendeu o padrão ouro em 1971 que colocava limites à emissão de notas. O dólar mantinha até então um equilíbrio relativamente a seu valor em ouro. Trinta anos antes Estados Unidos dispunha de quase todas as reservas desse metal. Se havia muito ouro, compravam; se havia escassez, vendiam. O dólar exercia seu papel como moeda de câmbio internacional, dentro dos privilégios que lhe foram concedidos a esse país em Bretton Woods no ano 1944.

As potências mais desenvolvidas estavam destruídas pela guerra. Japão, Alemanha, URSS e o resto da Europa apenas contavam com esse metal em suas reservas. A onça Troy de ouro podia ser adquirida até por 35 dólares; hoje se precisam de 900.

Estados Unidos ―disse-lhe― tem comprado bens no mundo afora imprimindo dólares, e sobre tais propriedades adquiridas noutras nações exercem prerrogativas soberanas. Porém, ninguém deseja que o dólar se desvalorize mais, porque quase todos os países acumulam dólares, ou seja, papéis, que se desvalorizam constantemente desde a decisão unilateral do Presidente dos Estados Unidos.

As atuais reservas em divisas da China, o Japão, o sudeste asiático e a Rússia acumulam três milhões de milhões (3.000.000.000.000) de dólares; são cifras siderais. Se somares as reservas em dólares da Europa e do resto do mundo, verás que equivale a uma montanha de dinheiro cujo valor depende do que faça o governo de um país.

Greenspan, quem foi durante mais de 15 anos Presidente da Reserva Federal, morreria de pânico perante uma situação como a atual. A quanto pode chegar a inflação nos Estados Unidos? Quantos novos empregos pode criar esse país neste ano? Até quando vai funcionar sua máquina de imprimir notas antes que se produza o colapso da sua economia, além de usar a guerra para conquistar os recursos naturais de outras nações?

Como conseqüência das duras medidas que lhe impuseram em Versalhes ao Estado alemão derrotado em 1918, em que se instalou um regime republicano, o marco alemão se depreciou de tal forma que chegou a se necessitar dezenas de milhares deles para comprar um dólar. Tal crise alimentou o nacionalismo alemão e contribuiu extraordinariamente às absurdas idéias de Hitler. Ele procurou culpados. Muitos dos principais talentos científicos, escritores e financistas eram de origem judaica. Perseguiram-nos. Entre eles estava Einstein, autor da teoria de que a energia é igual à massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz, que o tornou famoso. Também Marx, nascido na Alemanha, e muitos dos comunistas russos, eram dessa origem, praticassem ou não a religião hebraica.

Hitler não culpou o sistema capitalista do drama humano, mas aos judeus. Partindo de burdos preconceitos, o que desejava realmente era “espaço vital russo” para sua raça superior germânica, cujo império milenário sonhava edificar.

Mediante a Declaração Balfour os britânicos decidiram em 1917 criar dentro do seu império colonial o Estado de Israel em território povoado por palestinos, de outra religião e cultura, que naquelas terras viveram junto de outras etnias, dentre elas a judaica, durante muitos séculos antes de nossa era. O sionismo se tornou popular entre os estadunidenses, que odiavam com razão os nazisistas e cujas bolsas financeiras estavam controladas por representantes daquele movimento. Esse Estado aplica hoje os princípios do Apartheid, possui sofisticadas armas nucleares e controla os centros financeiros mais importantes dos Estados Unidos. Foi utilizado por esse país e seus aliados europeus para fornecer armas nucleares ao outro Apartheid, o da África do Sul, para usá-las contra os combatentes internacionalistas cubanos que lutavam contra os racistas no Sul de Angola, se cruzassem a fronteira da Namíbia.

Logo depois lhe falei a Lula sobre a política aventureira de Bush no Oriente Médio.

Prometi entregar-lhe o artigo que seria publicado em Granma no dia seguinte, 16 de Janeiro. Assinaria de do meu próprio punho o que destinava a ele. Igualmente lhe entregaria, antes de ir , o artigo de Paul Kennedy, um dos intelectuais mais influentes dos Estados Unidos, sobre a interligação entre os preços dos alimentos e o petróleo.

Tu és produtor de alimentos, acrescentei-lhe, e além disso acabas de encontrar importantes reservas de cru ligeiro. O Brasil possui 8 milhões 534 mil quilômetros quadrados e dispõe de 30 por cento das reservas de água do mundo. A população do planeta precisa cada vez mais de alimentos, dos quais vocês são grandes exportadores. Se se dispõe de grãos ricos em proteínas, óleos e carboidratos ―que podem ser frutos, como a castanha de caju, a amêndoa, o pistácio; raízes, como o amendoim; a soja, com mais de 35% de proteína, o girassol; ou cereais, como o trigo e o milho―, é possível produzir a carne ou o leite que desejares. Não mencionei outros da longa lista.

Em Cuba, lhe continuei explicando, tivemos uma vaca que estabeleceu recorde mundial de leite, uma mistura de Holstein com Zebu. De imediato Lula a mencionou: “Ubre Branco!” exclamou. Lembrava seu nome. Acrescentei-lhe que chegou a produzir 110 litros de leite diários. Era como uma fábrica, mas era preciso dar-lhe mais de 40 quilogramas de ração, o máximo que podia mastigar e engolir em 24 horas; uma mistura onde a farinha de soja, uma leguminosa muito difícil de produzir no solo e no clima de Cuba, é o componente fundamental. Vocês têm agora as duas coisas: fornecimento seguro de combustível, matérias-primas alimentícias e alimentos elaborados.

Proclama-se já o fim dos alimentos baratos. O quê farão as dezenas de países com muitas centenas de milhões de habitantes que não possuem nem uma coisa nem a outra?, pergunto-lhe. Isso significa que os Estados Unidos têm uma enorme dependência externa, mas ao mesmo tempo uma arma. Seria pegando todas as suas reservas de terra, mas o povo desse país não está preparado para tal. Eles estão produzindo etanol a partir do milho, o que provoca que retirem do mercado uma grande quantidade desse grão calórico, continuei argumentando-lhe.

Lula me conta, com relação ao tema, que os produtores brasileiros já estão vendendo a safra de milho de 2009. O Brasil não é dependente do milho como o México ou a América Central. Julgo que nos Estados Unidos não se sustenta a produção de combustível a partir do milho. Isso confirma, lhe afirmei, uma realidade com relação à subida impetuosa e incontrolável dos preços dos alimentos, que afetará muitos povos.

Tu em câmbio contas, disse-lhe, com um clima favorável e uma terra solta; a nossa soe ser argilosa e às vezes dura como o cimento. Quando vieram os tratores soviéticos e os de outros países socialistas se quebravam, foi preciso comprar aços especiais na Europa para fabricá-los aqui. No nosso país abundam as terras pretas ou vermelhas do tipo argiloso. Trabalhando-as com esmero, podem produzir para o consumo familiar o que os camponeses do Escambray denominavam “alto consumo”. Eles recebiam do Estado quotas de alimentos e consumiam também seus produtos. O clima tem mudado em Cuba, Lula.

Para produções comerciais de grãos em grande escala, como requerem as necessidades de uma população de quase 12 milhões de pessoas, as nossas terras não são aptas, e o custo em máquinas e combustíveis que o país importa, com os preços atuais, seria muito alto.

Nossa imprensa publica produções de petróleo em Matanzas, a redução de custos e outros aspectos positivos. Mas ninguém refere que seu preço em divisas deve ser dividido com os parceiros estrangeiros que investem nas sofisticadas máquinas e na tecnologia necessárias. Por outro lado, não existe a mão-de-obra requerida para aplicá-la intensivamente na produção de grãos, como fazem os vietnamitas e chineses cultivando planta por planta o arroz e tirando às vezes duas e até três colheitas. Corresponde à localização e tradição histórica da terra e seus povoadores. Não passaram antes pela mecanização em grande escala de modernas colheitadeiras. Em Cuba há muito que abandonaram o campo os cortadores de cana e os trabalhadores dos cafezais das montanhas, como era lógico; também grande número de construtores, alguns da mesma procedência, abandonaram depois as brigadas e se tornaram trabalhadores por conta própria. O povo sabe o que custa reparar uma moradia. É o material, mais o elevado custo do serviço prestado para tal. O primeiro tem solução, o segundo não se resolve ―como acreditam alguns― lançando pesos à rua sem sua contraparte em divisas convertíveis, que já não serão dólares senão euros ou yuanes cada vez mais caros, se entre todos conseguimos salvar a economia internacional e a paz.

Enquanto isso, estávamos e devemos continuar criando reservas de alimentos e combustível. No caso de ataque militar direto, a força de trabalho manual multiplicar-se-ia.

No breve tempo que estive com Lula, duas horas e meia, teria querido sintetizar nuns minutos os quase 28 anos decorridos, não desde que ele visitou pela primeira vez Cuba, senão desde que o conheci na Nicarágua. Agora é o líder de um imenso país, cuja sorte, contudo, depende de muitos aspectos que são comuns a todos os povos que habitam este planeta.

Pedi-lhe licença para falar sobre a nossa conversa com liberdade e ao mesmo tempo com prudência.

Quando está diante de mim, sorridente e amistoso, e o escuto falar com orgulho do seu país, das coisas que está fazendo e se propõe fazer, penso em seu instinto político. Eu acabava de revisar velozmente um relatório de cem páginas sobre o Brasil e o desenvolvimento das relações entre os nossos dois países. Era o homem que conheci na capital sandinista, Manágua, e que tanto se vinculou com a nossa Revolução. Não lhe falei nem lhe teria falado de algo que resultasse ingerência no processo político do Brasil, mas ele próprio entre as primeiras coisas disse: Você se lembra, Fidel, quando falamos do Foro de São Paulo, e me disseste que era necessária a unidade da esquerda latino-americana para garantir nosso progresso? Pois já estamos avançando nessa direção.

De imediato me fala com orgulho do que é o Brasil hoje e suas grandes possibilidades, tendo em conta seus avanços na ciência, na tecnologia, na indústria na mecânica, na energética e noutras, junto do seu enorme potencial agrícola. É claro que inclui o elevado nível das relações internacionais do Brasil, que pormenoriza com entusiasmo, e das que está disposto a desenvolver com Cuba. Fala com veemência da obra social do Partido dos Trabalhadores, hoje apoiada por todos os Partidos da esquerda brasileira, que estão longe de contar com uma maioria parlamentar.

Sem dúvidas era uma parte das coisas analisadas há anos quando falamos. Já o tempo transcorria com celeridade, porém agora cada um dos anos se multiplica por dez, a um ritmo difícil de seguir.

Desejava também falar-lhe disso e doutras muitas coisas. Não se sabe qual dos dois tinha mais necessidade de transmitir idéias. Pela minha parte, supus que ele iria no dia seguinte, e não nessa mesma noite, cedo, segundo o plano de voo programado antes de nos ver. Eram aproximadamente as dezessete horas. Surgiu uma espécie de competição pelo uso do tempo. Lula, astuto e rápido, tomou revanche ao se reunir com a imprensa, quando de forma picaresca e sempre sorridente, como se pode constatar pelas fotos, disse-lhes aos jornalistas que ele apenas tinha falado meia hora e Fidel duas. É claro que eu, valendo-me do direito de antiguidade, usei mais tempo do que ele. Deve-se descontar o tempo das fotos mútuas, visto que pedi uma máquina fotográfica emprestada e virei repórter; ele fez mesma coisa.

Cá tenho 103 páginas de nootícias falando do que Lula disse à imprensa, as fotos que lhe fizeram e a segurança que transmitiu sobre a saúde de Fidel. Realmente não deixou espaço de notícias para a reflexão publicada no dia 16 de Janeiro, que acabei de elaborar no dia antes de sua visita. Ele ocupou todo o espaço, o que equivale ao seu enorme território, comparado com a minúscula superfície de Cuba.

Disse-lhe ao meu interlocutor quanto me satisfazia a sua decisão de visitar Cuba, mesmo quando não tivesse a certeza de se reunir comigo. Que logo que soube, decidi sacrificar o que for em matéria de exercícios, reabilitação e recuperação de faculdades, para atende-lo e conversar bastante com ele.

Nesse momento, ainda que já sabia que ia embora nesse mesmo dia, não conhecia a urgência da sua partida. Evidentemente o estado de saúde do Vice-presidente do Brasil, conhecido pelas suas próprias declarações, o urgiu partir para chegar quase ao amanhecer do outro dia a Brasília, em plena primavera. Outra longa jornada de azáfamas para o nosso amigo.

Uma fortíssima chuvada caia em sua residência enquanto Lula esperava as fotos e dois materiais adicionais, com apontamentos meus. Chovendo partiu nessa noite rumo ao aeroporto. Se visse o que se publicava na primeira página do Granma: “2007, o terceiro mais chuvoso em mais de 100 anos”, o ajudaria a compreender o que lhe afirmei sobre a mudança de clima. Ora bom: já começou a safra canavieira em Cuba, e o chamado período seco. O rendimento em açúcar não passa de nove por cento. Quanto custará produzir açúcar para exportar a dez centavos a libra, quando o poder aquisitivo de um centavo é quase cinquenta vezes menos que quando o triunfo da Revolução o Primeiro de Janeiro de 1959? Reduzir os custos desses e doutros produtos para cumprir os nossos compromissos, satisfazer o nosso consumo, criar reservas e desenvolver outras produções, é um grande mérito; mas nem sonhar, por isso, que as soluções dos nossos problemas são fáceis e que estão ao perto de nós..

Falamos, entre outros numerosos temas, da tomada de posse do novo presidente da Guatemala, Álvaro Colom. Contei-lhe que tinha visto o ato sem perder detalhe e os compromissos sociais do recém-eleito Presidente. Lula comentou que o que hoje se pode ver na América Latina nasceu em 1990, quando decidimos criar o Foro de São Paulo: “Tomamos uma decisão aqui, numa conversa que tivemos. Eu tinha perdido as eleições e tu foste a minha casa a almoçar, a São Bernardo.”

Apenas se iniciava a minha conversa com Lula, e ainda tenho muitas coisas que contar e idéias que expor, talvez de alguma utilidade.


Inclusão: 04/09/2021