Em Defesa da Revolução Africana

Frantz Fanon


Primeira parte: O colonizado

O “síndroma norte-africano”(1)


capa

Afirma-se de bom grado que o homem está sempre em questão perante si próprio, e que se renega quando pretende já não o estar. Ora, parece ser possível descrever uma dimensão primeira de todos os problemas humanos. Mais precisamente: todos os problemas que o homem se põe acerca do homem podem reconduzir-se a esta questão:

“Não tenho, pelos meus atos ou pelas minhas abstenções, contribuído para uma desvalorização da realidade humana?”

Questão que também se poderia formular assim:

“Será que tenho em todas as circunstâncias reclamado, exigido, o homem que há em mim?”

Pretendo mostrar nestas linhas que, no caso particular do Norte-Africano emigrado em França, uma teoria da inumanidade está prestes a encontrar as suas leis e os seus corolários.

Todos estes homens que têm fome, todos estes homens que têm frio, todos estes homens que têm medo...

Todos estes homens que nos metem medo, que esmagam a esmeralda ciosa dos nossos sonhos, que importunam a frágil curva dos nossos sorrisos, todos estes homens que, frente a nós, não nos levantam qualquer questão, mas a quem levantamos questões estranhas.

Como são eles?

Pergunto-vo-lo, pergunto-mo. Como são estas criaturas famintas de humanidade a quem se deparam as fronteiras impalpáveis (mas, por experiência, eu sei que são terrivelmente nítidas) do reconhecimento integral?

Como são, na realidade, essas criaturas, que se dissimulam, que são dissimuladas pela realidade social sob os atributos de chibo,bounioule”, árabe, ratinho, sidi, ”mon z'amie”?

TESE I -. O comportamento do Norte-Africano provoca muitas vezes no pessoal médico uma atitude de desconfiança quanto à realidade da sua doença. A exceção dos casos de urgência: oclusão intestinal, ferimentos, acidentes, o Norte-Africano apresenta-se mergulhado no vago.

Doem-lhe a barriga, a cabeça, as costas, dói-lhe tudo. Sofre atrozmente, o seu rosto é eloquente, é um sofrimento que se impõe.

— Que há, meu amigo ?

— Vou morrer, senhor doutor.

A voz sumida, imperceptível.

— Onde é que te dói?

— Dói-me tudo, senhor doutor.

Sobretudo, não exijam nenhuma precisão: não a obteriam. Por exemplo, nas dores de índole ulcerosa, é importante conhecer o horário das algias. O Norte-Africano parece ser hostil a esta conformidade com as categorias do tempo. Não é incompreensão, pois muitas vezes vem acompanhado de um intérprete. Dir-se-ia que lhe custa regressar aonde já não está. Para ele, o passado é um passado pungente. O que espera é nunca mais sofrer, nunca mais estar frente a frente com esse passado. Basta-lhe esta dor presente que lhe movimenta desse modo os músculos da cara. Não compreende que lhe queiram impor, mesmo que apenas em lembrança, a que já não existe, Não compreende por que é que o médico lhe faz tantas perguntas.

— Onde te dói?

— Na barriga. (Mostra então o tórax e o abdómen.)

— Em que momentos?

— Sempre.

— Mesmo de noite?

— Sobretudo de noite.

— Tens mais dores de noite do que de dia, hem?

— Não, tenho sempre.

— Mas mais de noite do que de dia?

— Nao, sempre.

— E onde é que te dói mais?

— Aqui. (Mostra então o tórax e o abdómen.)

É assim, lá fora os doentes esperam e, coisa grave, tem-se a impressão de que o tempo nada mudaria. Procede-se, então, a um diagnóstico de probabilidade e institui-se correlativamente uma terapêutica aproximativa.

— Segue este tratamento durante um mês. Se não melhorares, volta cá.

Então, duas soluções:

O doente não melhora imediatamente e volta à consulta três ou quatro dias depois. Este procedimento irrita-nos, pois sabemos que decorre um certo tempo entre o início da ingerência do medicamento prescrito e a sua atuação.

Fazemo-lo compreender mais exatamente, dizemos-lho. Mas o nosso doente não nos ouviu. Ele é a sua dor e recusa-se a compreender seja que linguagem for, e não é longo o caminho que o leva à seguinte afirmação:

— É por eu ser árabe que eles não me tratam como tratam os outros.

O doente não melhora imediatamente, mas não volta ao mesmo serviço, nem ao mesmo médico.

Vai a outro lado. Parte do princípio de que é preciso, antes de obter satisfação, bater a todas as portas, e bate. Bate com afinco. Com doçura. Com ingenuidade. Com raiva.

Bate. Abrem-lha. Abrem-lha sempre. E ele conta a sua dor. Que se torna cada vez mais sua. Expõe-na agora com volubilidade. Agarra-a no espaço, coloca-a debaixo dos olhos do médico. Agarra-a, toca-lhe com os dez dedos, desenvolve-a, expõe-na. Ela cresce a olhos vistos. Apanha-a em toda a superfície do corpo e depois de quinze minutos de explicações gestuais, o intérprete (desencorajante como é de regra) traduz-nos; diz que lhe dói a barriga.

Todas essas estas incursões no espaço, todos estes espasmos do rosto, todos estes esgares apenas pretendiam exprimir uma dor vaga. Sentimos uma espécie de frustração no domínio da explicação. A comédia, ou o drama, recomeça: diagnóstico e terapêutica aproximativos.

Não há razão para que a roda pare. Um dia far-lhe-ão uma radiografia que mostrará uma úlcera ou uma gastrite. Ou que, na maioria dos casos, não mostrará absolutamente nada. Dir-se-á da sua dor que é “funcional”.

Esta noção é importante e merece que nos detenhamos nela. Diz-se que uma coisa é vaga quando não tem consistência quando não tem realidade objetiva. A dor do Norte-Africano, para a qual não encontramos uma base lesionai, é tida como inconsistente, como irreal. Ora, o Norte-Africano é aquele que-não-gosta-do-trabalho. De maneira que todo o seu procedimento será interpretado a partir deste a priori.

Um norte-africano dá entrada num serviço por cansaço, astenia, fraqueza. Submetem-no a um tratamento ativo à base de reconstituintes. Ao fim de vinte dias decide-se dar-lhe alta. Então ele descobre uma outra doença.

— É o coração que estremece lá por dentro.

— É a cabeça que estoira.

Perante este medo de sair, chegamos a perguntar se a fraqueza da qual foi tratado não corresponderia a alguma vertigem. Chegamos a perguntar se não fomos o joguete deste doente que nunca compreendemos muito bem. A suspeição instala-se. Doravante, desconfiar-se-á dos sintomas alegados.

A coisa é nítida no Inverno; por isso, certos serviços são literalmente inundados de norte-africanos por altura dos grandes frios. Está tão quente numa sala de hospital.

Num serviço, um médico repreendia um europeu sofrendo de ciática e que passeava todo o dia pelas salas. Explica-lhe que o repouso representava neste caso particular metade da terapêutica. Com os norte-africanos, acrescentou em nossa intenção, o problema é diferente: não é preciso aconselhar-lhes repouso, pois estão sempre na cama.

Perante esta dor sem lesão, esta doença espalhada por todo o corpo, perante ente sofrimento continuo, a atitude mais fácil e à qual chegamos mais ou menos rapidamente é a negação de toda a morbidez, No limite, o Norte-Africano é um simulador, um mentiroso, um vadio, um mandrião, um preguiçoso, um ladrão(2).

TESE II— A atitude do pessoal médico é muitas vezes apriorística. O Norte-Africano aparece com uma natureza comum à sua raça, mas sim estabelecida pelo Europeu. Por outras palavras, o Norte-Africano, espontaneamente, pelo simples fato do seu aparecimento, entra num quadro preexistente.

De há uns anos para cá, manifesta-se uma orientação médica que poderia, muito rapidamente, denominar-se neo-hipocratismo. Esta tendência pretende que, face ao doente, os médicos se preocupem menos com um diagnóstico orgânico do que com um diagnóstico funcional. Mas esta corrente de ideias não se impõe ainda nas cadeiras nas quais a patologia é ensinada. Há um vício de construção no pensamento do praticante médico. Um vício extremamente perigoso.

Vamos captá-lo nos fatos.

Sou chamado de urgência para ver um doente. São 2 horas da manhã. O quarto está sujo, o doente está sujo. Os pais estão sujos. Toda a gente chora. Toda a gente grita. A impressão estranha de que a morte não está longe. O jovem médico expulsa da alma todo o desânimo. Inclina-se “objetivamente” sobre aquele ventre intumescido.

Toca, apalpa, percute, interroga, mas não obtém senão gemidos; volta a apalpar, percute mais uma vez, e o ventre contrai-se, defende-se... Não “vê nada”. No entanto, se se tratasse de um caso cirúrgico? Se qualquer coisa lhe tivesse escapado? O exame é negativo, mas não ousa ir-se embora.

Depois de não poucas hesitações, manda o doente para um centro hospitalar com o diagnóstico de “ventre agudo”. Três dias depois, vê-o chegar sorridente, completamente curado ao seu consultório. E o que o doente ignora é que há um pensamento médico exigente, pensamento que ele ridicularizou.

O pensamento médico vai do sintoma à lesão. Nas assembleias ilustres, nos congressos internacionais de medicina, todos concordam com a importância dos sistemas neuro-vegetativos, do diencéfalo, das glândulas endócrinas, das relações pisco-somáticas, das simpatalgias, mas continua-se a ensinar aos médicos que todo o sintoma reclama a sua lesão. Doente é todo aquele que queixando-se de cefaleias, de zumbidos nos ouvidos, de vertigens, apresenta ao mesmo tempo uma hipertensão arterial. Contudo, como por ocasião destes mesmos sintomas não se encontre nem hipertensão, nem tumor intracraniano, nem seja o que for de positivo, o médico então surpreenderá o pensamento médico em falta; e como todo o pensamento é pensamento de alguma coisa, verá o doente em falta — um doente insubmisso, indisciplinado, que ignora as regras do jogo. Essa regra, embora tão rigorosa, enuncia-se assim: todo o sintoma supõe uma lesão.

Que vou eu fazer deste doente? Do serviço para que o tinha mandado para uma provável intervenção, volta-me com um diagnóstico de “síndroma norte-africano”. E é um fato que o jovem médico entra logo de início em contato com Molière através dos norte-africanos do seu serviço. Um doente imaginário! Se Molière (vou dizer uma idiotice, mas todas estas linhas não fazem mais que explicitar, tornar flagrante, uma idiotice ainda maior), se Molière tivesse tido o privilégio de viver no século XX, não teria certamente escrito Le Malade Imaginaire, pois ninguém duvida de que Argan está doente. Doente, está-o ativamente:

Como, devassa! Se estou doente! Se estou doente, descarada!

Síndroma norte-africano. Atualmente, todo o Norte-Africano que aparece numa consulta suporta o peso morto de todos os seus compatriotas. De todos aqueles que só tinham sintomas, de todos aqueles a respeito dos quais se dizia: “Não tem nada em que se possa tocar.” (Quer dizer: nenhuma lesão.) Mas o doente que aqui está à minha frente, este corpo que sou forçado a supor agitado por uma consciência, este corpo que já não é completamente corpo ou pelo menos que é duplamente corpo, porque aturdido de pavor — este corpo que me pede que o escute sem que todavia me detenha nele —, provocará em mim uma revolta.

— Onde é que te dói?

— No estômago. (E mostra o fígado.)

Irrito-me. Digo-lhe que o estômago é à esquerda e que o que ele mostra é o sítio do fígado. Não se desconcerta, percorre com a palma da mão esse ventre misterioso:

— Tudo isto me dói.

Eu sei que em “tudo isto” há três órgãos; com todo o rigor, cinco ou seis. Que cada órgão tem a sua patologia. Essa outra patologia inventada pelo Árabe não nos interessa. É uma pseudopatologia. O Árabe é um pseudodoente.

Todo o árabe é um doente imaginário. O jovem médico ou o jovem estudante que nunca viu um árabe doente sabe (cf. a velha tradição médica) que “esses tipos são uns farsantes”. Há qualquer coisa que poderia dar azo a uma reflexão. Frente a um árabe, o estudante ou o médico tende a utilizar a segunda pessoa do singular. Dir-nos-ão que é por gentileza... para os pôr à vontade... eles estão habituados... Peço desculpa, mas sinto-me incapaz de analisar este fenómeno sem abandonar a atitude objetiva a que me obriguei.

É mais forte do que eu, dizia-me um interno, não posso tratá-los da mesma maneira que trato os outros doentes.

Ah sim! É mais forte do que eu. Se soubessem o que na minha vida é mais forte do que eu! Se soubessem o que na minha vida me dilacera nas horas em que o cérebro dos outros se entorpece. Se soubessem... mas não o saberão.

O pessoal médico descobre a existência de um síndroma norte-africano. Não experimentalmente, mas segundo uma tradição oral. O Norte-Africano instala-se nesse síndroma assintomático e situa-se automaticamente num plano de indisciplina (cf. disciplina médica), de inconsequência (relativamente à lei: todo o sintoma supõe uma lesão), de insinceridade (diz sofrer quando sabemos não existirem razões para sofrer). Há aqui uma ideia móvel, no limite da minha má-fé, e quando o Árabe se revelar através da sua linguagem:

— “Senhor doutor, vou morrer.”

Esta ideia, depois de ter percorrido algumas sinuosidades, impor-se-á, ser-me-á imposta.

Decididamente, estes tipos não são sérios.

TESE III. — As melhores vontades, as mais puras intenções, precisam de ser esclarecidas. — Da necessidade de fazer um diagnóstico de situação.

O Doutor Stern, num artigo sobre a medicina psicossomática, retomando os trabalhos de Heinrich Meng, escreve:

“Não basta descobrir qual o órgão atingido, de que natureza são as lesões orgânicas, se existem, e que micróbio invadiu o organismo; não basta conhecer a ‘constituição somática’ do doente, mas é preciso tentar conhecer aquilo a que Meng chama a sua ‘situação’, isto é, as suas relações com o meio ambiente, as suas ocupações e as suas preocupações, a sua sexualidade, a sua tensão interior, o seu sentimento de segurança ou de insegurança, os perigos que o ameaçam; e acrescentemos ainda a sua evolução, a história da sua vida. É preciso fazer um ‘diagnóstico de situação’”(3).

O Doutor Stern propõe-nos um plano magnífico, vamos segui-lo.

1.° Relações com o meio. — Será mesmo preciso falar delas? Não será um tanto cómico falar, em França, das relações do Norte-Africano com o seu meio? Ele terá relações? Terá um meio? Não estará só? Não estarão sós? Não nos parecem absurdos, isto é, sem fundamento, nos elétricos ou nos autocarros? Donde vêm? Para onde vão? De vez em quando avistamo-los a trabalhar num edifício, mas não os vemos, avistamo-los, entrevemo-los. Meio? Relações? Não há contactos. Apenas choques. Saber-se-á o que essa palavra “contacto” encerra de doce e de polido? Haverá contactos? Haverá relações?

2.º Ocupações e preocupações. — Ele trabalha, está ocupado, ocupa-se, ocupam-no. As suas preocupações? Julgo que a palavra não existe na sua língua. Preocupar-se com quê? Em França diz-se: preocupa-se com arranjar trabalho; na África do Norte: ocupa-se em arranjar trabalho.

— Desculpe, minha senhora, na sua opinião, quais são as preocupações do Norte-Africano?

3.° Sexualidade. — Bem sei o que estão a pensar; é feita de violação. Para mostrar até que ponto um estudo escotomizante pode ser prejudicial à revelação autêntica de um fenómeno, gostaria de reproduzir algumas linhas de uma tese de doutoramento em Medicina defendida pelo Doutor Léon Mugniery em Lyon em 1951:

“Na região de Saint-Étienne, oito em dez casaram com prostitutas. A maior parte dos outros vive em concubinato acidental e de curta duração, algumas vezes maritalmente. Frequentemente albergam durante alguns dias uma ou mais prostitutas a quem levam os amigos.

Porque a prostituição parece desempenhar um papel importante no meio norte-africano(4)... Decorre do forte apetite sexual que é apanágio destes meridionais de sangue quente.”

Mais adiante:

“Sem dúvida que muitas objeções se podem fazer e é possível demonstrar por múltiplos exemplos que as tentativas levadas a cabo para alojar convenientemente os Norte-Africanos são outros tantos fracassos.

A maior parte das vezes trata-se de homens jovens (de 25 a 35 anos), com grandes necessidades sexuais, a quem os laços de um casamento misto não conseguem prender senão temporariamente, para os quais a homossexualidade é uma tendência desastrosa...

Existem poucas soluções para este problema: ou se facilita o reagrupamento desta família em França fazendo vir raparigas e mulheres árabes, apesar dos riscos(5) que comporta uma certa invasão da família árabe, ou se tem de tolerar para eles casas de tolerância...

Se não quisermos ter em conta estes fatores, arriscamo-nos a expor-nos cada vez mais às tentativas de violação de que os jornais nos citam exemplos constantes. A moral pública tem sem dúvida mais a recear da existência destes fatos do que da existência das casas de tolerância.»

E, para terminar, o Doutor Mugniery denuncia o erro do Governo Francês ao escrever em maiúsculas na sua tese a seguinte frase:

“A OUTORGA DA CIDADANIA FRANCESA QUE CONFERE A IGUALDADE DE DIREITOS PARECE TER SIDO DEMASIADO PRECOCE E BASEADA MAIS EM RAZÕES SENTIMENTAIS E POLÍTICAS DO QUE NA EVOLUÇÃO SOCIAL E INTELECTUAL DE UMA RAÇA DE CIVILIZAÇÃO POR VEZES REQUINTADA, MAS DE COMPORTAMENTO SOCIAL, FAMILIAR E SANITÁRIO AINDA PRIMITIVO.” (p. 45)

Será necessário acrescentar mais alguma coisa, será necessário retomar uma por uma estas frases absurdas, será necessário lembrar ao Doutor Mugniery que se os Norte-Africanos em França se contentam com prostitutas é porque, em primeiro lugar, encontram prostitutas e, em segundo lugar, não encontram mulheres árabes (que poderiam invadir a nação)?

4.º A sua tensão interior. — Terá alguma realidade?

O mesmo seria falar na tensão interior de uma pedra. Tensão interior! Que ironia!

5.° A sua sensação de segurança ou de insegurança. — O primeiro termo deve ser eliminado, O Norte-Africano está em perpétua insegurança. Insegurança plurlissegmentar.

Às vezes pergunto a mim próprio se não seria bom explicar ao francês médio que é uma desgraça ser-se norte-afrlcano.

O Norte-Africano nunca está seguro. Tem direitos, dir-me-ão, mas não os conhece. Ah! Ah! Só precisa de os conhecer. O conhecimento. Ah sim! Voltamos a pisar terra. Direitos, Deveres, Cidadania, Igualdade, que lindas coisas! O Norte-Africano no limiar da Nação francesa — que é, dizem-nos, a sua— vive no domínio político, no plano cívico, um imbróglio que ninguém quer olhar de frente. Que relação com o Norte-Africano no melo hospitalar? Justamente, há uma relação.

6.º Os perigos que o ameaçam.

Ameaçado na sua afetividade.

Ameaçado na sua atividade social.

Ameaçado na sua cidadania, o Norte-Africano reúne todas as condições que tornam um homem doente. Sem família, sem amor, sem relações humanas, sem comunhão com a coletividade, o primeiro encontro consigo próprio far-se-á de um mo do neurótico, de um modo patológico, sentir-se-á esgotado, sem vida, em corpo a corpo com a morte, uma morte aquém da morte, uma morte na vida, e que haverá de mais patético do que este homem de músculos robustos que nos diz com a sua voz verdadeiramente quebrada:

— “Doutor, vou morrer.”?

7.º A sua evolução e a historia da sua vida . — Seria melhor dizer a história da sua morte. Uma morte quotidiana.

Uma morte no elétrico,
uma morte na consulta,
uma morte com as prostitutas,
uma morte no estaleiro,
uma morte no cinema,
uma morte múltipla nos jornais,
uma morte no medo que as pessoas de bem têm de sair depois da meia-noite.
Uma morte, sim, uma morte.

Tudo isso é muito bonito, dir-nos-ão, mas que solução propõe?

Reconhece-o, eles são vagos, amorfos...
“É preciso andar em cima deles.”
“É preciso pô-los fora do hospital.”
“Se lhes déssemos ouvidos, prolongaríamos indefinidamente a sua convalescença.”
«Não sabem explicar-se.”

E são mentirosos
e depois são ladrões (ladrão como um árabe)
e depois, e depois, e depois
o Árabe é um ladrão
todos os árabes são ladrões.
É uma raça fingida
suja
nojenta.
Não há nada a fazer
nada se consegue deles
evidentemente, e duro para eles serem assim
serem como são
mas, enfim, admita que a culpa não é nossa.
— Justamente, a culpa é nossa.
Justamente, a culpa é culpa TUA.

Como? Homens vão e vem ao longo de um corredor que tu construíste para eles, onde não colocaste nenhum banco em que pudessem descansar, onde cristalizaste um montão de espantalhos que os esbofeteiam raivosamente no rosto, onde ferem a cara, o peito, o coração.

Onde não encontram lugar
onde tu não lhes deixas lugar
onde para eles não há nenhum lugar
e ousas dizer-me que isso não te interessa!
Que não é tua a culpa!

Como? Este homem que coisificas ao chamar-lhe sistematicamente Mohammed, que reconstróis, ou melhor, que dissolves, a partir de uma ideia, uma ideia que tu sabes nojenta (sabes bem, roubas-lhe qualquer coisa, esta qualquer coisa pela qual não há muito tempo estavas disposto a tudo deixar, até a vida; pois bem! este homem, não terás a impressão de o esvaziar da sua substância?

Que fiquem na sua terra!

Ah sim! Eis o drama: que fiquem na sua terra!

Somente, disseram-lhes que eram franceses. Aprenderam-no na escola. Na rua. Nos quartéis. (Onde encontravam os da sua igualha.) Nos campos de batalha, introduziram-lhes a França em todo o lado, no corpo e na “alma”, onde houvesse lugar para qualquer coisa de aparentemente grande. Agora, repetem-lhes em todos os tons que estão na “nossa” terra. Que, só não estão contentes, só tem de voltar para o seu kasbah. Porque também aqui há um problema.

Sejam quais forem as vicissitudes por que passe em França, o Norte-Africano, pretendem alguns, será mais feliz na sua terra...

Em Inglaterra, verificou-se que crianças magnificamente alimentadas, cada uma delas com duas amas inteiramente ao seu serviço, mas que viviam fora do meio familiar, apresentavam uma morbidez duas vezes mais importante do que outras mais mal alimentadas mas que viviam com os pais. Sem ir tão longe, que se pense naqueles que levam uma vida sem futuro no seu país e que recusam belas situações no estrangeiro. Para que serve a boa situação, quando não conduz a um meio familiar ou parental, quando não permite o desabrochamento do “meio”?

A ciência psicanalítica considera o expatriamento um fenómeno mórbido. No que tem perfeitamente razão.

Estas considerações permitem-nos concluir:

1.º O Norte-Africano nunca será mais feliz na Europa do que na sua terra, porque lhe é exigido que viva sem a própria matéria da sua afetividade. Desenraizado e cortado dos seus fins, é uma coisa lançada para dentro da grande confusão curvada sob a lei da inércia.

2.° Há nesta afirmação uma má-fé evidente e abjeta Se o nível de vida (?) posto à disposição do Norte-Africano em França é superior àquele a que estava habituado na sua terra, isto quer dizer que há muita coisa por fazer no seu país nessa “outra parte da França». Que há prédios a construir, escolas a abrir, estradas a traçar, casebres a demolir, cidades a erguer da terra, homens e mulheres, crianças e crianças a vestir de sorrisos.

Quer dizer que há lá trabalho, trabalho humano, isto é, trabalho que seja a significação de um lar. Não a de um quarto ou a de um aquartelamento. Quer dizer que em todo o território da naçào francesa (metrópole e União Francesa) há lágrimas a secar, atitudes inumanas a combater, mon z’ami a suprimir, homens a humanizar, ruas Moncey(6) a abrir à circulação.

A sua solução, senhor?

Não me faça perder a paciência. Não me obrigue a dizer-lhe aquilo que devia saber, senhor. Se TU não reclamas o homem que está à tua frente, como queres que eu suponha que reclamas o homem que há em ti?

Se TU rejeitas o homem que está à tua frente, como é que eu hei-de acreditar no homem que talvez esteja em si?

Se TU não exiges o homem, se TU não sacrificas o homem que está em ti para que o homem que está nesta terra seja mais do que um corpo, mais do que um Mohammed, que artes mágicas não serão precisas para que eu tenha a certeza de que, também tu, és digno do meu amor?

continua>>>


Notas de rodapé:

(1) Texto publicado na revista Lisprit, de Fevereiro de 1952. (retornar ao texto)

(2) Cf. La Seturé sociale. C'est nous qui payons! (retornar ao texto)

(3) Dr. E. Stcm, «Médecine psycho-somatique», Psyche, Janeiro-Fevereiro de 1949, p. 128 (retornar ao texto)

(4) O itálico é meu (p. 20) (retornar ao texto)

(5) O itálico é meu (p. 20) (retornar ao texto)

(6) Rua de um bairro pobre [... ilegível no original] (retornar ao texto)

Inclusão 21/06/2018