Em Defesa da Revolução Africana

Frantz Fanon


Quarta parte: A caminho da libertação da África
Carta à juventude africana(1)


capa

O povo argelino, desde há quatro anos, trava um combate muito duro contra o colonialismo francês. Não ignorais o esforço colossal que a França despendeu na Argélia para manter a sua dominação. E sabeis que a FLN, que dirige a nossa luta, opôs sempre uma resistência feroz à guerra de reconquista francesa.

Dirigimo-nos já, em várias ocasiões, aos países coloniais em geral e pareceu-nos sempre importante assinalar a falência de certos dados e o aparecimento de teses totalmente inesperadas.

Não nos cansamos de dizer, desde há três anos, que a lança cravada no sistema colonial francês pela libertação da Indochina, da Tunísia e de Marrocos tinha abalado a sua infraestrutura, mas que não nos devíamos iludir, porque a fera ainda está bastante robusta.

O mundo colonial sofre desde há cerca de quinze anos golpes cada vez mais violentos, e o edifício rachado está em vias de desmoronamento. Ninguém contesta hoje que esta liquidação do colonialismo constitui a marca específica do pós-guerra. O processo histórico, nascido das múltiplas contradições inerentes ao sistema capitalista e dinamizado pela vontade nacional dos povos oprimidos, preside ao aparecimento de Estados independentes.

Os povos colonizados reconheceram-se geralmente em cada um dos movimentos, em cada uma das revoluções desencadeadas e levadas a cabo pelos oprimidos. Para além da necessária solidariedade com os homens que, sobre toda a superfície da Terra, se batem pela democracia e pelo respeito dos seus direitos, impôs-se, com uma violência inusitada, a firme decisão dos povos colonizados de quererem, para si próprios e para os seus irmãos, o reconhecimento da sua existência nacional, da sua existência enquanto membros de um Estado independente, livre e soberano.

Desde há vários anos que a história do Mundo, a história da luta dos homens pela dignidade, põe aos povos problemas definidos. Os homens escravizados e oprimidos por nações estrangeiras são hoje convidados a participar totalmente na obra de demolição do sistema colonial. E não é exagerado dizer que, se as partes do Mundo em que se realizou já a existência nacional marcam passo sem superar as suas contradições, é porque precisamente toda a nova marcha para o progresso implica a libertação das colónias.

É preciso que os povos oprimidos se unam aos povos já soberanos para que seja válida a edificação de um humanismo com as dimensões do universo.

Desde há dez anos, o dever de todo o colonizado é preciso: no solo nacional, minar o edifício colonialista e apoiar de forma positiva as lutas dos povos colonizados.

A guerra de libertação do povo argelino espalhou a gangrena e levou a putrefação do sistema a tal grau que se tornou evidente para os observadores que uma crise global devia resultar dela.

É prevendo esta possível mutação, esta eventual reposição em questão geral, que nos dirigimos em várias ocasiões aos vossos representantes às assembleias parlamentares francesas e aos vossos líderes sindicalistas.

Desde há três anos, não cessamos de convidá-los a encurralar a fera colonialista, a obrigá-la a levantar o seu cerco; desde há três anos, não deixamos de explicar, de expor, aos vossos representantes que era preciso conjugar os seus esforços e fazer rebentar o império francês, visto que o povo argelino travava no seu território uma guerra aberta, grandiosa e difícil.

Devemos à verdade dizer-vos que quase todos os vossos representantes, mistificados por um fenómeno de alienação muito grave, opuseram sempre às nossas diligências o respeito da legalidade republicana francesa.

Ora, parece que pelo menos três pontos nos são comuns. E em primeiro lugar, as nossas nações respectivas estão ocupadas militarmente, são exploradas economicamente e mantêm-se silenciosas culturalmente desde que a bandeira tricolor nelas flutua.

Todo o impulso para uma expressão de si próprio conforme à sua história, fiel à sua tradição e ligado a seiva do seu próprio solo, encontra-se limitado, parado, quebrado.

O estilo do pacto colonial que rege a exploração multidimensional dos territórios da “União Francesa” constitui o nosso segundo ponto comum. Não basta dizer que a França ocupa o nosso solo nacional, mas que ela aí se instalou de maneira desenvolta e não receou elaborar toda uma legislação, todo um código a partir do qual a nossa essência nacional é negada a favor da ordem francesa.

A vontade de independência, que devia constituir a única resposta a esta colonização, é o terceiro ponto comum aos povos dominados pela França. Quando nos dirigimos aos povos coloniais e mais especialmente aos povos africanos, é ao mesmo tempo porque temos de nos apressar para construir a África, para que ela se exprima e se realize, para que enriqueça o mundo dos homens e possa ser autenticamente enriquecida pelos contributos do Mundo. E também porque o único meio de alcançar este resultado é quebrar a espinha ao colonialismo mais furioso, mais intratável, mais bárbaro que existe.

Na hora atual, todos os movimentos de libertação dos povos coloniais, sejam quais forem por sua vez as nações dominadoras, estão ligados à existência do colonialismo francês.

“O Império Francês”, pela sua extensão, goza ainda hoje de um certo prestígio e de uma aparente estabilidade. O rancor do colonialismo francês, o seu desprezo pela moral internacional, a sua espetacular barbárie, tranquilizam os outros países colonialistas.

Juventude dos países coloniais!

Deveis saber que o futuro da vossa existência nacional, que a causa da vossa liberdade e da vossa independência, estão atualmente em jogo na Argélia.

Não é verdade, como o pretendiam alguns dos “parlamentares” coloniais que tomam lugar nas assembleias francesas, que a guerra da Argélia favorece o processo de descolonização e que, por consequência, basta explorar no plano parlamentar essas dificuldades do colonialismo francês.

É verdade que a lei-padrão votada sob a pressão da guerra da Argélia iniciou um afrouxar da opressão sobre os países da África, mas pensamos que seria muito grave dar a esta “evolução” mais do que um valor caricatural.

O que os países coloniais querem não é um “gesto bom” do senhor, mas muito precisamente a morte desse senhor. Além disso, no próprio quadro dessa evolução, é frequente verificar a “má vontade” dos administradores franceses, o seu movimento de mau humor contra a parcela de liberdade dada aos “Negros”, a sua raiva diante desse atentado à supremacia branca. E é necessário sublinhar o cómico de certos parlamentares coloniais que ameaçam fazer voltar administradores franceses hostis à “lei-padrão”.

Uma análise sã do colonialismo francês no quarto ano de guerra da Argélia deveria ter levado esses parlamentares a encarar essa “má vontade” menos como um fato individual do que como a expressão de um colonialismo ainda muito sólido sobre essas posições e como sinal de que em França tudo estaria a postos para proibir qualquer evolução dos países coloniais e qualquer atentado ao Pacto Colonial.

O que se passa hoje em França, na Argélia, pertence ao mesmo processo que as “más vontades” de administradores ou colonos.

Juventude dos países coloniais!

Há quatro anos que não nos cansamos de repetir aos que se sentam nas assembleias francesas que o colonialismo francês não será objeto de nenhuma operação mágica e que é vão esperar um seu progressivo desaparecimento.

O futuro será impiedoso para esses homens que, gozando do privilégio excepcional de poder dizer aos seus opressores palavras de verdade, se acantonaram numa atitude de quietude, de indiferença muda e, algumas vezes, de fria cumplicidade.

Houphouët-Boigny, deputado africano e presidente do RDA, concedeu, há alguns dias, uma entrevista à imprensa. Depois de considerações absurdas sobre a evolução desejada de uma África cingida pela bandeira tricolor, aborda a questão argelina e não hesita em afirmar que a Argélia deve continuar no quadro francês.

Este senhor, há mais de três anos, tornou-se o espantalho do colonialismo francês. Presente em todos os governos, Houphouét-Boigny assumiu diretamente a política de extermínio praticada na Argélia.

Tendo à sua direita Lacoste e Morice ou Chaban-Delmas à sua esquerda, Houphouët-Boigny caucionou de maneira imperdoável uma política que enlutou a nação argelina e comprometeu por muitos anos o desenvolvimento do nosso país.

Houphouët-Boigny tornou-se o caixeiro-viajante do colonialismo francês e não receou dirigir-se às Nações Unidas para aí defender a tese francesa.

Houphouët-Boigny é médico. Era ministro da Saúde de Gaillard. Foi sob o seu reinado que aconteceu Sakiet Sidi Youssef. As ambulâncias da Cruz Vermelha Internacional foram ali metralhadas, bombardeadas, desventradas. Dezenas de mulheres e de crianças foram cortadas ao meio pelas rajadas da aviação francesa.

O africano Houphouët-Boigny, o médico Houphouët-Boigny, não recearam, nem um nem outro, reivindicar esta barbárie e declarar-se solidários dos militares franceses.

Houphouët-Boigny, como bom ministro da República Francesa, achou que o seu dever era assumir Sakiet, felicitar o valente exército francês e apoiar com toda a solidariedade ministerial as pressões sobre o Governo Tunisino.

Nas horas grandes do imperialismo francês, podia ser uma espécie de honra para um colonizado fazer parte do Governo Francês. Essa honra sem responsabilidade nem risco, essa complacência pueril em ser ministro ou secretário de Estado, podiam em rigor ser perdoados.

Ora, desde há dez anos, tornou-se propriamente intolerável e inaceitável que africanos possam sentar-se no governo do país que os domina. Todo o colonizado que aceita hoje um lugar governamental deve saber claramente que terá de caucionar, mais tarde ou mais cedo, uma política de repressão, de massacres, de assassinatos coletivos, numa das regiões do “Império Francês”.

Quando um colonizado como Houphouët-Boigny, esquecido do racismo dos colonos, da miséria do seu povo, da exploração desavergonhada do seu país, chega ao ponto de não participar no impulso libertador que levanta os povos oprimidos e em seu nome todos os poderes são dados aos Bigeard e a outros Massu, não devemos hesitar em afirmar que neste caso se trata de traição, de cumplicidade e de incitação ao assassínio.

Juventude de África, de Madagáscar, das Antilhas, os militares das vossas respectivas pátrias, alistados à força no exército francês, juntaram-se com entusiasmo às fileiras do Exército de Libertação Nacional argelino. Hoje, lado a lado com os patriotas argelinos, prosseguem uma luta heroica contra o inimigo comum.

A FLN, que dirige o combate do povo argelino, dirige-se a vós e pede-vos que pressioneis os vossos parlamentares de maneira a obrigá-los a desertar das assembleias francesas.

Chegou a hora para todos os colonizados de participar ativamente na derrota dos colonialistas franceses.

Onde quer que estejais, deveis saber que chegou o momento para todas nós de unir os nossos esforços e de desferir o golpe de misericórdia no imperialismo francês.

Juventude africana! Juventude malgaxe! Juventude antilhana! Devemos, todos juntos, cavar a sepultura onde o colonialismo será definitivamente enterrado!

continua>>>


Notas de rodapé:

(1) El Moudjahid, n.° 24, de 29 de Maio de 1958. (retornar ao texto)

Inclusão 15/07/2018