Prefácio à coletânea Cordéis de Pedro Macambira

Florestan Fernandes


Fonte: https://web.archive.org/web/20101112085338/http://www.lidas.org.br/osm/cordel/prefacio.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O Sr. Cleodon Silva distingiu-me com um convite para prefaciar este livro de combate sindical e proletário. Como não me dediquei ao estudo da literatura de cordel e à sua irradiação pelo Brasil, acompanhando as migrações internas de grupos e de culturas, acredito que é ao companheiro socialista que ale apela. Não me furto, em conseqüência, ao gesto de solidariedade a quem demonstra, de modo cabal, uma integridade política e uma coragem a toda prova, seja no desmascaramento ao peleguismo, seja na oposição à ditadura, seja na tentativa de despertar uma consciência operária rebelde e militante. Esses três pontos marcam os conteúdos das composições reunidas neste livro e situam o seu autor entre os melhores representantes do novo sindicalismo de vanguarda.

Lamento que tenha procurado a mim e não a um dos companheiros a quem destinou suas composições político - literárias. É um veso tomar o intelectual como ponto de referência. Ora, neste caso, só os consumidores-atores poderiam dizer da eficácia daquelas composições, como as receberam e como as aproveitaram. Eu só poderia ventilar a intenção pedagógica que atravessa todas as composições. A forma poesia popular foi adotada como expediente de comunicação, um meio para alcançar melhor a grande massa de peões de origem rústica (predominante nordestina), incorporada ao proletariado paulistano. Uma coisa, porem, é a intenção. Outra, possivelmente, o resultado. Por isso, não tenho como avaliar os efeitos práticos e tão pouco saberia manifestar-me sobre o valor das composições à luz dos critérios da produção desse tipo de poesia.

Ficando no plano formal, parece-me indiscutível o teor positivo da tentativa. No momento mesmo em que a industrialização maciça configura historicamente o novo proletário e revela que este possui duas faces contrastes - a vanguarda, que surge da indústria de ponta, e o peão que emerge como o super-explorado do sistema - é deveras importante dedicar atenção específica à grande massa de peões. Estes colocam problemas centrais, na esfera da socialização política e da resocialização humana. Eles nascem para a condição operária, para a vida na metrópole e para a atividade sindical ou para a ação política divergente. Não seria de esperar que caminhassem para o sindicalismo e a identificação com o socialismo espontaneamente. A forma literatura popular permite simplificar e clarificar a comunicação de novos valores e identidades sociais. Esse ângulo valoriza as composições e sugere, ao mesmo tempo, que o movimento operário e sindical possui suficiente vitalidade para dar-se contingente, no qual repousa uma grande parte de seu potencial de luta política.

Todavia, há um questionamento a ser feito. Os peões enfrentam uma situação humana contraditória: em processo de desenraizamento, eles precisam adquirir novas raízes. Ao deixar a identidade rústica e nordestina, a condição de trabalhador semi-livre do campo, ele perpetua a condição de homem pobre e espoliado e adquire a identidade emergente de operário. Dialeticamente, ele se libera de uma polarização sócio-econômica e se projeta pelo trabalho, em um engolfamento urbano-industrial pelo qual sai de uma modalidade de excesso da população para engrossar os quadros do exército industrial ativo. Por isso, percorre simultaneamente duas trajetórias: uma, de desenraizamento inicialmente parcial da cultura rústica; outro, de aquisição da condição proletária. Trata-se de um movimento muito rápido, centrado na força de trabalho como mercadoria, na capacidade do capital de produzir e reproduzir os tipos de trabalhador assalariado de que necessita. O que é essencial é que não se perca de vista, nesse movimento, a importância das novas raízes, aquelas que irão determinar o nascimento de novos proletários e os rumos do desenvolvimento da classe operária no Brasil. Se é importante não despojar esse operário se sua condição humana anterior (o que confere um significado especial à cultura rústica de que é portador), também é importante não privar esse operário da oportunidade que ele encontra de participar de uma comunidade de trabalhadores assalariados que dispõe de meios próprios de auto-afirmação e de auto-emancipação (o que confere um significado especial à cultura urbano-proletárias que deve ser adquirida). Desenraizamento-enraizamento como processos interdependentes, cujas fronteiras não estão só no aqui e no agora, pois elas dizem respeito ao futuro imediato e remoto do proletariado como classe social.

Dessa perspectiva ampla, percebe-se a conexão da forma poesia popular com a socialização política do operário ainda no limite de sua identidade de origem. As composições, por seu conteúdo, visam transmitir informações, atitudes e um código ideológico completo, de corte sindicalista. "A Aparição de Paraíba e os Abusos da JURUBATUBA S/A" e "Chegou a hora. Nós e os patrões" ilustram exemplarmente o percurso desse processo.

A identidade de origem não é posta em questão (a própria forma de poesia popular salienta a sua valorização positiva). Contudo, os sinais são dados em ermos das exigências da nova situação humana, o que evidencia positivamente a condição proletária e a relação do proletário com seu próprio mundo, com o capital e a exploração capitalista, com o sindicato e com as lutas de classe. O ser social não pode manter-se o mesmo. Ele precisa redescobrir-se e ter consciência de que é força de trabalho, agente de produção de uma mercadoria especial, e que é por aí que ele deve defender-se e afirmar-se. O sindicato é posto no centro de um novo mundo de solidariedade humana e de luta social e, através dele, se desmascara a relação trabalho-capital e se estrutura uma percepção radicalmente inconformista do conteúdo político da luta de classes.

O questionamento a que me reportei refere-se até onde é necessária ir, nesse duplo processo de desenraizamento e de enraizamento in status nascendi. Está em voga uma concepção que lembra as idéias dos populistas russo. O "amor ao povo" deveria incitar um comportamento estático. Nada de desencadear influências socializadoras (ou resocializadoras) "a partir de cima"... O peão poderia criar o seu nicho humano e nele restabelecer as bases se sua vida tradicional. Esse "respeito pela pessoa" e pelas "pautas populares da cultura" é soberbo! Como se constituiu e o que representa a comunidade popular rústica? Ou, ainda que probabilidade de auto-defesa e de auto-confirmação teria o peão entregue às relações do capital sem uma socialização adequada? O certo é que o capital e o Estado não deixam de por em prática as influências (repressivas e opressivas) "a partir de cima", com uma prepotência que no Brasil é secular. O que vamos fazer? Esperar que a classe operária descubra, por acaso, sua identidade própria e encontre no socialismo (e não no "obreirismo" ou no "espontaneísmo operário") seu modo de ser diante e contra o sistema capitalista?

O solo do capital não é o solo proletário. A contradição antagônica entre capital e trabalho abre uma muralha da China entre os dois mundos. Não há sentido em tomar uma posição passiva e reflexiva ("puramente ética") em face das heranças culturais que permitem a constituição da classe operária caótica e multi-facetada sociedade brasileira. A vanguarda da operária é parte natural da formação e do desenvolvimento da classe operária. É preciso impelir o peão na direção de sua condição operária e de todos os seus requisitos, materiais, morais e políticos. Não haveria porque defender um sindicalismo conseqüente e independente sem defender-se, ao mesmo tempo, a existência de uma vanguarda operária orgânica e, nas presentes condições históricas do Brasil, uma democracia proletária.

Tudo significa que o Sr. Cleodon Silva está prestando um serviço inestimável ao movimento sindical a uma renovação coerente das linhas de ação propriamente políticas do sindicato. O sindicato não pode furtar-se ao impacto do meio: ele é fraco não só pela força do capital - nacional e estrangeiro; ele é fraco pela fraqueza intrínseca do movimento operário, a base real do sindicato (e, também, em outro nível de discussão, do partido político proletário). O sindicato "assistencialista" apega-se ao muro de suas fraquezas e carências. Acomoda-se a elas e, com isso, multiplica a capacidade opressora e espoliadora do capital e do Estado. Uma pedagogia ativista vai na direção oposta. Ela parte das realidades concretas, com o fito de transformá-las. Tal transformação nunca será um prêmio, um "produto final" acabado. Ela precisa ser conquistada dia a dia, duramente, através da própria transformação do proletário - ou do semi-proletário, o que é o peão, na dinâmica da vida nas fábricas. Sem os peões, o ABC, suas lutas sindicais e suas greves, não seriam nada. Ficaria faltando dimensão e densidade políticas. Se os peões permaneceram como estão, o ABC passará rapidamente de um clímax para a ação domesticada e conformista. A saída natural consiste em descobrir uma pedagogia apropriada, que acelere não só a resocialização do peão, mas que propicie sua doutrinação sindicalista e sua crescente identificação com o socialismo proletário. O que sugere que o esforço contido neste livro deve ser multiplicado na escala de cem mil, com a descoberta e a aplicação correta de novos métodos.


Inclusão: 17/09/2023