Palavras Necessárias
(Elementos para a História do Movimento Operário Português)

Bento Gonçalves


Fonte: Os Comunistas.
Transcrição: João Filipe Freitas

HTML: Fernando A. S. Araújo.


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O que vai relatar-se não constitui mais do que uma tentativa de explicar um vasto período de movimentação da vida proletária em Portugal, a partir de 1872 até 1927, particularmente no que respeita ao movimento operário sindical. Pretende-se com este estudo, forçosamente deficiente e com abundantes lacunas, alargar e melhorar a nossa experiência de vanguarda do movimento proletário; fixar ideias acerca do comportamento revolucionário das várias tendências do movimento operário português, a relação delas com as concepções e actividades do proletariado internacional e, de tudo isso, tirar conclusões que auxiliem as nossas futuras lutas contra a burguesia nacional. Esta tarefa começa contrariada pela fundamental dificuldade da falta de documentos escritos, e baseia-se toda em elementos de memória, provindos de leituras esparsas sobre alguns acontecimentos mais salientes e do conhecimento directo que tivemos de algumas fases e lutas do movimento operário no país. Trata-se portanto, duma modesta contribuição, salpicada de omissões e sem uma rigorosa precisão de datas, mas interessante pela aparição de novos elementos, até agora por nós ignorados, e que decerto reforçarão as conclusões extraídas das análises de estudos anteriores sobre trabalhos semelhantes.

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As ideias socialistas fazem, entre nós, a sua aparição por alturas de 1871 e dão lugar a um entusiástico debate nas célebres conferências do Casino, com lugar de destaque para Antero e Eça de Queirós. As ideias ali debatidas tiveram como imediato resultado a criação dum organismo conhecido pela «Fraternidade Operária», que mais tarde se transformou em Partido Socialista. Esta actividade organizativa derivava, em primeiro lugar, da reconhecida necessidade de organizar a luta contra os exploradores da população operária e, em segundo lugar, do entusiasmo trazido pelas lutas dos trabalhadores estrangeiros contra a sua burguesia e, mais do que tudo isto, do formidável acontecimento político que foi a revolução da Comuna.

É coisa estabelecida que a consciência política dos dirigentes operários dessa época era profundamente romântica e formada na Escola de Proudhon e ainda alicerçada numa certa dose de idealismo hegeliano. Os efeitos duma tal orientação deveriam produzir resultados pouco encorajadores no seio do proletariado. Por outro lado, o proletariado dessa época tinha toda ou quase toda a sua actividade laboriosa ligada à pequena produção manufactureira e artesã.

Num meio tão atrasado industrialmente, uma consciência revolucionária tão justa como a dos proletários de países como a Inglaterra, a França, a Alemanha, etc., era impossível. Contudo, o movimento operário ia crescendo e travando as suas lutas económicas parcelares contra os seus exploradores.

Azedo Gneco foi, a partir de certa altura, a figura mais saliente, o socialista mais capacitado, o que mais se aproximava das ideias de Marx, postas em marcha através dos princípios da Primeira Internacional. A perseverança deste militante, o seu entusiasmo, a sua experiência com a de outros que se lhe iam reunindo pelo caminho, faziam germinar a ideia duma revisão de estruturação orgânica do débil Partido Socialista existente, conjuntamente com uma modificação de processos de luta. O objectivo essencial do pensamento de Gneco e dos seus amigos era a reorganização do Partido Socialista com vista à unificação dos trabalhadores. Os elementos de apoio a este pensamento existiam nos sindicatos e nas cooperativas operárias de consumo, espalhadas por vários pontos do país. Embora lentamente, a ideia ia tomando vulto e criando raízes entre a massa dos trabalhadores de então. O número de sindicatos e cooperativas e até de algumas instituições de assistência e cultura ia aumentando sob o controlo socialista. Entre as últimas, destacava-se a Voz do Operário, com algumas dezenas de milhar de filiados, que ainda hoje é, no seu género, a mais importante organização de massas.

Nos começos do nosso século, o Partido Socialista é já uma realidade viva; todo o movimento sindical e cooperativista, principalmente, está sob a sua influência e controlo.

O quadro era prometedor para a época. A classe operária tinha um Partido, embora a sua orientação não fosse verdadeiramente revolucionária.

Durante a primeira década do século actual, assiste-se a certa estagnação da actividade política na Europa Ocidental. É na Rússia, para onde o centro da luta revolucionária se havia deslocado, que se dá o maior acontecimento político dessa época — a Revolução de 1905. A distância, os meios precários de comunicação e as diferenças de clima político entre nós e ela, fizeram com que o facto quase não tivesse eco no nosso país. Porém o nosso meio andava agitado. Desde 1891 que a monarquia entrara em crise. Após a bancarrota de 1891, os republicanos, baseados na humilhação que a Inglaterra nos havia infligido devido ao «ultimatum», tinham intensificado os seus ataques à realeza. Entretanto, o Partido Socialista não agiu de modo a tirar vantagens possíveis do conflito, as quais, nestes momentos de crise política da burguesia, se traduzem por maior enriquecimento de experiência da classe operária e robustecem a importância do seu papel no movimento político dum país. Pelo contrário, os factores posteriores indicam que toda a experiência e vantagens políticas reverteram em benefício dos republicanos, a respeito do seu revés, na cidade do Porto, quando, ali, no mesmo ano pretenderam implantar a república.

Fora o Partido Socialista um Partido revolucionário, e o proletariado português teria, em 1910, decidido das suas reivindicações dessa época e firmaria melhor as suas posições. Mas quem tinha a palavra era um Partido oportunista, um Partido que desviava a classe operária do seu justo caminho, colocando-a à mercê dos interesses da burguesia republicana.

As ideias anarquistas tinham, muito antes do 1910, conquistado muitos indivíduos entre nós. À semelhança da França, também em Portugal se instituíram agrupamentos destes idealistas. A sua acção exercia-se paralelamente à dos republicanos, embora se distinguissem por uma mais contundente linguagem e considerassem que a República liberal era o trampolim para uma sociedade sem Estado, Leis ou Autoridade.

Até 1904, os anarquistas, em França, tinham-se apercebido da impossibilidade de alargar a sua influência ideológica em concorrência com os seus émulos pequeno-burgueses, agrupados em organizações de esquerda liberal. Esta constatação levou-os ao sindicalismo revolucionário com a «descoberta» dos sindicatos dos trabalhadores, para onde transferiram quase toda a sua actividade. O esmagamento da Comuna tinha aberto a porta ao derrotismo e ao oportunismo; as ideologias estranhas aos justos interesses da classe operária entravam por essa mesma porta. É assim que a maioria dos sindicatos franceses impregnados de mentalidade anarquizante decidem aceitar, no Congresso de Amiens, a concepção sindicalista revolucionária do Movimento Operário.

Esta nova concepção não pode violar as fronteiras do Reno nem transpor o Canal da Mancha, para além do qual se encontrava um proletariado industrialmente forte, com uma tradição socialista e dotado duma sólida consciência de classe. Estes mesmos obstáculos não existiam para aquém dos Pirinéus e, por isso, os princípios estabelecidos na chamada «Carta de Amiens» puderam instalar-se em Espanha e no nosso país.

Em 1909, quando em Portugal se efectuava a primeira Conferência Sindicalista, no antigo Coliseu de Lisboa, já os sindicalistas revolucionários, com alguns sindicatos sob a sua influência, se instalam em posições, de certo modo sólidas, de onde prosseguirão um progressivo combate contra o Partido Socialista. As posições dos socialistas são numericamente mais fortes: todos os sindicatos do Porto, têxteis da Covilhã, Fábricas de Tabaco e muitos sindicatos artesãos espalhados pelo país estão consigo. Os activos militantes Azedo Gneco, Martins Santareno, António José da Silva, estão no primeiro plano socialista. Do outro lado, estão os corticeiros, rurais de Beja, alguns sindicatos da Construção Civil, Gráficos e perspectivas de trabalho nos transportes ferroviários. Os chefes da oposição sindicalista revolucionária são mais aguerridos. Os seus nomes: Alexandre Vieira, Carlos Rates, Bartolomeu Constantino, Sebastião Eugênio, Peixe, etc.

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A República implantara-se com o efectivo apoio da massa operária. Os dirigentes do Partido Republicano Português prometeram, em troca desse apoio, algumas reformas que beneficiavam a massa trabalhadora. Decerto o terão feito em reuniões conjuntas com os dirigentes operários socialistas e sindicalistas revolucionários. Sabendo-se que a orientação reformista dos socialistas portugueses se subordinava à táctica da II Internacional, de tomar o parlamento como elemento essencial da luta operária contra o sistema capitalista, pode-se admitir que entre socialistas e republicanos se acordara num compromisso de estreita colaboração partidária. Por seu turno, os sindicalistas revolucionários, fiéis ao seu «apoliticismo», deverão ter-se comprometido à prestação dum apoio, condicionado pela sua concepção ideológica e orientação de luta independente.

Sem dúvida, os republicanos iriam, após o seu triunfo, explorar a falta de unidade operária, a diferença de métodos de luta entre socialistas e sindicalistas revolucionários e, mais do que tudo isto, a ausência duma justa consciência revolucionária do proletariado.

Ainda não iam decorridos dois meses, já o primeiro sinal de reacção, do lado operário, se manifestava com a declaração da primeira greve parcelar (corticeiros de Almada). Este facto tornou-se um verdadeiro rastilho. Dentro de pouco, outras classes se movimentavam, alternando-se os seus resultados com vitórias e derrotas. Estas greves eram promovidas e orientadas pelos sindicalistas revolucionários. A rede dos seus sindicatos ia engrossando. A influência dos sindicalistas revolucionários crescia, enquanto a influência dos socialistas ia perdendo terreno com a passagem de alguns dos seus sindicatos para o lado dos seus oposicionistas. Ao mesmo tempo, os sindicalistas revolucionários criavam novos sindicatos, trazendo à luta, deste modo, muitos milhares de trabalhadores organizados.

As Constituintes tinham no seu seio, pelo menos, dois deputados socialistas — Ladislau Batalha e António José da Silva. O desespero destes, ao verem a influência do seu Partido sobre as massas operárias em progressivo declínio, levava-os a lamentosas intervenções parlamentares, devido à falta de cumprimento das demagógicas promessas produzidas pelos republicanos antes da derrocada monárquica. O certo é que a República não afectara os interesses dos grandes proprietários agrícolas, nem tão pouco os da banca e grande indústria. Os capitalistas, reconhecendo que a incapacidade dos dirigentes dos Partidos monárquicos e o descrédito a que a realeza tinha chegado já não convinham aos seus interesses de classe dominante, tinham, em boa parte, aderido ao Partido Republicano Português. Esta decisão, por parte da burguesia mais activa e ousada, é que fundamentalmente pesava no comportamento e acção dos órgãos oficiais e dirigentes da República.

A República significava o prolongamento do domínio da classe capitalista, o seu reforçamento, e nunca o seu desaparecimento. A principal dificuldade da grande burguesia consistia em ter a sua classe dividida ideologicamente: dum lado os republicanos; do outro os monárquicos. Era esta dificuldade que socialistas e sindicalistas não exploravam convenientemente. Para o conseguirem, precisavam de unir todas as suas forças, ligá-las a um comando único e combinarem a acção dos postos obtidos no Parlamento com a luta dos sindicatos dum modo revolucionário. Torna-se evidente que, quer dum lado quer do outro, se ligava mais importância aos princípios que informava cada um dos dois respectivos movimentos, que à realidade objectiva e ao interesse global da classe operária.

Apesar do interesse dos capitalistas indicar uma adesão total à República, havia contudo uma parte que ficara fiel ao regime monárquico e patenteava a sua discordância com incursões armadas ao longo da fronteira norte do país. Esta hostilidade não era eficazmente combatida pelo Governo com uma acção vigorosa e severa. A frouxidão do Governo gerava um descontentamento crescente entre as camadas populares da pequena burguesia e do proletariado. Mas o que fundamentalmente indispunha a classe operária contra o Governo da República era a falta de cumprimento das suas promessas. Tudo quanto este concedera em nada contribuirá para melhorar economicamente a situação dos trabalhadores. A concessão feita aos operários arsenalistas da jornada diária de 8 horas, fora estabelecida com o fim de atrair, para a República, a simpatia daquela classe. O estabelecimento oficial do direito à greve nas condições duma consciência de classe pouco desenvolvida por parte do proletariado era contrabalançada pela garantia oficial do direito ao trabalho. A lei que suprimia as congregações religiosas, direito ao divórcio e laicização do ensino escolar, lei da separação do Estado e da Igreja, etc., eram concessões aparatosas e ilusórias e não traziam encargos financeiros para a classe dos capitalistas, no poder. Era esta a situação de desequilíbrio entre as classes, agravada pela repressão governamental sobre as greves anteriores quando, em meio de 1911, os sindicatos revolucionários lançam a greve geral, avantajando-se assim aos socialistas a quem acusavam de falsear os interesses da classe operária com a sua estéril actuação parlamentar. Os sindicalistas, além de inscreverem no caderno das suas reivindicações o cumprimento dos acordos anteriores ao triunfo da República sobre melhoria económica das massas trabalhadoras e do povo em geral, reclamavam a jornada diária das 8 horas e, habilmente, exigiam a liquidação rápida das incursões monárquicas. Este último ponto buscava atrair à sua causa todos os descontentes contra a vagarosa acção repressiva do governo contra os insurrectos.

O Governo, contando com o pacifismo dos dirigentes socialistas, acusa os sindicalistas de perturbadores da sua acção e causadores do desvio «revolucionário» progressivo de que estes o acusavam. Envereda então pelo caminho da repressão violenta, assalta e encerra a Casa Sindical, depois de haver prendido ali algumas centenas de trabalhadores, entre os quais os dirigentes do movimento grevista.

A greve fora esmagada e muitas dezenas de trabalhadores, depois de haverem passado pela Fragata D. Nuno, armada em prisão, foram finalmente deportados para o Forte da Graça, em Eivas. A acção repressiva do governo não conseguia, porém, abafar o sentimento de hostilidade das massas populares. O Governo, constatando-o, poucos meses depois fazia algumas concessões e, como algumas greves e manifestações pró-presos se houvessem declarado, ameaçando crescer de volume, libertou os presos.

A tensão entre socialistas, cujos métodos de luta reformista culminavam com a falência da sua exploração oportunista do parlamento, e os sindicalistas revolucionários, cuja acção combativa, embora esquerdista, era mais ajustada ao interesse das lutas reivindicativas do proletariado dessa época, começou a tomar, decisivamente, o carácter de luta pela hegemonia do Movimento Operário. Até 1912, data em que se realizou o Congresso Sindical em Tomar, com excepção de pequenas explosões grevistas, todo o tempo foi gasto pelos dois grupos, em conflito, em definirem posições.

Era evidente que o papel dos socialistas, como Partido dirigente da classe operária, se reduzia em extensão. A sua orientação reformista tinha feito uma experiência e os resultados tinham sido quase inteiramente negativos. O Congresso Sindical de Tomar corroborara expressivamente esses resultados e pronunciou-se, em maioria esmagadora, pela orientação sindical revolucionária.

Os socialistas, com os poucos sindicatos que restavam ao seu controlo e com todo o movimento cooperativista nas suas mãos, nunca mais voltariam a comandar o proletariado. A fidelidade aos princípios da II Internacional jamais seria posta de parte.

A República continuava a consolidar-se no exclusivo interesse da burguesia capitalista. Até começos de 1913, só os sindicalistas revolucionários estiveram na brecha contra a classe dominante.

O seu esquerdismo levou-os a isolar-se dos outros sectores interessados em alterar o rumo do regime republicano em favor das massas populares. Este sectarismo das ideias militantes de então e a falsa visão política dos dirigentes, em breve causaria os seus efeitos.

Em 27 de Abril de 1913, dá-se uma intentona «putchista», dirigida por Machado dos Santos, o homem que a República classificara de seu primeiro herói. Os sindicalistas revolucionários prestam efectivo apoio a esse movimento, patenteando assim, de forma clara, o seu oportunismo de esquerda. Por outro lado, a sua ligação com um grupo de oposição ao Governo punha em foco a incapacidade do Movimento Sindical soldar a si todas as camadas laboriosas e da pequeno-produção do país. Esta insuficiência prática de ligar a si as massas derivava da errada concepção estratégica em que se baseava o movimento sindical revolucionário.

O proletariado ressentia-se da falta dum Partido que se tornasse o dirigente da luta revolucionária, e era isto mesmo que o tornava presa de qualquer grupo de aventureiros, exploradores desta suprema dificuldade.

O Governo, em fins de 1914, depois de ter esmagado algumas intentonas de Machado dos Santos, pôs termo às suas aventuras e deportou-o, primeiro para Angra do Heroísmo e, mais tarde, fê-lo transitar para a prisão do Fontelo, em Viseu. Entretanto, os sindicalistas revolucionários, no terreno das lutas propriamente operárias, não cessavam de levar as classes à luta, fortalecendo, deste modo, a sua posição de dirigentes únicos da classe operária.

O mundo capitalista caminhava para o ponto crítico da sua maior crise conhecida até aí. Os antagonismos imperialistas geravam um ambiente propício à guerra. O atentado de Sarajevo serviu de pretexto para o seu desencadeamento, em Julho de 1914. Foi no meio de um clima social bastante convulsionado, cremos que em Setembro de 1914, que os sindicalistas revolucionários realizaram o seu primeiro Congresso, de onde devia sair a União Operária Nacional.

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O «abrilismo» tinha causado muitas baixas no Movimento Operário. Alguns militantes sindicalistas revolucionários, dos mais activistas, haviam-se engolfado nos «putches» de Machado dos Santos e abandonado completamente a luta sindical. Porém, estas deserções tinham sido compensadas com a vinda à luta de novos elementos. O laboratório experimental da vida sindical, devido ao crescendo da efervescência revolucionária, preparava com rapidez novos quadros. De resto, a doutrina e a prática sindicais, visto o modo como eram estudadas e aplicadas, não exigiam muito tempo para a sua formação.

A guerra eclodira e em Portugal, à parte os que lhe eram hostis, começavam a desenhar-se duas correntes de simpatia pelos dois respectivos bandos em luta: a aliadófila e a da «entente cordiale». A primeira era, de longe, a mais numerosa e ostensiva.. A diplomacia inglesa começa a trabalhar no sentido de nos enredar no conflito.

A propaganda aliadófila fazia recair sobre a Alemanha as responsabilidades do conflito e a atribuir-lhe crueldades e barbaridades inconcebíveis. Tudo isto se conjugava em favor duma crescente simpatia pela causa aliada. A declaração de Kropotkine, um dos mais destacados teóricos do anarquismo, em favor da intervenção ao lado dos imperialistas aliados, devia, pela sua autoridade, ter tocado muita gente, lá fora e entre nós. A própria posição traidora dos socialistas da II Internacional, estabelecendo o princípio da defesa da burguesia nacional contra o de «guerra à guerra», proclamado anteriormente, era, pela sua importância no Movimento operário mundial, um dos maiores apoios prestados aos imperialistas ocidentais.

Pois bem: contra esta corrente transbordante de simpatia e compromisso para com o bando imperialista aliado, o Congresso Sindicalistas de Tomar proclama-se contra a intervenção de Portugal na guerra. Esta justa decisão causara muito desagrado nos sectores partidários da Inglaterra. A posição justa do Congresso encontrara a oposição de alguns militantes e de indivíduos que agiam em torno do Movimento Sindical, os quais vieram a público manifestar-se pela intervenção: Carlos Rates, Manuel Ribeiro, Emílio Costa (anarquizantes) e José Augusto Machado (socialista) eram os mais destacados. Ao lado da União Operária Nacional enfileiravam os «Abrilistas» (não por questão de princípios, mas por oposição sistemática e ódio à dominação do partido democrático) e, até certo ponto, tinham posição idêntica os «Unionistas» de Brito Camacho. A oposição ao Partido Democrático tornara-se muito popular. Uma parte da grande burguesia agrária e bancária, ainda fiel à Monarquia, aproveita-se deste sentimento hostil e provoca o «Movimento das Espadas». Este golpe foi levado a cabo do modo seguinte: muitos oficiais superiores do Exército e da Marinha dirigiram-se ao Ministro da Guerra, em Fevereiro de 1915, e entregam as suas espadas declarando a sua incompatibilidade com o curso dado à política pelo Partido Democrático. A crise abre-se, o Presidente da República encerra o parlamento e entrega ao general Pimenta de Castro o encargo de formar ministério. Este declara governar com a lei, põe em liberdade os presos «abrilistas» e sindicalistas e promove, imediatamente, o julgamento e absolvição dum grupo de indivíduos acusados de ter atentado, anteriormente, contra a existência de Afonso Costa. Sem dúvida, o «golpe de estado» de Pimenta de Castro surgira como consequência da activa preparação da entrada de Portugal na guerra.

A reacção de Pimenta de Castro viera provar que a Organização Operária estava mais uma vez na base duma nova luta de parte da burguesia contra a restante. O proletariado era uma força social que os políticos da burguesia utilizavam para os seus fins. A classe operária não era dona de si mesma. O primitivismo ideológico do Sindicalismo dificultara à classe operária criar um Partido revolucionário que a fizesse, de modo efectivo, intervir nas lutas políticas do país, a fim de, crescentemente, impor os seus fins de classe revolucionária. Esta situação ia demorar a transformar-se.

O Congresso Sindical de Tomar criara a União Operária Nacional. Data daí a introdução das uniões dos sindicatos. Além das decisões da não intervenção, o congresso ratifica a sua adesão aos princípios da «Carta de Àmiens».

A guerra começara a fazer sentir os seus efeitos no nosso nível de vida. Os preços dos produtos subiam. A União Operária Nacional, com Alexandre Vieira como seu secretário geral, declara, por intermédio do seu órgão «O Sindicalista», a sua decisão de levar as classes à greve de reajustamento de salários. A proporção desta dupla corrida é favorável aos detentores da riqueza e dos utensílios de trabalho.

Em Maio de 1915, Pimenta de Castro é apeado por um golpe armado. Há gente do povo que em Fevereiro apoiara Pimenta de Castro e que participara agora contra ele, de armas na mão, ao lado dos democráticos. É confuso tudo isto, mas a versatilidade, principalmente dos operários, dá a medida da sua justa falta de mentalidade política. Este golpe foi auxiliado pela Inglaterra e dá começo, com Norton de Matos no Ministério da Guerra, a uma efectiva política de intervenção.

Em fins de 1915, criara-se a Juventude Sindicalista. O seu órgão de imprensa é o «Despertador». Os seus princípios são os de Amiens. A sua aparição coincide com a altura em que quase toda a imprensa burguesa do país se mostra inclinada para a participação de Portugal na guerra. Já nessa data haviam sido enviados para as Colónias alguns barcos carregados com tropas, as quais faziam parte dum corpo expedicionário calculado nalgumas dezenas de milhares de soldados.

É a juventude que toma a cabeça da luta contra a guerra, exortando o povo e especialmente os jovens a não se deixarem mobilizar. Os manifestos nos quartéis convidando os jovens à deserção circulavam com profusão. O governo reprime esta actividade, mas a juventude avantaja-se cada vez mais. Não há, entretanto, uma concepção de organização que se combine com toda esta acção indirecta de agitação. A orientação política da Juventude tinha a mesma marca da União Operária Nacional. Por isto mesmo, este trabalho, destrambelhadamente, não se alicerçava e não produzia resultados práticos.

Gritava-se nos arraiais intervencionistas que as Colónias Portuguesas estavam em perigo de ser violentamente tomadas pelos alemães. Só a entrada de Portugal na guerra podia pôr termo aos planos imperialistas sobre as colónias portuguesas, dizia-se. Se a Inglaterra, ainda em 1912, tinha acordado com os imperialistas alemães a partilha das colónias portuguesas, intento que se não consumara por razões estranhas à vontade das duas potências imperialistas, agora, afirmava-se, só o esforço de Portugal na guerra, ao lado da Inglaterra, salvaria as Colónias portuguesas de uma perda que poderia ser total.

Em Março de 1916, a oposição fora dominada e o Parlamento declara guerra à Alemanha. Servia-lhe de pretexto um recontro sangrento entre forças portuguesas e alemãs no Sul de Angola. Este acontecimento fizera vacilar muitos partidários da não-intervenção, mas uma boa parte do sentimento geral do povo continua contra a guerra. A burguesia que exportava produtos, os oportunistas do comércio e todos os que duma maneira ou de outra lucravam com a guerra, eram seus partidários. O resto da nação era contra. Uma coisa se verificava: que o proletariado, sem um guia seguro, andava ao sabor do primeiro aventureiro político que lhe tocasse o sentimento. A sua vanguarda seguia o mesmo destino. Em Dezembro de 1917, Sidónio Pais, apoiado num grupo de oficiais não-intervencionistas, na classe operária, nos «Abrilistas» e na indiferença e sentimento anti-belicista da maioria do povo, lança um «putch». Este golpe foi bem sucedido.

Sidónio Pais empreende demagogicamente uma nova era de «messianismo político». Era a «República Nova» quem ia resolver os problemas fundamentais da Nação.

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É evidente que quem mais contribuiu para o ataque à política de colaboração imperialista do governo português, com a sua efectiva entrada na guerra, foram a União Operária Nacional e a Juventude Sindicalista. A larga agitação e as numerosas manifestações de rua, levadas a cabo por estas organizações, criaram nas massas populares um estado de espírito de profunda hostilidade contra a entrada de Portugal no conflito. Este ambiente precisava de apoio político, dum partido revolucionário da classe operária que reunisse à sua volta esse descontentamento e o transformasse num acto político popular insurreccional, do qual resultassem o derrubamento do governo dos capitalistas e a sua substituição por um governo de coligação popular.

Porém, a vanguarda proletária existente não tinha uma justa consciência do seu papel. A sua estruturação «apolítica» e as suas tácticas de combate mais uma vez patenteavam a sua incapacidade de colocarem a Classe operária como força dirigente e independente.

Na realidade, o nosso atraso industrial, a ignorância do marxismo e o baixo nível de cultura geral, principalmente dos operários e camponeses, tolhiam o passo ao proletariado para mais largos objectivos políticos. Esta situação de classe inferiorizada politicamente era e continuava sendo aproveitada pelos oportunistas de todos os matizes políticos da burguesia. A experiência de 1910, a parceria dos sindicalistas com os «Abrilistas» e a sua benevolência para com Pimenta de Castro, nada disto havia servido para eliminar a linha geral do oportunismo de esquerda que continuava então dominante nos militantes operários. A Organização Operária continuava preparada para receber qualquer cavaleiro que oportunamente a quisesse montar.

Sidónio Pais apreendeu bem a situação. Com um plano, cuja demagogia ocultava bem a sua finalidade reaccionária, reuniu, duma assentada, a participação dos sindicalistas revolucionários e a dos «Abrilistas». Sem ecte valioso apoio, Sidónio não teria triunfado. Mais, não teria sequer tentado o golpe. A entrada de Portugal na guerra teve como consequência imediata um agravamento orçamental. Os créditos que a Inglaterra nos fornecia, e que não tinham uma aplicação útil, teriam de ser pagos por quem deles não colhia benefícios: o povo. A moeda desvalorizava-se e este facto repercutia-se no custo de vida que começara a subir. Estes e outros factos ruinosos para a existência do povo despertavam cada vez mais o profundo sentimento de hostilidade para com o governo. A luta de classes reacendera-se, quer em busca de um reajustamento de salários pela paridade com o crescente custo de vida, quer em manifestações públicas contra a guerra. Era evidente que tudo isto contribuía para o enfraquecimento do regime capitalista. Não havendo um Partido revolucionário que fosse capaz de ligar ao proletariado as massas de todos os sectores da vida nacional, incompatibilizadas com a política do governo da «União Sagrada», não só se não podia esgotar a burguesia intervencionista, como era impossível evitar o golpe da burguesia' mais reaccionária. Foi o conjunto da situação existente que gerou o sidonismo.

Tem-se atribuído ao sidonismo o papel de precursor do fascismo. Conquanto a sua política não tivesse tido tempo para se desenvolver e definir completamente, o modo como soube aproveitar-se da falta de justa consciência política do proletariado, a sua demagogia inicial, a liquidação do sistema parlamentar democrático, a censura imposta à imprensa, a tendência para a centralização de poderes, etc., parecem confirmar aquela opinião. Na realidade, o fascismo nos outros países, bem como no nosso, depois de 1926, deu os seus primeiros passos pondo em prática medidas idênticas. Pode-se admitir que a experiência sidónica tivesse sido estudada pelos anti-liberais da burguesia de outros países e, particularmente, pela do nosso.

Os sindicalistas revolucionários é que, sem dúvida, não a estudaram. E se o fizeram, concluíram, somente, que um novo Costa, de pistola na mão, nos libertaria de qualquer ditador, de qualquer aventureiro que nos pretendesse usurpar a nossa liberdadezinha. Esqueceram-se de que a reacção não dormia e que esta se havia de precaver contra os futuros Costas, matadores de Reis e Presidentes.

Sidónio Pais não fora ao poder para resolver os problemas mais imediatos dos trabalhadores. Sidónio fora até lá por indicação da burguesia.

Sidónio Pais, cujo primeiro cuidado fora o de tomar conta das alavancas de comando do Exército, não se esqueceu, porém, de criar um aparelho especial de repressão política, o qual denominou de POLÍCIA PREVENTIVA. A par destas medidas reaccionárias, rearmou a Polícia de Segurança Pública e transferiu para a capital as unidades militares da sua maior confiança.

A fim de se certificar do poder da sua armadura repressiva, provocou, dois meses depois da sua ascenção ao poder, uma «pavorosa» no seio da Marinha de Guerra. Os marinheiros nela envolvidos foram esmagados e muitos deles deportados para a África. O conjunto repressivo funcionara excelentemente e ele enchera-se de confiança para agir à vontade.

A prisão dos adversários mais irrequietos foi o começo da sua obra de «saneamento». Dentro de pouco, verificava-se que a promessa de não ser enviada mais gente para a guerra não era cumprida. As reclamações dos trabalhadores não eram atendidas. Medidas de benefício popular não surgiam. Os trabalhadores expiavam as culpas da incapacidade política dos seus dirigentes.

Em Março de 1918, os trabalhadores tinham abandonado a situação de expectativa que haviam mantido durante cerca de três meses. A classe operária irrompe para a luta. Por virtude dum decreto que cerceava aos ferroviários algumas regalias conquistadas em lutas anteriores, estes trabalhadores declararam a greve em todas as redes e saiem vitoriosos do conflito. Machado dos Santos, que transitara do Ministério do Interior para o dos Abastecimentos, sai por efeito desta greve. Sidónio reconhecera o perigo de resistir contra os ferroviários e cedeu. Mas ele não viera ao Poder para fracassar em frente dos trabalhadores. Tratou de se preparar com vista ao futuro.

Pouco tempo depois, são as corporações marítimas do porto de Lisboa que, na sua totalidade, procuram, por meio da greve, melhorar economicamente. A despeito duma resistência de três meses e embora os trabalhadores tivessem praticado a sabotagem e feito uma caça encarniçada aos «amarelos», o resultado foi uma derrota completa. A este insucesso dos trabalhadores ligaram-se outros.

Sidónio Pais que se havia desfeito dos elementos liberais, tidos por mais perigosos, apeando-os dos cargos do Estado e atulhando as prisões com milhares de adversários, tinha praticamente contra si, somente, os trabalhadores mais conscientes.

Em Julho de 1918, começou uma verdadeira ofensiva contra os salários dos trabalhadores do Estado. Muito embora o custo da vida se agravasse dia após dia, Sidónio reduziu os salários a estes trabalhadores.

A reacção mais potente contra a ofensiva anti-operária de Sidónio deu-se no d;a 18 de Novembro. A União Operária Nacional declara a greve geral política. A sua palavra de ordem central é: Abaixo a Sidónio.

A luta estendeu-se ao campo, e por vários pontos do país, deram-se recontros entre a força pública e os trabalhadores. Onde a luta tomou um verdadeiro carácter insurreccional foi nalgumas regiões do Alentejo com a participação dos trabalhadores assalariados à frente.

A greve terminou com um fracasso completo. Muitos rurais alente- tejanos foram deportados para Luanda. O proletariado não conseguiu reunir a si a totalidade dos camponeses e as camadas pequeno-burguesas hostis ao sidonismo. O seu esmagamento não surpreendeu.

Um mês antes de Novembro, Sidónio chamava a si um sentimento muito geral de repulsa pelo assassinato do Visconde de Ribeira Brava, quando este marchava debaixo de escolta numa leva de presos, perto do Governo Civil, em Lisboa.

Quando Sidónio foi assassinado, em 14 de Dezembro de 1918, pelas prisões de África e do país haviam passado cerca de 20 mil pessoas.

Sidónio Pais não conseguiu reunir à sua volta toda a grande burguesia. As camadas médias e pequeno-burguesas vacilaram. A colaboração delas com Sidónio foi restrita. Os grandes pilares do regime foram o terrorismo organizado e a demagogia dos processos de captação da inconsciência das massas.

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A morte de Sidónio abalou profundamente o regime. O oficial do exército e advogado Tamagnini Barbosa era quem se esforçara na presidência do Ministério por prolongar o sidonismo. Mas o fim da guerra e a insistência restauracionista dos monárquicos apressam a crise. As manifestações populares contra a continuação do regime sidonismo crescem. A barreira repressiva fende-se e deixa passar em tumulto a inundação libertadora.

A reacção monárquica estava iminente e Tamagnini foi forçado a transigir com o sentimento liberal do povo. As prisões foram abertas, a censura abolida e como medida de segurança para a República faziam-se substituições de comandos no Exército e na Marinha.

Os monárquicos, compreendendo que a oportunidade se lhes escapava, precipitaram, em 19 de Janeiro de 1919, a restauração monárquica do Porto. Tamagnini manda imediatamente avançar forças leais para o Norte e permite a organização de batalhões voluntários em Lisboa, a fim de darem combate aos insurrectos. Dias depois, os monárquicos, em Lisboa, secundam a reacção do Norte e instalam-se em Monsanto, de onde exigem a rendição do Governo.

A reacção monárquica foi esmagada pela intervenção decidida e efectiva das massas populares. Instintivamente, vendo o perigo, todos os dirigentes das organizações liberais e operárias se uniram no mesmo objectivo de guerra à monarquia e fizeram avançar as suas formações para combate. A República foi salva. A demagogia democrática ia novamente imperar.

A paralisação das indústrias de produção de guerra e a desmobilização, que o fim da guerra tinha ocasionado, motivaram o aparecimento de um grande exército de desocupados que passavam a combater numa nova frente contra o seu inimigo de sempre — o capitalismo. A burguesia portuguesa tinha este grave problema para resolver. Os meios de que dispunha não eram muito eficientes. A guerra trouxera-lhe encargos e as «compensações» constituíam ainda um fardo mais pesado. Dívidas a subirem de volume e os efeitos ruinosos da estagnação de um certo progresso industrial, útil enquanto decorreu a guerra. A República estava salva mas os problemas económicos do país tinham-se agravado. Este estado de coisas equivalia a um aumento de crise revolucionária.

O Governo, com o coronel António Maria Baptista à sua frente, lança mão dos socialistas a quem entrega a pasta do Trabalho.

Por seu turno, a União Operária Nacional concentra todas as suas atenções no modo de lançar as classes na luta pelas suas reivindicações económicas e ameaça o Governo de desencadear a greve geral nacional pela conquista da jornada das 8 horas de trabalho. Os socialistas, fiéis ao seu oportunismo político, encabeçam no Governo e no Parlamento a satisfação desta reclamação. O Governo cede e a lei é votada e aprovada. Consumara-se a conquista, a mais cara aspiração dos trabalhadores industriais e empregados no comércio. Contudo, os trabalhadores agrícolas, ainda hoje trabalham de sol a sol.

O Governo julgara deter as disposições de luta da União Operária Nacional publicando o decreto da jornada diária de 8 horas. Mas não; as greves sucediam-se e os protestos contra a falta de medidas oficiais que eliminassem o desemprego cresciam e tomavam corpo com manifestações operárias em que empunhavam bandeiras pretas e outras com dísticos de: pão e trabalho. O Governo, vendo que este género de actividade reclamativa lhe acarretava algumas dificuldades para o seu trabalho de consolidação política, resolveu votar um crédito de emergência, a fim de obviar o desemprego.

Foi a União Operária Nacional quem preparou e conduziu a jornada pela eliminação do desemprego, pois entre os sindicalistas e socialistas não se havia previamente estabelecido qualquer acordo ou compromisso de luta. Não obstante, os socialistas, quer no Parlamento, quer no Governo, apressaram a decisão governamental. São ainda os socialistas que propõem a abertura dos trabalhos do Parque Eduardo VII, dos bairros da Ajuda e Arco do Cego, com o duplo fim de empregarem alguns milhares de trabalhadores e da produção de casas baratas para a população operária. Apesar disto, os trabalhadores apercebiam-se que os socialistas tinham em vista a reconstituição do seu antigo prestígio e não correspondiam aos seus apelos postos a circular através do seu órgão, «O Combate».

A burguesia utilizava o concurso dos socialistas como um elemento amortecedor entre si e o proletariado revolucionário. Mas era evidente que o limite das suas concepções estava à vista e os socialistas não tinham outra alternativa: ou seguir o proletariado revolucionário ou seguir a burguesia.

O futuro provou que a classe burguesa lhes era mais querida.

Em Junho de 1919, o Governo não pode dominar a crise que o final da guerra desencadeara sobre Portugal. A falta de equipamento industrial, o défice orçamental e a dificuldade da obtenção de crédito estrangeiro em condições favoráveis, opunha-se a qualquer programa da realização normalizadora. A especulação sobre produtos essenciais à vida atingiu proporções de cruzada anti-Nação. A par de tudo isto, os métodos repressivos do Governo não colidiam com os interesses dos grandes exploradores. Contudo, a solução da crise só seria encontrada pelo Governo se este se apoiasse nas massas populares, aplicando medidas que pusessem cobro às especulações, à escassa produção agrária. Mas o Governo era da burguesia mas não do povo...

Contra tudo isto se rebelava a classe operária com greves após greves. E o governo, para não deixar dúvidas de que defendia os interesses da classe capitalista, esmaga a greve dos ferroviários, em Junho, com o emprego do vagão fantasma. Iam decorridos 4 meses depois da escalada de Monsanto em que os trabalhadores derrotaram os monárquicos, em nome da República.

A atitude terrorista do Governo encarnecia mais a vontade de lutar dos trabalhadores. De resto, o custo de vida subia, subia sempre...

6

A Revolução Bolchevista havia criado muita simpatia entre os trabalhadores portugueses e alguns indivíduos mais radicais da pequena burguesia. Esta simpatia não tinha a determiná-la o conhecimento do marxismo. Eram também desconhecidas a estratégia e táctica do Partido de Lénine. Entretanto sabia-se que o proletariado russo esmagava a sua burguesia e se apoderava do poder político. Como é óbvio, reinava muita confusão acerca do maior acontecimento histórico na vida da humanidade. Sabia-se o significado etimológico da palavra bolchevique e ligava-se o sentido revolucionário dele à Revolução levada ao máximo.

Veremos adiante o que isto deu.

Em Setembro de 1919, havia-se já reconhecido a tendência para a criação de sindicatos únicos da indústria e das respectivas federações nacionais. Os arsenalistas, visto a sua situação especialmente na produção e ainda a circunstância de serem únicos no seu ramo e no país, debatiam o princípio de os seus sindicatos se equipararem às federações. Este novo conceito de organização implicava uma revisão da orgânica sindical.

A União Operária Nacional ia dar o passo à Confederação Geral dos Trabalhadores. A Confederação tornar-se-ia o centro onde, por escala crescente, iam ligar-se todos os compartimentos sindicais. Isto é: os sindicatos ligavam-se às suas respectivas Federações de indústria e, para efeitos de actividade local, às Uniões de Sindicatos. Estes últimos, em conjunto com as Federações, mandavam os seus representantes ao Conselho Federal, cuja composição incluía, também, os delegados dos sindicatos arsenalistas. O Conselho, por sua vez, escolhia o Comité Confederai, composto de 5 membros a quem competiria a responsabilidade diária do conjunto.

Efectivamente, o Congresso Nacional Sindical, reunido em Coimbra, em Setembro de 1919, aprovou a criação da Organização Confederal — C. G. T. — e confirmou a orientação sindical revolucionária. O jornal «A Batalha» apareceu após o Congresso, onde os socialistas se tinham feito representar.

O ano de 1919 foi um ano rico de acontecimentos, de organizações, de agitação e de lutas operárias. A conquista da jornada de 8 horas tem um especial relevo na história do Movimento Operário. Havia, então, muitos dirigentes operários e amigos das classes trabalhadoras que, através da sua experiência de luta, tinham sentido a necessidade de criar um instrumento revolucionário que pusesse o proletariado em condições de atrair a si todas as camadas exploradas da população. A Confederação mobilizava apenas as massas operárias. A luta política do proletariado contra o sistema capitalista precisava de abarcar horizontes mais largos. Só uma organização onde coubessem todos os indivíduos mais capazes da população explorada, com os operários à cabeça, podia efectivamente colocar a classe operária em condições de dirigir a luta até ao derrubamento da sociedade capitalista.

Foi esta verificação o ponto de partida para uma série de reuniões entre os militantes operários e vários indivíduos cujas ocupações não permitiam a sua sindicalização. Depois dum largo debate chegou-se à conclusão de que bolchevismo queria dizer: revolução levada ao máximo. Este conceito deu à luz a Federação Maximalista para onde, por fim, entraram, com raras excepções, todos os assistentes às reuniões. Estava-se no fim de 1919.

A Manuel Ribeiro, então o amigo mais entusiasta da revolução russa, foi atribuído o cargo de Secretário Geral da Federação e de Director da «Bandeira Vermelha», seu órgão na imprensa.

A actividade da Federação Maximalista quase se limitava à publicação da «Bandeira Vermelha». Entretanto, Manuel Ribeiro e os restantes colaboradores davam ao jornal uma feição combativa que chamava a atenção das massas contrárias ao sistema burguês. O apoio que prestava às lutas operárias, conduzidas pela C. G. T., era valiosíssimo, de acordo com as ideias sectárias da época. Mesmo assim, os militantes operários de tendência anarquista, porque o jornal procurasse aproximar-se das ideias da Revolução Russa, embora o fizesse confusamente, separaram-se da Federação.

Por altura de Outubro de 1920, os ferroviários declararam nova greve geral nacional. O objectivo que tinham em vista era o da melhoria económica e reformas. A greve arrasta-se durante muito tempo e António Granjo, ministro do Governo de então, reedita a façanha terrorista do emprego do «vagão fantasma». A greve é perdida. Manuel Ribeiro, na «Bandeira Vermelha», publica uma série de artigos contra o terrorismo governamental sobre os ferroviários, terminando por ser preso.

Com a prisão de Manuel Ribeiro cessa toda a actividade da Federação Maximalista. Dentro de pouco desapareceria para sempre.

Supunha-se ter dotado a classe operária dum instrumento político, com a Federação Maximalista. A verdade, porém, é que se estava longe de compreender como se devia levar a cabo esse empreendimento. Partira-se duma concepção ideal, do desconhecimento teórico do marxismo. A pretensão de aglutinar indivíduos de mentalidades e ideias heterogéneas como base de criação de um instrumento político e revolucionário da classe operária constituía um erro de premissa que revelava o oportunismo dos seus iniciadores. Entretanto, o acontecimento significava certo amadurecimento de ideias sobre a necessidade de um partido revolucionário nas mãos do proletariado. Mas, coisa curiosa, entre os indivíduos que debatiam a ideia havia muitos que não eram proletários. Isto era assim porque o proletariado português, devido às condições de atraso industrial do país, andava apegado à tradição da luta sindical e não tinha tomado ainda consciência da necessidade de transformar politicamente as condições da sua existência social.

Em princípios de 1921, a ideia da criação dum Partido revolucionário estava mais desenvolvida. De envolta com os proletários havia, agora, muitos indivíduos de profissões liberais que discutiam pelos cafés a possibilidade de criar um Partido. O não ter vingado a Federação Maximalista atribuia-se ao facto da sabotagem da C.G.T., prisão de Manuel Ribeiro e a uma inconsciência da maioria dos seus componentes.

Nascimento da Cunha, antigo anarquista, que mais tarde con- conviverá muito com «Abrilistas» e a quem o sidonismo tomara funcionário público, era um dos animadores da ideia. Foi ele quem, iludindo o controlo cegetista, fez inserir nas colunas da «Batalha», um artigo em que preconizava a formação do Partido Comunista. O caso tomou-se muito discutido e a C.G.T. fez imediatamente fogo contra a ideia. Mas, a despeito da discordância cegetista, promoveram-se várias reuniões no Sindicato dos Caixeiros e foi delas que saiu a resolução da constituição do Partido Comunista.

O Partido estabelece a sua sede na rua do Arco do Marquês de Alegrete, abre uma inscrição para filiados, que dentro em pouco atingia cerca de um milhar, e faz a sua apresentação em público por meio dum manifesto que rompe com um ataque à C.G.T. Este facto era o começo da resposta à campanha cegetista. A luta estava aberta e ia prolongar-se até ao desaparecimento da C.G.T. e do seu jornal «A Batalha».

O ano de 1921 é também um ano cheio de lutas operárias, de sabotagens e recontros com a força pública devido ao carácter agressivo que os trabalhadores põem na luta. Metalúrgicos, construção civil e ferroviários estão no primeiro plano. O custo de vida, nesta data, tinha aumentado muito.

No Partido Republicano Português deu-se uma crise. A sua influência nas massas, principalmente pequeno-burguesas, baixara muito. De sorte que a parte dos indivíduos mais liberais que o compunham sai dele e forma o Partido Radical. De resto, não era por falta de partidos políticos que a República era infeliz.

Também, logo após a formação do Partido Comunista, se dera uma cisão na Juventude Sindicalista, da qual resultou a criação da Juventude Comunista. José de Sousa, secretário da Juventude Sindicalista, encabeça essa cisão, aproveitando os elementos que o acompanham e outros, não jovens sindicalistas, que se lhe uniram, forma a Juventude Comunista.

Em 19 de Outubro de 1921, os «Radicais», com reaccionários metidos de permeio, lançam um golpe putchista. Machado dos Santos, Granjo, comandante Carlos da Maia e outros indivíduos são assassinados nas ruas da cidade de Lisboa ou no interior do Arsenal da Marinha. Disse-se que os assassinatos das individualidades referidas fora uma provocação dos monárquicos a fim de apressarem o descrédito da República e com isso contribuírem para um futuro golpe deles. Na verdade, os Radicais não tinham necessidade dos morticínios para fazerem triunfar o putche. O certo é que a reacção se uniu para os derrubar ao fim de um mês.

A facilidade com que os adversários dos democráticos provocavam e realizavam «Bernardas» dá bem a medida do estado de crise do regime liberal. O ambiente era bom, mas o proletariado é que não tinha consciência política nem os meios para o pôr a seu favor.

Entretanto, as greves económicas e políticas desenvolviam-se; como resultado desta intensa actividade o índice dos salários tinha-se aproximado mais do índice do custo de vida. O número de sindicatos e dos seus aderentes crescia.

O Partido Comunista iniciara a sua vida em guerra aberta com a C.G.T. O manifesto publicara os 21 pontos da I.C. e este era quase ou todo o seu apetrechamento teórico. Mesmo assim, não eram integralmente compreendidos, nem os que eram para cumprir se cumpriram. De resto, se o Partido surgira como uma necessidade política do proletariado, não é menos verdadeiro que um grande número de indivíduos da pequena burguesia, dos menos responsáveis mas mais astuciosamente maquiavélicos, pensava explorar o esforço da classe operária em seu benefício. Este objectivo foi que os trouxe à formação do Partido. Mais ainda, foi ele mesmo que determinou a sua acção de vanguarda na criação do Partido e que lhes assegurou, durante algum tempo, os principais cargos de direcção.

Porém o seu oportunismo interesseiro não tinha alicerce teórico nem de organização e por isso o terreno, embora fértil, não podia dar os frutos apetecidos.

O esquema de organização do Partido fora copiado dos Partidos da burguesia. Instituíra-se o Centro Comunista de Lisboa e Comissões de Freguesia. A acanhada vida do Partido estava no princípio quase toda limitada à cidade de Lisboa. Apenas num ponto ou outro do país existiam pontos de apoio nas mãos de indivíduos estranhos à classe operária.

Toda a vida de relações de organização do Partido estava subordinada ao referido esquema. Os métodos de acção quase não coincidiam com o interesse político do proletariado. Neste sentido, recomendava-se, sem instruções acertadas, a exploração do terreno sindical. Era nos cafés da cidade de Lisboa que o grosso da actividade do Partido se fazia. Directrizes e orientação geral, cultura revolucionária e preparação de quadros era tudo uma penúria. De resto, o sectarismo, o desconhecimento teórico e os próprios objectivos dos dirigentes do Partido ilustravam bem a podridão da primeira fase do movimento.

A adesão da Juventude ao Partido Comunista trouxera-lhe a base proletária de que estava carecido, a experiência da luta sindical e, até certo ponto, o controlo à sua orientação e actividade. Mas a formação da Juventude Comunista, que resultara da cisão, nas Juventudes Sindicalistas, fazia aumentar furiosamente os ataques da C.G.T. contra o Partido.

Esta campanha, entretanto, não obstava a que, principalmente, os militantes jovens interviessem nas discussões das Assembleias Sindicais e desassombradamente manifestassem nelas as suas ideias sobre as questões que ali se tratavam.

A Juventude Comunista, conquanto experiente e combativa, era sectária e não se havia podido libertar do seu oportunismo de esquerda. Não admira: o modo como se formara, o ambiente em que vivera, a sua origem e, sobretudo, a falta de elementos doutrinários impediam-na de se situar num terreno firme de organização juvenil marxista. Contudo, o seu ardor combativo e o seu espírito de classe chocavam-se com a inércia e o pequeno burguesismo direitista dos dirigentes do Partido. O facto não traduzia propriamente uma divergência de princípios, porquanto o que se registava era um conflito surdo sobre processos de actuação. Não se produzia, contudo, uma luta aberta entre jovens e membros do Partido, mas a pressão da juventude ia-se fazendo sentir no seio do Partido, através da consciência de classe que ela salientava nas suas manifestações de actividade exterior. Alguns jovens tinham entrado para o Partido e este facto, aos olhos dos «direitistas», parecia revelar o desejo, por parte da Juventude, de pôr o Partido ao serviço da classe operária integrando-a nas lutas desta. O certo é que tudo isto sucedia sem um plano previamente estabelecido pela Juventude, mas o facto tornava-se sintomático para os dirigentes do Partido. Aos poucos, muitos filiados, de começo muito entusiastas, abandonavam o Partido. Alguns dirigentes, vendo este abandono como um sintoma ameaçador das suas posições na direcção, abandonavam também os seus lugares.

Na verdade, o terreno que pisavam era-lhes resvaladiço. O ardor combativo e vivo sentimento de classe da Juventude irradiavam para dentro do Partido; o panorama agudo das querelas entre os partidos da burguesia no interior, a deflagração de nova crise económica a que se associava uma crise política, a agitação a que ela dava lugar e o contacto crescente com a literatura revolucionária dos Partidos de outros países indicavam que o Partido tinha de mudar de orientação e de processos. O seu rumo tinha de ser alterado.

A necessidade de imprensa do Partido e da Juventude era posta com extrema acuidade. A existência do Partido precisava de pulmões para respirar. Alem disso a campanha da C.G.T. não tinha abrandado e criara já muita confusão e hostilidade proletária contra o Partido. O Partido precisava de responder à C.G.T. e de esclarecer as massas operárias.

Para esse efeito, em fins de 1921, deu-se uma reunião conjunta das direcções do Partido e Juventude. Nessa reunião travou-se viva discussão se se devia editar somente o jornal do Partido ou o da Juventude.

Prevaleceu o critério do jovem António Monteiro contra o do jovem José de Sousa. Este defendia a opinião, até que se conseguissem fundos em abundância, de se publicar apenas o jornal do Partido. O seu critério baseava-se no interesse existente de manter regularmente a publicação dum jornal. Parecia-lhe impossível a aquisição de fundos para a simultânea publicação dos dois e, mais tarde, viu-se que a sua previsão era acertada.

Assentou-se, porém, na edição do «Comunista» pelo Partido e na do «Jovem Comunista» pela Juventude. As suas respectivas publicações vieram a público antes do fim do ano de 1921. José de Sousa, magoado por não ter visto a sua opinião corroborada pelos restantes dirigentes da Juventude e dado que a direcção do Partido se encontrava debilitada devido ao abandono de alguns dirigentes, entrou para o Comité Central do Partido que nessa data fora já recomposto.

O carácter direitista da direcção do Partido perdera-se com a recomposição. O antigo esquema de organização desapareceu. O Partido substituía-o. Agora era a ZONA que constituía a base do Partido.. O organismo imediatamente superior era o REGIONAL. O Comité Central estava no topo.

O Partido combinava, agora, melhor com a Juventude o trabalho de ligação com as massas. O centro de actividade comunista concentrava-se quase todo nos sindicatos. O Porto começa a desenvolver trabalho partidário. Os comunistas enfileiravam ao lado dos cegetistas nas lutas de rua e participavam em todas as manifestações públicas da classe operária. O Partido mandava representantes seus aos comícios operários.

O trabalho de organização da Juventude, com base em núcleos e com um escalão intermédio entre eles e o topo, desenvolvia-se num bom ritmo. O núcleo de Beato e Olivais constituía o seu melhor sector massivo.

A agitação juvenil em torno dos problemas palpitantes da mocidade fazia-se por meio de manifestos ostensivamente difundidos. Era uma juventude activa, cheia de entusiasmo e aguerrida. No dia 1 de Setembro de 1921, nas paredes dos prédios fabris e em muitas casas de habitação, em ruas muito concorridas, aparecem muitas centenas de cartazes alegóricos. Era o dia de consagração da Juventude Comunista Mundial. A Juventude Comunista de Portugal colaborava nessa jornada mundial plena de entusiasmo e de sentimentos revolucionários. Foi um dia de agitação memorável nas ruas e nas sedes dos organismos da Juventude.

O lado fraco de toda a vida juvenil, a sua instabilidade, viria à superfície mais adiante. Faltava-lhe uma base doutrinária, uma firme consciência marxista-leninista. Era uma obra sem alicerce.

Nos começos de 1922, o Partido e a Juventude haviam conseguido ligar com a Internacional Comunista e com a Internacional Comunista da Juventude, respectivamente. Após as démarches necessárias, seguem para Moscovo Caetano de Sousa, secretário político do Partido, e Pires Barreira, com cargo idêntico na Juventude. O facto constituía um acontecimento novo na vida do Partido. Parecia propiciar uma nova era na vida revolucionária do proletariado português que ia de modo efectivo travar conhecimento com os seus irmãos de todo o mundo, por intermédio do seu Partido de classe.

A C.G.T., não obstante a sua estruturação revolucionária baseada na «Carta de Amiens», continuava desligada do Movimento Sindical de além-fronteiras. Os princípios e fins que a moviam impediam-na de ajustar-se à orientação reformista da II Internacional. Entretanto, o Movimento Sindical Francês tinha-se deixado penetrar da ideologia reformista e perdido pouco a pouco as características que lhe haviam sido dadas no Congresso de Amiens de 1906. Em 1922 era a II Internacional que comandava o Movimento Sindical Francês.

Os princípios de Amiens pareciam estar em crise em toda a parte.

A Internacional Sindical Vermelha era para os sindicatos portugueses, nessa data, um farol cuja luz ainda não se projectava vivamente. A sua estrutura e finalidade revolucionária não estavam em causa mas a sua ligação e relações com a I.C. pareciam não concordar com a «pureza» dos fins para os quais se orientava o Movimento Operário Sindical Português. Porém, a absoluta necessidade de relações com o Mundo exterior Sindical opunha-se a quaisquer hesitantes considerações. Nestas circunstâncias, a C.G.T. resolveu enviar, também, um delegado seu a Moscovo ao Congresso da I. S. V. que se realizou em 1922. A escolha recaiu em Perfeito de Carvalho, operário gráfico, nessa data um dos principais redactores da «Batalha».

O ano de 1922 começara, para a classe operária, com um ano que oferecia perspectivas de grandes lutas. A C.G.T. tinha engrossado em número. Os seus triunfos no ano transacto fizeram aumentar o número de sindicatos. As greves parcelares recrudesceram de intensidade.

O custo de vida, porém, aumentava extraordinariamente. Pelos processos de batalha económica entre patrões e operários, era impossível os últimos levaram a melhor. As conquistas, neste terreno de actividade, produziam-se sem solução de continuidade. Quando o índice dos salários se aproximava do índice real do custo de vida, este escapava-se-lhe. O facto tinha semelhança com uma interminável corrida de velocidade em que o pelotão dianteiro não se deixa nunca ultrapassar, embora a técnica dos corredores lhe imponha, de vez em quando, um afrouxamento na marcha, para arrancarem sempre com mais ímpeto.

Razão tinha o velho militante sindical António Caldeira quando comparava o curso da carestia da vida com um automóvel e o aumento dos salários com um carro de bois. A imagem tem exagero na comparação de velocidade, mas o seu fundo era expressivo e condizia com a realidade.

Era impossível colher sólidas vantagens do esforço gigantesco que a classe operária produzia, persistindo na linha dos velhos métodos de luta indicados pela C. G. T.

A greve económica mantinha-se como uma ilusão; o nível de vida não melhorava nunca para as classes trabalhadoras. Era isto que era preciso considerar em primeiro lugar. Depois, agir, fazendo compreender às massas os fundamentos da sua acção e dos seus objectivos.

Esta batalha tinha de ser simultaneamente económica e política para que os resultados chegassem depressa. Ou os salários deviam subir até se equipararem com um padrão de vida rezoável, ou o preço do custo dos produtos devia baixar até ao limite dessa equiparação. Para levar a bom termo a campanha era indispensável atrair todos os explorados, inclusive os pequenos produtores cuja situação também se agravava dia a dia.

A C. G. T. mostrou que não estava capacitada para levar a cabo a tarefa enunciada atrás, em traços mais largos. Mais ainda: ela não compreenderia, caso o proletariado já se encontrasse politicamente instrumentado, a razão duma aliança política para aproveitamento da conjuntura.

Porque o custo de vida subia, as greves explodiam acompanhadas com todos os acessórios da época: sabotagens, recontros com os «amarelos», uma ou outra bomba à mistura, etc. Mas a situação real não melhorava para os trabalhadores. E na corrida de velocidade entre patrões e operários os primeiros iam sempre à frente, parecendo distanciarem-se cada vez mais.

Esta vantajosa situação não bastava à classe dos exploradores., Receavam enfraquecer e serem alcançados pelos perseguidores.

Também os antagonismos entre as camadas da burguesia tornavam-se, dia após dia, mais agudos. Estes patenteavam-se através dos grupos parlamentares, em permanentes pugnas entre si. Os frequentes «putches» do Partido Radical também denunciavam uma profunda ruptura entre a pequena e a grande burguesia. Tudo isto resultava numa instabilidade ministerial. Os ministérios sucediam-se com rapidez vertiginosa.

A reacção não dormia. O fascismo italiano tinha-lhe despertado a atenção. Era indubitável que a luta de classes, em Itália, tinha sido dominada. As greves e as querelas entre classes pareciam ter sido eliminadas.

A grande burguesia portuguesa tomara já consciência das suas dificuldades. Mas, por outro lado, dominava-a o sentimento da impossibilidade de impor a Portugal um regime autoritário. Por isso, ela se agarrava ao Partido Democrático como meio de salvação transitória, e o lançava cada vez mais pelo desfiladeiro do descrédito.

O Partido Democrático era o Partido da maioria parlamentar. O fundamento da sua existência era constitucional, o que devia forçar a reacção a verificar que tal partido lhe não proporcionaria inteira segurança. Entretanto era possível utilizá-lo numas acções excepcionais contra a classe operária. Lá estava a sua imprensa para forjar o ambiente de apoio às medidas consideradas de «emergência».

As prisões preventivas começaram a tomar um carácter de massas e de certa permanência. Criou-se um tribunal de excepção (Tribunal de Defesa Social) para julgamento de bombistas. O «lock-out» começou a ser empregue contra a classe operária por intermédio da Confederação Patronal, criada recentemente. Todo o aparelho repressivo do Estado foi reforçado e a sua acção começou a intensificar-se indo até à célebre aplicação da LEI DE FUGA, então muito usada em Espanha. As primeiras grandes vítimas da Confederação Patronal foram os operários da indústria de mobiliário, numa greve da indústria em Lisboa. À greve dos operários respondeu a Confederação Patronal com o «lock-out». O governo colocou-se ao lado dos patrões. Ao fim de 6 meses de luta encarniçada, e a despeito da solidariedade de outras classes, os mobiliários foram completamente esmagados.

Em Abril ou Maio de 1922, Caetano de Sousa e Pires Barreira, delegados do Partido e da Juventude Comunista, respectivamente, tinham voltado do IV Congresso da I.C. e I. J. C. e haviam sido encarregados do respectivo trabalho político nas suas organizações.

Tanto o primeiro como o segundo, iniciaram as suas tarefas com algumas conferências entre os filiados mais activistas. Nessas conferências foram colocadas e desenvolvidas as tarefas centrais do IV Congresso que consistiam rigorosamente na aplicação dos 21 pontos, refiliação partidária e transformação do esquema organizativo. Além de outras recomendações, tais como a questão da disciplina, os dois últimos pontos diziam respeito à S. P. I. C. A base da organização devia assentar na célula da empresa.

Estas conferências não tiveram projecção imediata no trabalho do Partido. Os elementos do Partido, com raras excepções, não eram elementos revolucionários honestos. A sua concepção partidária era baixíssima e arrivista. Havia de facto algumas dezenas de filiados que tinham amor ao Partido, mas esses eram anarquizantes.

O certo é que Caetano de Sousa era pouco simpático e para maior desgraça não pertencia à classe operária, pois era funcionário público. Houve membros do Partido que chegaram a malsiná-lo com várias expressões ridículas. O membro do Partido que mais se podia impôr à consideração dos restantes membros era José de Sousa mas este, nessa data, estava em Setúbal a trabalhar e havia deixado a direcção do Partido.

Caetano de Sousa fora também encarregada de reunir elementos com o fim de instituir um agrupamento de partidários da I. S. V. Na realidade, Caetano de Sousa desobrigou-se bem dessa tarefa pois, dentro de pouco, forma-se esse agrupamento (Partidários da I. S. V.). Pode dizer-se que, sob o ponto de vista prático, foi este o único trabalho comunista imediatamente produzido.

Até Março de 1924, o Partido ia entrar numa fase de verdadeira confusão, num perfeito caos. Cessara de publicar «O Comunista» e pela sua direcção passaram os indivíduos mais exóticos e bizarros, cuja definição política é impossível de dar-se. Caetano de Sousa ia sempre ao leme, calmo e resoluto como um obstinado.

Pires Barreira andava, desordenadamente, às voltas com os problemas da Juventude. Pires Barreira era engenheiro auxiliar mas não tinha experiência proletária. Houve-se tão bem do seu trabalho político, disciplinar e organizativo que, dentro de pouco, quase toda a juventude tomava a vanguarda do terrorismo operário à bomba e a tiro.

Lénine disse que a Juventude era a chama mais ardente... A Juventude portuguesa ia começar a ARDER.

Na realidade, em 1925, só havia cinzas dela.

Perfeito de Carvalho, que a C. G. T. enviara, nos começos de 1922, ao Congresso da I. S. V. como «mirones», voltara imediatamente fazendo alarde da sua conversão aos princípios comunistas.

A C. G. T. incumbira-o de fazer um informe circunstanciado a fim de com ele abrir, no Conselho de Delegados, uma discussão larga sobre a conveniência ou inconveniência de adesão do Movimento Sindical Português à I. S. V. Perfeito de Carvalho nega-se a fazê-lo, acrescentando que o faria somente de modo verbal perante o referido Conselho. O Conselho reúne-se e recusa a sua proposta, insistindo por que o fizesse... Em face de nova negativa, o Conselho demite-o do corpo redactorial de «A Batalha».

Perfeito de Carvalho volta a Moscovo mas é mal recebido. Não temos a certeza de quais foram os motivos que determinaram esse mau acolhimento. É possível que um deles tivesse sido o modo impolítico e negligente como interpretou o interesse da I. S. V. para com o Movimento Operário Português. O caso é que, de lá, veio para Paris, e tornou a Portugal a pedido dos Partidários da I. S. V., interessados em que ele se apresentasse no Congresso Nacional Operário que se efectuou na cidade da Covilhã, em 30 de Setembro de 1922.

7

O Congresso teve a duração de 3 dias.

As duas principais teses que lhe foram presentes eram: Organização Social Sindicalista e Relações Internacionais.

A primeira tese estabelecia as normas da sociedade futura, baseada no princípio da auto-suficiência do aparelho sindical para as questões da produção, distribuição e jurisdição. Isto e: todo o poder aos Sindicatos. A tese de Relações Internacionais preconizava a adesão à I. S. V.

Ora a I. S. V. preconizava uma aliança, na escala nacional, com o P. C. e, na escala mundial, com a I.C., na base do interesse comum do esmagamento do capitalismo.

Evidentemente, as duas teses estavam em conflito. Na aparência, visto o que cada uma delas fundamentava ser distinto, pareciam não se contradizerem mas, na essência que as revestia, eram antagónicas. Esta contradição não tinha sido vista pela maioria da Comissão Organizadora do Congresso, partidária da I. S. V., mas o mesmo não terá sucedido com os restantes componentes, que eram de tendência anarquizante.

No Congresso, a Comissão Organizadora assume funções de mesa relatora das teses e dá prioridade à tese de Organização Social Sindicalista. Esta é discutida e aprovada. A seguir entra em discussão a tese de Relações Internacionais. É nesta altura que Perfeito de Carvalho, sem ser congressista, pretende intervir na discussão, invocando a sua delegacia ao Congresso da I.S.V. e

portanto o seu superior conhecimento de causa. A maioria dos congressistas interrompe-o, exigindo-lhe o informe, enquanto ele afirmava que o tinha na cabeça. O Congresso resolve, no meio duma grande celeuma, expulsá-lo.

Antes deste incidente, já os partidários da I.S.V.. os que compunham a Mesa Relatora, se tinham apercebido da contradição das teses. Tinham visto até que muitos dos congressistas anarquizantes, que em Lisboa lhes haviam garantido a sua concordância com a tese, se tinham passado para o lado da Oposição, inclusivé os membros da Comissão Organizadora, afectos às ideias anarquizantes. Reconhecendo a sua falsa posição, a Mesa demite-se em pleno Congresso.

O resto da discussão decorreu tumultuária. Apareceu entretanto um congressista, Clemente Vieira dos Santos, representante dos gráficos do Porto, que envia para a mesa uma moção prévia «harmonizadora», cujo conteúdo revelava bem a manobra urdida pelos sindicalistas revolucionários acerca da ligação internacional do Movimento Sindical Português.

A moção prévia foi precedida de um esclarecimento sucinto sobre a razão que a justificava: o Congresso estava dividido. Era difícil, nessas condições, chegar a bom termo sobre a posição das relações internacionais da C.G.T.. O problema era delicado e qualquer decisão naquele momento corria o risco das resoluções precipitadas e, por isso mesmo, produzidas fora do seu tempo.

Sabia-se, como fora já informado por vários congressistas, que naquela altura se estava realizando, em Berlim, uma Conferência Internacional de Organizações Sindicais. Compunham-na delegados das Organizações Sindicais de vários países e era provável, concluía-se, que dessa Conferência saísse uma nova Organização Sindical Internacional. Embora se não conhecessem ainda a sua orientação e finalidades devia-se aguardar o seu desfecho a fim de, sem precipitações e com clara consciência das conveniências do Movimento Sindical Português, se escolher entre a I.S.V. e a Associação Internacional dos Trabalhadores que foi, finalmente, o nome que a Conferência de Berlim veio a dar ao seu Movimento.

O teor da moção prévia era ilustrado pela doutrina do referido esclarecimento e propunha um referendo sindical que devia ser respondido por cada um dos Sindicatos, depois de devidamente esclarecidos acerca dos princípios da futura A.I. dos Trabalhadores na base de: Moscovo ou Berlim?

Este documento pôs termo à questão e à celeuma que levantara. O Congresso terminara e, mais tarde, a maioria dos sindicatos pronunciou-se pela adesão à A.I. dos Trabalhadores.

Os Sindicatos revolucionários sairam-se bem do seu jogo. A sua manobra dera os resultados previstos. O modo como agiram esclarece e prova que eles conheciam a preparação da Conferência de. Berlim e as conclusões a que ia chegar. Disse-se, mais tarde, não se sabe com que fundamento, que a reunião de Berlim se precipitava por razões não estranhas à data da realização do Congresso Sindical Português. Pode-se aceitar esta versão, sem grande esforço, considerando as boas relações existentes entre a C.G.T., portuguesa e a C.N.T. espanhola e a Unidade Ibérica há muito preconizada por sindicalistas portugueses e espanhóis. De facto^ sob as considerações do sectarismo do Movimento Sindical espanhol, essa unidade não seria possível desde que a C.G.T. houvesse dado a sua adesão à I.S.V.

Pode, portanto, concluir-se que, não convindo à mentalidade sindical dos portugueses quaisquer relações com a II Internacional, a I.S.V., devido à sua importância revolucionária, era, de facto, para onde tendia o interesse da massa sindical portuguesa.

Ora, a esta tendência veio interpôr-se, finalmente, o aparecimento da A.I. dos Trabalhadores. Sem a criação deste organismo o desvio não se teria dado. A simpatia da massa sindical portuguesa pela Revolução Russa confundia-se com a própria I.S.V. A sua longa experiência de luta no terreno sindical, travada com a burguesia, indicava-lhe, embora de modo empírico, que havia necessidade de passar a um plano de formas de luta superiores. A orientação da I.S.V. propunha isso mesmo.

Como foi possível então desviar a inclinação das massas sindicais do interesse da adesão à I.S.V.? Houve várias razões. Mas as que de modo imediato agiram em favor de Berlim foram duas: a primeira, foi a exploração maquiavélica que os anarquistas faziam contra a Ditadura do Proletariado e a aliança que havia entre a I.C. e a I.S.V.; a segunda, deve-se à incapacidade e ao modo atrabiliário como os partidários da I.S.V. faziam a defesa da I.S.V.

A causa mais profunda residia na incapacidade do Partido Comunista; era pouca ou nenhuma a importância que deu ao problema.

Os anarquistas exultaram de contentamento com a adesão a Berlim. Berlim representava uma reacção pequeno-burguesa, infiltrada no Movimento Operário, contra a Revolução Soviética. Berlim significava a tradição da «Carta de Amiens», a influência nefasta do doutrinarismo anarquista no seio dos trabalhadores, através do Movimento Operário.

A A.I.T. definia-se como uma nova concepção sindical quando, no fundo, sob o ponto de vista da realidade objectiva, o que havia era somente uma alteração de nomes. Entre a concepção do Sindicalismo Revolucionário, com base na Carta de Amiens, e a concepção anarco-sindicalista de Berlim não há nenhuma diferença fundamental. Estão ambas tão intimamente ligadas, têm uma origem tão comum, que só diferenças de forma as poderão distinguir.

O período histórico em que se deu o aparecimento da A.I. dos Trabalhadores, o período mais laboriosamente intenso da consolidação do regime soviético na Rússia, pôs singularmente em foco a dialéctica do aparecimento do oportunismo da direita e do oportunismo de esquerda no seio da classe operária. Parecendo repelirem-se, pelo modo distinto como actuam, eles encontram-se na mesma síntese — mantendo as distâncias aparentes —: campanha contra a Pátria Socialista dos Trabalhadores, contra a I.C., I.S.V. e contra tudo e todos que se destinassem a apoiar a Revolução Russa.

Com uma C.G.T., agora anarco-sindicalista, as fronteiras entre o proletariado revolucionário e a burguesia, especialmente a pequena, definiam-se cada vez menos. Era fácil reconhecer um proletário pelas suas condições de vida económica, mas distingui-lo pela sua estrutura mental e política era quase impossível. Esta afirmação resulta do número de vezes sem conta que a classe operária apareceu comprometida em movimentos políticos putchistas, desde os liberais aos mais reaccionários, sem nunca ter tomado qualquer papel dirigente.

O Congresso Sindical da Covilhã reforçara o sectarismo da C.G.T. Era o aparecimento do Partido e dos partidários da I.S.V. que a compelia cada vez mais para essa situação. A sua linha oportunista continuava a determinar as suas directrizes.

Foi com todo este equipamento e sem um estudo retrospectivo à situação político-económica (que gerara, por um lado, as derrotas operárias anteriores e, por outro, um incremento de tensão política entre a burguesia e as restantes camadas) que a C.G.T. entrou em actividade no ano de 1923.

A população cegetista baixara muito. De 130.000 que era, em meados de 1922, não atingia agora mais de 90.000 associados. Este declínio devera-se às derrotas anteriores, ao aumento da repressão e, sobretudo, à descrença das massas na C.G.T.., As várias classes tinham saído duma fase ardorosa de lutas sem resultados solidamente proveitosos. A vida continuava-lhes difícil.

A vigilância e a repressão governamentais exerciam-se agora com mais dureza. As greves, por isso mesmo, eram mais severamente combatidas. Às dificuldades criadas pelo acinte governamental e patronal correspondia um aumento de terrorismo operário. Os grupos terroristas que mais se evidenciavam eram o da «Legião Vermelha» e o dos «Camartelos».

A experiência do «niilismo» russo, do «ravacholismo» francês e do «terrorismo de Barcelona» para nada servira à C.G.T. Conhe- ciam-se as causas do terrorismo em que a situação assentava, isto é, sabia-se que era uma consequência da debilidade da luta de massas que por si reflectia debilidade política. Mas nada: os dirigentes cegetistas, longe de tomarem uma posição contrária, estimulavam-no.

Esta situação, ao contrário de uma retirada em ordem, era a debandada geral, a liquidação pelo reconhecimento da impotência. A debilidade congénita de qualquer corrente de pensamento oportunista vem sempre à superfície nos momentos difíceis.

A derrocada do anarco-sindicalismo, em Portugal, começou em 1923.

1923 foi também um ano de agravamento de condições económicas das massas, de insucessos putchistas, de instabilidade ministerial, de acumulação de experiência política para a reacção.

Até Março de 1924, o Partido quase não dera sinal de vida. Fizera a refiliação partidária. O resto das tarefas passaram em claro.

José de Sousa voltara de Setúbal. Reentrara para a direcção do Partido. O seu dinamismo prático fazia de novo mexer o Partido. Reconhecera-se, e ele em primeiro lugar, que a falta da aplicação das tarefas do IV Congresso e, marcadamente, da orientação geral da I.C. poria em risco de exclusão a S.P.I.C. Nestas circunstâncias, o Partido promove, em 4 de Março, uma Conferência com o fim de reactivar a vida do Partido, pondo aí, como questão central, a aplicação prática de todas as tarefas gerais aprovadas pelo IV Congresso e particularmente as que se haviam acordado para a S.P.I.C. A Conferência decorreu num ambiente de franca cordialidade e chegou a termo com uma inteira unanimidade de vistas. Pode-se dizer que, se não fora a Conferência ter sido abandonada por dois dos conferencistas, nada fazia prever que dentro em pouco se daria uma cisão no Partido. Entretanto, a Conferência aprovou as tarefas.

Desde que Caetano de Sousa regressara do IV Congresso, a parte direitista do Partido não agiu partidariamente. Formara-se mesmo um grupo e não ocultava o facto. De vez em quando dava sinal de vida com críticas malévolas, nos seus pontos habituais de reunião (cafés) contra a direcção do Partido. A sua existência decorria monótona. Os componentes do grupo oposicionista estavam todos ao mesmo nível. Faltava-lhes um elemento destacado, com ascendência. Esse homem existia, estava também no Partido. Esse homem chamava-se Carlos Rates. Trataram de o procurar. Falaram-lhe. Por fim convenceram-no. O homem estava disposto. O chefe, o seu chefe incontestado, estava ali. E porque não o Chefe do Partido?

Foram todos à Conferência. A última questão da ordem dos trabalhos era a eleição do Comité Central do Partido. Aguardaram-na com paciência mantida a custo. O Comité Central foi votado, mas Carlos Rates não fora incluído.

Este cheque nos propósitos direitistas não podia ficar assim. Rates tinha de ser o Chefe do Partido.

Caetano de Sousa e José de Sousa foram politicamente inábeis, dentro da sua orientação oportunista de esquerda. Tinham entalado o Rates no meio deles e talvez tivessem evitado o rompimento.

Rates, pouco depois, provocava a cisão. A maioria do Partido estava com ele. Esta situação torna-se imediatamente conhecida da I.C. por meio dos dois grupos desavindos. A I.C. manda rapidamente um delegado seu a Portugal.

Uma vez em Portugal, Humbert-Droz, delegado da I.C., inicia a sua missão fazendo reunir, em separado, os dirigentes dos dois grupos em oposição. Ouve as razões de cada um dos grupos e decide-se pela entrega da Direcção do Partido ao grupo dos Ratistas. Esta solução, todavia, não implicava a exclusão do grupo Caetano de Sousa—José de Sousa. Pires Barreira, que com eles promoveu a Conferência, ficara, por proposta de Humbert-Droz, incluído na Direcção do grupo dos Ratistas.

A decisão do conflito não foi acertada. Era impossível chegar a uma conclusão justa com base nas concepções dos dois grupos. Um e outro comportavam desvios inconvenientes à formação dum Partido revolucionário, um Partido Comunista. O oportunismo dum e outro estava suficientemente denunciado através das suas respectivas condutas. Mas era evidente que a base vincadamente proletária acompanhava o grupo Caetano de Sousa—José de Sousa. Isto devia, nas circunstâncias daquela época, ser considerado como principal apoio duma decisão justa. Toda a juventude, a parte mais numerosa do Movimento Comunista Português, estava com Caetano de Sousa-José de Sousa.

O facto de se não ter avaliado este factor importante da decisão, ocasionou uma quase debandada geral dos elementos juvenis da sua Organização. É que estes não compreenderam que se entregasse a Direcção aos direitistas. A própria manobra de Humbert-Droz em colocar Pires Barreira, Secretário da Juventude, na Direcção do Partido não surtira o efeito previsto. Porque Pires Barreira, fiel ao seu oportunismo esquerdista, abandonara a direcção do Partido e viera reunir-se ao grupo de Caetano de Sousa—José de Sousa, de onde, efectivamente, nunca saíra, e começou a fazer causa comum com ele. Finalmente, Humbert-Droz não resolvera a questão, pelo contrário, agravara o conflito. Os dois grupos mantiveram-se: o de Caetano de Sousa—José de Sousa a restringir-se cada vez mais, devido à deserção dos jovens; e o dos Ratistas, o oficial, a mostrar crescentemente o seu oportunismo pequeno-burguês.

Nas circunstâncias existentes, afigura-se-nos que a resolução do problema do Partido tinha que vir do exterior e executada pelo exterior. Entregar a qualquer dos grupos ou aos dois grupos em conjunto, (embora na base das decisões^ instruções e conselhos por muito exactos que fossem) a tarefa dirigente de reconstituição do Partido que, na verdade, nunca existira como Partido revolucionário da classe operária, era um erro maior que os que se procurava resolver. Provou-se a seguir que a sanção de seis meses, aplicada a José de Sousa, e a exclusão de Caetano de Sousa e Pires Barreira, ordenada pela I.C., em virtude da indisciplina e não acatamento ao arranjo de Humbert-Droz, não melhorava a situação.

A Juventude, como Organização, desapareceu.

Só umas escassas dúzias de jovens, persuadidos da sua integridade comunista, ficaram fiéis à tradição — uns dentro do Partido e outros fora dele, lançados na mesma desorientação de actividades da época. Rates e a sua gente cavavam cada vez mais a separação entre as massas operárias e o Partido.

Humbert-Droz, efectivamente, verificara que o Partido, até à sua chegada, nada ou quase nada fizera no sentido de normalizara situação de acordo com o que ficara tratado no IV Congresso; que os seus erros se haviam acumulado e que o sectarismo dos seus dirigentes, principalmente, tinha o Partido quase bloqueado. Tudo isto era verdadeiro. Em funda análise podia concluir-se que, praticamente o Partido não existia. Mas que espécie de contribuição tinham dado os Ratistas ao Partido para evitar o seu descalabro? Nenhuma. Eles tinham contribuído, em certa medida, com as suas intrigas, à mesa do café, e depois com a cisão para o seu aniquilamento. Havia, portanto, alguma razão que impusesse os Ratistas? Nenhuma. As promessas que os Ratistas fizeram a Humbert-Droz constituíram uma garantia futura de que o Partido ia entrar nos eixos? Impossível de ser considerado.

Só Humbert-Droz, oportunista de direita, podia concluir o impossível: que a existência e a linha justa do Partido ficavam asseguradas pelos Ratistas.

A I.C. teria podido resolver a situação do Partido nessa data? Cremos que sim, se o delegado que cá mandou fosse, de facto, um camarada politicamente justo.

Afigura-se-nos que o que havia a fazer era um estudo sobre os indivíduos cuja origem e consciência proletária fosse susceptível de reeducação. Isto era elementar. Com base neles reorganizar o Partido e assegurar a sua Direcção com um elemento que a própria I.C. para cá destacasse. A continuidade deste trabalho assegurar-se-ia com o envio dum número possível de camaradas para a escola política.

E deste modo ter-se-ia construído uma barreira contra a qual se deviam desfazer todos os oportunistas quer de esquerda, quer de direita, e nunca desvios essenciais de linha política se teriam verificado no Partido. As condições do meio eram más; mas não eram intransponíveis nem a sua invocação poderia constituir um argumento contra a tese que apresentamos.

A Carlos Rates foi entregue a responsabilidade do Partido nos começos do verão de 1924. Pouco depois marchou para Moscovo. Logo que de lá voltou, realizou uma conferência pública no Sindicato dos Arsenalistas do Exército. O maior número de assistentes era dos arsenalistas e de elementos da pequena burguesia, especialmente convidados para aquele efeito.

A conferência nem de perto abordava os problemas do Partido daquela época. Foi uma conferência de exaltação ao regime soviético e, particularmente, da grande personalidade de Lénine. A assistência ficou bem impressionada porque Rates falara bem...

O «Comunista» publicava-se agora com regularidade. A questão camponesa trazia o Rates apaixonado. Publicavam-se teses que um futuro Congresso do Partido devia discutir e aprovar, ou não, como é das normas democráticas. Não nos recorda nada da doutrina delas. A nossa curiosidade a esse respeito será um dia satisfeita quando nos for possível utilizar as colecções da Biblioteca Nacional, lugar onde se encontram os «Comunistas» desse tempo.

A questão colonial também chamara a atenção de Rates. Estava em discussão no Comité Central do Partido quando Humbert-Droz, pela segunda vez, veio a Portugal. Rates elaborara uma tese que preconizava a venda das Colónias Portuguesas a fim de, com o seu produto, promover o fomento da agricultura e comércio de Portugal. Embora as Colónias Portuguesas não lhe interessassem, pessoalmente, Humbert-Droz aconselhou Rates a não fazer a sua «liquidação» e a rever a sua tese que, por fim, se publicou sem a preconização da almoeda.

Rates e Droz formavam um duo irresponsável e grotesco. Com uma acertada vigilância de classe não era difícil fixá-los como oportunistas sem vergonha. É forçoso admitir-se que a I.C. ignorava esta cambada.

Rates continuava no Partido apesar de tudo. Em 1925, porque a imprensa procura confundir o Partido com a «Legião Vermelha», Rates publica no «Comunista» uma nota, no qual o Partido afirmava a sua orientação anti-terrorista. Era o primeiro e único acto que Rates produziu de utilidade para o Partido e o que, pela sua essência, correspondia a uma manifestação séria e táctica do Partido. É porém duvidoso que tivesse sido esse o sentido que Rates lhe deu. Pelo menos, do Comité Central não podia ter saído a inspiração porque havia lá quem simpatizasse com o terrorismo. Rates era um elemento conhecidíssimo nos meios operários. Tinha sido um dos dirigentes mais destacados do Movimento Sindical, no Alentejo. Rates era um indivíduo estudioso. Tornara-se, por isso, um intelectual operário, conforme a classificação da época. Este facto grangeara-lhe muita simpatia e até admiração entre as massas operárias e, particularmente, no meio de muita gente das camadas médias e pequenas da burguesia. Contudo, a perda de contacto com as massas durante muitos anos e as suas modernas ideias, contrárias às da C. G. T., alienaram-lhe a amizade de outrora nos meios proletários.

Era para os sectores da pequena e média burguesia que ele devia convergir com a sua política, arrastando consigo o Partido. Neste sentido, o seu dinamismo era grande. Servia-se das simpatias que no país tinha nos sectores da burguesia e construiu, por intermédio delas, alguns pontos de apoio para a vida do Partido. A actividade organizativa de Rates em breve devia mostrar o sentido oportunista que a fundamentava.

A Esquerda Democrática, da qual noutra altura falaremos, tinha estado no Poder e caíra de pê, como então se dizia. A simpatia de que esse agrupamento político gozava no seio das camadas médias e pequeno-burguesas era grande. A campanha que aquele agrupamento realizava com vistas às eleições que se efectuaram no final do ano de 1925 era intensa e parecia, em análise superficial, agourar o fim do prestígio do Partido Democrático e, conseguintemente, o seu desaparecimento como partido de maioria parlamentar.

Rates teria encarado, decerto, a situação como excelente para pôr o Partido Comunista em destaque na política portuguesa. Teria avaliado o destino imediato da situação política do país em função duma ligação do Partido com a Esquerda Democrática. O que a reacção tramava, as suas possibilidades intrínsecas e a passividade política da C. G. T., com a qual o Partido estava em guerra aberta, não tinham sido apreciadas e portanto não poderiam ser avaliadas.

Com efeito, o Partido aparece ligado com a «Esquerda Democrática» para fins eleitorais. Rates tinha uma confiança ilimitada na acção eleitoral do Partido: não contava o Partido com milhares de funcionários públicos em Lisboa, com os pontos de apoio espalhados pela província e, sobretudo, com o valor e efeito mobilizador das suas teses sobre a Agricultura e Colónias que o Congresso do Partido, realizado pouco antes, aprovara com entusiasmo e confiança inexcedíveis? Com certeza o plano era infalível. Os 8 candidatos que o Partido reunira à lista dos candidatos da Esquerda Democrática dentro de pouco estariam em S. Bento, em passo solene e altivo, cantando a Internacional para maior glória do Carlos Rates. Os nomes de Cabecinha, empregado comercial, Tavares dos Santos, arsenalista, Pereira Quartel, antigo trabalhador agrícola alentejano, etc., eram, por fim, uma garantia de que o plano estava bem traçado, e que a falta de um ou outro retoque não podia alterar o resultado previsto.

Além de mais, o grupo Caetano de Sousa, José de Sousa, António Monteiro não o hostilizava. O grupo estava desfeito; e o próprio José de Sousa, cujo castigo havia terminado, auxiliara a campanha eleitoral do Partido, receoso de que o acusassem de sabotagem, tendo-se entretanto negado à inclusão do seu nome numa lista eleitoral pela cidade do Porto.

As eleições, as últimas do regime liberal, realizaram-se. Mas o Partido não conseguiu fazer vingar uma única candidatura. A Esquerda Democrática aproveitara os votos do Partido mas não se dispôs a conceder-lhe, ao menos, um lugar no Parlamento.

O choque abalara o Rates e, com ele, o Partido, profundamente. A par disto, a reacção dava mostras de insatisfação. Havia indícios de que as coisas iam por mau caminho. Rates não estava para cair numa situação bicuda, caso a reacção viesse a dar um golpe triunfante. O mesmo pressentimento dominava os espíritos de muitos dos seus admiradores e seguidores. A debandada começara. A obra de Humbert-Droz começara a desconjuntar-se.

Rates, para se conformar com as exigências do Partido, tinha abandonado a Maçonaria. E, como estava estabelecido, tornou pública a sua demissão. Mas agora que a vida lhe corria mal, que a existência do Partido se tinha anquilosado devido ao insucesso eleitoral e que as perspectivas políticas do país eram ameaçadoras para quem fosse comunista, não tinha a mesma disposição para o sacrifício.

Um dos 21 pontos em que deviam estruturar-se as secções da I.C. tornava incompatível a filiação no Partido de indivíduos que escrevessem em jornais burgueses. Ora, Rates não podia conciliar esta exigência com as suas necessidades de vida cómoda. Recebera um convite do «Século» para o seu corpo redactorial com a oferta (?) de mil escudos mensais. Era tentadora a oferta; não se podia desprezar. O Partido não valia mais esse «sacrifício». Abandonou o Partido, em fins de 1925. Comentários, para quê?

Até Março de 1927, o Partido não tem história. A gente de Rates foi quem lá ficou. Nascimento da Cunha intitulara-se o pai do Partido e por isso lá ficara até que o «filho» teve o primeiro arremedo de emancipação e entendeu não precisar mais de si e do seu «auxílio», dispensando-o.

As recomposições da Direcção foram frequentes, em família e sem ruídos. A I.C. mandava cá de vez em quando delegados seus. Mas o problema ficava insolúvel. O Partido não melhorava e, portanto, não andava para diante.

Não seria Humbert-Droz que a I.C. manteria, embora cá não tivesse voltado depois de 1925, com as mãos sobre a questão do Partido Português? O modo como as coisas decorriam, isto é, a falta de uma solução justa para o Partido parecem indicar que era ele quem efectivamente manobrava, ou então havia mais Humbert-Droz ao serviço da I.C..,

8

Nos começos de 1924, já se falava em Portugal correntemente do fascismo. As violências e atropelos deste regime ecoavam nas massas por intermédio da imprensa operária e de um ou outro jornal da esquerda liberal. Havia o sentimento de que se tratava dum regime monstro, a avaliar pela sua agressividade; mas sobre as causas da sua vinda e as suas perspectivas não se adiantava nada. Este estado de ignorância dava a medida da insuficiência dos dirigentes operários nas questões de análise política sobre a evolução da sociedade capitalista da época.

A subida de Mussolini ao Poder, em 1921, e a de Primo de Rivera, em 1923, a primeira pouco depois da greve insurreccional que culminou com a tomada das fábricas em Itália, a segunda sob o pretexto da guerra de Marrocos, apesar da sua aparência divergente mostravam-se idênticas na acção repressiva contra o Movimento Operário. Com efeito, a orientação dada por Mussolini à política do capitalismo italiano era diferente da que Rivera dava à defesa da grande burguesia espanhola. Mas esta dissemelhança não significava que, quer a um, quer a outro, não animasse o mesmo fim: proteger e consolidar a dominação económica e política do capitalismo.

A burguesia portuguesa, antes da Itália e da Espanha, havia tentado o mesmo objectivo com o sidonismo. Na verdade, não lhe fora possível, então, conciliar as divergências entre os seus compartimentos de economia de modo a obterem unanimidade de vistas sobre a importância política do sidonismo.

O sidonismo remara no «bom sentido», mas não pôde convencer a burguesia das vantagens da sua união. Foi essa debilidade, e não o desaparecimento de Sidónio, que fez fracassar o regime.

Sidónio não pôde forjar uma teoria, mas deixou elementos. O abalo da guerra criara dificuldades à burguesia portuguesa, mas não fora suficientemente forte, não a ameaçara profundamente. Ao sidonismo também faltara esta causa que, mais do que nada, gera o sentimento do receio profundo da perda irreparável e determina por si o instinto de unidade dos interessados em evitá-la.

Porém, em 1924, a grande burguesia, conquanto dividida ainda tomara já melhor conta de si. Os ensaios de Mussolini, a feroz repressão das classes trabalhadoras por Primo de Rivera e os seu efeitos encorajavam-na.

A burguesia nacional, fraca e tacanha de concepções, nunca enveredara por uma política de desenvolvimento do país que permitisse resolver alguns dos principais problemas das massas populares.

Encontrara, quando começou a ter algum desenvolvimento, a melhores possibilidades económicas ocupadas por estrangeiros, de quem na realidade se sentia dependente.

Daí que a situação semi-colonial do nosso país ajudasse também a criar na burguesia a certeza de que nunca resolveria os problema, fundamentais do nosso Povo.

A situação de Portugal como país semi-colonial, devido à influência dos capitais estrangeiros que convergiam para ramos de exploração que não adiantavam nada a solução do nosso problema de emancipação, complicava também a existência da burguesia portuguesa. Mas os problemas existiam e havia que iludi-os, evitar pela astúcia e violência política os seus efeitos, nefastos para a sua existência no conceito das massas. Tudo isto significava para a burguesia a necessidade de sair de uma situação que, dia após dia mais agravava a sua existência de classe dominante.

A Confederação Patronal improvisada para combater as greve com o «lock-out», tinha desaparecido praticamente com o apunhalamento do seu presidente, Sérgio Príncipe, no meio do ano de 1923 A estreiteza dos seus objectivos e a táctica terrorista que empregou convieram à burguesia mas não era, enfim, o instrumento capaz de reunir e levar a cabo as tarefas essenciais de domínio necessário ao capitalismo. Essa principal deficiência começara a ser preenchida pela União dos Interesses Económicos com Pereira da Rosa à sua frente e a Cruzada Nuno Álvares Pereira, cóio reaccionário onde pontificavam os grandes lavradores chefiados por Martinho Nobre de Melo. Estes dois organismos representavam, de facto, interesses distintos: o primeiro defendia os interesses duma parte da indústria e grande comércio, e o segundo os dos proprietários agrícolas. Porém o modo político como tratavam os problemas nas suas respectivas organizações e como os ventilavam através da imprensa, denunciavam já o afloramento dum certo encontro de opiniões no sentido duma possível compreensão e acção política em conjunto.

Efectivamente, o corolário desta actividade orgânica e jornalística mostrava a sua evidência no Parlamento através da acção do grupo Cunha Leal e de Cancela de Abreu (monárquico).

O Partido Democrático, o partido da maioria e campeão da demagogia, era, a despeito da actividade reaccionária dos outro agrupamentos, o centro e o mais forte esteio de apoio da grande burguesia. Os agentes desta haviam-se instalado nele nos princípios da sua existência e mais largamente logo que o seu triunfo político se tornou um facto, em 1910. Desde essa data, o Partido Democrático fora sempre o instrumento, a arma mais poderosa, contra os interesses do proletariado. Conquanto a sua estruturação liberal tivesse servido os interesses da grande burguesia até essa data, era agora a causa que, de certo modo, se opunha ao desenvolvimento da reacção capitalista. A confirmarem o facto, lá estavam os agrupamentos reaccionários no Parlamento, a imprensa capitalista e os organismos de Pereira da Rosa e Martinho Nobre de Melo a empurrarem cada vez mais para o abismo os fundamentos liberais do Partido Democrático.

Não havia, então, qualquer manifestação da classe operária, quer pacífica, quer violenta, que não fosse imediatamente atacada nos jornais e no Parlamento. A par desses ataques, exigiam-se do Governo medidas excepcionais de repressão. O governo não hesitava. A constituição era cada vez mais esfarrapada, ia caindo aos bocados. Prisões em massa, agressões e assassinatos e prisões preventivas, tudo isto era fielmente copiado do cruel e bandoleiresco programa de repressão de Primo de Rivera.

A imprensa e os deputados reaccionários exultavam de satisfação sempre que a dureza e as barbaridades do Governo tinham lugar. O papel do Partido Democrático, como instrumento das forças da reacção, só se devia esgotar em 28 de Maio de 1926. Até lá ainda havia muito que espremer...

Como já foi referido, a C.G.T. perdera muito da sua importância mobilizadora de massas e as greves, conquanto a situação económica dos trabalhadores se agravasse, encontravam agora uma maior resistência da parte dos patrões e da repressão estatal. O terrorismo operário (apesar da experiência de outros países o contra-indicar entre nós) era agora a arma com que se procurava suprir as contrariedades que se opunham ao êxito das reclamações económicas e reivindicações de outras espécies da classe operária. O proletariado, sem um Partido revolucionário que o dirigisse, e com uma C.G.T. à beira da falência, era um corpo sem espírito, um agregado sem vista e sem vontade. O recurso à bomba e ao atentado pessoal constituía uma reacção que, pela sua natureza contraproducente, mais encarniçava a reacção. A descrença era maior.

Os partidários da I.S.V. não levavam, concretamente, aos sindicatos ideias que despertassem a consciência da Classe Operária, que a encaminhassem no sentido de abandonar os velhos processos de luta e de buscar uma saída para o seu futuro por uma actuação política da colaboração, em proveito das massas, com organizações da pequena burguesia. Havia necessidade de enfrentar a situação.

Mas a C.G.T. era incapaz de fazer uma viragem adaptada às circunstâncias. Os partidários da I.S.V. manifestaram a mesma incapacidade.

Na realidade, a C.G.T. chegou a agitar a necessidade de uma frente de Unidade Sindical com o Partido Comunista contra o fascismo em começos de 1924. Para esse efeito, houve uma reunião semi-legal entre militantes da C.G.T. e do P.C.. A C.G.T. preconizava o Comité Confederai como centro dirigente dessa unidade. Foi a única reunião efectuada para tal fim e terminou pior do que começara. Efectivamente, pretender ter um aliado sem lhe consignar o direito de decidir sobre o interesse comum, só aos dirigentes da C.G.T. tal absurdo lembraria. De resto, a C.G.T. estava longe de conhecer a situação. O perigo avançava mas não era pressentido por si e, dum modo geral, por todos os sectores das várias correntes de pensamento, desde as operárias às da média burguesia. Nem uma justa consciência do perigo existia. Havia, sim, entre as correntes operárias, o receio de serem «comidas» umas pelas outras. Era este receio que, pelos tempos fora, continuaria a ser o centro das suas actividades políticas.

A tese de Organização Social Sindicalista, aprovada no Congresso da Covilhã, consubstanciava a forma de organização social para depois do esmagamento da sociedade burguesa e capitalista. Os técnicos deviam ser incorporados na nova orgânica social e, dum modo geral, todos os que quisessem pôr-se do lado do proletariado. Para esse fim, era indispensável começar o seu enquadramento na organização cegetista, como consumidores, por intermédio de um organismo-base. Deste modo, o sindicalismo como concepção de organização social dispensaria uma aliança política com qualquer Partido do proletariado revolucionário e a limitação corporativista dos objectivos sindicais desaparecia para sempre. A solução da auto-suficiência do sindicalismo tinha sido achada e o que havia a fazer era agir. Que importavam as contradições entre a concepção inicial e as realidades objectivas? Embora o espírito que presidira à formação dos sindicatos fosse de impossível transformação, não era verdade que o condimento do pequeno-burguesismo anarquista bastaria para suprir as suas próprias dificuldades intrínsecas com o enxerto que lhe fizera? Era um produto híbrido, na verdade, mas assim a Classe Operária tinha uma coisa sua ou, pelo menos, tinha disso a ilusão. E, demais, o proletariado português não estava só. Tinha a A.I. dos Trabalhadores que, pela «pureza» dos princípios, era um auxiliar de extraordinária importância.

Ora, em Julho de 1924, realiza-se uma Conferência destinada a pronunciar-se sobre a criação dos referidos organismos-base que deviam permitir a entrada de técnicos, etc., nas Câmaras Sindicais (Uniões de Sindicatos) e destas no Conselho Confederai. Estes organismos foram aprovados e tomaram o nome de Juntas Sindicais. Antes da Conferência, a questão foi tratada nos sindicatos. O facto prestou-se para uma rude luta de tendências entre partidários da I.S.V. e cegetistas. Os partidários da I.S.V. defendiam o princípio de que a Organização Sindical era exclusivamente operária e combatiam a introdução de elementos estranhos, por intermédio das Juntas; meses depois, os partidários da I.S.V. provocaram uma cisão na C.G.T., abandonando-a. Era tão grave a situação da C.G.T. que os partidários supuseram eliminá-la ou, pelo menos, torná-la moribunda com a supressão do pagamento à C.G.T. das cotas correspondentes aos associados dos seus Sindicatos.

Cometeram um duplo erro: previram mal, porque a C.G.T. continuava a existir, e dividiram o proletariado, o que era um crime... A reacção tinha o caminho cada vez mais desimpedido...

O ano de 1924 foi o ano das cisões. José Domingues dos Santos tinha também promovido uma cisão no Partido Democrático. Com ele vieram algumas dezenas de deputados. Desta cisão resultou a formação dum novo agrupamento político, intitulado «Esquerda Democrática». Em Dezembro de 1924, após um debate parlamentar agitado, sobre qualquer questão que não recordamos, pôs-se a questão de confiança no Governo dos democráticos e este foi derrotado., O Presidente da República, em seguida, incumbiu José Domingues dos Santos de organizar ministério. A Câmara, por uma questão de «coerência política» dos reaccionários, aceitou o gabinete de José Domingues dos Santos, formado com gente do seu agrupamento. As primeiras declarações públicas de José Domingues dos Santos exprimiam claramente o desejo de levar a cabo uma política que concordasse plenamente com o programa de realizações imediatas da Esquerda Democrática. Fundamentalmente, esse programa beneficiava a pequena e média-burguesia e previa algumas reformas que interessavam à Classe Operária. Tais declarações não agradaram aos reaccionários da grande burguesia, os quais aguardariam o mais pequeno pretexto para, parlamentarmente, darem o xeque-mate ao Governo, recompondo-se a reacção da anterior atitude da qual havia resultado a queda do governo dos democráticos. Certa estava a reacção de que a sua manobra anterior não lhe trazia prejuízos irreparáveis e que o «radicalismo» da acção governativa de José Domingues dos Santos lhe daria motivo para uma especulação útil aos seus fins. A reacção não se enganou nos cálculos, tanto mais que devia ter contado com a incapacidade política de proletariado que a este não dava a mais pequena margem para uma exploração de oportunidade tão excelente.

José Domingues dos Santos, apoiado na Constituição, libertou os presos condenados pelo Tribunal de Defesa Social, instituição Anti-constitucional, cuja criação pertencia ao Partido Democrático. Promulgou uma amnistia para os presos radicais do «putche» de Novembro último e pôs na direcção da Polícia de Segurança do Estado gente da sua confiança. Estas medidas grangearam-lhe uma grande simpatia popular. Mas a última medida constituía apenas uma gota caída no grande oceano da reacção. Os cargos da direcção militar e policial, burocracia responsável, etc., continuavam e estiveram sempre nas mãos dos elementos reaccionários. Era de prever que o Parlamento não asseguraria por muito tempo a existência do seu governo. Porém, José Domingues dos Santos reconhecia a sua dificuldade parlamentar. Tal situação indicava-lhe que só revolucionariamente podia chegar ao termo do plano da sua viagem. O Parlamento teria de ser encerrado e as futuras eleições deviam realizar-se depois de pulverizada a máquina caciqueira do Partido Democrático. Isto era essencial para o bom êxito da sua missão govemativa. Mas para levar a cabo tal empreendimento, precisava de apoio popular decidido e efectivo e da comparticipação de todos os elementos liberais do Exército.

Entretanto, José Domingues dos Santos e a sua gente pertenciam à camada pequeno-burguesa e a falta de domínio e segurança, espírito de organização e vacilações que lhe são características tinham de vir à superfície. Sobretudo, a falta de decisão rápida e bem dirigida foi o que mais assinalou a existência do seu governo de três meses. Estava escrito que qualquer medida que, mais ou menos profundamente, afectasse os interesses da classe capitalista não vingaria no Parlamento.

Ora, o Governo (que não começou por onde devia ter começado, afastando do seu caminho todas as dificuldades que tolhessem o passo ao seu plano de realizações) apresenta ao Parlamento um decreto de estabelecimento duma Caixa de auxílio do Estado aos pequenos e médios produtores. Caixa de Conversão lhe chamava o decreto. O funcionamento desta caixa tinha o prazo fixo de duração de cinco anos. Os capitais que a formavam seriam constituídos por um aumento de circulação fiduciária, emitido sob a responsabilidade do Parlamento. Logo que retornassem à Caixa, seriam inutilizados. Claro que estas medidas e outras em perspectiva tinham o efeito de contrariar e prejudicar a exploração dos bancos, grande comércio, grande lavoura e grande indústria. Por conseguinte, estavam destinadas a marcar o limite máximo da tolerância da maioria do Parlamento e fora dele, se fosse necessário. Nesta altura em que a tensão já era grande, deram-se duas imprudências: numa grande manifestação popular nocturna ao governo há uma bomba que é lançada contra a Guarda Republicana quando esta, provocadoramente, se opunha à passagem da referida manifestação, na Rua do Comércio, em direcção ao Terreiro do Paço. A Guarda disparou sobre os manifestantes, houve correrias e, por fim, muitos dos manifestantes, depois de restabelecidos do pânico, conseguem chegar em frente do Ministério do Interior, onde José Domingues dos Santos discursa e garante que vai tomar providências, afirmando que as armas da Guarda Republicana não existiam para espingardear o povo. Que o primeiro facto tivesse acontecido, estava bem, o governo não tinha responsabilidade directa — declarada a oposição no Parlamento, mas que o chefe do Governo pretendesse absolver o povo, atirando as responsabilidades do sucedido para cima dos encarregados da manutenção da ordem é que era absurdo e intolerável — gritava a reacção no Parlamento, com a sua imprensa a fazer coro. Este foi o pretexto que a reacção utilizou para pôr fim à existência do Governo.

A Esquerda Democrática tinha sido posta à prova. Caíra de pé — dizia-se. Mas o inegável do facto é que nada de útil, politicamente, fora capaz de afirmar que constituísse uma garantia impeditiva do avanço da reacção. Fora esta, pelo contrário, quem colheu a lição pelo recurso a um golpe de força, com base no Exército.

Efectivamente, a primeira reacção armada deu-se cerca de dois meses após a queda do governo de José Domingues dos Santos, em 18 de Abril de 1925. Os reaccionários foram derrotados pelas forças governamentais, apoiadas no povo. Sucede que o esmagamento da reacção só na aparência existiu. Os prisioneiros da aventura putchista foram enviados para prisões confortáveis. O regime e as facilidades que nelas desfrutavam eram parecidas com as que dispunham em liberdade. Parecia que o Governo tivera a preocupação única de os salvar da ira popular e que, passada ela, seriam restituídos à sua vida normal. De facto, assim aconteceu. Meses depois, o Tribunal da Sala do Risco absolveu-os.

O que significava esta criminosa actuação governamental para com os inimigos do Povo? Por outro lado, que queria dizer a prisão de 46 militantes operários, efectuadas no dia imediato ao da liquidação do putche e a sua deportação para a África 10 dias após, sem qualquer interrogatório, processo ou inculpabilidade sumária? O primeiro exame revelaria que o governo agira contra os reaccionários sob a pressão dos liberais e do povo e que no dia seguinte, iludindo a vigilância dessas forças e mentindo sem pudor, protegia a reacção e atacava a classe operária com a deportação dos seus filhos sob o labéu de terroristas e criminosos vulgares.

Como era tudo isso possível? Sem dúvida porque a reacção se havia infiltrado por toda a parte e tinha nas mãos todas as alavancas da repressão. O Partido Democrático estava agora reduzido ao papel de gendarme do povo, ao serviço da reacção. Só a covardia e a indecisão dos reaccionários, em 18 de Abril, podiam, mais que quaisquer outros factores, explicar o não terem triunfado completamente.

Entretanto, com condições tão favoráveis, a reacção tinha o futuro assegurado, a partida estava ganha.

Era evidente que o fascismo, que o povo conseguira desmoralizar em 18 de Abril, recobraria em breve o ânimo abatido. Que disposições tomava a C.G.T e todos os restantes organismos operários para o enfrentar? Não se perdera, com efeito, uma oportunidade excelente para o submeter e asfixiar no casulo quando a Esquerda Democrática esteve no Poder? Não indicaria nessa data a situação política a necessidade duma frente unida operária que por si se tornasse um baluarte de resistência independente antifascista e de apoio e impulso à acção progressista do Governo de José Domingues dos Santos? Isto não se fez, embora fosse viável, com a condição do sectarismo dos dirigentes operários não se lhe ter interposto. Com efeito, as duas colossais manifestações populares que foram feitas ao Governo de José Domingues dos Santos, por espontânea iniciativa das massas, não encontraram eco nas organizações operárias. Os três meses de actividade governativa da Esquerda Democrática deram muito tempo para uma improvisação de acção conjunta de todos os sectores progressivos. Mas a única prova que se obteve — iniludível — foi a da incapacidade política de todos menos os reaccionários.

Poderia admitir-se uma viragem salutar, uma reacção extrema das organizações operárias, após o 18 de Abril, quando a C.G.T. era já, afinal, um monte de destroços, os Partidários da I.S.V. pouco mais que um núcleo de palradores pretenciosos, o Partido com o Rates a encaminhá-lo para o plano inclinado da bancarrota e o Partido Socialista com o Amâncio Alpoim e o Ramada Curto a bajularem os parlamentares democráticos? Claro que não. Ao oportunismo juntara-se o sectarismo, cada vez mais violento, mais derrotista. A crise era profunda e a desorientação que decorria da mentalidade oportunista dos dirigentes operários da época tomava-a como uma vaga de impossível domínio. Havia o sentimento liquidacionista de «o que for soará». Reagir para quê?...

Era bem uma crise de pensamento revolucionário, de teoria que se não formulara, a despeito da riqueza de experiência por que passou o proletariado desde 1910 até àquela data. Mas a esta experiência faltara a base do marxismo, a única que a podia transformar numa táctica adaptada às circunstâncias dessa época, no nosso país.

A prova mais flagrante da mentalidade pequeno-burguesa e da podridão em que se encontrava, deu-a a C.G.T. em Santarém, no seu Congresso, em Setembro de 1925. Depois de haver ratificado a adesão à Associação Internacional dos Trabalhadores, aprovou uma tese sobre colónias e nem uma palavra sobre unidade operária proferiu. Não valia a pena qualquer apelo à unidade antifascista porque o fascismo, se viesse, não seria duradouro. Qualquer Costa o liquidaria e, até à data, os democráticos apanhariam uma lição...

Ainda no ano de 1925, os reaccionários tentaram a sorte. Em 19 de Junho, o comandante Cabeçadas tomou de assalto um barco de guerra de onde chegou a fazer uns tiros para terra. Porém, a indecisão é já manifesta covardia dos conspiradores reaccionários que não deram sinal de vida, em terra. O Governo julgou a aventura, talvez muito aborrecido e contrariado por não ser ainda desta vez que punham fim à fantochada da sua existência. Em Dezembro de 1925 ou Janeiro de 1926, Martins Júnior, pessoa ambiciosa e tresloucada, capaz de se bandear com a reacção, como depois se provou com a sua adesão ao fascismo, arrancou com a artilharia de Vendas Novas e trá-la para Almada e Cacilhas de onde, à mistura com uns vivas ao Partido Radical, fez uns tiros para Lisboa. O Governo, porque se tratava de elementos tidos como «radicais», foi menos macio e, depois de apagar mais o rastilho de Almada, deportou o Martins Júnior, alguns sargentos e praças para a Madeira e Açores. Um dos heróis desta «fita» foi José Maria de Almeida Júnior.

Estas aventuras, conquanto fossem chefiadas por pessoas cujos nomes andavam ligados à vida da República liberal e arvorassem o estandarte da luta contra o partido da tirania e opressão, o Partido Democrático, eram inspiradas pelos futuros fascistas. A reconhecida incapacidade política da pequena burguesia era aproveitada pela reacção que a par e passo a lançava em aventuras desesperadas. A reacção tinha agentes seus nos agrupamentos pequeno-burgueses para o que desse e viesse. Em qualquer circunstância favorável aos seus desígnios, esses agentes tratariam de concertar as coisas a seu favor. É que os reaccionários não tinham ainda descartado a hipótese de os aventureiros oportunistas da pequeno-burguesia serem alguma vez bem sucedidos num dos seus frequentes «golpes». E dado que tal viesse a suceder, os seus agentes tratariam de encaminhar o sucesso para o ponto em que os fascistas lhe pudessem deitar a mão. Se esta previsão não se desse, havia que esperar o esgotamento de toda essa actividade política putchista e ligar mais tarde toda essa gente a um putche verdadeiramente revolucionário. Até lá, a imprensa reaccionária ajudaria a amadurecer a situação, proclamando que o país marcharia para a ruína se o exército, «guardião da honra e independência nacional», não interviesse nos destinos da política e não pusesse termo à prodigalidade de «revoluções».

A táctica maquiavélica dos futuros fascistas pôde pôr à prova os seus recursos porque o proletariado não tinha tido consciência revolucionária para elaborar a sua e o Partido Democrático, feudo permanente da reacção, com a sua acção ao serviço da grande burguesia, auxiliou-a em larga medida.

Tivesse a revolução de 1910 extinguido os grandes proprietários agrícolas e o flagelo fascista não teria certamente tantas possibilidades de se apoderar da Nação.

O assalto vitorioso da reacção chegou em 28 de Maio quando a podridão política da burguesia liberal estava sem perspectivas de saneamento. À frente do exército, montado num cavalo branco, marchava o General Gomes da Costa, antigo chefe dos putches radicais. Todos aqueles elementos dos precedentes golpes «revolucionários» dos radicais, etc., que tinham lugares no exército, estavam com o movimento, uns dispostos a tudo, outros sinceramente convencidos de que o seu liberalismo estava triunfante. Os que não pertenciam ao Exército exultavam de contentamento e aplaudiam também a sua grande vitória.

O proletariado assistia pelo país às paradas que o Exército fazia como demonstração de força e de tranquilidade.

Na realidade, a reacção tinha ganho a partida e o fascismo veio a ser um facto.

A decepção dos oportunistas pequenos e médios burgueses e proletários transformou-se em «reviralho», que esteve em moda, durante muito tempo e ainda hoje não está inteiramente desfeito.

Como atrás ficou referido, desde que o Rates abandonou o Partido até Março de 1927, a actividade comunista não era notada porque, na realidade, não existia. Apenas em 7 de Fevereiro, quando se deu o primeiro putche contra a ditadura fascista, o Partido publicou um manifesto convidando os trabalhadores a persistirem na luta — a não abandonarem as armas — até que o putche ficasse vitorioso. A incapacidade dos dirigentes do Partido era tal que foi preciso que elementos não dirigentes lhes houvessem lembrado a necessidade da publicação referida. Foram esses elementos, com José de Sousa à cabeça, quem editou e fez circular o citado manifesto.

Em Março de 1927, porém, José de Sousa, Silvino Ferreira (arsenalista) e outros militantes comunistas tomam conta da direcção do Partido, no propósito louvável de, pelo menos, o arrancarem da apatia em que estava. Esta reacção cujo intuito revolucionário era evidente não tinha, infelizmente, ainda um justo alicerce doutrinário e teórico.

Nesse mesmo ano, o Partido envia às festas do 10.° aniversário da Revolução um delegado seu. A sua escolha recaiu em Silvino Ferreira (arsenalista). Na mesma data, visto o interesse que na URSS se manifestara em receber delegados de todos os países (sem partido) a fim de tomarem contacto in loco com a realidade bolchevique, partiram para a Rússia vários amigos da União Soviética. De Portugal foram também alguns, entre os quais Augusto Machado, Bento Gonçalves, etc.

Augusto Machado que quando partiu para a União Soviética ainda não era membro do Partido voltou de lá com a responsabilidade de reorganização do Partido. Provavelmente, Silvino Ferreira deve ter sido quem o indicou à I.C.

Em vista disso, a direcção improvisada em Março, demitiu logo à chegada de Augusto Machado. Este procedeu à reorganização do Partido mas a exagerada atenção dada ao problema da teorização dos quadros, na base de publicações leninistas, não se repartiu pelo trabalho de organização. Era a teoria com substituição da prática. Só em 1929, com uma nova reorganização, com Bento Gonçalves, é que o papel e a política revolucionária do Partido começaram a ser compreendidos.


Inclusão 14/04/2014