Sobre a Dissolução da União Soviética

Jacob Gorender


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Em julho de 1991, ouvi de um intelectual cubano, em Havana:

"Durante trinta anos, tivemos a certeza de que o campo socialista era eterno. Nesta certeza fundamental, apoiávamos o nosso projeto de construção do socialismo em Cuba. Agora, o campo socialista deixou de existir. Ficamos desorientados com relação ao nosso projeto e ao nosso futuro".

Em agosto do mesmo ano, encontrava-me em Moscou, no momento em que um grupo da alta burocracia do Partido Comunista da União Soviética desfechou o golpe de Estado visando salvar o predomínio do Partido, minguante e cada vez mais contraído. Chegaram tarde. Quando, no final de agosto, tomei o avião para viajar de Moscou a Varsóvia, o Partido Comunista já estava fora da lei. Seu Comitê Central fora dissolvido pelo próprio secretário-geral, Gorbatchov, seus bens confiscados pelo Estado e suas sedes ocupadas pelo governo da Rússia, presidido por Ieltsin.

Poderia a União Soviética sobreviver sem o PCUS?

A resposta veio poucos meses em seguida. Em dezembro, a URSS também se extinguiu.

A fim de compreender origens e causas de acontecimento de tanta repercussão, creio ser imprescindível remontar ao império czarista, do qual a URSS foi sucessora.

Fixados desde o século V na região oriental da Europa, os povos eslavos constituíram diversos principados, obrigados a enfrentar invasões de normandos, suecos e teutões. No século X, invasores normandos fundaram o primeiro Estado russo, o Grão-Principado de Kiev. Assim, a primeira Rússia foi criação de conquistadores e, ao mesmo tempo, teve preponderância ucraniana. A preponderância dos eslavos russos viria com a transferência da capital para Moscou. Mas, durante três séculos, o desenvolvimento estatal russo se viu obstaculizado pelo jugo dos conquistadores mongóis. Libertados desse jugo no século XVI, o Estado russo unificou os povos eslavos do Oriente europeu e deu início ao império czarista, a partir de Ivã IV, o primeiro czar, apelidado o Terrível.

O Império czarista russo se expandiu em todas as direções. Tomou a Sibéria, dos Urais ao Extremo Oriente, incorporando dezenas de etnias autóctones. Penetrou pelo Cáucaso e submeteu seus povos. Anexou a Finlândia, a Lituânia, Estônia e Letônia, assegurando acesso ao mar Báltico. Dominou grande parte da Polônia, dividindo o território desta com a Prússia e a Áustria. Em constante hostilidade com o Império otomano, ajudou os povos balcânicos a se livrarem da secular opressão turca, mas se apossou de partes do Império otomano, como a Criméia e as províncias romenas da Moldávia e da Vláquia. Diante da pretensão russa de uma saída para o mar Mediterrâneo, através do estreito dos Dardanei os, e a consequente ameaça de avanço até Constantinopla, iniciou-se, em 1854, a chamada Guerra da Criméia, na qual a aliança dos turcos com a Inglaterra, França e Piemonte impôs a derrota ao Império czarista e freou sua arremetida meridional.

Em meados do século XIX, o Império czarista tinha sob sua jurisdição a maior extensão territorial contínua do mundo, com cerca de 23 milhões de quilômetros quadrados. Constituía imenso conglomerado de nações, nacionalidades, minorias nacionais e etnias, em número de cerca de centena e meia. Desde o século XVI, estabeleceu-se a atroz servidão feudal dos camponeses, só parcialmente aliviada com a reforma de 1860, promovida por Alexandre II. O Estado czarista se apoiava diretamente na nobreza parasitária e numa burocracia imensa, que sugava vorazmente as energias do povo. As nacionalidades não-eslavas e, particularmente, não-russas, sofriam uma opressão duplicada.

O Império czarista se aliou às forças reacionárias europeias contra a Revolução Francesa e se opôs à vaga revolucionária de 1848. A intervenção direta do Exército russo esmagou a insurreição húngara.

Marx e Engels consideravam a Rússia o baluarte da reação europeia e Lênin chamou o Império czarista de "cárcere dos povos". Tendo em vista primordialmente a realidade de seu próprio país, Lênin elaborou teoricamente a questão da autodeterminação das nações, até o direito de separação, travando, a respeito, uma polêmica com Rosa Luxemburgo, a qual, erroneamente, considerava que a luta pelo socialismo dispensava a defesa de reivindicações especificamente nacionais.

Mas da formulação doutrinária à aplicação prática dos princípios teóricos a distância iria demonstrar-se enorme.

A Primeira Guerra Mundial liquidou os Impérios otomano e austro- húngaro, conglomerados multinacionais e multiétnicos assemelhados ao Império czarista. Contudo, a estrutura deste sobreviveu, dentro da nova entidade estatal chamada União Soviética, formalmente criada em 1922. A extensão territorial da nova entidade se reduziu em pouco com relação à antecessora. A Finlândia, os três Estados bálticos — Lituânia, Letônia e Estônia — e a Polônia se tomaram independentes. O novo poder soviético, comandado pelos bolcheviques, reconheceu-lhes o direito de autodeterminação, incluindo a separação. Apesar disso, continuaram a coexistir, nos limites da URSS, mais de uma centena de nações e etnias, congregadas sob a supremacia da nação russa.

A questão com a Polônia não se resolveu tranquilamente. Diante da invasão da Ucrânia, em 1920, por tropas polonesas comandadas pelo governo Pilsudski, aliado ao general ucraniano contra-revolucionário Petliura, o Exército Vermelho revidou e penetrou em território polonês. Lênin apoiou o plano de ocupação de toda a Polônia, o que levaria a esta o socialismo bolchevique e daria uma posição estratégica, na fronteira com a Alemanha, onde ainda havia a esperança de um levante anticapitalista. O plano era francamente adverso ao princípio da autodeterminação nacional. Trotski se opôs à iniciativa, argumentando que, em território polonês, o Exército Vermelho se veria cercado por uma população hostil, que o confundiria com o odiado exército czarista. Nas proximidades de Varsóvia, as forças bolcheviques foram detidas e sofreram derrota decisiva infligida pelos poloneses, com o auxílio substancial de militares franceses comandados pelo general Weygand (fez parte desse grupo o então capitão Charles de Gaulle). No tratado de paz afinal assinado, a Polônia ganhou as regiões ocidentais da Ucrânia e da Belarus (então chamada Bielo-Rússia).

Também com a Geórgia, a questão não foi tranquila. Em 1922, o Partido Menchevique venceu as eleições e assumiu o governo. O fato se celebrou, na época, como a primeira vitória de um partido socialista num pleito eleitoral livre. Stalin e Ordjonikidze não aceitaram a manifestação da vontade da população georgiana e destituíram o governo menchevique pela força, incorporando o país caucasiano à nascente União Soviética. Lenin protestou com veemência contra esse comportamento brutal, mas, seriamente enfermo, não conseguiu desfazer o que já estava consumado.

Stalin era um georgiano russificado. Desprezava os seus compatriotas, que tratava como "caipiras", e assimilou o chauvinismo e os estereótipos mentais dos grão-russos. Inclusive o anti-semitismo tradicional, que persistiu na era soviética sem contraposição eficaz no sistema educacional e nos outros meios de influência ideológica.

Na questão nacional, a ditadura stalinista seguia o curso espontâneo dos fatores objetivos e subjetivos herdados do passado czarista, reforçados pela tese da possibilidade da construção do socialismo num só país. A tese se apoiava numa psicologia social nacionalista e incitava a exaltar as qualidades dos povos soviéticos e, está claro, muito particularmente o heroísmo dos russos, o povo-guia. Prosseguia a tendência à russificação dos espaços de outras nacionalidades, na medida em que russos dominavam o aparelho do Partido Comunista e do Estado e se transferiam, em grandes contingentes, aos territórios das repúblicas. A língua russa continuou língua oficial para todos os povos da URSS e o próprio fato da superioridade cultural estimulava a russificação. Assim, antes identificada com o czarismo, a russificação agora se identificava com o marxismo-leninismo.

Numa organização estatal com tantas nacionalidades e etnias, a ditadura stalinista interveio nas questões nacionais seguindo critérios administrativos e, com frequência, os mais arbitrários. Não admira que, abertas as comportas pela perestroika, a pressão acumulada pelas medidas arbitrárias tenha se manifestado com tanto potencial de ódio nos conflitos interétnicos.

A arbitrariedade stalinista atingiu o extremo no tratamento dado a vários povos da URSS, no período da Segunda Guerra Mundial. Condenados, sem direito à defesa, pelo suposto crime coletivo de traição ao poder soviético e de colaboração com o invasor nazista, povos inteiros se viram erradicados dos territórios, onde, há séculos, habitavam e, nas condições mais penosas, transferidos e dispersos pela Sibéria. Sofreram a pena de expulsão coletiva os tártaros da Criméia, os alemães do Volga, os checheno-inguches e os mechkétios. Obrigados a se fixar nos territórios de outras nacionalidades, é compreensível que ali suscitassem atritos e ressentimentos. Ao expulsar povos inteiros dos seus lugares pátrios, onde haviam criado culturas originais, o socialismo de Estado stalinista cometeu uma perversidade que o próprio czarismo nunca se atreveu a praticar.

O Pacto Germano-Soviético de 1939 permitiu que a URSS fizesse a reanexação pela força dos três países bálticos e da Moldávia, recuperando também as regiões ocidentais da Ucrânia e da Belarus. Terminada a guerra, a URSS se configurou como uma associação de quinze repúblicas federadas, vinte repúblicas e dezoito regiões autônomas e numerosos territórios autônomos. Havia também minorias nacionais, como eram considerados os judeus. Na medida em que se declarava voluntária e baseada nos critérios científicos do marxismo- leninismo, esta arquitetura política parecia sólida e à prova de contradições. A propaganda alardeava que a União Soviética representava algo inédito na história: uma congregação fraterna e solidária de povos plenamente iguais em direitos e com acesso idêntico ao progresso material e cultural conjunto.

Compreende-se que, em 1985, ao assumir o cargo de secretário-geral do Partido Comunista e dar início à perestroika e à glasnost, Gorbatchov não fizesse sequer uma alusão à questão nacional. Ao propor reformas, naquele momento aparentemente audaciosas, em vários âmbitos, nenhuma dessas reformas se relacionava com problemas de caráter nacional. A cúpula do PCUS tinha por indubitável a inexistência de tais problemas, ao menos com a gravidade que requeresse inclusão no plano reformista da perestroika.

Não demorou para que a realidade surpreendesse os dirigentes comunistas e lhes revelasse contradições nacionais de intensidade alarmante. Sufocadas durante o regime de censura cultural e monopólio oficial das informações, tais contradições, numa situação de crescente liberdade de expressão, vieram à tona com impulso explosivo. Já em 1987, os armênios começaram a se engalfinhar, em choques sangrentos, com os azerbaijanos, pelo controle de Nagorno- Karabakh, enclave de população armênia no território do Azerbaijão. Seguiram- se, como é sabido, numerosos outros confrontos entre nacionalidades e etnias, não raro com características de pogroms. Ao mesmo tempo, crescia o comportamento hostil das repúblicas contra o poder soviético-comunista centralizado em Moscou. A reivindicação de independência e separação ganhou expressão ostensiva nos três países bálticos e, logo em seguida, na Armênia, Geórgia e Ucrânia. As repressões brutais de tropas de choque só agravaram os sentimentos de hostilidade. Longamente oprimidas por um poder central despótico, as repúblicas agora ansiavam pela autodeterminação plena. Ainda mais na medida em que a situação econômica se deteriorava e a reivindicação nacionalista se associava a posições pró-capitalistas. O poder central, encarnado na fusão do Partido Comunista com o Estado, ganhou a imagem de representante do fracasso do socialismo de Estado.

Esta imagem impregnou a consciência do próprio povo russo, cuja maioria deu apoio a Ieltsin na sua disputa com Gorbatchov. Dessa maneira, o Partido Comunista e o Estado soviético perderam, em ritmo acelerado, o suporte da nação que constituía a espinha dorsal do sistema político multinacional.

Em meados de 1991, Gorbatchov empreendeu a última tentativa de salvação deste sistema. Fez a proposta de um tratado da União, ao qual seria voluntária a adesão das repúblicas federadas e que dava a estas direitos amplos jamais antes concedidos. Publicado pela imprensa a 15 de agosto, o tratado receberia, no dia 20, as assinaturas já compromissadas dos presidentes da Rússia (Ieltsin), do Cazaquistão e do Uzbequistão, ficando aberto a posteriores assinaturas dos presidentes das demais repúblicas.

A cúpula da burocracia comunista percebeu que a vigência do tratado conduziria à eliminação dos privilégios, que o sistema estabelecido lhe conferia. Daí a detenção de Gorbatchov pelos conspiradores golpistas, a 18 de agosto, e o anúncio, no dia seguinte, da tomada do poder por um comitê de emergência. Esvaziados de força efetiva, os golpistas sofreram rápida derrota. Mas o golpe acentuou nos próprios russos os sentimentos nacionalistas e anti-soviéticos. Livrar-se do poder soviético significava desembaraçar-se do sistema político responsável pelo atraso tecnológico e econômico, pela degradação do padrão de vida, pelas desgraças de um passado, que só nos últimos anos pudera ser revelado em seus tenebrosos detalhes.

Ieltsin explorou habilmente esses sentimentos e, assim, com apoio da grande maioria dos russos, os presidentes da Rússia, da Ucrânia e da Belarus assinaram, a 9 de dezembro, o documento que proclamava a cessação da existência da União Soviética. Logo em seguida, as demais repúblicas se associaram a esta proclamação e nove delas anunciaram sua adesão à Comunidade de Estados Independentes (CEI), entidade sem caráter estatal, nem poder supranacional. Reconhecendo os fatos consumados, a 25 de dezembro Gorbatchov renunciou ao cargo de presidente de uma entidade desaparecida.

A dissolução da URSS pôs fim a uma estrutura política multinacional que, após a Primeira Guerra Mundial, só conseguiu uma sobrevida graças ao domínio ditatorial do Partido Comunista como partido único dirigente, por princípio constitucional. Submetida a poderosas forças centrífugas no curso da perestroika, aquela estrutura não conseguiria manter-se após a desagregação do Partido Comunista. Seu término estava selado.

A extinção da URSS constitui, por certo, a comprovação histórica mais taxativa acerca do fracasso do socialismo de Estado. Inclusive sob o aspecto de sua incapacidade para resolver os problemas nacionais legados pelos regimes precedentes.

O internacionalismo marxista propõe a união voluntária dos povos sob o regime socialista. Ao mesmo tempo, reconhece a cada povo o direito de separação e plena autodeterminação nacional.


Inclusão 06/09/2015