Individualismo e Solidariedade

Jean Grave

1903


Primeira edição: publicado com o título original «Individualisme et Solidarité» em 1903, no Almanach Illustré de la Révolution pour 1904, o qual pode ser consultado aqui: iiif.lib.harvard.edu

Observação: Leia outros 3 artigos de Luigi Fabbri publicados em Il Pensiero e que dão continuação à polémica: artigo 1; artigo 2; artigo 3

Fonte: Biblioteca Anarquista - https://bibliotecaanarquista.org/library/individualismo-e-solidariedade

Tradução: João Black

HTML: Fernando Araújo.


Há alguns anos, certos literatos tiveram a ideia ou a sorte de descobrir Nietzsche, Stirner e até Schopenhauer. Uma vez no caminho, eis que um belo dia se deram conta de que havia no mundo um indivíduo — o Indivíduo — e que esse indivíduo primava sobre tudo e tinha o direito de viver, ser feliz e desenvolver-se em toda a sua plenitude, sem ter que tomar em conta qualquer obstáculo a não ser para o derrubar no caso de ser nocivo, ou servir-se dele no caso de ser utilizável.

E fabricou-se assim uma pequena anarquia que tendia a nada menos do que elevar uma nova artistocracia, a aristocracia intelectual, a qual, como todas as aristocracias, desprezava profundamente o resto da populaça, vendo nesta um gado de escravos apenas bons para produzir para o «intelectual», o qual poderia assim crescer e desenvolver-se livremente em força, em inteligência e em beleza!

Esta concepção do indivíduo, do intelectual, fazia demasiadas cócegas à vaidade de alguns originais, porque não tinham que se tornar campiões resolutos. É de facto uma teoria muito cómoda, demasiado cómoda, para justificar todos os atos mais contraditórios; e percebe-se então por que nos foi de súbito oferecida uma nova escola, a do individualismo.

A liberdade mais completa para o indivíduo, o seu direito à satisfação integral de todas as suas necessidades, são reivindicações legítimas, e não era preciso escavar Nietszche e Stirner para as consagrar e afirmar de algum modo. Tudo isso o homem procura desde que o mundo é mundo, e é este seu instinto primordial que o fez sempre arriscar as mais diferentes revoluções, incluindo as mais políticas, por ele levadas a cabo durante os séculos de vida da humanidade. É o que nunca deixaram de procurar os anarquistas comunistas.

Simplesmente, os anarquistas comunistas, que não se alimentam de palavras e abstrações, e são partidários do método científico que se apoia nos factos, não se contentaram em fazer metafísica: estudaram as condições de existência do indivíduo e, sem se gabar de terem feito uma descoberta assombrosa — já que é algo que salta à vista do mais míope — viram que o indivíduo não é uma entidade única, vivendo nas núvens da dialética, mas um ser em carne e osso, estimado em cerca de dois biliões de exemplares, e que o que é verdadeiro para um é igualmente verdadeiro para cada um de todos esses dois biliões de indivíduos.

De resto a necessidade de viver em sociedade não se discute.

Foi graças ao agrupamento com os seus semelhantes que o homem adquiriu a faculdade da linguagem e de exprimir as suas ideias; foi na troca de ideias com os seus companheiros que ele conseguiu modificar e alargar as primeiras impressões, torná-las tradições que as gerações sucessivamente se transmitiram, discuti-las depois de as ter seguido cegamente; e foram estas tradições que, elaboradas, de progresso em progresso se tornaram no património científico, artístico e literário dos nossos dias. O homem que quisesse completamente isolar-se dos seus semelhantes retornaria ao estado de bruto, se entretanto as espécies mais bem armadas não conseguissem primeiro eliminá-lo e destruí-lo.

Aqui o problema complica-se. Pelas necessidades do seu organismo, pela exiguidade do espaço em que estão contidos, que forçosamente limita o seu campo de evolução, hoje já não basta aos indivíduos afirmar os seus direitos, mas importa sobretudo procurar as condições para os exercer, sem prejuízo para si nem para os outros, o que poderia causar represálias e limitar os direitos afirmados demasiado brutalmente.

E, a partir do momento em que o indivíduo não pode viver e desenvolver-se a não ser em sociedade, não lhe resta mais do que duas únicas maneiras de afirmar a sua liberdade:

— Ou agir a seu modo, se for forte o suficiente para o fazer, impondo-se aos outros, ou porventura enganando-os, fazendo-lhes crer que age no seu interesse; mas então, para conseguir isto não é necessária uma transformação social, pois a própria sociedade burguesa fornece-nos toda uma gama variadíssima de métodos e diferentes combinações para agir de tal maneira.

— Ou então os indivíduos entender-se-ão para juntos encontrarem uma organização social que, tornando possível o máximo bem-estar em troca do mínimo esforço, lhes permitirá evoluir sem colisões, conservando, com recíprocas concessões e um perfeito ajustamento das atitudes, a maior soma de liberdade possível, vale dizer, com uma inteligente prática da solidariedade.


Inclusão: 25/02/2021