O Que é o Marxismo?

Chris Harman


Entendendo a História


As ideias por si mesmas não podem mudar a sociedade. Esta foi uma das primeiras conclusões de Marx. Tal como muitos pensadores antes dele, Marx insistiu que para entender a sociedade seria preciso entender os seres humanos como parte do mundo material.

Os comportamentos humanos seriam determinado por forças materiais, tal como os comportamentos de qualquer outro objeto natural. O estudo da humanidade seria uma parte do estudo científico do mundo natural. Os pensadores que tinham esta concepção eram chamados de materialistas.

Marx via no materialismo um enorme passo em frente em relação às várias concepções religiosas e idealistas da história. Isto significava poderíamos discutir, cientificamente, a mudança das condições sociais. Já não dependia mais de orações a Deus ou uma “mudança espiritual” da população.

A substituição do idealismo polo materialismo foi a substituição do misticismo pola ciência. Mas as explicações materialistas do comportamento humano não são todos corretos. Tal como houvera teorias científicas erradas em biologia, química ou física, houve tentativas erróneas para desenvolver teorias científicas da sociedade. Eis alguns exemplos:

Uma opinião generalizada, materialista e não-marxista, defende que os homens são animais, que se comportam “naturalmente”. Do mesmo modo em que a natureza do lobo seria a de matar e a dos anhos ser pacíficos, é natural para o homem ser agressivo, dominador, competitivo e ambicioso (o que significa para serem dóceis, submissas, respeitosas e passivas).

Uma formulação desta concepção pode ser encontrada no grande sucesso de vendas O Macaco Nu. As conclusões tiradas de tal livro são quase invariavelmente reacionárias. Se os homens são naturalmente agressivos, como é dito no livro, então não há esperança de mudar a sociedade. As coisas irão sempre chegar ao mesmo lugar. As revoluções serão sempre condenadas ao fracasso.

Mas, a “natureza humana” varia de uma sociedade para outra.

Por exemplo, a competição, entendida como própria na nossa sociedade, apenas existiu em muitas das sociedades anteriores. Quando os cientistas tentaram aplicar testes de QI em índios Sioux, descobriram que os índios não entendiam porque não podiam ajudar-se mutuamente a responder as perguntas. Eles viviam numa sociedade de íntima cooperação, não de competição.

Da mesma forma a agressividade. Quando os esquimós encontraram-se pola primeira vez com os europeus, não entendiam o significado da palavra “guerra”. A ideia de um grupo de pessoas tentando matar outro parecia-lhes totalmente louca.

Na nossa sociedade parece “natural” que os pais amem e protejam seus filhos. No entanto, na Grécia Antiga, na cidade de Esparta, era “natural” deixar seus filhos nas montanhas, para testar a sua capacidade de sobreviver ao frio.

As teorias da “natureza humana imutável” não fornecem nenhuma explicação sobre os grandes acontecimentos da história. As pirâmides do Egito, as maravilhas da Grécia Antiga, os impérios romanos e incas, as cidades industriais modernas, são colocadas no mesmo nível que os camponeses analfabetos do início da Idade Média. Tudo o que importa é o “macaco nu”, não as magníficas civilizações que o macaco construiu. Torna-se impossível compreender por que algumas sociedades conseguiram alimentar os “macacos”, enquanto outras deixam-nos morrer de fame.

Muitas pessoas aceitam uma teoria materialista diferente, que destaca o facto de ser possível mudar o comportamento humano. Tal como os animais podem ser treinados para se comportar de forma diferente num circo que na selva, o comportamento humano também poderia ser mudado. Se apenas as pessoas certas tomassem o controle da sociedade, a “natureza humana” poderia então ser mudada.

Esta visão é certamente mais avançada do que o “macaco nu”. Mas, como explicação da sociedade como um todo, é errada. Se todo o mundo está completamente condicionado na nossa sociedade, como é possível para uma pessoa colocar-se acima da sociedade aprender a mudar os mecanismos de condicionamento? Existe uma minoria escolhida por Deus para ser imune às pressões que dominam todos os outros? Se somos todos animais num circo, quem é o domador de leões?

Aqueles que sustentam esta teoria acabam dizendo que a sociedade ou não se pode nada fazer (como no “Macaco Nu”), ou esperar por uma mudança produzida por algo a partir de fora a sociedade - Deus, um “grande homem”, ou polo poder de ideias individuais. O seu “materialismo” é transformado numa nova versão do idealismo.

Como Marx assinalou, esta doutrina acaba necessariamente por dividir a sociedade em duas partes, uma das quais sendo superior à sociedade. Esta teoria “materialista” é muitas vezes reacionária. Um dos mais conhecidos partidários desta visão hoje é o psicólogo americano de direita Skinner. Ele quer condicionar as pessoas a se comportarem de determinada maneira. Mas como ele mesmo é um produto da sociedade capitalista norte-americana, o seu “condicionamento” significa simplesmente fazer as pessoas se conformarem a esse tipo de sociedade.

Outra teoria materialista explica todo o sofrimento no mundo pola “pressão demográfica”. Esta visão costuma ser chamada de malthusianismo, desenvolvida pola a primeira vez por Malthus, economista inglês do século XVIII. Mas esta concepção não pode explicar porque os Estados Unidos, por exemplo, queima milho enquanto o povo morre com a fame na Índia. Nem explica porque não havia comida suficiente para alimentar dez milhões de pessoas cento e cinquenta anos atrás, enquanto hoje há o suficiente para alimentar duzentos milhões.

Esta teoria esquece que cada boca extra a ser alimentada há também uma pessoa a mais capaz de trabalhar e produzir riquezas. Marx chamou a todas essas explicações equivocadas, formas de materialismo “mecanicista” ou “vulgar”. Esquecem todas que, além de ser parte do mundo material, os seres humanos também são criaturas vivas e ativas cujas ações transformam o mundo.

A Interpretação Materialista da História

Os homens podem ser distinguidos dos animais pola consciência, religião e qualquer outra cousa que quisermos considerar. Eles mesmo começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir os seus próprios meios de subsistência – a sua comida, abrigo e roupas”.

Com estas palavras, Karl Marx observou, antes de tudo, como distinguir a sua explicação do desenvolvimento da sociedade. Os seres humanos são animais que descendem de uma criatura parecida com um símio. Tal como outros animais, a sua primeira preocupação é se alimentar e se proteger do clima.

O modo como outros animais fazem isso depende da sua herança biológica. Um lobo mantém-se vivo caçando e matando as suas presas, na forma determinada polos instintos biologicamente herdados. Mantém-se quente nas noites frias graças ao seu pêlo. Cria a sua prole de acordo com um padrão herdado.

Mas a vida humana não é fixada dessa forma. Os humanos que vagavam pola terra há 10 000 ou 30 000 anos viviam uma vida muito diferente da nossa. Viviam em cavernas ou em buracos no chão. Não tinham recipientes para armazenar alimentos ou água, dependiam da colheita de frutos ou da carne de animais silvestres abates com pedras. Não podiam nem escrever nem contar além da quantidade dos seus dez dedos. Não tinham conhecimento do que ocorria no seu entorno imediato ou do que os seus antepassados tinham realizado. Contudo, a aparência física do homem de 10 000 anos atrás era semelhante ao homem moderno. Banhado, rapado a barba e vestido, o homem das cavernas poderia andar polas ruas sem que ninguém o considerasse deslocado.

Como o arqueólogo C. Gordon Childe disse:

Os esqueletos mais antigos da nossa espécie pertencem ao final da última Era Glacial... Desde a primeira aparição dos esqueletos do Homo Sapiens no registro geológico... a evolução física do homem tem quase parado, embora o seu progresso cultural tenha apenas começado.”

A mesma observação é feita por outro arqueólogo, Leakey:

As diferenças físicas entre os homens das culturas Aurignaciana e Magdaleniana (25 000 anos atrás) de um lado, e o homem moderno, por outro, são insignificantes, ao passo que as diferenças culturais são incomensuráveis.”

O que os arqueólogos chamam de “cultura” são as cousas que homens e mulheres aprendem e ensinam (como fabricar roupas com pele e com lã, como construir uma casa, como fazer potes de barro, como fazer fogo), em oposição às cousas que os animais sabem instintivamente.

A vida dos primeiros seres humanos já era significativamente diferente da vida dos outros animais. Eles tinham de facto a possibilidade de usar habilidades características dos homens — cérebros grandes, membros superiores capazes de manipular objetos — para começar a moldar o seu ambiente de acordo com a suas necessidades. Isso significava que podiam se adaptar a diferentes ambientes, sem alterar a forma orgânica. Os seres humanos já não precisavam simplesmente reagir às condições externas. Podiam atuar sobre essas condições, começando por mudá-las para o seu próprio benefício. No início, usaram paus e pedras para atacar os animais selvagens, acendiam fachas através das fontes naturais do fogo para terem luz e calor, vestiam-se com vegetação e peles de animais. Decorridas várias dezenas de milhares de anos, aprenderam a fazer fogo, esculpir pedras com outras pedras, a cultivar alimentos a partir de grãos que semeavam, a estocá-los em vasos de barro, a domesticar alguns animais.

Em tempo relativamente recente — há 5 000 anos, diante de meio milhão de anos da história humana — aprenderam o segredo da transformação dos minerais em metais que poderiam ser usados para fazer ferramentas fiáveis e armas eficientes.

Cada um desses avanços teve um impacto enorme, não apenas por tornar mais fácil para os seres humanos a alimentação e o vestuário, mas também na transformação da própria organização da vida humana. Desde o início, a vida humana era social. Só o esforço colectivo de muitas pessoas podia possibilitar matar animais, colher alimentos e cuidar o fogo aceso. Eles tinham que cooperar.

Esta cooperação contínua levou-os também a se comunicarem pola emissão de sons e o desenvolvimento da linguagem. Inicialmente, os grupos sociais eram simples. Não havia cultivo suficiente para manter grupos de maior dimensão do que talvez vinte pessoas. Todos os esforços tinham de ser dirigidos para as tarefas básicas de conseguir alimento, o que levava a que todos fizessem o mesmo trabalho e vivessem o mesmo tipo de vida. Sem qualquer meios de armazenar alimentos não podia haver propriedade privada, nem classes sociais, nem o saque como motivo para a guerra.

Até alguns anos atrás, ainda havia centenas de sociedades em diferentes partes do globo em que este padrão social permanecia — entre algumas tribos índias da América do Norte e do Sul, na África Equatorial e do Oceano Pacífico, os aborígenes australianos. Não que estas pessoas fossem menos inteligentes que nós ou tivessem uma “mentalidade primitiva”. Para sobreviver, os Aborígenes australianos, por exemplo, aprenderam a reconhecer milhares de plantas e os hábitos de muitos animais diferentes.

O antropólogo Prof. Firth descreveu como:

As tribos australianas... conheciam os hábitos, as características, os lugares de procriação e flutuações sazonais de todos os animais, peixes e aves do seu território de caça. Conheciam as propriedades externas, e algumas menos óbvias, de rochas, pedras, ceras, resinas, plantas, fibras e cascas; sabiam como fazer fogo; sabiam como utilizar o calor para aliviar a dor, deter uma hemorragia e retardar a putrefação e deterioração do alimento; sabiam também usar o fogo para endurecer algumas madeiras e amolecer outras... Sabiam sobre as fases da lua, o movimento das marés, o ciclo planetário e as sequências e duração das estações; relacionavam as flutuações climáticas, como os ventos, as as variações anuais de temperatura e umidade, os fluxos de crescimento e a presença de espécies naturais.... Acrescente-se ainda que eles faziam um uso inteligente e econômico de subprodutos de animais caçados para alimentação; a carne do canguru é comida; os ossos das pernas utilizadas no fabrico de ferramentas feitas de pedras ou como alfinetes, os tendões tornam-se anexos para amarrar as pontas das lanças; as garras formam colares fixados com cera e fibras, a gordura misturada com ocre vermelho é usada como pintura, o sangue misturado com carvão transforma-se num pigmento... Conheciam alguns princípios simples de mecânica e aparam um bumerangue muitas e muitas vezes até lhe dar a correta curvatura..."

São mais “inteligentes” que nós ao lidar com a sobrevivência no deserto australiano. O que eles não aprenderam foi semear e cultivar o seu próprio alimento, algo que os nossos ancestres aprenderam há cerca de 5 000 anos, quando já viviam no planeta por um período cem vezes maior.

O desenvolvimento de novas técnicas para criar bens — os meios para continuidade da vida humana — sempre fez nascerem novas formas de cooperação entre os homens, novas relações sociais.

Por exemplo, logo que as pessoas aprenderam a cultivar o seu alimento (semeando grãos ou domesticando animais) e a armazená-lo (em potes de barro), houve uma verdadeira revolução na vida social, chamada polos arqueólogos “a revolução neolítica”. Os homens tinham que cooperar para limpar a terra e fazer a colheita, assim como caçar animais. Podiam viver em número muito maior do que antes, podiam armazenar a comida e começar a trocar bens com outras tribos.

As primeiras cidades puderam desenvolver-se. Pola primeira vez havia a possibilidade de algumas pessoas viverem sem se envolverem apenas na procura permanente de alimentos: alguns se especializaram na fabricação de potes, outras na busca de sílex e mais tarde do metal para fazerem ferramentas, outras no desempenho de tarefas administrativas elementares para a tribo. Mas o pior foi que o excedente de alimento forneceu um motivo para a guerra. A humanidade tinha descoberto uma nova maneira de se adaptar ao mundo à sua volta, uma nova maneira de acomodar o mundo às suas necessidades. Mas ao mesmo tempo, sem ter esta intenção, as pessoas acabaram por transformar a sociedade na qual viviam e junto com ela as suas próprias vidas. Marx resumiu esse processo: um desenvolvimento das “forças produtivas” mudara as “relações de produção” e, através delas, a sociedade.

Existem muitos outros exemplos.

Há trezentos anos a grande maioria da população deste país vivia sempre do campo, produziam riquezas segundo os métodos que não mudaram em séculos. O seu horizonte mental era limitado à sua aldeia e as suas ideias muito influenciadas polo padre local. A grande maioria não sabia ler nem escrever, e nunca aprendera a fazê-lo.

Mais tarde, há duzentos anos, a indústria começou a se desenvolver. Dezenas de milhares de pessoas foram enviadas para as fábricas. As suas vidas foram completamente transformadas. Agora vivem nas grandes cidades, não em pequenas aldeias. Precisam aprender habilidades nunca imaginadas polos seus antepassados, incluindo até mesmo a leitura e a escrita. As ferrovias e os barcos a vapor tornaram possível viajar por metade da terra. As velhas ideias marteladas polo clero já não mais correspondiam com a situação. A revolução material na produção foi também uma revolução no modo de vida e nas suas ideias.

Mudanças parecidas continuam afetando um grande número de pessoas. Observe-se como as pessoas da África, do Magrebe, de Bangladesh ou da Turquia que vieram à França, à Alemanha e Inglaterra em busca de trabalho. Muitas descobriram que as suas velhas tradições e ideias religiosas não correspondiam à sua nova vida. Ou, como há cinquenta anos, a maioria das mulheres começaram a trabalhar fora de casa e como isso levou-as a desafiar a velha concepção que entendia que elas eram praticamente propriedade de seus maridos.

As mudanças no modo como os homens produzem o seu alimento, o seu vestuário e as suas moradas, causam mudanças na organização da sociedade e no comportamento das pessoas. Este é o segredo das mudanças socio-históricas, que os pensadores anteriores a Marx (e muitos depois dele), os idealistas e materialistas mecanicistas, não puderam compreender.

Os idealistas viam as mudanças mas, diziam que elas eram enviadas do céu. Os materialistas mecanicistas viam que o homem era condicionado polo mundo material, mas não podiam compreender como as cousas podiam mudar. O que Marx percebeu é que se os seres humanos são condicionados polo mundo à volta deles, eles agem e reagem sobre o mundo à sua volta, trabalhando de modo a torná-lo mais habitável. Ao fazê-lo, mudam também as condições nas que vivem, e por isso mudam-se eles próprios.

A chave para entender as mudanças sociais reside no entendimento sobre como os seres humanos fazem frente ao problema de alimentar-se, cobrir-se e encontrar um abrigo. Este foi o ponto de partida de Marx. Mas isso não significa que as melhorias tecnológicas produzam automaticamente uma sociedade melhor, ou mesmo que as novas invenções tecnológicas mudem automaticamente esta sociedade. Marx rejeitou esta concepção (por vezes conhecida como determinismo tecnológico). Uma e outra vez na história, as pessoas têm rejeitado os novos métodos para melhorar a produção porque se chocam com o comportamento ou as formas de sociedade já existentes.

Por exemplo, sob o Império Romano houveram muitas inovações para produzir mais trigo numa extensão de terra dada, mas as pessoas não as utilizavam porque exigiriam uma dedicação no trabalho que não podia ser obtida de escravos trabalhando sob o látego. Quando a Inglaterra dominou a Irlanda no século XVIII, tentou impedir o desenvolvimento da indústria porque entrava em conflito com os interesses dos empresários de Londres. Se alguém propusesse matar todas as vacas sagradas para erradicar a fame na Índia, ou alimentar a todos na Inglaterra com suculentos bifes de carne de rato, seria ignorado devido a preconceitos estabelecidos.

Os desenvolvimentos na produção desafiam os velhos preconceitos e antigos hábitos de organização social, mas não os derrota automaticamente. Muitos seres humanos lutam contra a mudança e aqueles que querem introduzir novos métodos de produção têm de lutar para mudar. Se aqueles que se opõem vencem, as novas formas de produção não podem ser aplicadas e a produção fica paralisada ou mesmo volta para trás.

Na terminologia marxista: quando as forças de produção se desenvolvem, chocam-se com as relações sociais pré-existentes e com as ideias que surgiram sob as velhas forças de produção. E aí, ou as pessoas que se identificam com as novas forças de produção levam a melhor, ou são aquelas que se identificam com o velho sistema. No primeiro caso, a sociedade move-se para frente, no outro permanece paralisada ou mesmo recua.


Inclusão 12/08/2010