O Que é o Marxismo?

Chris Harman


A teoria do valor-trabalho


Mas as máquinas, o capital, produzem bens tanto quanto o trabalho. Assim, é justo que o capital, como o trabalho, receba a sua parte da riqueza produzida. Cada “fator de produção” tem que ter a sua recompensa.

Isso é comoresponde alguém que tivesse aprendido um pouco de economia pró-capitalista à análise marxista da exploração e da mais-valia. E, à primeira vista, esta objeção parece fazer algum sentido. Porque, certamente, não se pode produzir riqueza sem capital. Os marxistas nunca afirmaram o contrário. Mas o nosso ponto de partida é totalmente diferente. Começamos por perguntar: de onde vem o capital? Como os meios de produção surgiram pola primeira vez?

A resposta não é difícil de achar. Tudo o que os humanos têm usado na sua história para criar riqueza — seja um machado de pedra neolítico ou um computador— teve, em qualquer momento, que ser criado polo trabalho humano. Mesmo os instrumentos necessários para fazer o machado vêm de ferramentas de trabalhos anteriores.

É por isso que Karl Marx costumava se referir aos meios de produção como “trabalho morto”. Quando os homens de negócios se gabam do capital que possuem, na realidade estão se gabando do fato de que eles controlam um enorme manancial de trabalho das gerações anteriores — o que não quer dizer que seja o trabalho dos seus antepassados, que não trabalharam mais do que fazem agora.

A noção de que o trabalho é a fonte de riqueza — costumeiramente chamada de «teoria do valor» — não é uma descoberta original de Marx. Todos os grandes economistas pró-capitalistas antes que ele tinham-na aceitado.

Alguns, como o economista escocês Adam Smith ou o economista inglês David Ricardo, tinham escrito quando o sistema do capitalismo industrial ainda era jovem — poucos anos antes e pouco depois da Revolução Francesa. Os capitalistas não dominavam ainda a sociedade e precisavam saber a verdadeira fonte da sua riqueza se quisessem chegar um dia ao poder. Smith e Ricardo serviam a seus interesses mostrando-lhes que o trabalho criava a riqueza, e que para construir a sua riqueza precisavam “libertar” o trabalho do jugo das antigas classes dominantes pré-capitalistas.

Mas não demorou muito para que pensadores próximos à classe trabalhadora virassem o argumento contra os amigos de Smith e Ricardo: se o trabalho cria riqueza, então o trabalho cria o capital. E os “os direitos do capital” nada mais são do que os direitos do trabalho usurpado.

Rapidamente, os economistas que apoiavam o capital começaram a dizer que a teoria do valor era infundada. Mas quando aprofundamos um pouco mais na sua argumentação, volta de uma forma ou outra.

Ligue o rádio. Ouça algum tempo e você logo ouvirá alguém dizer que o que há de errado com a economia francesa é que “as pessoas não trabalham duro o suficiente” ou, dizendo de outro jeito, que “a produtividade está muito baixa”. Não vamos discutir agora se se concorda ou não com essa afirmação. Em vez disso, veja como são apresentados. Eles nunca dizem “as máquinas não trabalham duro o bastante”. Não, é sempre o povo, os trabalhadores.

Eles alegam que se os trabalhadores trabalhassem mais duro, mais riqueza poderia ser criada, e que isso tornaria possível mais investimentos em novas máquinas. Aqueles que usam tais argumentos podem não saber, mas elas estão argumentando que mais trabalho criará mais capital. O trabalho é a fonte da riqueza.

Suponhamos que eu tenho uma nota de cinquenta francos no bolso. Qual é a sua utilidade para mim? Afinal, não passa de um pedaço de papel. O seu valor reside no fato de que eu possa receber em troca algo útil, que foi produzido através do trabalho de alguém. A nota de cinquenta francos, na verdade, não é nada mais do que o direito a uma certa quantidade de trabalho. Duas notas de cinquenta francos serão o direito de dispor dos produtos duas vezes esse montante e assim por diante.

Quando medimos a riqueza, estamos medindo, de fato, a quantidade de trabalho que foi necessária para criá-la.

Claro, todo o mundo não produz a mesma quantidade num determinado período de tempo. Se eu tentasse, por exemplo, fazer uma mesa, levar-me-ia cinco ou seis vezes mais tempo do que um carpinteiro. Mas ninguém são da cabeça iria me pagar cinco ou seis vezes o preço de uma feita polo carpinteiro. Avaliará-se o seu valor dependendo da quantidade de trabalho fornecido polo carpinteiro e não por mim.

Suponhamos que leva uma hora o carpinteiro para fazer a mesa, o valor da mesa será considerado como o equivalente a uma hora de trabalho. Este será o tempo de trabalho socialmente necessário para fazer a mesa, considerado o nível médio de tecnologia e habilidade na sociedade.

Por essa razão, Marx insistia em que o valor de algo não era simplesmente o tempo que levou um indivíduo para fazê-la, mas o tempo que levaria um indivíduo para trabalhar dentro do nível médio de tecnologia e habilidade — ele chamou esse nível médio de trabalho necessário “o tempo de trabalho socialmente necessário”. Este ponto é crucial porque sob o capitalismo os avanços tecnológicos estão ocorrendo constantemente, o que significa que leva cada vez menos tempo produzir.

Por exemplo, quando os rádios eram feitos com válvulas térmicas, eles eram muito caros, porque havia grande quantidade de trabalho na fabricação das válvulas, para conectá-las, etc. Em seguida o transistor foi inventado, e este podia ser fabricado e montado em menos tempo. De repente, os trabalhadores das fábricas de rádio que ainda utilizavam válvulas, descobriram que o preço do que eles produziam tinha desabado, pois o valor dos rádios já não era mais determinado polo tempo de trabalho necessário para fabricar com válvulas, mas polo tempo necessário para fabricá-los com transistores.

Um último ponto. Os preços de certas cousas flutuam muito — dia por dia e semana por semana. Estas mudanças podem vir de muitas outras razões que a diminuição do tempo necessário para produzi-las.

Quando a geada mata todas as plantas de café no Brasil, o preço do café dispara, porque acontece uma escassez no mundo e as pessoas estão dispostas a pagar mais. Se amanhã uma catástrofe qualquer chega a destruir todas as televisões na França, não tenha perda de que o preço dos televisores irá disparar do mesmo jeito. O que os economistas chamam de “oferta e procura” explica tais flutuações no preço.

Por esta razão, muitos economistas pró-capitalistas defendem que a teoria do valor é uma insensatez. Dizem que só a oferta e a procura é o que importa. Mas isso é que é insensato. Esquecem-se que quando os preços variam, variam em torno de um nível médio. O mar avança e recua com as marés, mas isso não significa que não possamos falar sobre um ponto fixo em torno do qual se move, ao qual chamamos nível do mar.

Da mesma forma, o fato de que os preços subam e desçam todos os dias não significa que não existam valores fixos em torno dos quais flutuem. Assim, se todos os televisores fossem destruídos, os primeiros a serem fabricados seriam muito procurados e seriam muito caros. Mas não demoraria muito para que mais e mais aparelhos chegassem ao mercado, competindo uns com os outros, o que inevitavelmente baixaria os preços até atingir o seu valor em termos de trabalho necessário para produzi-los.

Competição e acumulação

Houve um tempo em que o capitalismo parecia ser um sistema dinâmico e progressista. Na maior parte da história humana, as vidas da maioria dos homens e mulheres foram dominadas pola escravidão e pola exploração. O capitalismo industrial, quando apareceu nos séculos XVIII e XIX, não mudou isto. Mas ele parecia ter dado a essa escravidão e à exploração uma finalidade útil. Ao invés de gastar grandes quantias no luxo de uns poucos parasitas aristocratas, ao invés de construir luxosos túmulos para monarcas falecidos, ao invés de se envolver em guerras fúteis para conquistar um pedaço de território para o filho de algum imperador, usou a riqueza para construir o meio polo qual produzir ainda mais riquezas. O surgimento do capitalismo foi um período de crescimento das indústrias, cidades, meios de transporte, em uma escala inimaginável para as gerações anteriores.

Estranho como possa parecer hoje, cidades como Lille, Lyon e alguns subúrbios de Paris eram lugares milagrosos. A humanidade nunca antes tinha visto tanto algodão e lã em bruto transformados tão rapidamente em vestuários para vestir milhões de pessoas. Isto não aconteceu polas qualidades especiais dos capitalistas. Eles eram sempre pessoas as mais das vezes doentias, obcecadas apenas polas riquezas que poderiam conseguir com o mínimo pagamento polo trabalho utilizado.

Muitas classes dominantes anteriores tinham sido como eles neste aspecto, sem terem construído indústrias. Mas os capitalistas eram diferentes em dous aspectos importantes. Primeiro, do que já falamos, é que eles não possuem os trabalhadores, pagam-lhes pola sua habilidade no trabalho, pola sua força de trabalho. Usam escravos assalariados, não escravos. Em segundo lugar é que eles próprios não consomem os bens que seus trabalhadores produzem. O senhor feudal vivia diretamente da carne, do pão, queijo e vinho produzidos polos servos. Os capitalistas vivem da venda para outras pessoas dos bens produzidos polos seus trabalhadores.

Isto deu ao capitalista individual menos liberdade para fazer o que bem entende que o proprietário de escravos ou o senhor feudal. Para vender as suas mercadorias, o capitalista deve produzir ao menor custo possível. O capitalista possui a fábrica e dentro dela é todo poderoso. Mas não pode usar este poder como quiser. Tem que se ajoelhar perante as exigências da competição com outras fábricas.

De volta ao nosso capitalista favorito, Sr. Dupont. Suponhamos que uma certa quantidade de algodão produzida na sua fábrica exige dez horas de trabalho para ser produzido, mas noutra fábrica essa mesma quantidade leva cinco horas. O Sr. Dupont será incapaz de obter para o seu produtos o equivalente a dez horas de trabalho. Nenhuma pessoa sensata iria pagar esse preço quando poderia pagar mais barato do outro lado da rua.

Qualquer capitalista que queira sobreviver nos negócios tem que assegurar que seus trabalhadores trabalham tão rápido quanto possível. Mas isso não é tudo. Deve também assegurar que os seus trabalhadores trabalhem com as máquinas mais modernas, de modo que o trabalho deles produza tanta riqueza numa hora quanto os trabalhadores que trabalham noutras fábricas. O capitalista que quiser sobreviver, tem que ter cada vez mais maiores quantidades de meios de produção — ou, como Marx disse, acumular capital!

A concorrência entre os capitalistas produziu um poder, o sistema de mercado, que prende todos sob seu controle. Ele obriga todos a acelerar o ritmo o tempo todo e investir constantemente em novas máquinas (e, naturalmente, manter a sua vida de luxo), e eles somente podem se dar ao luxo de gastar em novas máquinas se mantiverem os salários dos seus trabalhadores o mais baixo possível.

Marx escreveu na sua maior obra, O Capital, que o capitalista é um avarento obcecado em juntar mais e mais riquezas. Mas, o que no avarento é apenas pequenas excentricidades, no capitalista, é o efeito de um mecanismo social em relação ao qual ele é uma das engrenagens. O desenvolvimento da produção capitalista torna constantemente necessário aumentar a quantidade de capital colocado num determinado setor, e a força da concorrência obriga cada capitalista a respeitar as normas imanentes sob pena de ser esmagado. Isso os obriga a manter seu capital crescendo constantemente para preservá-lo. Mas ele só pode fazer isso através de uma progressiva acumulação.

Acumulai! Acumulai! Eis Moisés e os seus profetas.

A produção não atende às necessidades da humanidade — mesmo às necessidades dos capitalistas — mas serve para possibilitar ao capitalista sobreviver na competição com os outros capitalistas. Os trabalhadores, empregados por cada um deles, descobrem que as suas vidas são dominadas pola necessidade dos seus empregadores de acumular mais rapidamente que os seus rivais.

Como diz o Manifesto Comunista:

Na sociedade burguesa o trabalho vivo é um meio para aumentar o trabalho acumulado... O capital é independente e pessoal, enquanto o indivíduo nem tem independência, nem personalidade.”

A compulsão dos capitalistas por acumular, em concorrência uns com os outros, explica os grandes avanços industriais nos primeiros anos do sistema. Mas outra cousa também resultou, as crises econômicas recorrentes. Elas são tão velhas como o próprio sistema.


Inclusão 23/08/2010