A Esquerda no Limiar do Século XXI

Marta Harnecker

2000


Primeira Edição: número 18 de Abrente. Marta Harnecker é educadora popular chilena e autora de numerosos trabalhos de investigaçom sobre a esquerda lationamericana. Na actualidade mora em Cuba, donde enviou, a solicitude de ABRENTE, este artigo em que apresenta algumhas das ideias que desenvolve no seu mais recente livro: Tornar possível o impossível. A esquerda no limiar do século XXI. Campo das Letras Editores, Porto, 2000. Texto em Galego

Fonte: Primeira Linha em Rede

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Dificuldades para um perfilamento alternativo

Findando o século XX temos que reconhecer que vivemos tempos angustiosos, cheios de confusom e de incerteza. A deterioraçom do nível de vida da maioria da populaçom do planeta, incluindo a sectores cada vez amplos das camadas médias, é alarmante; a ameaça do desemprego é umha preocupaçom presente, quer nos países desenvolvidos, quer nos países pobres; a fragmentaçom social e organizativa tam chegado a graus extremos; a deterioraçom do ambiente ameaça a sobrevivência das futuras geraçons; a corrupçom generalizada produz um largo efeito desmoralizador; continua estando presente o perigo da guerra, incluso nuclear. Face a esta realidade umha opçom alternativa, — socialista ou como se quiger chamar —, torna mais urgente do que nunca, se nom estivermos dispost@s a aceitar esta cultura integral do desperdício, material e humano, que, — como di o sociólogo cubano Juan Antonio Blanco— nom só gera lixo nom reciclável pola ecologia, como também desperdícios humanos difíceis de reciclar socialmente ao empurrar os grupos sociais e naçons inteiras ao desamparo colectivo.

Som enormes os desafios que esta situaçom coloca à esquerda, e esta nom está nas melhores condiçons para defrontá-los. A derrota do socialismo na Europa do Leste e na URSS, nom só muda drasticamente a correlaçom de forças em favor das forças mais reaccionárias, transformando os EEUU na potência hegemónica sem contrapesos, senom que, ao mesmo tempo, fai desaparecer do horizonte o principal referente prático na luita polo socialismo. O seu quefazer poítico fica orfo de modelos explicativos e orientadores: a maioria dos velhos modelos ruírom e os novos nom conseguem mostrar a sua efectividade. Existe um excesso de diagnóstico e umha ausência de terapêutica.

Todo isto dificulta o perfilamento alternativo da esquerda: mas há outros dous elementos que contribuem para o mesmo: de umha parte, que a direita se tenha apropriado inescrupulosamente da linguage da esquerda, o que é particularmente notório nas suas formulaçons programáticas: palavras como reformas, mudanças de estrutura, procupaçom pola pobreza, transiçom, fam hoje parte do discurso habitual da direita. Doutra parte, a tendência cada vez mais generalizada da esquerda a adoptar umha prática política muito pouco diferenciada da prática habitual dos partidos tradicionais, forem de direita ou de centro.

E todo isto dá-se no contexto dum crescente cepticismo popular em relaçom com a política e os políticos: cada vez mais gente rejeita as práticas partidárias clientelistas, pouco transparentes e corruptas; as mensages que ficam em meras palavras, que nom se traduzem em actos. Reina a indiferença e esta apenas favorece as classes dominantes, as que costumam atingir umha adesom limitada, mas maior do que as forças da esquerda –que de resto, muito amiúde se apresentam divididas às contendas eleitorais. É sintomático, por exemplo, que no Chile mais de 800 mil jovens optassem por nom inscrever-se nos registos eleitorais, ou que a abstençom nas últimas eleiçons presidenciais no Salvador fosse de mais de 60%.

Rejeitamento da política como arte do possível

Umha parte da esquerda, nalguns países infelizmente maioritária, ao verificar a impossibilidade imediata de mudar as cousas devido à tam desfavorável correlaçom de forças existente no seu próprio país e no mundo, julgam que nom fica outro caminho que ser realistas, reconhecer essa impossibilidade e limitar-se a adaptar-se oportunisticamente na situaçom existente. Adopta, ao dizer de Gramsci, a atitude dos diplomatas, que devem procurar a melhor forma de desempenharem-se dentro dos quadros estatuídos, sem procurarem mudar a situaçom. A política assi concebida exclui, de feito, toda tentativa por levantar umha alternativa frente ao capital neoliberal.

Considero que a esquerda, se quiger ser tal, nom pode instalar-se no já estatuído como se as correlaçons de forças e as regras do jogo fossem imodificáveis; nom pode, portanto, conceber a política como a arte do possível. Todo o seu accionar deve ir justamente dirigido a mudar esta situaçom. Mas a concepçom da política como a arte do possível nom deve opor umha política voluntarista, que ignore as circunstáncias concretas em que há que agir, que pretenda criar do nada. A esquerda deve partir agora da realidade efectiva, mas ao mesmo tempo deve aplicar a sua vontade para a criaçom dumha nova correlaçom de forças partindo do que nessa realidade há de progressismo para reforçá-lo e de limitante ou freio para combatê-lo. Trata-se de partir da realidade efectiva, nom para submeter-se a ela, como fai a esquerda "diplomática", senom para elaborar umha estratégia que lhe permita dominá-la e ultrapassá-la ou, polo menos, contribuir para isso.

Para a esquerda conseqüente, a política deve consistir, entom, na arte de descobrir as potencialidades que existem na situaçom concreta de hoje para fazer possível amanhá o que no presente parece impossível. Trata-se de construir umha correlaçom de forças favorável ao movimento popular, a partir de aquilo que dentro das suas fraquezas constitui os seus pontos fortes.

E, quais som os pontos fortes do movimento popular?. A resposta a esta pergunta depende de cada época histórica e da situaçom de cada país. Para os trabalhadores da revoluçom industrial a sua fortaleza radicava na sua força numérica, a existência de grandes concentraçons operárias, a sua capacidade de organizaçom, a sua identidade como classe oprimida. A organizaçom e a unidade dos trabalhadores, quantitativamente muito mais numerosos do que os seus inimigos de classe, era a sua força, mas era umha força que havia que construir, e só tomando esse caminho virou possível aquilo que inicialmente parecia impossível: dobregar os capitalistas obrigando-os a reconhecer jornadas de trabalho cada vez mais curtas, a aceitar a sua organizaçom sindical, a outorgar-lhes salários mais altos e em geral melhores condiçons de trabalho e vida.

Hoje essa situaçom tem variado muito, é necessário fazer um diagnóstico e determinar qual é a situaçom actual, quais os pontos fortes que o movimento popular deve potenciar para que se poda construir realmente umha força anti-sistema. Nom basta já a unidade dos trabalhadores directamente explorados polo capital, cumpre construir laços entre todos os sectores sociais prejudicados polo capitalismo neoliberal, que cada dia som mais.

 A política como construçom de força social anti-sistema 

Conceber a política como construçom de forças implica abandonar a visom tradicional da política que tende para reduzí-la exclusivamente ao relacionado coas instituiçons juridico-políticas e a exagerar o papel do Estado; nesta visom caem tanto os sectores mais radicais da esquerda, como os mais moderados: os primeiros centram toda a acçom politica na tomada do poder político e a destruiçom do Estado, e os mais reformistas na administraçom do poder político ou exercício de governo. Todo se concentra nos partidos políticos e na disputa à volta do controlo e orientaçom dos instrumentos formais do poder; os sectores populares e as suas luitas som ignorados.

Pensar em construçom de forças é também ultrapassar a estreita visom que reduz o poder aos aspectos repressivos do Estado. O poder inimigo nom só é repressivo senom também — como di o sociólogo chileno Carlos Ruíz — construtor, moldeador, disciplinante. Se o poder das classes dominantes só actuasse como censura, exclusom, como instalaçom de obstáculos ou repressom, seria mais frágil. Se é mais forte é porque, além de evitar o que nom quer, é capaz de construir o que quer, de moldear condutas, de produzir saberes, racionalidades, consciências, de forjar umha forma de ver o mundo e de vê-lo ele próprio.

Pensar em construçom de forças é também superar o antigo e arreigado erro de pretender construir força política sem construir força social.

Ora bem, o que mais temem e, por isso, o que mais combatem as classes dominantes é justamente o surgimento dumha força social anti-sistema, quer dizer, que os sectores populares se unam e se organizem para reivindicar os seus direitos e rejeitar o sistema imperante. Os pobres dispersos e cumha atitude mendicante nom lhes produzem problemas, daí a sua prédica em favor de soluçons individuais e a sua restriçom da política ao palco jurídico-político-institucional.

E se isto tem sido sempre válido, é-o mais ainda hoje, sob o neoliberalismo, quando um elemento chave da estratégia de poder das classes dominantes é conseguir a máxima fragmentaçom da sociedade, porque umha sociedade dividida em diferentes grupos sociais minoritários, isolados uns de outros, impede que surja umha maioria questionadora da hegemonia vigente.

A chave para manter estes grupos isolados uns de outros é procurar conscientemente desorientá-los a respeito dos seus possíveis objectivos comuns, estimular as contradiçons que puderem existir entre eles para que nom assumam luitas colectivas e impedir que se criem espaços em que se puderem projectar projectos objectivos que forem para além de cada grupo particular, quer dizer, que puderem ser partilhados por outros grupos, dando passage a potenciais acordos e alianças.

Daí que umha das tarefas mais fundamentais da esquerda seja a superaçom da dispersom e atomizaçom do povo explorado e dominado; a construçom da sua unidade. E para lográ-la devem ter em conta os objectivos criados pola estratégia das classes dominantes. Isto implica nom deixar-se levar pola situaçom, senom actuar sobre ela selecionando, através dumha análise política global, os espaços e conflitos onde deve concentrar a suas energias em funçom do objectivo central: a construçom da força popular.

Concebo entom a política como a arte da construçom dumha força social anti-sistema e ponho o acento na palavra "construçom"; porque nom se pode conceber como algo já dado, senom como algo que há que construir. Nom basta a soma de grupos e movimentos sociais: coincido com Erich Hobsbawm em que se só se somarem minorias, especialmente se se tratar de grupos heterogéneos, nom se obtenhem maiorias.

 Um instrumento político adequado

Mas para construir esta força social requer-se dum sujeito construtor, dum instrumento político capaz de orientar a sua acçom a essa construçom com base numha análise da totalidade da dinámica política; um instrumento político dirigido à sociedade, cuja fortaleza nom esteja tanto na quantidade de militantes que possua e as actividades internas que realize, como na influência social que tenha.

Para isso deve ter muito presente as características específicas desse sujeito popular, muito diferente do de décadas anteriores. Deve ter no alvo nom só a exploraçom económica dos trabalhadores, senom também as diferentes formas de opressom e de destruiçom da pessoa e a natureza que gera o sistema opressor e que vam mais alá da relaçom entre capital e força de trabalho. Deve, portanto, abandonar o reducionismo classista, assumindo a defesa de todos os sectores sociais discriminados e excluídos económica, política,  social e culturalmente. Além dos problemas de classe, devem preocupá-la os problemas étnico-culturais, de raça, de género, de sexo, de meio natural. Nom deve ter presente só a luita dos trabalhadores organizados, mas também a dos trabalhadores nom organizados, a luita das mulheres, indígenas, pret@s, jovens, crianças, reformad@s, minusválid@s, homossexuais, etc.

De outra parte, considero que a preocupaçom fundamental da organizaçom política nom deveria ser a de procurar conter no seu seio os representantes legítimos de todos os que luitam pola emancipaçom, senom gerar espaços de encontro e esforçar-se por articular a suas práticas num projecto político único.

 Umha nova esquerda que esteja à altura dos desafios

Para terminar, quereria dizer que os nossos povos merecem umha nova esquerda que esteja à altura dos desafios que lhe coloca o mundo de hoje, um mundo muito diferente do que existia quando eu me iniciava na política: cheio de obstáculos, mas também de oportunidades. Ter presentes os primeiros para elaborar umha estratégia que permita superá-los, e conhecer as segundas, para construir a partir delas propostas alternativas solidárias é essencial. Estou convencida de que o único caminho para avançar na luita por criar as condiçons dumha profunda transformaçom social é evitar cair numha atitude nostálgica face ao passado e decidir-se a construir criadoramente o porvir.


Inclusão 17/06/2019