A Venezuela pós-referendo: os novos desafios

Marta Harnecker

24 de fevereiro de 2004


Fonte: http://resistir.info

HTML: Fernando Araújo.


Agradeço a todos os que leram este trabalho e me fizeram sugestões. Quero fazer um agradecimento especial ao meu companheiro, Michael Lebowitz, a quem devo ideias muito importantes.

No passado dia 15 de Agosto, a oposição venezuelana sofreu a terceira grande derrota na tentativa de derrotar o governo do Presidente Chávez. Um referendo revogatório inédito na história mundial ratificou o seu mandato com uma enorme diferente de votos(1) perante os olhares atentos de centenas de observadores internacionais que ratificaram unanimemente os resultados. Constituiu, como afirmou um deles, Eduardo Galeano, conhecido escritor uruguaio, «uma injecção de optimismo neste mundo, onde a democracia está tão desprestigiada» por ter sido incapaz de resolver a pobreza.

Foi o triunfo, não de um homem, mas de um projecto de país humanista e solidário, tanto na sua projecção nacional como internacional, que surge como alternativa ao modelo neoliberal voraz e depredador. Um modelo de desenvolvimento endógeno e de economia social. Foi o triunfo da actual Constituição venezuelana, a única constituição do mundo que contempla a figura do referendo revogatório do mandato presidencial.(2) Mas foi, acima de tudo, um triunfo do povo, da organização popular, das classes baixas mas também da classe média que respondeu ao pedido do presidente para se organizar, tomando a iniciativa sem esperar que os organismos de condução da campanha eleitoral fossem constituídos.

Com este triunfo começa uma nova etapa do processo revolucionário bolivariano. A oposição foi derrotada nesta batalha, mas não há dúvida de que a guerra não foi ganha. Antes de referir-me a esta nova etapa é importante analisar o contexto em que esta se dá, analisando brevemente as etapas anteriores.

Antecedentes económico-sociais

A Venezuela, a quinta potência petrolífera mundial,(3) historicamente sempre foi uma sociedade muito desigual. Uma oligarquia desfrutava de um nível de vida extraordinariamente alto, enquanto grande parte da população vivia na pobreza. Quando, no início da década de setenta, os militares, entre eles Chávez, patrulhavam as fronteiras em operações anti-subversivas, não encontravam guerrilheiros mas sim pobreza.

A adopção por parte de Carlos Andrés Peres do pacote de medidas neoliberais em Fevereiro de 1989 provocou uma explosão popular de grande envergadura. Os pobres desceram dos montes onde viviam, assaltaram supermercados e todo o tipo de lojas. As forças armadas impuseram a ordem através de metralhadoras. Milhares de pessoas morreram com balas assassinas. Uma parte do povo começou a despertar.

As medidas neoliberais apenas aumentaram os índices de pobreza. Os principais afectados foram os camponeses. Em apenas três anos, 600 mil pessoas migraram para as cidades. A força laboral camponesa diminuiu 10 por cento. Aumentou muito o trabalho informal (de 34,5 por cento em 1980 passou para 53 por cento em 1999). A classe trabalhadora industrial diminuiu: a privatização parcial ou total de sectores como as telecomunicações, os portos, o petróleo, a indústria do aço e as linhas aéreas depois de 1989 reduziu o tamanho da força laboral em zonas estratégicas e transferiu a propriedade para capitais estrangeiros. A prática da subcontratação criou um problema adicional. A desigualdade económica e o desemprego aumentaram (este passou para 15,4 por cento). O salário real sofreu uma grande quebra. A fragmentação social cresceu consideravelmente. Nasceram múltiplas organizações populares, mas sem conseguir uma representatividade nacional. Apenas 17 por cento do movimento sindical manteve-se organizado e deixou de representar os sectores populares.

A crise económica arrastou consigo uma crise política. Imperava a corrupção. Crescia o cepticismo em relação à política e aos políticos. Reinava a apatia. Não se vislumbrava uma saída.

Tudo isto explica porque Hugo Chávez Frias – cuja figura emerge como uma alternativa à crise – ganha folgadamente as eleições presidenciais de 6 de Dezembro de 1998 com 56 por cento dos votos na primeira volta. O povo, cansado de corrupção e cada vez mais céptico em relação à forma tradicional de fazer política, apostou num candidato de novo tipo.(4)

O ex-tenente coronel deu-se a conhecer ao país como líder do movimento de militares bolivarianos MBR 200,(5) ao tentar concretizar uma insurreição militar em 4 de Fevereiro de 1992(6) para derrotar o então presidente Carlos Andrés Pérez, considerando que era corrupto e que traía a Constituição. Uma vez saído da prisão, pouco mais de dois anos depois do fracassado golpe, Chávez começou a percorrer o país tentando convencer o povo da necessidade de uma mudança institucional profunda para poder tirar a Venezuela do caos, da corrupção, da inoperância e realizar as transformações económico-sociais de que o país tanto precisava.

Depois de descartar a via insurreccional, decide conquistar o poder pela via institucional. Um quarto de século depois da derrota de Allende no Chile, outro governante latino-americano decidiu realizar transformações económico-sociais profundas no seu país por via pacífica. Mas, desta vez, tratava-se de uma via pacífica armada (contava com o apoio da grande maioria dos militares) e tinha como premissa fundamental mudar as regras do jogo no terreno institucional, dois elementos ausentes no processo chileno.

Primeira etapa: criar as condições institucionais para a transformação sócio-económica

Chávez iniciou o seu mandato com o mais absoluto isolamento internacional. O neoliberalismo impunha-se como modelo único. A retaguarda socialista – com que anteriores tentativas revolucionárias latino-americanas tinham contado – havia desaparecido. O seu principal adversário, os Estados Unidos, tinham-se transformado na primeira potência militar mundial sem qualquer contrapeso.

Que fazer nesta situação? Chávez dedica o primeiro ano do seu governo a alterar a correlação negativa de forças internacionais(7) e a consolidar a correlação de forças interna. Cria um plano de emergência social para os sectores mais desprotegidos (Projecto Bolívar 2000), a sua principal base social de apoio, e adopta medidas educacionais que favorecem este sector: recupera a gratuidade do ensino e cria escolas bolivarianas.(8) Preocupa-se também em formar ideologicamente o povo. Inaugura o programa radiofónico aos domingos, «Alô, Presidente», de contacto directo com o povo (posteriormente transforma-se num programa televisivo). Ao mesmo tempo, constrói as condições institucionais que o permitem avançar nas transformações sócio-económicas.

Por sua vez, a oposição oligárquica procura neutralizar o novo mandatário tentando cooptá-lo. Derrotada eleitoralmente, conta no entanto com um enorme poder: o poder económico-financeiro, o controle da gestão da indústria petrolífera estatal (PDVSA); uma maioria esmagadora nos órgãos de poder legislativo e judicial e nos governos locais (governadores e presidentes de municípios); um controlo mediático quase de monopólio; o apoio não só do grémio empresarial, mas também da mais poderosa central sindical (CTV); de alguns generais de alta patente e da alta hierarquia da Igreja Católica, intimamente ligada às elites empresariais. A acrescentar a isto, mantém estreitos laços com Washington.

Ainda que o recém eleito presidente contasse com o apoio de amplos sectores populares, camadas médias e militares que depositaram nele as suas esperanças, trata-se de uma maioria eleitoral muito desorganizada. Na Venezuela não existiam, como no Chile ou no Brasil, partidos de esquerda fortes. O Movimento Quinta República (MVR), recém criado, que conseguiu crescer muito, viu-se limitado pelo processo constituinte. A central sindical e, em geral, os movimentos populares eram débeis e foram descaradamente manipulados pelos partidos tradicionais. Não é de estranhar então que Chávez tivesse de se apoiar nas Forças Armadas, a única estrutura nacional com que nesse momento contava para realizar os seus planos.

No plano interno, a primeira prioridade do Governo foi mudar as regras do jogo institucional, quer dizer, tudo o que tivesse a ver com o processo constituinte.(9) A nova Constituição, entretanto aprovada, foi desde então a carta de navegação de todos os que apoiam o processo. Uma constituição anti-neoliberal, que traça um novo modelo de democracia profundamente participativa e um novo modelo económico cooperativo, de autogestão, movido por uma lógica humanista e solidária.

Depois de aprovada a Constituição, o segundo passo(10) foi mudar a correlação de forças nas instituições do Estado. A 30 de Julho realizam-se as «mega-eleições» (para presidente, deputados à Assembleia Nacional, governadores e presidentes dos municípios). Os resultados são muito favoráveis para o Governo. O presidente é reeleito com 57 por cento da votação contra 37 por cento do seu rival mais directo, Árias Cárdenas. O Pólo Patriótico(11) obtém uma maioria esmagadora de deputados. A força política que o secundo é a AD, apenas com 20 lugares. A COPEI extingue-se virtualmente.
É sintomático que Chávez tenha sido acusado de ditador a nível internacional quando é o governante que mais consultas populares realizou no mundo em tão curto espaço de tempo: oito, se contarmos com o recente referendo revogatório.(12) Graças aos resultados eleitorais, o chavismo chega a dominar os aparelhos institucionais e a oposição, profundamente dividida, fica com uma escassa influência na Assembleia Nacional. Perante a crise dos partidos tradicionais, os meios de comunicação de massas transformam-se no verdadeiro partido da oposição.
O terceiro passo(13) foi elaborar uma legislação revolucionária. Mas, como o processo legislativo – que devia concretizar a Constituição materializando-a em leis que permitissem torná-la operante – caminhava de forma excessivamente lenta (inexperiência dos deputados chavistas, interferência dos deputados da oposição), o presidente viu-se obrigado a aproveitar as facilidade que lhe outorgava a Constituição (amplos poderes especiais para legislar ou a chamada Lei Habilitante)(14) para ditar, a 10 de Dezembro de 2001, 49 leis, entre elas a Lei da Terra, a Lei da Pesca, a Lei dos Hidrocarbonetos, a Lei de Micro-Créditos e a Lei das Cooperativas. Este pacote de leis demonstra a sua decisão de levar por diante o processo revolucionário. A oligarquia, afectada pela primeira vez nos seus interesses económicos, perde a esperança de cooptá-lo como tradicionalmente costumava fazer com outros políticos.
Pensando na forma de melhorar a correlação interna de forças perante a ofensiva da oposição que deveria surgir, Chávez lança a iniciativa dos «círculos bolivarianos». Apela às pessoas, onde quer que estivessem, para se organizarem em grupos de 7 a 11 elementos para difundir a Constituição e fazer tarefas concretas: responder às necessidades do bairro, formar uma cooperativa, conseguir um empréstimo no banco, etc. O presidente tem plena consciência de que, sem a participação popular, a revolução ficaria sem combustível.(15)

Segunda etapa: a grande ofensiva da oposição e os esforços de sobrevivência por parte do Governo

A reacção da oposição face à decisão de Chávez de avançar com o processo não se fez esperar. Começa a dar os primeiros passos de uma grande ofensiva ao terminar os seus mandatos, fortalecida pela forte investida dos meios de comunicação. Às grandes manifestações de rua que vinha promovendo, junta a convocação de uma paralisação laboral a 10 de Dezembro de 2001, dia em que Chávez decretou as 49 leis.

Qual é a correlação de forças nesse momento? No terreno institucional, muito menos favorável do que ao início. Miquilena – que nessa altura era ministro do Interior e tinha sido o principal colaborador político do presidente no início do processo – é demitido do seu cargo (início de 2002) depois de manifestar o seu desacordo em avançar com as 49 leis e passa a ser uma das principais figuras do bloco anti-governo. A sua retirada do campo chavista constituiu um severo golpe para o presidente, pois o seu gesto foi imitado por muitos seguidores, a maioria dos quais devia o seu cargo nas instituições do Estado à influência desta turva personagem. O Governo deixa, assim, de ter uma maioria esmagadora na Assembleia Nacional e perde o controlo do poder judicial. Muitos altos magistrados vinculados a Miquilena passam a ter uma posição abertamente anti-governo, unindo-se aos magistrados que tinham uma postura claramente alinhada com as posições políticas da oposição. Por sua vez, um número não desdenhável de deputados abandona as filas do chavismo. As mobilizações contra o governo aumentam neste período e a oposição vai adquirindo cada vez mais confiança em si mesma.

Entretanto ocorrem os factos de 11 de Abril e dos dias seguintes – acontecimentos suficientemente conhecidos pelo leitor, razão pela qual não os abordaremos. O fracasso do golpe militar de Abril de 2002 (mais de 80 por cento dos generais com comando operacional mantiveram-se fiéis a Chávez e à Constituição) constitui a primeira grande derrota da oposição e um verdadeiro presente para Chávez.

Estas circunstâncias permitiram que os actores se desmascarassem e o povo adquirisse um nível político muito superior (nas fileiras militares e nos quadros civis já se sabe com quem se pode ou não contar). Criaram o terreno propício para avançar com a depuração da instituição militar. Dividiram a oposição. Fizeram com que sectores cada vez mais numerosos das camadas médias, que antes estavam contra o processo, recorressem à memória ao ver a anarquia a que poderia conduzir a marginalização de Chávez.

A organização popular cresceu rapidamente. Os círculos bolivarianos multiplicaram-se em todo o país adoptando as formas mais variadas. Surgiram novas organizações populares, como os Comités de Terras Urbanas, e diversas organizações das camadas médias, de médicos, professores, advogados, etc. Os dirigentes sindicais das várias áreas produtivas, críticos em relação à cumplicidade da CTV, aceleraram os seus trabalhos para construir uma força sindical autónoma, mas disposta a apoiar o processo. Os diferentes partidos de esquerda, que apoiavam Chávez mas mantinham posições muito críticas, decidiram reorganizar-se e constituir uma frente comum de apoio ao seu governo. Por outro lado, a experiência vivida fez com que se estudassem formas que permitissem ao presidente ter um contacto directo com os comandantes das tropas, nos casos em que os comandos superiores não pudessem cumprir essa função, e estabeleceram-se canais de comunicação entre os regimentos e as populações próximas. O processo, que tinha sido mal compreendido e pouco valorizado pela esquerda e pelas forças progressistas do mundo, começa a despertar a sua simpatia. A atitude violentamente contra-revolucionária da oposição não podia ser explicada senão pela existência no país de um verdadeiro processo revolucionário. Por fim, hoje existe uma opinião mundial contrária a qualquer outra tentativa de golpe de Estado.(16)

No entanto, a inédita e esmagadora vitória – cujos principais protagonistas foram o povo e as Forças Armadas – não desencadeou uma atitude ofensiva por parte do Governo, como muitos esperavam. Chávez considerou necessário primeiro medir as suas forças. Apesar do golpe ter sido derrotado e de a Constituição ter sido restabelecida, não era claro nesse momento com que apoio contava para continuar o processo revolucionário. Por isso, a primeira coisa que fez foi consolidar as suas forças perante um possível novo golpe de Estado. Particularmente, dedicou-se a purificar as instituições militares. Nomeou ministros mais aceitáveis para o meio empresarial na área económica. Restituiu a anterior direcção da oposição da PDVSA.(17) Admitiu a revisão de algumas Leis Habilitantes. Aceitou o estabelecimento de uma mesa de diálogo entre as partes em conflito.

Enquanto os tribunais deixavam em liberdade os golpistas, fortalecida pelas aparentes mostras de debilidade do governo, a oposição começa a reagrupar as suas forças e promove diversas tentativas de desestabilização: protesto de 14 militares na Praça de Altamira, apoiado por mais de 80 oficiais (22 de Outubro); iniciativas para forçar o presidente a submeter-se a um referendo antes do previsto; e novas tentativas de paralisação, optando finalmente pelo caminho do golpe económico.

A 2 de Dezembro de 2002, a oposição convoca uma paralisação cívica nacional. O objectivo é paralisar o país obrigando Chávez a demitir-se. Tenta parar a produção e a distribuição do petróleo. Apesar da maior parte dos grande e médios administrativos saírem dos seus lugares seguindo a convocação da oposição, os trabalhadores não o fazem e conseguem pôr as empresas a trabalhar. Como não consegue que os trabalhadores deixem de trabalhar, a oposição decide seguir o caminho da sabotagem. Através dos seus conhecimentos técnicos e do controle absoluto da informação da imprensa, os altos executivos da PDVSA modificam as chaves de acesso às empresas, interrompem processos, danificam gravemente algumas instalações e quase fazem desaparecer algumas delas: pessoal altamente qualificado recém-chegado descobriu que tinha sido alterado o sistema de controle da temperatura de algumas refinarias. Por último, como apesar de tudo a produção, ainda que diminuta, continuava, optaram por bloquear o transporte do petróleo bruto tanto dentro do país, como para o estrangeiro. Durante duas semanas conseguiram deter a circulação marítima. Esperavam que Chávez saísse do Governo antes do Natal.

Graças à firme condução do Presidente Chávez e ao comportamento exemplar dos trabalhadores petrolíferos e em geral ao resto dos trabalhadores e dos sectores populares do país, que souberam estar à altura das duras exigência desses dias, concretizou-se a segunda grande derrota da oposição. O país não parou. Chávez não se dobrou. Mas, o mais importante, a indústria petrolífera passou, de facto, para o controle do Estado venezuelano. Esta foi a segunda grande oferta da oposição. Através da sua actividade subversiva, sabotadora, cerca de 18 mil quadros administradores de níveis alto e médio, que, de facto exerciam o controlo da empresa, criaram as condições legais para serem despedidos.

O mais importante foi que com cada novo ataque da oposição aumentou a consciência e o protagonismo do povo. Não apenas se multiplicaram os círculos bolivarianos, os comités das terras urbanas, as assembleias de cidadãos, entre outras coisas, mas surgiram igualmente novas formas de organização popular: os correios motorizados, os grupos que se responsabilizaram de abrir as escolas que a oposição queria paralisar; círculos agrários e pesqueiros para a defesa dos seus direitos e das respectivas leis promulgadas pelo executivo; grupos de defesa do consumidor, que promoveram o boicote aos meios de comunicação, para protegerem as gasolineiras e a adequada distribuição de gás, para vigiar os camiões que transportavam o combustível, para proteger as instalações da empresa petrolífera de possíveis sabotagens da oposição, para proteger o Palácio de Miraflores; círculos de ajuda aos mais necessitados para resolver os problemas criados pelo golpe económico. Nasceu a Clase Media en Positivo para manifestar o apoio deste sector social ao governo.

Como todo este apoio popular e a participação activa das Forças Armadas recuperando barcos e protegendo os centros de produção e distribuição de alimentos e combustíveis, a 7 de Fevereiro de 2003, pouco mais de dois meses depois de iniciada a paralisação petrolífera, o presidente pôde anunciar ao país e ao mundo o fracasso da nova intentona desestabilizadora.

Não podemos, no entanto, deixar de mencionar os incalculáveis danos económicos causados pelas acções da oposição. Actualmente a economia venezuelana não recuperou completamente.

Terceira etapa: o árduo processo referendário

Com o Centro Carter(18) como intermediário, o Grupo de Países Amigos (que inclui os Estados Unidos) e a OEA, que fazem pressão para que haja um diálogo entre representantes do governo e da oposição, chega-se finalmente a acordo para procurar uma saída pacífica para a crise (29 de Maio).

Ambas as partes aceitam finalmente usar o instrumento legal que lhes outorga a constituição para resolver o conflito: o referendo revogatório. Muitas sondagens mostravam a perda de popularidade do presidente entre as camadas médias e os quadros políticos que inicialmente o apoiaram e os sectores populares que viam que as suas vidas não tinham mudado com a revolução apesar de todas as promessas recebidas. A oposição acreditava que conseguia tirar Chávez do poder através deste instrumento legal.

Contudo, com o fracasso do golpe económico e o início da recuperação da economia (incluindo a recuperação da produção petrolífera), o governo começa a alterar a correlação interna de forças. Em Abril de 2003, Chávez anuncia o reinício da ofensiva. A partir desse momento, lança várias campanhas a favor dos sectores sociais mais abandonados, as chamadas missões: consultórios médicos nos bairros populares;(19) campanha de alfabetização,(20) de educação média e superior;(21) abertura da Universidade Bolivariana aos estudantes que nunca haviam podido inscrever-se; venda de produtos alimentares a preços muito mais baixos que os das lojas. Estes programas foram calorosamente recebidos pela população e trouxeram novos adeptos para o processo.

É planificada a recolha de assinaturas em duas etapas: de 21 a 24 de Novembro e de 28 de Novembro a 1 de Dezembro. A primeira, para revogar deputados da oposição, realiza-se de forma exemplar, mas na segunda, para revogar os deputados chavistas e o primeiro representante, verificam-se muitas irregularidades, o que leva o presidente a denunciar, a meio do processo, que tudo faz pensar que está a ser levada a cabo uma mega fraude. Inicia-se, assim, um demorado processo de análise de impressões digitais e assinaturas reconhecidas. A oposição sustentava que as suas assinaturas eram válidas, os chavistas insistiam que eram fraudulentas.

        Após uma minuciosa revisão, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) chega à conclusão (2 de Março) de que, além das assinaturas recusadas como não sendo válidas, existem mais de 800 assinaturas da oposição que podem ser qualificadas como duvidosas e que devem ser objecto de um processo de reparação.(22) Se cerca de 600 não pudessem ser reparadas, os adversários de Chávez fracassariam na sua tentativa de impor o referendo revogatório contra o presidente. A oposição não aceitou o veredicto e recorreu aos tribunais de justiça, onde se dá um litígio interno.(23) Finalmente, no fim de Abril, o CNE fixa os processos de reparação: de 21 a 23 de Maio de 2004 para o referendo de revogação de deputados e de 28 a 30 desse mês para o referendo de presidente.

        Durante esse período, são constantes os ataques e mobilizações por parte da oposição contra o governo e para pressionar o CNE. O sector mais radical decide aproveitar a reunião do chamado Grupo dos 15 em Caracas (27 de Fevereiro) para promover uma série de acções violentas, procurando que o mundo ficasse com uma imagem de caos e ingovernabilidade do país que permitisse uma intervenção estrangeira. Comete o grande erro de realizar as acções nas urbanizações da classe média alta provocando grande repúdio por parte destas. Perante esta situação, decide alterar a campanha mediática, aproveitando o comportamento excessivamente drástico de alguns militares, na sua tentativa de impor ordem, para acusar o governo de violação dos direitos humanos e montar um espectáculo internacional. Em Maio, poucos dias antes do referendo e prevendo uma derrota na contenda que se aproximava, decide infiltrar um grupo de paramilitares colombianos provavelmente com a intenção de assaltar o palácio do governo e matar Chávez.

        Terminada a recontagem da maior parte das assinaturas recolhidas, o CNE anuncia a 3 de Junho que a oposição obteve o número de assinaturas suficientes para ir a referendo.(24) A oposição precisava de um número de assinaturas equivalente a 20 por cento dos eleitores que elegeram Chávez e alcançou essa meta.

        Que fazer perante esta situação? Muitos chavistas estavam convencidos de que tinha ocorrido uma enorme fraude e de que a oposição não tinha conseguido recolher as assinaturas requeridas. Consideravam que Chávez não devia reconhecer os resultados. Era o que a oposição também esperava e que, assim, Chávez fosse visto como um anti-democrata pela opinião pública nacional e internacional ao recusar o procedimento democrático estabelecido na constituição.

        Contudo, o presidente, um dos principais promotores da figura do referendo revogatório na Constituição,(25) contra todas as previsões, fruto da imagem criada pelos meios de comunicação opositores sobre si e as suas intenções, aceita os resultados do CNE e transforma de forma magistral a derrota parcial sofrida no processo numa contundente vitória. Com o optimismo que o caracteriza e que consegue sempre transmitir aos seus seguidores, enfrenta a contenda eleitoral como uma batalha que deve ser preparada com seriedade. Prevê, de forma correcta, que o combate eleitoral seria muito duro porque não bastaria ganhar com uma margem estreita, mas sim ganhar com uma vantagem contundente para que ninguém ficasse com dúvidas sobre os resultados. E considera que essa meta só poderia ser alcançada com o empenho de todos os que apoiavam o processo na conquista do maior número possível de votos.

        O grande desafio era alcançar esse objectivo sem contar com um instrumento político capaz de canalizar militantemente todo o apoio popular que tinha. Infelizmente, o Comando Ayacucho – uma frente eleitoral criada a 3 de Outubro de 2003 com o objectivo de defrontar o processo revogatório e outros processos eleitorais – tinha ficado mal visto no processo de recolha e recuperação de assinaturas e na selecção dos candidatos a presidente de municípios do próximo processo eleitoral. O sectarismo, o clientelismo, o individualismo, a ineficiência, a incapacidade de fazer previsões correctas e as manobras pouco transparentes impediam-no de cumprir o papel de condutor na batalha que se avizinhava. Apenas o presidente podia desempenhar esse papel, comunicando directamente com os seus seguidores mais empenhados. Surge assim a ideia de criar pequenos núcleos de militantes ou patrulhas eleitorais em todo o país, unidades formadas por grupos de dez activistas políticos ou sociais (militantes), cada um com a principal tarefa de falar com dez pessoas, visitando todas as casas e procurando conquistar votos contra o processo revogatório, ou seja, o voto pelo «Não» no referendo, da maior parte possível dessas pessoas. Cada patrulha tinha a responsabilidade de contactar cem eleitores. Se, por exemplo, uma área eleitoral tinha dois mil inscritos, formavam-se 20 patrulhas. Isto é, organizavam-se 200 pessoas que deviam dividir entre si a missão de falar com os dois mil eleitores. A ideia original de Chávez era que não ficasse uma família por visitar.

        Ao mesmo tempo que apela às pessoas para que se organizem nas suas bases, o presidente designa uma instância nacional de condução da campanha eleitoral. A sua composição é interessante. Além de várias ministros e escassos quadros políticos, é formada maioritariamente por pessoas que até aí não tinham participado em formações políticas: artistas, académicos, comunicadores. Estas caras novas, não contaminadas pelo passado, deram uma imagem de prestígio e frescura à campanha.

        Ainda que as instâncias estatais e municipais que conduziram a campanha tenham deixado muito a desejar e em muitos casos foram portadoras dos mesmos vícios, constituindo o ponto débil da estrutura, felizmente influíram pouco no trabalho de base e nos resultados da campanha.

        O que, em muitos casos, salvou a situação foi a correcta composição das unidades organizativas em cada área eleitoral (Unidades de Batalha Eleitoral, UBEs): uma espécie de direcção operativa organizada em cada área eleitoral de não mais de 20 pessoas. O presidente insistiu na composição democrática destas unidades. Nelas deviam estar representadas as forças vivas da respectiva área eleitoral. Podemos dizer que onde existem organizações populares fortes isto assim se verificou, mas em muitas localidades isto não aconteceu ou conseguiu-se apenas em parte.

        Com ou sem UBEs eleitas democraticamente, com ou sem Comandos Maisanta estatais e municipais à altura do que estava em jogo, o que ninguém podia impedir era que as patrulhas se confinassem à base por decisão soberana dos partidários do presidente e realizassem a sua tarefa com a dedicação e o amor de quem sabe que do seu trabalho dependia o futuro do seu líder e do processo revolucionário.

        Muitas delas não cumpriam os requisitos definidos por Chávez:

        a) não serem formadas por activistas políticos ou sociais, mas por simples simpatizantes do processo que iam votar «Não»;

        b) não trabalhar com base nas listas eleitorais, mas sim percorrer quarteirão a quarteirão ou edifício a edifício;

        c) não serem formadas nas zonas de habitação, mas nos centros de trabalho.

        Apesar disso, não há dúvida de que, através delas, se criou o maior processo organizativo que o processo revolucionário venezuelano até então viveu. Permitiu que centenas de milhar de simpatizantes participassem numa tarefa política concreta, independentemente da existência ou não de uma condução partidária na sua área geográfica. Muitas pessoas emocionalmente comprometidas com o processo mas até então inactivas tiveram a sua primeira experiência organizativa e política. Milhares de anónimos contribuíram com o seu grão de areia. E também os dirigentes que foram capazes de deixar de lado os seus projectos sectoriais e pessoais e decidiram trabalhar ligados às bases em função de um só objectivo: a vitória do «Não».

        O povo venezuelano saiu muito fortalecido da experiência prática vivida. Cresceu em auto-estima, cresceu humanamente. Tudo o que seja planificado no futuro não pode deixar de ter em conta este facto. Esta vitória, mais do que uma vitória eleitoral, quantitativa, é uma vitória moral, qualitativa.

Quarta etapa: consolidação e aprofundamento da revolução

        O triunfo eleitoral de Chávez no referendo de 15 de Agosto de 2004 constitui a terceira grande derrota sofrida pela oposição, significa um enorme avanço no processo revolucionário venezuelano e aponta para a necessidade de prosseguir a sua consolidação transformando-o em algo irreversível.

        Qual é a correlação de forças que existe neste momento e como se pode alterar? O governo sai evidentemente fortalecido a nível nacional e internacional. Já ninguém pode negar o carácter democrático do processo bolivariano e o grande apoio popular de Chávez. Os guerreiros mediáticos ficaram sem munições. A oposição desmascarou-se, perdeu muita credibilidade (as suas análises revelaram-se ilusórias e demonstraram como estavam longe da realidade e das pessoas). Agudizam-se as lutas internas entre as suas facções. Nestas circunstâncias, o assassinato de Chávez pode surgir como a única opção para os membros mais radicais da oposição, uma opção extremamente arriscada, pois poderia levar à matança mais sangrenta do continente desde a conquista e o seu resultado final seria imprevisível.

        Não nos podemos esquecer, contudo, da existência de cerca de quatro milhões de pessoas que votaram a favor da revogação do presidente e que claramente não fazem parte da oligarquia. Um dos grandes reptos futuros do actual governo será precisamente saber trazer para o processo uma parte significativa dessas pessoas, tal como aquelas que ficaram em casa por falta de motivação para participar no processo eleitoral. Igualmente não pode esquecer as expectativas que o triunfo criou nas seis milhões de pessoas que votaram «Não».

        Os desafios a enfrentar nesta nova etapa são variados: políticos, económicos, institucionais e comunicacionais. O processo revolucionário bolivariano deveria dar um salto qualitativo quanto à participação do povo. A ideia do presidente de que «a pobreza não poderá ser eliminada se não se entregar o poder ao povo» deveria materializar-se em formas organizativas e participativas concretas. Há que aperfeiçoar os instrumentos de participação cidadã apontados pela constituição que não podiam ser exercidos devido à bipolarizada situação política do país. Há que pôr a trabalhar as juntas paroquiais, dar-lhes os melhores quadros populares e impulsionar a actuação dos conselhos locais de planificação e das administrações sociais. É o momento de dar um impulso ao Poder Cidadão e Eleitoral para que os seus membros possam desenvolver as suas funções de forma independente. E, à medida que surjam novas lideranças e se consolidem algumas antigas, deve-se avançar para uma direcção cada vez mais colectiva do processo. Fidel Castro tem razão quando diz que Chávez não pode continuar a ser o alcaide de toda a Venezuela e o próprio presidente tem isso claro.

        Há que fazer um esforço para superar os problemas herdados da IV República no terreno político. Não se pode perder toda a experiência de organização e participação popular acumulada na recente campanha eleitoral. As patrulhas e as UBEs deveriam fazer um balanço do seu trabalho e seria bom que este fosse discutido em assembleias locais. Onde as UBEs não funcionaram, há que encontrar formas de reunir as patrulhas da maneira mais eficiente. Toda a experiência acumulada e as reflexões que se façam em torno dessa experiência deveriam constituir bases valiosas para elaborar em conjunto a proposta de uma grande frente política que reuna todos os militantes que se identifiquem com o projecto bolivariano. Há que transformar as patrulhas eleitorais em patrulhas sociais e convidar a analisar e discutir os problemas sociais todas as pessoas interessadas de cada comunidade. Quem é patriota, quem ama a Venezuela deve ser integrado no projecto revolucionário, mesmo que não seja necessariamente partidário de Chávez. Há que conseguir que todas essas pessoas se sintam úteis. Há muito que fazer por este país e quanto mais pessoas se organizarem e se mobilizarem sob estas bandeiras, mais depressa se poderá avançar. A radicalidade do processo não depende da radicalidade do discurso, mas da capacidade de mobilizar e envolver activamente no projecto os mais amplos sectores do povo.

        Que organização política poderia surgir da experiência do referendo? Não há dúvida de que é preciso superar a dispersão orgânica do imenso potencial militante que existe no país, criando um espaço para aquelas pessoas que não fazem parte de uma organização política ou social. O novo instrumento político deveria ser muito mais do que a soma de partidos e organizações sociais populares e evitar reproduzir a disputa por cargos de direcção. Quem está organizado nas bases deveria ser representado a todos os níveis de forma proporcional ao seu trabalho de base. Esse instrumento deveria reunir todas as forças patrióticas, sem exclusões, em torno de um único programa; ter uma relação privilegiada com os movimentos sociais; possuir uma direcção amplamente respeitada; estar dotado de regras claras que especifiquem os direitos e os deveres dos seus membros e mecanismos de controle dos dirigentes pela base; conceber o seu crescimento essencialmente como a construção de força desde a base e não apenas através de acordos políticos; e, por fim, estimular o surgimento de uma liderança autêntica.

        É necessário avançar também para a construção de um instrumento unitário dos trabalhadores. Há, todavia, demasiada dispersão. os velhos métodos continuam a ser utilizados. É imprescindível partir para uma discussão sobre o novo tipo de sindicalismo, necessário para enfrentar as transformações radicais que a força de trabalho sofreu nas últimas décadas e para reflectir sobre o papel dos trabalhadores venezuelanos no processo revolucionário que o país está a viver.

        É indispensável avançar no desenvolvimento do método económico alternativo e, para isso, a iniciativa do Estado é essencial. Nesse sentido, é necessário consolidar as grandes empresas estatais nas áreas estratégicas: petróleo, electricidade, telecomunicações, finanças, distribuição de alimentos e transportes. Actualmente regem-se segundo a lógica do lucro e não por uma lógica humanista e solidária, em que os trabalhadores desempenhem um papel importante na sua gestão. Devem ser eles a assegurar a aplicação desta lógica e ao mesmo tempo a desenvolver a economia popular em grande escala, através de cooperativas e associações dos mais diversos tipos que permitam a participação dos trabalhadores no processo e assim a transformação das relações de produção.

        A actividade em ambas as esferas é fundamental, porque as duas procuram resolver o problema do desemprego e do emprego disfarçado do sector informal, uma das dificuldades mais sérias dos pobres. A iniciativa do Estado mais relevante para enfrentar este desafio é o projecto da Missão Vuelvan Caras, uma combinação de iniciativas estatais e de cooperativas que pretende impulsionar o desenvolvimento interno, criando núcleos de desenvolvimento destinados a satisfazer as necessidades internas e a preparar integralmente a força laboral que enfrentará essas tarefas. Esta missão deve consolidar-se e expandir-se, se se deseja resolver os problemas da economia.

        Como precisamente uma das tarefas prioritárias desta etapa é resolver o problema do emprego, há que impulsionar também a reactivação do sector industrial privado disposto a colaborar com o projecto de desenvolvimento endógeno proposto pelo governo e fomentar o desenvolvimento de empresas mistas. Por outro lado, o desenvolvimento endógeno só poderá ser desenvolvido em todas as suas potencialidades se ao mesmo tempo se concretizar uma integração latino-americana alternativa à que o governo dos Estados Unidos está a tentar impor, que se reja por outra lógica, pela lógica humanista e solidária que caracteriza o projecto bolivariano. Daí que outra tarefa importante desta nova etapa seja impulsionar a ALBA, alternativa à ALCA, proposta por Chávez.

        Há que melhorar a correlação de forças no domínio institucional. Neste sentido, são muito importantes as próximas eleições de governadores e presidentes de municípios em finais de Outubro(26) e mais ainda as eleições de concelhos e juntas paroquiais e de deputados à Assembleia Nacional que terão lugar no próximo ano. Se não se alcançar uma clara maioria nessas instituições, serão necessários pactos com sectores da oposição para torná-las operantes.

        O processo bolivariano deve passar de uma acumulação quantitativa para uma acumulação qualitativa. Até agora tem-se dado prioridade ao apoio quantitativo para conseguir correlações de força favoráveis ao processo nas instituições e por isso deu-se prioridade aos votos para ganhar cargos. Agora é necessário pôr o acento na eficiência, em desempenhar melhor as responsabilidades que cada um assumiu para pôr em prática todos os projectos e iniciativas anunciados pelo governo e que devem melhorar radicalmente as condições de vida do povo, até agora pouco alteradas.

        Há que avançar na transformação do Estado. Superar os problemas da IV República. Como disse Alí Rodriguez, «temos um governo revolucionário, mas ainda não temos um Estado revolucionário»(27) e isso explica que as missões tivessem de ser realizadas à margem das estruturas dos ministérios correspondentes. Elas devem ter lugar no novo modelo de Estado. Para isso é preciso reestruturar ministérios e criar outros. O essencial é que estas instituições deixem de ser escritórios burocráticos situados nas grandes cidades e se mudem para onde as pessoas vivem e trabalham, onde a população possa exercer um controle social da gestão pública. Entre outras coisas, a transparência é fundamental. As pessoas devem estar informadas sobre os recursos e os seus destinos para poder exercer esse controle, a única forma de se poder superar o flagelo da corrupção, outra das tarefas prioritárias da nova etapa que se inicia.

        Os funcionários do Estado deveriam transforma-se em eficientes servidores públicos onde os seus serviços fossem requeridos em vez de se colocarem atrás de uma mesa à espera da hora da saída do trabalho ou usando o aparelho de Estado para tráfico de influências e desvio de recursos.

        Por último, temos o desafio comunicacional, um dos maiores com que o governo tem de lidar, pois tem de chegar à mente e ao coração dos milhões de venezuelanos que ainda não se sentiram identificados com o seu projecto. Muitas pessoas, especialmente da classe média, recusavam Chávez e o seu projecto porque foram enganadas pelos meios de comunicação social. Estes convenceram-nas de que Chávez é um ditador, que quer cubanizar a Venezuela, que vai destruir a propriedade privada, que quer fazer desaparecer a classe média, que não respeita a liberdade sindical, que persegue os jornalistas e que é responsável pelas situações de violência no país. Todas estas acusações são absolutamente falsas. O que estas pessoas recusam (uma grande parte dos quatro milhões que votaram a favor da revogação de Chávez) não é o projecto de Chávez, mas sim uma caricatura completamente deformada desse projecto, produzida pelos media. Essas pessoas não conhecem realmente o projecto de país que o presidente pretende construir. Como fazer para que esse projecto seja conhecido por essas pessoas é talvez um dos maiores desafios do governo de forma a criar uma correlação de forças suficientemente favorável ao processo, que lhe permita avançar e consolidar as transformações que se propôs realizar pela via pacífica. O mesmo desafio impõe-se a nível internacional.

        É essencial que o governo encontre a forma de impedir que estas distorções criadas pelos meios de comunicação prossigam. Deveria exigir que os media da oposição sejam meios de informação e não de desinformação. Apoiado na força internacional que alcançou com o resultado do referendo, deve defender firmemente o direito do povo de estar correctamente informado. Não há democracia sem pessoas informadas. Todos os meios de comunicação, incluindo os do Estado, devem sofrer um processo de transformação profundo. Estes últimos devem possuir novos meios técnicos para ter maior alcance e trabalhar de forma mais eficiente. O governo deve apoiar os meios alternativos e, por último, deve materializar-se quanto antes o projecto de uma televisão para o Sul, tanto para transmitir uma perspectiva verdadeira do que acontece na Venezuela ao resto da América Latina, como para proporcionar uma fonte informativa alternativa aos venezuelanos.

        Observe-se com atenção estes quatro desafios: político, económico, institucional e comunicacional. Todos têm um elemento comum. Não se propõem acabar com o capitalismo imediatamente, mas cada um deles está relacionado com a capacidade do povo para participar mais consciente e activamente na vida do país. Política económica, institucional e comunicacionalmente. Só assim o processo revolucionário bolivariano poderá avançar com segurança e se tornará irreversível.


Notas de rodapé:

(1) Cerca de dois milhões. (retornar ao texto)

(2) A Constituição diz textualmente no capítulo IV: Sobre os direitos políticos e o referendo popular, segunda secção: do referendo popular, artigo 75: «Todos os cargos e magistraturas de eleição popular são revogáveis. Transcorrido metade do período para o qual foi eleito o funcionário ou a funcionária, um número não menor de vinte por cento dos eleitores ou eleitoras inscritas na correspondente circunscrição poderá solicitar a convocação de um referendo para revogar o seu mandato. Se o número de pessoas que votarem a favor da revogação for igual ou superior ao número de eleitores ou eleitoras que elegeram o funcionário ou a funcionária, desde que tenham participado no referendo um número de eleitores ou eleitoras igual ou superior a vinte cinco por cento dos eleitores ou eleitores inscrito ou inscritas, considera-se revogado o mandato e proceder-se-á de imediato de forma a cobrir a falta conforme o disposto nesta Constituição e na lei.» (retornar ao texto)

(3) Quase 80 por cento do petróleo venezuelano destina-se ao mercado norte-americano. A empresa venezuelana CITGO refina-o e vende-o como derivado ou gasolina. Essa empresa, por si só, tem dez por cento do mercado de gasolina norte-americano. (retornar ao texto)

(4) Marta Harnecker, «La Izquierda en el Umbral del Siglo XXI. Haciendo Posible lo Imposible», Siglo XXI Editores, España, 3.ª ed., 2000, pp. 70-74. "Tornar possível o impossível — A esquerda no limiar do século XXI", Campo das Letras, Portugal, 2000, 372 pp. (retornar ao texto)

(5) O Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (o número corresponde ao bicentenário da morte de Simón Bolívar) foi fundado por um grupo de jovens oficiais do Exército, a 17 de Dezembros de 1982, em Maracay, em homenagem ao libertador Simón Bolívar, «com o objectivo estratégico de tomar o poder e de construir um novo modelo de sociedade» (Alberto Jordán Hernández, «Prueba al MBR 200», Caracas, 15 de Maio de 2001). (retornar ao texto)

(6) Estes militares decidiram actuar contra Carlos Andrés Pérez quando ele os lançou contra o povo para controlar a exaltação popular motivada pela fome e pela pobreza, a 27 de Fevereiro de 1989, no chamado «caracaso». (retornar ao texto)

(7) Neste sentido impulsionou processos de integração sul-americanos e caribenhos; privilegiou a relação com os seus parceiros da Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e aproximou-se de outros pólos de poder mundial como a Índia, a Rússia e a China, estreitando ao mesmo tempo os laços com os fóruns de nações emergentes, como o Grupo dos Quinze de Cooperação Sul e o Grupo dos 77. No corno Sul, Chávez procurou alcançar uma aliança com o Brasil para opor-se à ALCA e tornar-se membro da MERCOSUL (Marta Harnecker, «Venezuela: Una Revolución Sui Generis», trabalho apresentado no seminário da LAC durante o Terceiro Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, Janeiro de 2003. Este artigo desenvolve mais profundamente alguns dos temas mencionados aqui nas duas primeiras etapas do processo). (retornar ao texto)

(8) Escolas de horário completo, onde os estudantes recebem pequeno-almoço e almoço. (retornar ao texto)

(9) A 25 de Abril faz-se a consulta ao povo sobre a convocatória para a Assembleia Constituinte; a 25 de Julho são eleitos os membros da Assembleia Constituinte (o Pólo Patriótico controlava 121 dos 131 lugares); a 15 de Dezembro é aprovada a nova Constituição com amplo apoio dos eleitores, ainda que a abstenção tivesse sido muito alta (62,2 por cento). (retornar ao texto)

(10) Realiza-se fundamentalmente durante o ano 2000, o segundo ano de governo. (retornar ao texto)

(11) Frente eleitoral formado por todos os partidos que então apoiavam o processo. (retornar ao texto)

(12) Eleições para Presidente da República (Dezembro de 1998); referendo sobre a instalação da Assembleia Constituinte (25 de Abril de 1999); eleição dos constituintes (25 de Julho de 1999); aprovação da nova Constituição (15 de Dezembro de 1999); mega-eleição do presidente, deputados, governadores e presidentes de municípios (30 de Julho de 2000); eleições de conselheiros e membros das juntas paroquiais (3 de Dezembro de 2000); eleições sindicais (Agosto-Outubro de 2001); e referendo revogatório (15 de Agosto de 2004). A única eleição que o governo aparentemente perde é a da direcção da Central de Trabalhadores da Venezuela (CTV), em Outubro de 2001, quando o opositor, Carlos Ortega, membro da direcção executiva do Partido Acção Democrática, é proclamado vencedor apesar das acusações de fraude, sobre as quais o Tribunal Nacional Eleitoral ainda não se pronunciou definitivamente. (retornar ao texto)

(13) Este processo decorre fundamentalmente durante 2003, o terceiro ano de governo. (retornar ao texto)

(14) A chamada «Lei Habilitante» é aprovada em Novembro de 2000. Trata-se de uma medida transitória (dura um ano) e prevê que a situação de a Assembleia Nacional entregar ao executivo o poder de elaborar leis-chave para o futuro do país, nas áreas financeiras e sociais. O Conselho de Ministros elabora a lei, o presidente aprova-a, notifica-se a Assembleia Nacional e converte-se em lei de imediato, sem mais trâmites. (retornar ao texto)

(15) Intervenção de Chávez na entrega a Fidel Castro do Grande Colar da Ordem de Angostura, a 11 de Agosto de 2001, em Cidade Bolívar. (retornar ao texto)

(16)Harnecker, Marta, «Venezuela: Uma Revolución Sui Generis», op. cit. (retornar ao texto)

(17) Recorde-se que a destituição dessa direcção (25 de Fevereiro de 2002) foi um dos principais motivos das mobilizações da oposição que culminaram no golpe de Abril desse ano. (retornar ao texto)

(18) A 30 de Janeiro de 2003, o ex-presidente Jimmy Cárter desenhou uma saída institucional para a crise: o presidente aceitava ser referendado ou alterava a Constituições para se realizar eleições gerais. A oposição volta a mostrar-se forte e inicia um novo processo de recolha de assinaturas (Fevereiro de 2003). Desta vez, afirma ter recolhido mais de quatro milhões. A secção eleitoral do Supremo Tribunal de Justiça pronuncia-se contra este processo por ser inconstitucional. A constituição bolivariana contempla quatro tipos de referendos: consultivo (sobre grandes projectos nacionais); revogatório (para revogar mandatos, que pode realizar-se durante a segunda metade do mandato); aprovatório (para aprovar projectos); e anulatório (para abolir leis). (retornar ao texto)

(19) Os consultórios médicos são inaugurados a 17 de Junho. (retornar ao texto)

(20) A Missão Robinson começa a 1 de Julho de 2003. (retornar ao texto)

(21) A 29 de Julho é inaugurada em Caracas a Universidade Bolivariana da Venezuela. (retornar ao texto)

(22) Numa das cadeias nacionais de rádio e televisão, o presidente do CNE, Francisco Carrasquero, anunciou que 1832493 assinaturas eram consideradas válidas para o referendo revogatório presidencial e 876027 assinaturas seriam restauradas por caligrafia similar, erros nas impressões digitais e erros no registo eleitoral. 233573 assinaturas foram invalidadas segundo as resoluções dos artigos 3, 5 e 7, onde são expostos os critérios de validação da CNE. 143930 assinaturas foram invalidadas por serem de pessoas não inscritas no REP, menores de idade ou não saberem escrever. (retornar ao texto)

(23) Está por saber quando se pronuncia o CNE e que número exacto de assinaturas foi recolhido. (retornar ao texto)

(24) A oposição tinha de reunir pelo menos o equivalente a 20 por cento das assinaturas dos eleitores que votaram em 1999 e conseguiu apenas mais 15 mil assinaturas. (retornar ao texto)

(25) De facto, durante o processo constituinte defendeu que fossem necessárias menos assinaturas para torná-lo possível. Queria viabilizá-lo e não impedi-lo. (retornar ao texto)

(26) Nesse data devem ser eleitos 23 governadores e 337 presidentes de municípios. A oposição tem actualmente 9 governadores e 150 presidentes, parte deles na estratégica área metropolitana. (retornar ao texto)

(27) Na sua intervenção no Segundo Encontro Internacional de Solidariedade com o processo revolucionário bolivariano, em Abril de 2004. (retornar ao texto)

Inclusão: 24/11/2021