A História como aporia
Teses preliminares para a discussão em torno da historicidade das relações de fetiche

Robert Kurz


3. Aporias solúveis e insolúveis


A reflexão sobre a indispensável localização histórica específica, portanto sobre a sua relatividade histórica, e ainda sobre o carácter de conduzidas por interesses da investigação histórica e da teoria da história no interior desta localização, tal como elas há muito vêm sendo feitas, implica naturalmente que no fundamental nenhum acesso teórico poderá jamais fazer "justiça" às constituições históricas do passado. O que não significa, para o fazer notar mais uma vez, que tenha sido passada carta branca para empreender uma aproximação aleatória e arbitrária. O material histórico tem a sua volumosa qualidade própria, que não poderá ser desprezada, nem modelada violentamente à medida do interesse de cada um. É proibido, portanto, um simples processo dedutivo, ontológico, de lógica de derivação e de identidade. O conceito de "história de relações de fetiche" já inclui de facto, como já expliquei e como será ainda demonstrado com mais precisão, uma crítica a este processo da filosofia da história moderna clássica. Uma vez que Wallner tenta indirectamente aplanar esta diferença, sem se ocupar nada com ela, escapa-lhe que ela abre uma aporia, a que ele não pode eximir-se, e que não constitui nenhum argumento contra o princípio teórico duma "história de relações de fetiche".

Isto é, logo que deixamos o continuum interno da história da imposição da forma do valor e da dissociação e nos referimos à história no seu conjunto, ou a determinadas formações pré-modernas, o conceito teórico tem que tornar-se forçosamente aporético, uma vez que ele, por um lado, inevitavelmente provém das relações modernas, ou no nosso caso da sua crítica radical, por outro lado, porém, ele será levado para junto de objectos "estranhos" a essas relações. Não pode ser de outra maneira. Só assim o conceito de história pode ser transformado, como momento-parte de um movimento da imanência para a transcendência, que produz tais aporias (não apenas na teoria da história). A crítica radical implica, juntamente com o transcender das relações de valor-dissociação vigentes, também um transcender do entendimento da história, que corresponde à revolução social visada. Nesta ruptura estão sempre incluídos momentos de continuidade, e a eles pertence também a aporia do pensamento da teoria da história. Nós nem precisamos sequer de tentar fazer "plena justiça" às constituições pré-modernas, no sentido da sua total apreensão intelectual e congruente reprodução teórica, uma vez que a ocupação com isso já é sempre parte integrante da crítica às nossas próprias relações e logo justamente aporética. Trata-se, portanto, apenas de tomar o material histórico a sério na sua própria lógica, sem por isso desistir do conceito de teoria da história.

Aqui deveria ser feita uma diferença entre aporias solúveis e, de certa maneira, insolúveis, estando as primeiras relacionadas com a nossa história da constituição e história interna do capitalismo moderno, e as últimas com o acesso a uma teoria da história que vai mais longe. Em Adorno, por exemplo, existe a aporia (no interior da análise da própria sociedade moderna) em que ele, por um lado, declara a esfera da circulação e o sujeito da circulação, enquanto "abstracção da troca", como a causa do mal da lógica da identidade, querendo, por outro lado, fazer deste plano a alavanca da emancipação. Esta aporia é solúvel, uma vez que se seja levada em conta a relação de reprodução do trabalho abstracto e da dissociação como um todo, e assim a esfera da circulação seja despida da sua santa aparência universalista. Adorno não estava ainda em posição de o fazer, porque, apesar da sua crítica ao marxismo do movimento operário, permaneceu agarrado à ontologia do trabalho e da dissociação. A aporia de Adorno só é solucionável com a crítica do valor, do trabalho e da dissociação.

Nós agora, não só com o conceito de "história de relações de fetiche", mas também com qualquer outro acesso à teoria da história, estamos confrontados com uma aporia que não é solucionável deste modo, porque não podemos desenvolver nenhum critério de correcção correspondente. Este abismo nem sequer com uma viagem no tempo seria totalmente transposto, porque chegaríamos sempre ao passado como indivíduos de constituição moderna que somos. E isto é válido também para os futuros seres humanos de um mundo livre da relação de valor-dissociação. Wallner não faz nenhuma reflexão sistemática chamando a atenção para esta aporia insolúvel, porque ele tem que deixá-la indefinida, para a dependurar apenas no conceito de "história de relações de fetiche" e assim supostamente o poder desacreditar. Ele próprio gostaria de se eximir a esta aporia insolúvel, esquivar-se-lhe e contorná-la; pelo menos ele assim faz. Por aí só pode fracassar. Eu, pelo contrário, pugno por colocar esta aporia conscientemente, "assumi-la" e operar com ela na reflexão.


Inclusão: 004/11/2020